João Paulo Charrone
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 183-203, jan.-jun., 2014.
auctorias e poder espiritual que eram mostrados para serem superiores em qualquer
exibição de força ou afirmação do poder secular. E mais, percebemos, nessas hagiografias,
que as ações do episcopado, frente ao poder civil e político, pretendiam a valorização dos
bens simbólicos que o clero podia oferecer: o sagrado e a salvação.
As relações entre o rei e os representantes do poder civil com o santo nas
hagiografias de Venâncio Fortunato sugerem que o poder temporal episcopal funcionava
como uma mediação entre seus poderes espirituais, pois, quando o bispo não tinha êxito em
fazer valer sua autoridade temporal frente aos poderes civis da sociedade merovíngia, tais
representantes do poder civil eram punidos, obrigando-os a ocupar uma posição suplicante
diante do santo bispo até que se “realizassem as ordens do servo de Deus” (VENANTIUS
FORTUNATUS. 1885, Vita s. Paterni, cap, 15
). E mais, para C. Leonardi (1989, p. 281), a
luta contra o arianismo tinha, em parte, apagado o aspecto humano de Cristo – a
preocupação de mostrar que ele tinha essa mesma qualidade divina do Pai onipotente. Por
todos esses motivos, a misericórdia, isto é, o amor ao próximo, não é a virtude principal do
santo Alto Medieval, é, certamente, uma virtude quase desconhecida.
O melhor exemplo que temos desses episódios encontra-se na Vita s. Germani
(VENANTIUS FORTUNATUS. 1885, Vita s. Germani, cap. 23
), na qual Venâncio Fortunato
o caracteriza como aquele que era acostumado a prevalecer sobre os próprios reis: regibus
triumphare. Quando não estava de acordo com o rei Clotário, o santo passava a noite em
vigília e em oração, concomitantemente, o rei era atormentado por febre e dor. Como
resultado desse episódio, temos o rei implorando para que Germano visitasse seu palácio,
onde o rei confessava seus pecados e o bispo curava a doença que o estava afligindo.
R. Collins (1981, p. 115-116) interpretou esses episódios como uma maneira
camuflada pela qual os bispos desenvolviam seu poder político. Visto que, face às perigosas
revoltas do período, tal autoridade não poderia ser declarada abertamente, então como
estratagema, os prelados anunciavam, gradualmente, ao seu público, por meio de um texto
religioso de forte teor persuasivo, no qual os homens interpretavam tais episódios, a
Vita s. Paterni, cap, 15: “Dehinc cum sacerdos pro pauperum remediis regi suggestionem proponeret, tunc
gloriosus Childebercthus Crescentio imperat, ad quem cura publica pertinebat, ut quod beatus Paternus ei
iniungeret expediret. Quod ipse inplere promittens mentitus est, profectusque ad partes Burgundiae praedicto
sanctissimo nesciente, per biduum. Crescentius excaecatus erravit. Qui culpam reminiscens unde illum tam
repente tenebrosus error invaserit, regressus velociter , inpetrata venia, ut culpa cordis exiit oculis lux intravit et
doctior post caecitatem servi dei iussa conplevit, ut ex hoc crederetur recepisse luminaria magis mentis quam
corporis”.
Vita s. Germani, cap. 23: “Est operae pretium illud memoriae tradere, qualiter Sacerdos Christi solitus erat de
ipsis quoque regibus triumphare. Igitur cum glorioso Clotario regi occurrisset ex solito, nec tamen de sancto Viro
stante ante palatium ei fuerit nuntiatum, mora facta ante vestibulum non repraesentatus inde domum revertitur.
Sequens nox in oratorio vigiliis ducitur, rex dolore atque febris infestatione torquetur. Vix primo diluculo ad domum
ecclesiae a proceribus concursatur; poena regis exponitur, ut sua visitatione regis doloris vim mitiget optimates
deprecantur. Mox apud pietatem iniuriae causa postponitur, qui ante nec nuntiabatur, intrat honoratus et exoratus
palatium. Rex vix assurgit de lectulo, caesum se divino flagello conqueritur. Allambit sancti palliolum, vestem
Sacerdotis deducit per loca doloris. Culpam confessus criminis, mox dolor omnis fugatur: idque actum est, ut
cuius incurrerat de contemptu periculum, sentiret tactu remedium”.