FACES DA HISTÓRIA
183
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da
segunda metade do século VI
The episcopal sanctity and her relationship with the political and civil power in
Gaul of the second half of the VI century
CHARRONE, João Paulo
*
Resumo: A hagiografia do período e da sociedade merovíngia afirma, entre outras coisas,
que os bens monopolizados pela instituição eclesiástica indicam o caminho e o
comportamento esperado para se atingir a salvação como algo único para superar as
dificuldades terrestres e adquirir o direito de um julgamento favorável nesta vida, bem como
a legitimação do poder episcopal junto a qualquer outro poder a que queria fazer frente.
Neste sentido, procura-se aqui analisar como os bispos, os controladores desse “mercado”
simbólico, utilizaram o discurso hagiográfico para afirmaram-se enquanto autoridade
religiosa e civil.
Palavras-Chave: Hagiografia. Poder Político. Bispos.
Abstract: The hagiography of Merovingian period and society says, among other things, that
wealth monopolized by the ecclesiastical institution indicate the path and the expected
behavior to achieve salvation as something unique to overcome earthy difficulties and
acquire the right to a favorable judgment in this life, as well as the legitimacy of episcopal
power with any other power that wanted to attack. In this sense, we analyzed how the
bishops, the controllers of this symbolic "market" used hagiographic discourse to secure their
religious and civil authority.
Keywords: Hagiography. Political Power. Bishops.
Introdução
Com o intuito de facilitar o entendimento do papel que o santo bispo assumiu na
sociedade merovíngia, sentimos a necessidade de mencionar alguns referenciais teóricos
propostos por P. Bourdieu (1989; 1996 e 2003), os quais adotaremos no desenvolvimento do
artigo. Esse sociólogo desenvolveu vários conceitos em seu trabalho para analisar e discutir
*
Professor Assistente I Universidade Federal do Piauí, Campus Professora Cinobelina Elvas. BR 135, km 3,
Bairro Planalto Horizonte, CEP: 64900-000, Bom Jesus/PI Brasil. Mestre em História - Doutorando - Programa
de Pós-graduação em História – Universidade Federal Fluminense. E-mail:jcharrone@yahoo.com.br
Recebido em: 25 de março de 2014.
Aprovado em: 14 de junho de 2014.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
184
a sociedade, porém são centrais o campo e o habitus
1
. No que tange especificamente à
questão da formação e estruturação do campo religioso, ele destacou que a legitimidade
poderia ser atingida e garantida por meio da formação de um corpo de especialistas
agregado à constituição de um conjunto de práticas que definem e transformam o grupo,
sob condições de uma autonomia relativa. Em outras palavras, como destacou M. Bastos
(2006, p.136):
[...] a ascensão do cristianismo supôs a monopolização da relação com o
divino, acessível ao mais comum dos mortais apenas em função da
intermediação dos eleitos de Deus. Assim, destacaram-se as mediações
exercidas pelos signos corpóreos da eleição divina as relíquias dos santos
dos mortos devidamente selecionados. Tratar-se-ia, pois, de um novo
sistema social e religioso em ascensão, irredutível ao seu precedente, e que
viria, embora progressiva e lentamente, a caracterizar a cristandade latina.
Dada à possibilidade de qualquer um, coisa ou lugar poder ser considerado como
santo na sociedade do Ocidente medieval, o problema que se coloca, aos homens do
período, era como localizar as “genuínas” santidades. Tais processos serão promovidos,
especialmente, pelos membros da elite desse campo. Esses, por sua vez, não podiam
simplesmente impor, a seu bel prazer, as suas escolhas e vontades, isto é, era preciso
também “negociar” com as tradições folclóricas das massas (LE GOFF, 1980). Neste
sentido, como o tempo, os bispos se tornaram, na sociedade merovíngia do século VI, o
grupo responsável pela “venda” e pela “administração” de bens exclusivos e que eram
reconhecidos por todos – à salvação ou o sagrado.
Eles, assim, representavam a elite do campo religioso merovíngio, “comerciando” a
salvação e o sagrado, o bem monopolizado pela Igreja e reconhecido por todos. Essa
“venda” se dava de diferentes modos: pregações, leituras e exegeses de trechos blicos,
imagens com fundo religioso, combate e/ou aculturação dos elementos “concorrentes” a
dita cultura folclórica -, procissões ou ladainhas e etc. Neste artigo, utilizaremos,
especialmente, as hagiografias, pois consideramos que elas delineavam práticas e
comportamentos por meio da imitatio sancti.
Acreditamos que os processos de cristianização das sociedades germânicas são um
locus no qual, claramente, percebe-se a valorização do sagrado e da salvação no discurso
religioso clerical frente à sociedade, não apenas com fins religiosos. Desse modo, essa
instituição articulou, sempre negociando com o arcabouço cultural da massa, um conjunto
de representações que, além de realçar a importância do seu sagrado, também afetava o
comportamento dos homens medievais. Um bom exemplo disso foi o desenvolvimento do
culto aos santos (BROWN, 1984). Em outras palavras, como os santos eram “acessíveis” a
1
Entendemos por habitus como as possibilidades de apreensão da realidade e ação prática específicas de cada
grupo social. Conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em sua Teoria da Ação Prática
(BOURDIEU, 1989).
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
185
todos, reproduziram-se ao redor deles evidentemente, beneficiando àqueles que
dominavam o seu culto relações de dependência e submissão que estruturavam a
sociedade de então.
O desenvolvimento do culto dos santos na Cristandade Ocidental se iniciou logo nos
primeiros séculos do cristianismo e ganhou grande projeção a partir do quarto século,
período que ocorreu a apropriação desses cultos pelos bispos. No mundo franco, marcado
pelas fortes rivalidades, a fonte primária de unidade de forças competidoras dentro da
sociedade era a busca do controle do “sagrado”, ou seja, o controle dos santos pelos bispos
não era concedido sem desafiar o resto da sociedade ou, sem dúvida, os próprios santos
(GEARY, 1988, p. 137).
A função público-religiosa do culto aos santos
Partindo da premissa de que cultuar os santos era dever de todo cristão, bem como
era missão da Igreja identificá-los, tentaremos esclarecer, por meio do discurso hagiográfico,
as possíveis “leituras” sobre a santidade, assim como suas estruturas de aplicação e seu
“publico alvo”, procurando, sempre, as possíveis relações com as condições de produção.
Assim, faremos uma análise orientada à percepção destas práticas religiosas como
mecanismos de enquadramento ou estratégias de imposição simbólica
2
, de acordo com o
modelo teórico de Bourdieu (1989; 1996 e 2003). Nesse sentido, o “tabu de explicitação”
(BOURDIEU, 1996, p. 162), ou seja, a anulação ou camuflagem das relações de trocas
sociais, funcionará adequadamente como base de análise de nosso objeto.
Também devemos levar em conta a relação dos indivíduos com os campos, áreas de
interesse, aos quais é inserida relação caracterizada como illusio ou investimento
(BOURDIEU, 1996, p. 140-142) apresentando-se de forma imposta, via à interiorização e
reprodução de uma determinada representação ou discurso. Sendo assim, a illusioseria
tanto condição quanto produto da dinâmica de um certo campo.
Por isso que a chegada de uma relíquia ou o estabelecimento de uma festa era um
ácido teste de alinhamento de uma comunidade (BROWN, 1982, p. 238). Percebemos isso
claramente nos esforços de Gregório de Tours, devido a sua origem região de Auvergne –,
em integrar sua própria devoção pessoal a são Martinho, o antecessor bispo de Tours,
desvinculando, desse modo, os laços com sua cidade natal (BRENNAN, 1997, p. 125-126).
2
Estratégias de imposição simbólica devem ser entendidas como mecanismos de enquadramento, ou seja,
ações que visam a imposição de determinada “visão de mundoou representação, podendo ser de dois tipos:
“insulto” (de caráter individual) e “nomeação oficial”, sendo esta um tipo de imposição que tem a seu favor a força
do coletivo, do senso comum. É operada pelo mandatário do Estado; detentor do monopólio da violência
simbólica legítima; que passa a ser visto como porta-voz autorizado (BOURDIEU, 1989).
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
186
Lembramos, ainda que, ele foi nomeado bispo com a aprovação dos governantes Sigiberto
(561-575) e Brunilda (561-613)
3
, casal real rival de Chilperico (561 584) e Fredegunda
(570 597)
4
. Nesse sentido, a morte de Sigiberto, em 575, ocasionada por emissários de
Fredegunda, segundo o bispo de Tours (GREGÓRIO DE TOURS, 1885, IV, c. 51), pode ter
se tornado um fator adicional que influenciou o bispo a buscar a vinculação de sua imagem
a de seu antecessor, como forma de assegurar sua posição.
Por outro lado, a chegada e a solene recepção das relíquias eram, também,
lembretes, ao fiel cristão, de que sua vida tinha que ser uma luta, já que representavam uma
poderosa lembrança das grandes obras de Deus feitas para a salvação dos homens, pois
ela recordava aos crentes, em determinado tempo e lugar, a Sua misericórdia.
Dessa forma o bispo trabalhava, principalmente, por meio das hagiografias, para
formar uma concordância sobre o santo que, simultaneamente, estabelecia um consenso
sobre o bispo, pois, se a santidade escapasse do controle episcopal, como havia ocorrido no
Oriente, o monopólio da religião e a autoridade política do bispo, bem como aquela dos seus
parentes aristocráticos, estariam em perigo. Foi precisamente isso que aconteceu no sétimo
e no oitavo séculos.
Contudo, no século VI, a crença nos santos era, aparentemente, efetiva entre todas
as camadas sociais, pois, na presença de relíquias e santos, todos os homens, tanto os
ricos como os pobres, eram colocados na mesma condição, ou seja, como humildes diante
da grandeza do santo. Fica evidente, aqui, o esforço de manutenção da hegemonia,
percebido no discurso hagiográfico, no campo religioso por meio, sobretudo, da
consolidação de um habitus eclesiástico, ou seja, dos parâmetros básicos de estruturação
da relação da Igreja com o resto da sociedade.
Até os reis merovíngios aceitavam aquelas crenças e, consequentemente,
concediam muita influência para a Igreja e seus clérigos. Um episódio que ilustra bem essa
característica do período em questão foi aquele em que o rei Chilperico não invadiu o
santuário de Tours, para capturar seu filho rebelde Merovech e o fora da lei Guntran Boso,
temendo uma punição de São Martinho (GREGORIO DE TOURS, 1885, V, c. 14). Ao
contrário, enviou um diácono com uma carta, na qual perguntava se ele poderia retirar, à
força, esses dois indivíduos, prometendo, ao santo, recompensas materiais. Percebemos,
em tal episódio, a afirmação do poder e do prestígio do santo e de Gregório de Tours como
seu sucessor e herdeiro de suas virtudes. Características que se estendem aos demais
prelados do período.
Não podemos esquecer que existe uma dependência simbólica entre os poderes,
pois, se os eclesiásticos dominam o espaço social que gira em torno do controle do sagrado,
3
Governantes da Francia Rhinensis (futuramente conhecida como Austrásia), a parte Oriental do Reino Franco.
4
Governantes da futura região conhecida como Nêustria, a parte Ocidental do Reino Franco.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
187
possuindo, neste campo, a liderança ao qual se submete até o rei, por outro lado, o
soberano, cujo poder é legitimado tanto pela sua origem familiar como pela liderança militar,
controla o campo político, ao qual os clérigos, apesar da sua inserção, estão submetidos.
É importante lembrar, também, que a corte que cercava o rei tinha pouca
importância, uma vez que o soberano tomava as decisões capitais sozinho, eventualmente
ele era aconselhado por personagens privados, dessa forma, os únicos que tinham alguma
possibilidade de limitar o poder do rei eram os bispos. E mais, segundo M. Heinzelmann
(s.d., p. 549-550), os trabalhos de Gregório de Tours revelam que ele estava consciente de
seu poder, de seu valor e de seu papel público junto à comunidade cristã como o sacerdos
Domini uma vez que endereçou a História em primeiro lugar aos reis.
Assim, a hagiografia é uma das expressões do reino franco na qual melhor se pode
observar a legitimação do poder da instituição eclesiástica, já que permite, pelo processo de
evangelização, caracterizar a atuação da Igreja em sua relação direta com a sociedade,
visto que a construção teológica hagiográfica prega que a única forma de se obter uma vida
“melhor”, aqui ou no “outro” mundo, é seguindo os princípios estabelecidos pela Igreja.
Nesse ponto encontramos a função do santo: figura legitimadora de que as normas e a
disciplina eclesiástica devem ser cumpridas para se atingir a salvação, ou seja, o santo era
um mecanismo, que atuava no convencimento da população, provando que a Igreja era um
caminho viável a ser seguido.
Assim, partindo da prerrogativa de que não há um ato desinteressado, pois os
agentes sociais não realizariam atos gratuitos, as condutas, aparentemente incoerentes,
possuem uma “razão” que deve ser descoberta a fim de que se perceba sua coerência e
funcionalidade social (BOURDIEU, 1996). A falsa aparência de “neutralidade” ou
desinteresse, apresentada em algumas condutas, deve-se ao fato delas serem, na maioria
das vezes, analisadas pela lógica dos fins religiosos, sem a consideração de que outros
tipos de interesse em jogo.
Na efetivação desse processo, o santo representava a instituição e objetivava
garantir a seus membros a legitimidade frente à sociedade, dado que o santo era visto como
o representante de Deus, neste mundo, e membro da Igreja, o que conferiu aos clérigos um
estatuto privilegiado frente à sociedade e, consequentemente, aos poderes civis e políticos.
Ou seja, embutidos no discurso hagiográfico, encontramos ações de caráter político-
ideológico, com o objetivo essencial de consolidar uma estrutura de organização social, ou
melhor, uma representação que deveria, por meio da atuação de um aparelho ideológico (as
hagiografias), inculcar nos fiéis como parâmetros básicos a construção de uma autoimagem
social. Isso, em outras palavras, corresponderia à garantia sobre o monopólio das formas de
pensar e agir naquela sociedade por parte do episcopado.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
188
Dessa forma, neste trabalho, usaremos as hagiografias para demonstrar como os
indícios do discurso religioso interferem e interagem na sociedade merovíngia. Porém,
devido a impossibilidade de tempo de visitarmos toda a produção hagiográfica do período
em questão, bem como, por questões metodológicas, centraremos nossas atenções,
especialmente, nas referências encontradas nos trabalhos hagiográficos de Venâncio
Fortunato
5
. Assim, buscamos destacar as relações dos “santos” bispos com o poder civil e
político presentes nos textos. Dado que, como salientou W. Klingshirn (1985, p.202),
estamos lidando com uma sociedade cujas ações dos bispos ecoam, concomitantemente,
nos diversos sistemas de valores.
O público das hagiografias na segunda metade do século VI
Antes de iniciarmos a discussão sobre o público das hagiografias em prosa de
Venâncio Fortunato, é pertinente apresentar uma breve discussão sobre a função e o papel
desempenhado pelo hagiógrafo na confecção desse gênero literário, ou seja, a primeira
questão que se levanta é por quem são feitos esses trabalhos? Tal questão se justifica, uma
vez que os hagiógrafos estão, direta ou indiretamente, envolvidos com as estratégias de
cristianização, da fixação da doutrina cristã, de linguagem, de fronteira cultural, de público,
de modelos de santidade, de relações de poder etc., atuando, no sentido de fazer ver e
sentir como gerais, em termos estéticos e gramáticos, valores relativos, atribuídos a partir de
uma perspectiva e de um lugar no espaço social.
O fenômeno de veneração dos santos no Ocidente está conectado ao
reconhecimento de seu caráter celestial, tanto por parte de uma comunidade como pela
Igreja Romana. Desse modo, para que um determinado indivíduo seja considerado como
um mediador eficaz, junto à esfera celeste, será preciso que lhe atribuam esse valor, ou
seja, em última instância, esse fenômeno depende muito mais do reconhecimento do poder
divino de um personagem por parte de uma comunidade religiosa, de um grupo social, dos
agentes ligados a Igreja, do que seu próprio esforço pessoal (PORTO, 2006, p. 296). Assim,
considerando a santificação como uma prática de atribuição de valor, centraremos, aqui,
nossa análise sobre a figura do hagiógrafo, que desempenha um significativo papel nesse
processo de reconhecimento.
Não devemos esquecer que, para se compreender o período medieval, não podemos
desconsiderar que a crença em Deus era um postulado para os homens medievais, uma
5
Poeta e hagiógrafo do sexto século, que deixou a Itália para buscar a hospitalidade e a patronagem dos reis e
bispos da Gália. São 6 as hagiografias (5 em prosa e 1 em verso) atribuídas a Venâncio Fortunato: a Vita s.
Hilarii; a Vita s. Germani; a Vita s. Albini; a Vita s. Paterni;a Vita s. Radegundis; a Vita s. Marcelli e a Vita s.
Martinii.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
189
necessidade absoluta de toda sua visão de mundo e de sua consciência moral. Essa era a
verdade para os homens da Idade Média e, em torno dela, organizaram-se todas as suas
representações e ideias, uma verdade a que perpassam seus valores culturais e sociais e
que constituía o princípio último que regulava toda a sua visão do mundo e da sua época.
Assim, com o objetivo de retratar a ação de Deus na vida de um homem, não se
preocupando em fazer uma distinção clara entre o mundo terrestre e o mundo divino, o
hagiógrafo medieval vai compor seu texto, mesmo cheio de boas intenções cronísticas e
documentais, com uma preocupação que não é primariamente histórica no sentido que
entendemos por “história” atualmente.
O que acontece, mais exatamente, é que o conceito de “história” é diferente para o
homem medieval. Na concepção medieval, teocêntrica, Deus era o centro e a medida de
todas as coisas, a realidade suprema, perfeita e acabada, enquanto o mundo era apenas
Sua Criação e símbolo de Sua Imagem. Assim, a realidade terrena, por si, a história,
modernamente dita, era secundária ao homem medieval. Interessa-lhe mais a História
Eterna, a História da Salvação. Por isso, os hagiógrafos inscreviam os fatos históricos
dentro dessa história maior que era a História da Salvação
Nessa inserção, o hagiógrafo medieval selecionava tudo aquilo que poderia ter
significado à luz da fé. O que lhe interessava mais era o significado salvador de um fato do
que o fato em si mesmo. Fato, às vezes, com pouco fundamento histórico em sentido
moderno. Muito além ou aquém da história, interessava, ao hagiógrafo, menos a verdade do
que o critério de verossimilhança, pois a ideia não era conhecer os fatos, mas sim prover o
reconhecimento dos fatos, principalmente por meio de certos topos literários. Para o
hagiógrafo medieval, o santo não fazia a história propriamente dita, ele desenvolvia, por
assim dizer, um programa traçado pela Divina Providência, ou como destacou De Certeau
(2007, p. 267):
[...] a combinação de atos, dos lugares e dos temas indica uma estrutura
própria que se refere não essencialmente àquilo que se passou”, como faz
a história, mas “àquilo que é exemplar”. As res gestae não constituem senão
um léxico. Cada vida de santo deve ser antes considerada como um
sistema que organiza uma manifestação graças a combinação topológica de
“virtudes” e “milagres”.
Ou seja, reconta-se, na hagiografia, a história sagrada, cujo personagem central não
era um homem qualquer, mas um homem de Deus, escolhido, entre outros, para ser guiado
por Ele. O hagiógrafo, geralmente, também conhecia datas, acontecimentos, situações
concretas na vida dos santos, contudo ele não era um cronista ou um historiador
contemporâneo, ou seja, não estava preocupado com narrativas cronológicas. Como
também, nem pelas funções e nem pelo seu estilo, uma vez que encontramos os elementos
fabulosos e legendários, inclusive na historiografia produzida no período medieval. É
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
190
possível contrapor as obras destinadas a falar do tempo real, histórico, com as obras das
quais caberia esperar que configurasse o tempo subjetivo, artístico (GURIÉVICH, 1984, p.
64).
O hagiógrafo queria mostrar que seu personagem era um santo, e o santo se
manifestava por meio de virtudes e milagres (CANDOLO-CÂMARA, 1995). Como sublinhou
A. Guiance (2006, p. 28), a utilização do milagre em cada hagiografia não corresponde
ao tipo de santo biografado, mas também à vontade do hagiógrafo em exaltar determinado
aspecto, como a sua própria interpretação do conceito de milagre. E mais, devido à ligação
existente entre as hagiografias e a cultura oral, os santos tendem a compor figuras-tipo, ou
seja, indivíduos fortes” cujos feitos são notórios, garantindo o peso da memorabilidade
(ONG, s.d, p. 83-84).
A constituição de uma literatura hagiográfica era uma prática característica das
estratégias cristianizadoras que por meio de determinados agentes recrutados entre os
intelectuais, na maioria das vezes, ligados à própria instituição clerical baseavam-se em
instrumentos específicos, como o processo de desnaturação e delimitava um conjunto de
manifestações culturais que seriam transformadas em símbolos locais, regionais ou, até
mesmo, do próprio reino, como são Martinho, por exemplo
6
.
Os contemporâneos de Venâncio Fortunato reconheciam, quase unanimemente, em
são Martinho o modelo por excelência da santidade cristã. Suas relíquias eram em todos os
lugares veneradas e seu poder sobrenatural era invocado e temido como a forma mais
eficaz do auxilium Dei (FONTAINE, 1976, p. 113). Nesse sentido, tal política de controle
cultural se propunha a atuar, basicamente, no nível simbólico, tendo como objetivo reforçar a
identidade coletiva, a educação, a formação dos cristãos e a legitimação do poder da Igreja
e de seus membros dentro da sociedade.
Apesar do objetivo da literatura hagiográfica ser amplo, na medida em que não se
dirige a setores, grupos ou atividades particulares, mas diz respeito a toda a sociedade, seu
campo de produção era bastante restrito, especialmente na Primeira Idade Média, pois se
tratava de um gênero conduzido por intelectuais e que requeria um grau de especialização
em determinadas áreas do saber (latim, retórica, história etc.). Contudo, mesmo produzida
por um número restrito de indivíduos, a literatura hagiográfica alcançou um alto grau de
credibilidade, pois era raro ocorrerem contestações quanto ao valor e à importância da
história pessoal e, muito menos, da santidade sobre a qual o hagiógrafo estava escrevendo.
Eram dois os desafios com que se defrontavam os hagiógrafos. O primeiro deles era
o de, por meio da seleção de fatos “maravilhosos ou não”, construir uma representação da
cidade, região ou do reino que levasse em conta a pluralidade cultural, funcionasse como
6
Considerado o patrono da dinastia merovíngia.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
191
propiciadora de um sentimento comum de pertencimento ou de aproximação, que reforçava
a construção de uma identidade cristã. O segundo era o de fazer com que fosse aceito
como consensual, não-arbitrário, o que era resultado de uma seleção de determinados
fatos a atribuição de valores associados à doutrina cristã. Ou seja, buscar, ao mesmo
tempo, o consenso e incorporar a diversidade em suas histórias. Por isso, o culto dos santos
era frequentemente combinado com um forte sentido de sacralidade, com uma crença
fervorosa e com uma santidade heroica (BROWN, 2000, p. 17).
Por outra parte, seria uma simplificação supor que a crença nos milagres, na ajuda
dos santos e na intervenção das forças celestes, na vida terrestre, inculcavam-se na
consciência do rebanho apenas com os esforços do clero: os próprios fiéis sentiam
necessidades dessas crenças, de depositar suas esperanças em um princípio sobrenatural.
O culto dos santos se instituía, frequentemente, por iniciativa dos crentes. O medo da
condenação eterna, depois da morte, e a esperança da salvação da alma empurravam
muitas pessoas, por exemplo, a abandonar os lugares em que viviam para fazer longas
peregrinações.
Realizado esse breve panorama sobre as principais funções do hagiógrafo,
voltaremos o foco para as hagiografias em prosa de Venâncio Fortunato. As primeiras
questões que se levantam são as seguintes: Para quem Venâncio Fortunato escreveu suas
hagiografias? Qual era a principal plateia a que se remetiam esses textos na segunda
metade do século VI?
No que concerne às vias de comunicações pelas quais os hagiógrafos merovíngios
pretendem atingir seu público, algumas alusões nos são indicadas. Segundo G Uytfanghe
(1985), as Vitae eram, em primeiro lugar, para serem lidas. Os verbos legere, relegere,
lectitare, recensere, os nomes lector, lectores, lectio, os particípios substantivos legens,
legentes, frequentam, em grande número, os prólogos e epílogos das hagiografias
merovíngias.
Não obstante, essas características levantam uma segunda questão: quem sabia ler
nessa época? Os clérigos, os monges (não necessariamente todos) e uma minoria de laicos
(fundamentalmente os aristocratas). Sabemos que as narrações hagiográficas eram também
destinadas a serem lidas em voz alta para todos escutarem. É evidente que esse fato, a
leitura em voz alta, tornaram-nas nessa sociedade, ao menos teoricamente, acessíveis a um
público infinitamente amplo, ou seja, a maioria das pessoas que não sabia ler. Em outras
palavras, a leitura em voz alta constituiu-se, pelos numerosos trabalhos de audire e dessas
derivações, no principal canal pelo qual a literatura hagiográfica chegava a um público
popular. Contudo, as Vitae deveriam ser lidas, em primeiro lugar, pelos clérigos, monges e
monjas, pois, para eles, a imitatio seria mais fácil, considerando que os próprios santos
eram geralmente bispos ou religiosos.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
192
A hagiográfica e sua relação com o poder político e civil na sociedade merovíngia
A análise de uma hagiografia, com fim de apreender as características da sociedade,
justifica-se pelo caráter desse gênero: trata-se de um texto clerical construído para a
pregação e que, portanto, fornece-nos vestígios da relação dos membros do clero
(especialmente os santos e bispos), por meio da divulgação de suas ideias, com a
sociedade. Contudo, devemos estar atentos para não alterar por completo o objetivo dessa
narração, pois não os condicionamentos políticos interferem nesses escritos, como
também os fatores ideológicos, culturais, literários, entre outros.
Assim, o objetivo é sempre o mesmo: compreender o texto enquanto tal, não
despojando seu caráter intrínseco em áreas por meio de uma busca de explicação de suas
causas ou de suas consequências. Além disso, não podemos nos esquecer, também, de
que nossa concepção de mundo é distinta da percepção e da visão de mundo dos homens
da Idade Média. Em uma porcentagem significativa, suas ideias e atos não nos são
alheios, mas também de difícil compreensibilidade. Assim, é absolutamente real o perigo de
atribuir aos homens, desse período, motivos que não eram os seus e de interpretar, de
maneira errônea, os verdadeiros motivos que os animaram em sua vida e prática
(GURIÉVICH, 1984, p. 52).
Assim, as hagiografias narram as vidas dos santos, vários dos quais foram bispos. O
que permite concluir que, no sexto século, o poder miraculoso dos santos era
majoritariamente ligado aos representantes eclesiásticos. Tais características aumentaram a
dicotomia existente entre o poder divino dos santos e da Igreja frente ao poder civil e secular
dos reis (HEN, 1995, p. 219-220.), pois, apenas quando um rei agia como um ‘bom bispo’,
era possível que uma cura real ocorresse. Deve-se destacar, segundo M. Bloch (1993, 55-
58), que o único rei merongio, cujas fontes nos narram que realizou um milagre foi Gontrão
(GREGORIO DE TOURS, 1885, IX, c. 21.). Apesar desse milagre, não devemos concluir
que os merovíngios acreditavam em uma linhagem de taumaturgos. Tal evento maravilhoso
deveu-se porque Gontrão era considerado pessoalmente como santo.
O rei mais frequentemente mencionado nas Vitae escritas por Venâncio Fortunato
(VENANTIUS FORTUNATUS. Opera pedestria, ed. Krusch, MGH, AA IV/2, Berlim, 1885) é
Childeberto I (511-558). Esses textos mostram a amizade que o rei mantinha com os santos
Paterno de Avranches e, especialmente, Germano de Paris. Na hagiografia desse último
(VENANTIUS FORTUNATUS, 1885, Vita s. Germani, cap. 13
7
), o poeta narra a caridade do
7
Vita s. Germani, cap. 13: “Denique quadam vice praecellentissimus Childebertus rex, cum ei direxisset sex millia
solidorum, pauperibus eroganda, expendens tria millia, revertitur ad palatium: interrogatus a rege, si adhuc
resideret quod egenis tribueret, respondit medietatem resedisse, nec invenisse inopes, quibus totum expenderet.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
193
rei e do bispo, em que ambos competiam no serviço aos pobres. Segundo M. Reydellet
(1981, p. 327), encontramos, por meio dessa passagem, o tema do rex-sacerdos. De acordo
com esse mesmo autor (REYDELLET, 1981, p. 343-344), foi Venâncio Fortunato que
introduziu, verdadeiramente, a teoria de uma realeza cristã, uma vez que ele estava livre
dos preconceitos de Gregório de Tours. Cabe destacar, também, que Venâncio Fortunato,
em seus trabalhos, nunca usou o título de Augustus para nenhum dos reis merovíngios
(empregou esse qualitativo apenas para o Imperador Bizantino Justino II), pois utilizava
sempre rex, princeps e rector (BRENNAN, 1984, p. 4).
Apesar da finalidade desse gênero não ser histórica, mas sim fortalecer a de seus
leitores e/ou ouvintes, essa literatura hagiográfica, em alguns casos, relatou como os santos
bispos se relacionaram com os poderes temporais: civis e políticos. Dessa forma,
percebemos que, nos escritos hagiográficos de Venâncio Fortunato, emergiam o conceito
que o autor tinha da relação entre o poder político e o poder eclesiástico: de um lado
respeitava a monarquia e suas magistraturas, de outro reivindicava para o bispo maiores
espaços operacionais dentro da sociedade merovíngia. Tais reivindicações, contudo, eram
creditadas em virtude das qualidades excepcionais do santo, da tutela do papel civil do
bispo e de suas prerrogativas.
A imagem do santo bispo que se opõe ao soberano é encontrada em Hilário de
Poitiers (VENANTIUS FORTUNATUS, 1885, Vita s. Hilarii, p. 7-11). Porém, esse santo
pertence a um passado distante (século IV). Em outras Vitae, a comparação entre o santo e
os magistrados são mais tênues ou em forma de metáforas. Os episódios mais significativos
recordam a questão da liberação de prisioneiros que constituía um dos milagres mais
“político” de toda hagiografia merovíngia. Esse evento prodigioso acontece na Vita s.
Radegundis (VENANTIUS FORTUNATUS, 1885, Vita s. Radegundis, cap.
8
) cujos indivíduos
prisioneiros atestam a santidade de Radegunda.
Cui rex inquit: Domine, dona quod restitit. Nam, Christo largiente, quod donetur non deficiet. Incidens aurata
missoria, argentea vasa comminuens, quidquid primum habuit, dans sacerdoti, ne perderet. Erat ergo
exspectanda contentio inter sacerdotem et principem. Faciebant apud se de misericordia pugnam et de pietate
certamen, thesauros ut spargerent, et de suis talentis egeni ditescerent, festini ad futura lucra, ut bratheum
semen sererent, et post messores accederent, aurolentam per segetem, ut sacerdos locupletaretur regalibus
thesauris, et in regem floreret gratia sacerdotis, qui suum solum hoc credidit, quod nudus aut egenus accepit.”
8
Vita s. Radegundis, cap.1: Redemptoris nostri tantum dives est largitas, ut in sexu muliebri celebret fortes
victorias, et corpore fragiliores ipsas reddat feminas virtute mentis inclytae gloriosas. Quas habentes nascendo
mollitiem, facit Christus robustas ex fide; ut quae videntur imbecilles, dum coronantur ex meritis, a quo efficiuntur
fortes, laudem sui cumulent Creatoris, habendo in vasis fictilibus thesauros coeli reconditos: in quarum visceribus
cum suis divitiis ipse rex habitator est Christus. Quae mortificantes se saeculo, despecto terrae consortio,
defaecato [Al., deserto] mundi contagio, non confidentes in lubrico, non stantes in lapsu, quaerentes vivere Deo,
ad gloriam Redemptoris sunt copulatae paradiso. In quo est pariter numero, cuius vitae praesentis cursum, licet
sermone privato, ferre tentavimus in publicum, ut cuius est vita cum Christo in gloria, memoria relata celebretur in
mundo”.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
194
Essa ajuda aos prisioneiros foi tema, inclusive, de um dos principais sínodos do
período merovíngio
9
, o quinto concílio de Orléans (549). Tal reunião episcopal determinou a
obrigatoriedade do arcediácono de visitar as prisões e levar o apoio espiritual e material aos
presos [Orléans V (549): cânone 20]. É pertinente, aqui, fazer uma pequena ressalva, visto
que não podemos esquecer que, apesar dos componentes caritativos e políticos ligados a
esse evento, também havia uma dimensão pastoral: era, concomitantemente, a liberdade
individual dos fiéis e seu cristianismo micênico que estavam sendo protegidos.
Mas com relação ao milagre “político” nas hagiografias em prosa de Venâncio
Fortunato, o maior destaque é dado na Vita s. Germani (VENANTIUS FORTUNATUS, 1885),
na qual as libertações servem para opor o bispo Germano aos representantes do poder civil
e sublinhar a vitória do primeiro sobre o segundo. Ou seja, notamos, aqui, que o santo agiu
como um “defensor público”, um ofício que pertencia, originalmente, a alçada da jurisdição
civil. A utilização de tais episódios sugere um esforço de Venâncio Fortunato em construir a
“propaganda” do santo em todos os níveis sociais, pois o hagiógrafo estava jogando com a
insatisfação existente daquele grupo, os cativos, com os poderes civis, dessa forma,
tentando atraí-los, por meio dos milagres dos santos, para a Igreja. Obviamente que era do
interesse de qualquer bispo merovíngio estabelecer uma ampla gama de relações, visando
aumentar seu status dentro dessa coletividade.
Apesar desses episódios, Venâncio Fortunato privilegiou e desenvolveu, em suas
hagiografias, de modo geral, mais as imagens ligadas aos méritos excepcionais das
operações taumatúrgicas do que o papel civil e político do santo bispo. Em outras palavras,
naqueles trabalhos, ele glorificou o ofício do bispo pela codificação de histórias miraculosas,
envolvendo simbolicamente objetos e significativos gestos episcopais.
Contudo, não faltaram episódios que representaram a dramática confrontação entre
os santificados bispos e os reis ou oficiais reais. As fontes da Alta Idade Média referem-se,
com frequência, à ameaça da intervenção punitiva de Deus no curso da história. As
hagiografias não estão alheias a essas características, pois não é incomum encontrar o
santo pedindo a intervenção de Deus em proveito de seus interesses frente aos reis.
Concordamos com S. Castellanos (1996, p. 82) que entende que as confrontações
funcionavam para que imagens dos bispos como líderes das suas comunidades fossem
constantemente renovadas.
Toda vez que Venâncio Fortunato colocava frente a frente o rei e o santo, ele
permanecia fiel ao esquema habitual da hagiografia merovíngia, ou seja, os eventos eram
sempre resolvidos divinamente, no qual o ordo laicorum acabava adulando o santo e os
interesses episcopais. Dessa forma, era sempre o bispo que levava vantagem e era sua
9
Sobre os sínodos e concílios do período usamos como referência: LES CANONS DES CONCILES
MÉROVINGIENS (1989).
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
195
auctorias e poder espiritual que eram mostrados para serem superiores em qualquer
exibição de força ou afirmação do poder secular. E mais, percebemos, nessas hagiografias,
que as ações do episcopado, frente ao poder civil e político, pretendiam a valorização dos
bens simbólicos que o clero podia oferecer: o sagrado e a salvação.
As relações entre o rei e os representantes do poder civil com o santo nas
hagiografias de Venâncio Fortunato sugerem que o poder temporal episcopal funcionava
como uma mediação entre seus poderes espirituais, pois, quando o bispo não tinha êxito em
fazer valer sua autoridade temporal frente aos poderes civis da sociedade merovíngia, tais
representantes do poder civil eram punidos, obrigando-os a ocupar uma posição suplicante
diante do santo bispo até que se “realizassem as ordens do servo de Deus” (VENANTIUS
FORTUNATUS. 1885, Vita s. Paterni, cap, 15
10
). E mais, para C. Leonardi (1989, p. 281), a
luta contra o arianismo tinha, em parte, apagado o aspecto humano de Cristo a
preocupação de mostrar que ele tinha essa mesma qualidade divina do Pai onipotente. Por
todos esses motivos, a misericórdia, isto é, o amor ao próximo, não é a virtude principal do
santo Alto Medieval, é, certamente, uma virtude quase desconhecida.
O melhor exemplo que temos desses episódios encontra-se na Vita s. Germani
(VENANTIUS FORTUNATUS. 1885, Vita s. Germani, cap. 23
11
), na qual Venâncio Fortunato
o caracteriza como aquele que era acostumado a prevalecer sobre os próprios reis: regibus
triumphare. Quando não estava de acordo com o rei Clotário, o santo passava a noite em
vigília e em oração, concomitantemente, o rei era atormentado por febre e dor. Como
resultado desse episódio, temos o rei implorando para que Germano visitasse seu palácio,
onde o rei confessava seus pecados e o bispo curava a doença que o estava afligindo.
R. Collins (1981, p. 115-116) interpretou esses episódios como uma maneira
camuflada pela qual os bispos desenvolviam seu poder político. Visto que, face às perigosas
revoltas do período, tal autoridade não poderia ser declarada abertamente, então como
estratagema, os prelados anunciavam, gradualmente, ao seu público, por meio de um texto
religioso de forte teor persuasivo, no qual os homens interpretavam tais episódios, a
10
Vita s. Paterni, cap, 15: Dehinc cum sacerdos pro pauperum remediis regi suggestionem proponeret, tunc
gloriosus Childebercthus Crescentio imperat, ad quem cura publica pertinebat, ut quod beatus Paternus ei
iniungeret expediret. Quod ipse inplere promittens mentitus est, profectusque ad partes Burgundiae praedicto
sanctissimo nesciente, per biduum. Crescentius excaecatus erravit. Qui culpam reminiscens unde illum tam
repente tenebrosus error invaserit, regressus velociter , inpetrata venia, ut culpa cordis exiit oculis lux intravit et
doctior post caecitatem servi dei iussa conplevit, ut ex hoc crederetur recepisse luminaria magis mentis quam
corporis”.
11
Vita s. Germani, cap. 23: Est operae pretium illud memoriae tradere, qualiter Sacerdos Christi solitus erat de
ipsis quoque regibus triumphare. Igitur cum glorioso Clotario regi occurrisset ex solito, nec tamen de sancto Viro
stante ante palatium ei fuerit nuntiatum, mora facta ante vestibulum non repraesentatus inde domum revertitur.
Sequens nox in oratorio vigiliis ducitur, rex dolore atque febris infestatione torquetur. Vix primo diluculo ad domum
ecclesiae a proceribus concursatur; poena regis exponitur, ut sua visitatione regis doloris vim mitiget optimates
deprecantur. Mox apud pietatem iniuriae causa postponitur, qui ante nec nuntiabatur, intrat honoratus et exoratus
palatium. Rex vix assurgit de lectulo, caesum se divino flagello conqueritur. Allambit sancti palliolum, vestem
Sacerdotis deducit per loca doloris. Culpam confessus criminis, mox dolor omnis fugatur: idque actum est, ut
cuius incurrerat de contemptu periculum, sentiret tactu remedium”.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
196
subordinação dos representantes dos poderes civis, como uma ação divinamente
santificada. Em outras palavras, o caráter, eminentemente, moral de uma autoridade pública
exercida pelos bispos torna-se evidente em um contexto de penetração religiosa na
sociedade. Os fundamentos morais dessa participação no poder são inseparáveis dos
instrumentos e das instituições civis (HEINZELMANN, 1994, p. 43).
Entretanto, não podemos esquecer que a autoridade episcopal era questionada.
Uma vez que encontramos, nos trabalhos de Gregório de Tours, várias evidências da
precariedade e periculosidade desse posto: rivalidades episcopais, rivalidades eleitorais,
oposição real ou da população, dependência dos prelados aos reis e etc.
Com efeito, nos prefácios, percebemos que a maior parte das Vitae merovíngias
eram dedicadas ou a um bispo, ou a um abade, ou a uma abadessa ou a toda uma
comunidade monástica. Os religiosos, a quem foram dedicadas às hagiografias, em geral,
tinham encarregados os autores de redigir a hagiografia de seus santos predecessores.
Como foi o caso do bispo Germano de Paris, sucessor de Marcelo, e a quem Venâncio
Fortunato dedicou a Vita Sancti Marcelli (VENANTIUS FORTUNATUS, 1885).
Cabe ressaltar, também, que Venâncio Fortunato, em algumas de suas hagiografias,
abertamente revelou o completo significado dessa atividade literária. O poeta demonstrou
como os bispos, a quem ele dedicou a elaboração das Vitae, foram apresentados como os
diretos herdeiros de seus gloriosos predecessores e por reunirem toda a comunidade ao
redor de uma cerimônia liturgicamente orientada de culto, por meio do uso daqueles textos.
Percebe-se, portanto, nas hagiografias de Venâncio Fortunato, uma idealização da
identidade episcopal. Em outras palavras, os bispos eram retratados como os herdeiros ou
“filhos adotivos” dos santos predecessores, provenientes de um modelo legitimado de
virtude e conduta episcopal. Assim o bispo de Tours era o sucessor de Martinho; o bispo de
Poitiers, sucessor de Hilário; o bispo de Autum, o sucessor de Albino; e o bispo de Paris, o
sucessor de Marcelo. O que nos permite concluir que, na construção da imagem pública do
bispo, havia uma estrutura que envolvia ritmos e episódios específicos de vida. Havia,
também, uma consciente determinação, por parte dos lideres cristãos, em colocarem-se
lado a lado com os santos predecessores.
Em um nível mais profundo, Venâncio Fortunato estava desenvolvendo uma
“identidade” para os bispos sucessores. E mais, essa identidade” poderia influenciar não
apenas o conceito dos próprios bispos e o papel que eles tinham que desempenhar em sua
comunidade, mas também seu comportamento social, particularmente naquelas situações
que podem ser vistas como análogas referentes aos bispos predecessores.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
197
Fato que encontramos nos dois bispos parisienses retratados por Venâncio
Fortunato, Marcelo (VENANTIUS FORTUNATUS, 1885, Vita s. Marcelli, cap. 9
12
) e Germano
(VENANTIUS FORTUNATUS, 1885, Vita s. Germani, cap. 61
13
), porque ambos se
envolveram em episódios de libertação de prisioneiros. Ou seja, os patronos episcopais de
Venâncio Fortunato requisitavam a esse autor uma imagem idealizada deles, a fim de que
os leitores ou os ouvintes reconhecessem uma intimidade de relacionamento que existiria
entre o bispo e o seu “companheiro ideal”.
Como hagiógrafo, Venâncio Fortunato era sensível a importância dos santos
predecessores para seus bispos patronos como um modelo de ideal de comportamento
episcopal. E mais, as virtudes dos santos predecessores forneciam e legitimavam as bases
do poder social de seus sucessores episcopais. Percebemos, dessa forma, que os bispos
fizeram, da cultura escrita, uma poderosa aliada no que tange à autoridade e ao poder,
conforme destacou R. Fox (1998, p. 164):
A cultura escrita permitiu que os bispos frustrassem os planos de seus
oponentes, formassem uma sólida frente de opinião, abjurassem ou
amaldiçoassem os cristãos caídos no erro ou “assinassem” listas de nomes
para as profissões de fé ou regras disciplinares, textos que lhes permitiam
mobilizar ainda mais poder. Quanto à cultura escrita sagrada, ela permitia
que os bispos citassem fontes impessoais para sua própria autoridade:
como os visionários, os bispos tiravam proveito de textos em que a palavra
de Deus, e não a deles, era tornada pública.
Outro aspecto que nos chama atenção, nas hagiografias de Venâncio Fortunato, era
a proximidade existente entre os santos e esse hagiógrafo. Das seis hagiografias, podemos
afirmar, com segurança, que o autor estabeleceu contato pessoal com pelo menos dois:
Radegunda, a fundadora do convento de Santa Cruz, em Poitiers, convento esse que o
abrigou por muitos anos, e com Germano, o bispo de Paris, a quem endereçou poemas e a
quem dedicou, como dissemos acima, a Vita Sancti Marcelli. Acreditamos que a
12
Vita s. Marcelli, cap. 9: “( 36) Operae pretium credimus etiam in paginis haec texere quae multis sunt infixa sub
corde, quia etsi de re terribili in relatione metus est, in aedificatione fit fructus . ( 37) Porro autem cum beatus
Marcellus, quod semper possedit moribus, esset pontifex ordinatus, quam dignitatem sibi reputabat magis oneris
quam honoris, tunc quidam de populo, dum vellet ad communionem accedere, manibus retro ligatis non poterat
ad altare pertingere, sed cum omnes transirent, quasi meta coepit stare, ut videretur non ad communicandum sed
ad numerandum populum advenisse. ( 38) Quem conspiciens pontifex interrogavit quid fecerit: respondit
peccasse se. Cuius confessionem agnoscens dicit ei: Veni , accede et ultra non pecces . Qua iussione ab solutus
ad communionem accessit duplici beneficio muneratus , de praeterita culpa veniam consecutus , de futura vita
correctus. ( 39) Quanta huic erat in sanctae trinitatis aequalitate fiducia, cuius mens sic libera per singula verba
proferebat miracula? Sed licet satis fuerit religati catenas sermone dissolvere, tamen plus est laudabile quod in
Christi amore visus est peccata donasse”.
13
Vita s. Germani, cap. 61: Pergens Augustidunum vir sanctus Rotagiaco dum pervenit, conperit ab Abbone
quosdam retrusos in carcere. Igitur pro absolvendis supplex tribuno suggeret, sed ille durus non annuit. Hinc ipse
cauto consilio dum dicit se carapum circumire, currit devotus ad carcerem. ( 164) Itaque ad exorandum provolutus
sternitur, ibique tempore nocturno catenae discussae sunt , validus tormenti rigor ad fragmenta redigitur. Sera
gravis inliditur , postis cardine vellitur , feralis carcer recluditur , damnati ad vitales auras quasi redeunt de
sepulchro. ( 165) Ita fit ut ei Rotagiaco matutino tempore ingressi occurrerent et qui sancto non praestitit pro
absolutis reis tribunus reus effectus est”.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
198
proximidade entre o santo e o hagiógrafo fornecia credibilidade aos textos, pois era uma
forma por meio do qual os diversos segmentos sociais identificavam facilmente a santidade.
Percebemos também uma ação integradora do santo, ainda dentro do campo
político. Para além da integração das populações dentro do campo religioso cristão, o santo
bispo também integrava a população no ambiente sócio-político de sua região. O santo agia
como o interlocutor daquela clientela com os demais grupos sociais regionais, como no caso
de Germano, que procurou interceder por sua clientela (os cativos) com os demais grupos
regionais (o rei). Pode-se concluir que, a partir do momento em que o cristianismo passou a
estar vinculado aos desígnios sócio-políticos do Ocidente medieval, as tentativas de
conversão e evangelização das massas foram cada vez mais ancoradas pelos poderes
políticos-religiosos do santo e, principalmente, do bispo aquele que buscava controlar o
sagrado. Desse modo a gestão civil, a manipulação das ambições sociais, o domínio do
direito civil, o enquadramento das estruturas caritativas e a proximidade reconhecida com o
sobrenatural serviram de meios de pressão para aumentar a unidade religiosa (DUMEZIL,
2005, p. 165). Em contra partida, não podemos esquecer que as concessões às Igrejas era
a forma pela qual os reis tentavam, desde o reinado de Clóvis, exercer seu poder sobre os
bispos e a instituição eclesiástica (LEBECQ, 1996, p, 769).
Concordamos com L. Navarra (1981, p. 607) que caracteriza os escritos
hagiográficos de Venâncio Fortunato como um dos aspectos mais fascinantes de seu legado
literário e uma das mais relevantes contribuições para a história da cultura e da vida
religiosa do período da Alta Idade Média. Segundo R. Collins (1981, p. 118), no refinamento
das trocas nuanças daqueles contos, o público é confrontado com uma situação que não é
tão distante quanto se pode imaginar, pois a Igreja buscou edificar seus ensinamentos e,
conscientemente, disseminar seus “bens” monopolizados frente à sociedade,
principalmente, quando atuava e exemplificava, por meio de ações e comportamentos de
seus santos e bispos, junto ao cotidiano desses indivíduos.
Os bispos, patronos de Venâncio Fortunato, potencialmente participantes da
hierarquia dos santos, estavam comissionando uma consciente criação de seus precedentes
– precedentes esses que uniam a populi em volta deles, bispos considerados como líderes e
modelos supremos. Por meio de uma linguagem, verbal e visual, mais próxima das
realidades menos cultas e do uso sequencial dos milagres baseados na liturgia, os autores
tornaram seus escritos hagiográficos um astuto meio de divulgação de longo alcance para
os bispos que comissionaram tais textos.
Assim, o cristianismo desenvolveu certas características distintivas acentuadas. O
bispo aumentou, consideravelmente, sua influência, nos primeiros séculos do cristianismo,
particularmente no caso merovíngio, a partir da segunda metade do século VI, em parte por
causa das cidades, especificamente das sés, que assumiam vitais funções administrativas,
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
199
em parte, também, porque os aristocratas locais começaram a realizar os votos dos ofícios
eclesiásticos como um meio de manter ou aumentar sua tradição e posição local, como
também pelos trabalhos que realizava – entre eles a produção das hagiografias – no sentido
de aumentar a proeminência das relíquias e do culto dos santos autóctones (VAN DAN,
1985, p. 3).
Nesse sentido, é que tais bispos participavam, junto com o hagiógrafo, da cuidadosa
seleção material, que seria transmitida de um pequeno grupo de homens para uma larga
audiência situada sobre suas jurisdições episcopais. Assim, percebemos a influência dos
patronos episcopais na produção dos trabalhos hagiográficos. Temos um bom exemplo
dessa participação episcopal na construção de uma das hagiografias de Venâncio
Fortunato: a Vita Albini. O bispo Domitianus de Angres, sucessor desse santo, enviou ao
hagiógrafo supracitado um de seus discípulos “nutrido de sabedoria” (VENANTIUS
FORTUNATUS, 1885, Vita s.Albini, cap. 3
14
) com o intuito de fornecer a essência do relato.
Sobre esse fato, concordamos com R. Collins (1981, p. 108) que caracterizou esse
evento como mais um fator que colaborava para a concepção que a hagiografia, além de
seu caráter edificante, também contribuía para a glória e a autoridade dos bispos
sucessores, pois, para esse autor, Venâncio Fortunato agiu em associação com as diretivas
específicas de Domitianus, uma vez que redigiu essa vita com as informações coletadas e
trazidas pelo discípulo desse bispo. Porém, vimos que Venâncio Fortunato estava associado
às diretrizes específicas do grupo episcopal na construção e legitimação da autoridade de
seus patronos em todas as vitae, não apenas na dedicada ao santo Albino.
Assim, os milagres “fortunatianos” revelam uma dimensão adicional na medida em
que sublinham, em sua maioria, a dignidade episcopal e sua vinculação com o âmbito
urbano. O mecanismo mais utilizado para essa exaltação consiste em conectar a figura do
bispo com o dos santos, os patronos espirituais das cidades. Logo, tais prelados estavam
ansiosos para serem percebidos como herdeiros diretos de seus predecessores,
perpetuando sua santidade e autoridade (COATES, 2000, p. 1113-1114).
Tal patronagem espiritual também refletia no número e na quantidade de doações
oferecidas às igrejas. Pois, além da remissão dos pecados, as doações possuíam um outro
apoio ideológico: a busca da intercessão divina de um santo ou mártir. Intervenção desejada
e procurada, independentemente de sua condição financeira, porém mais rentável quanto
14
Vita s.Albini, cap. 3: Congratulatus sum relatori, eo quod de vestris nutrimentis talis vir adoleverit , qui iniuncta
sibi tam strenue peroraret et de proprio aliquid causa venustatis non inconpetenter offerret , immo dilucide ipse
per se quod aliunde poposcerat explicaret. Si quidem quidquid de illo elicitur, vestris hoc praeconiis deputatur,
quoniam est meritum magistri laus discipuli et ministri solatia sunt pontifici ornamento. ( 6) Quod cum ego meae
exiguitatis conscius attingere trepidarem, re vera qui noverim hoc debere committi exertis ingenio, facundis
eloquio, devotis officio, probatis stilo , qui sunt sensu divites , linguae rota torrentes, famulatu celeres, carmine
coruscantes, cum ante vestram peritiam ipsa Ciceronis ut suspicor eloquia currerent vix secura, et cui apud
Caesarem Roma aliquid deliberans Aquitanico iudice forsitan Galliam formidaret, incongruum esse persensi”.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
200
mais rico for o fiel. Em consequência, o sistema caritativo cristão constituía um processo de
intercâmbio revelador e reprodutor de uma forma de organização social (MAGNANI, 2003).
Assim, atuando em todos os aspectos da vida dos crentes, os santos exerciam um
verdadeiro patrocinium sobre a população de determinada cidade. Nota-se, portanto, o
significativo valor das relíquias como um dos elementos simbólicos de poder, uma vez que,
ao atuarem como mediadores, os bispos auferiam para si grandes vantagens.
Considerações Finais
As conexões de Venâncio Fortunato e os bispos patronos revelam três elementos-
chave. Primeiro, ao contrário de Sidonius ou Gregório de Tours, que promoveram, em parte,
suas carreiras por meio das suas bem estabelecidas ligações familiares, Venâncio Fortunato
teve que promover por meio de suas relações estabelecidas, basicamente, com os ‘amigos”
cristãos. Segundo, tais conexões fortunatianas são responsáveis pela área geográfica das
sés episcopais cobertas por seus trabalhos, ou seja, seus trabalhos refletem, geralmente, os
horizontes geográficos de seus patronos. Assim, as vitae podem ser divididas entre aquelas
de foco aquitaniano (Vita Hilarii e Vita Radegundis) e aquelas de foco neustrasiano (Vita
Albini, Vita Marceli, Vita Germani e Vita Paterni). Terceiro, muito de seus trabalhos
respondem pelos desejos de seus patronos, servem tanto como agradecimento pela
hospitalidade e amizade, como também revelam a forma como os bispos merovíngios
promoviam uma construção coletiva e consciente da imagem dos seus papéis e status. Tais
imagens refletiam um compartilhado sistema de valores interessados na autoridade
episcopal, tanto em termos de como isto era adquirido, quanto de como ele era mantido.
Enfim, nas hagiografias de Venâncio Fortunato, encontramos um debate sobre o
locus de poder na sociedade merovíngia. Em outras palavras, verificamos que o poeta,
formado em Ravena, conseguiu encontrar tanto nos Carmina como nas Vitae meios eficazes
de atingir diferentes públicos na defesa das causas políticas e eclesiásticas em favor da
classe episcopal. Assim, deparamo-nos com uma sociedade que apresentava incontestáveis
novidades, quando comparada com a Antiguidade. Uma dessas novidades é o poder do
bispo.
Em suma, esperamos, por meio do mecanismo de verificação
“conjuntura/discurso/conjuntura”, elucidar as possíveis intenções por trás do discurso
hagiográfico no Reino Franco, na segunda metade do século VI. Acreditamos ser provável
uma eficaz utilização política das vitaes como mecanismos de controle de toda a sociedade,
em especial da alta nobreza e realeza.
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
201
Referências:
Fontes primárias:
GREGORIO DE TOURS. Historia Francorum., ed. W. Arndt, Scripoteres rerum
merovingicarum 1, Fasc. I (Livros I-V), 1937; Fasc. II (Livros VI-X), 1885.
VENANTIUS FORTUNATUS. Opera pedestria, ed. Krusch, MGH, AA IV/2, Berlim, 1885, pp
V-XI (prooemium); 1-7 (Vita s. Hilarii com 7-11 Liber de virtutibus s. Hilarii); 11-27 (Vita s.
Germani); 27-33 (Vita s. Albini); 33-37 (Vita s. Paterni); 38-49 (Vita s. Radegundis); 49-54
(Vita s. Marcelli).
LES CANONS DES CONCILES MÉROVINGIENS (VI
e
-VII
e
SIÈCLES). Texto em latim e
edição de C. de Clercq. Introdução, tradução e notas por Jean Gaudemet e Brigitte
Basdevant. In: Sources Chrétiennes, n. 353-54, Paris: CERF, 1989.
Bibliografia:
BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade, Hierarquia e Dependência na Alta Idade Média.
História Revista. Goiânia, v. 11, n. 1, jan/jun. 2006. p. 135-160.
BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
_______. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
_______. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas/SP: Papirus, 1996.
BRENNAN, B. ‘Being Martin’: Saint and Sucessor in Sixth-Century Tours. The Journal of
Religious History. vol. 21, n. 2, jun. 1997, p. 121-135.
_______. Columbanus and Merovíngian Monasticism. Oxford, 1981, p. 105-124.
_______. The image of the Frankish Kings in the poetry of Venantius Fortuantus. In: Journal
of Medieval History, 10, 1984, p. 1-11.
BROWN, Peter. Relics and Social Status in the Age of Gregory of Tours. In: Society and the
holy in Late Antiquity. New York: Faber and Faber, 1982, p. 222-251.
_______. The Cult of the saints. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
_______. Enjoying the saints in Late Antiquity. In: Early Medieval Europe, 2000, 9 (I), p. 01-
24.
CANDOLO-CÂMARA, T. Hagiografia medieval portuguesa: exemplum. In: PRIMEIRO
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS,1995. Atas...p. 358-366.
CASTELLANOS, Santiago. Conflictos entre la autoridad y el hombre santo. Hacia el control
oficial del patronatus caelestis em la Hispania Visigoda. Brocar, 20, 1996, p. 77-89.
A santidade episcopal e sua relação com o poder político e civil na Gália da segunda metade do século VI
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
202
DE CERTEAU, M. Uma Variante: a Edificação Hagio-Gráfica. In: A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 266-278.
COATES, Simon. Venantius Fortunatus and the Image of Episcopal Authority in Late Antique
and Early Merovingian Gaul. The English Historical Review, V. 15, n. 464, nov. 2000, p. 1109-
1137.
COLLINS, Richard.Observations on the Form, Language and Public of the Prose
Biographies of Venantius Fortunatus in the Hagiography of Merovíngian Gaul. In: CLARKE,
H. B.; BRENNAN, M. Columbanus and Merovíngian Monasticism. Oxford: s.l. 1981, p. 105-
124.
DUMEZIL, B. Les racines chrétiennes de l’Europe. Paris: Fayard, 2005.
FONTAINE, Jacques. Hagiographie et Politique, de Sulpice Sévère à Venance Fortunat.
Revue D’histoire de L’Eglise de France, LXII, 1976, p. 113-140.
FOX, Robin Lane. Cultura Escrita e Poder nos Primórdios do cristianism. In: BOWNAN, Alan
K; WOOF, Greg. Cultura Escrita e Poder no Mundo Antigo. São Paulo: Ática, 1998. p. 154-
182.
GEARY, Patrick J. Before France and Germany. New York; Oxford: Oxford University Press,
1988.
GUIANCE, Ariel. Milagros y prodigios em la hagiografia altomedieval castellana. História
Revista. Goiânia, v. 11, n. 1, jan/jun. 2006. pp. 17-44.
GURIÉVICH, Arón. Las categorías de la cultura medieval. Madrid: Taurus Humanidades,
1984.
HEINZELMANN, Martin. Grégoire de Tours: ‘Père de l’histoire de France?’. In: BERCÉ,
Yves-Marie; CONTAMINE, Philippe. Histoires de France, Historiens de la France. Actes du
colloque international, Reims, 14 e 15 mai 1993. Paris: Diffusion, 1994. p. 19-45.
_______. Histoire, Róis et Prophètes: Le role dês éléments autobiographiques dans les
Histoires de Grégoire de Tours: un guide episcopal à l’usage du roi Chrétien. In: De Tertullien
aux Mozarabes. Tome I: Antiquité Tardive et Christianisme Ancien (III
e
-VI
e
siècles) –
Melanges offerts à Jacques FONTAINE. Paris: Institut d’Études Augustiniennes: s.d. p. 537-
550.
HEN, Y. Culture and Religion in Merovingian Gaul A.D. 481-751. Leiden, New York, Köln: E.
J. Brill, 1995.
KLINGSHIRN, William. Charity and Power: Caesarius of Arles and the Ransoming of
Captives in Sub-Roman Gaul. The journal of Roman Studies, v. 75, p. 183-203, 1985.
LE GOFF, J. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia. In: Para um
novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa,
1980, p. 207-219.
LEBECQ, S. Vivent les Mérovingiens!. French Historical Studies, v. 19. n. 3, 1996, p. 765-
777.
LEONARDI, Claudio. Modelli di santità tra secolo V e VII. In: SETTIMANE DI STUDIO DEL
CENTRO ITALIANO DI STUDI SULL’ALTO MEDIOEVO XXXVI. Santi e Demoni nell’Alto
João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
203
Medioevo Occidentale (Secoli V-XI). 07-13 abril, 1988. Spoleto: Presso la sede del centro,
1989. p. 263-283.
MAGNANI, E. O Dom entre a História e Antropologia. Figuras Medievais do Doador.
Signum. n. 5. 2003, p. 169-193.
NAVARRA, Leandro. Venanzio Fortunanto: Stato degli studi e proposte di ricerca. In: La
Cultura in Italia fra Tardo Antigo e Alto Medioevo. Atti del Convegno tenuto a Roma,
Consiglio Nacionale delle Ricerche, dal 12 al 16 Novembre 1979. VII. Roma: Herder Editrice
e Libreria, 1981, p. 605-610.
ONG, W. Oralidade e cultura escrita. S.l: Papirus, s.d.
PORTO, Thiago de Azevedo. Os cativos na Vida de Santo Domingo de Silos: uma
contextualização histórica da sanidade. In: SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 6., 2006,
Rio de Janeiro. Anais...Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 295-303.
REYDELLET, M. Fortunat et la vison poétique de la royauté mérovingienne. In: La royau
dans la literature latine de Sidoine Appollinaire à Isidore de Seville. Paris: École française de
Rome, 1981.
UYTFANGHE, Gent M van. L’hagiographie et son public à l’époque mérovingienne. In:
Studia Patristica, XVI: Papers presented to the Seventh International Conference on Patristic
Studies, Part II Monastica et Ascetica, Orientalia, E Saeculo secundo, Origen, Athanasius,
Cappadocian Fathers, Chrysostom, Augustine. Berlim: Akademie-Verlag, 1985, p. 54-62.
VAN DAN, Raymond. Leaderchip and Community in Late Antique Gaul. Berkeley, Los
Angeles, Oxford: University of California Press, 1985.