FACES DA HISTÓRIA
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A redenção da raça negra em uma perspectiva internacional: discursos do
garveysmo no jornal O Clarim da Alvorada
The race redemption in an international perspective: garveysm´s speeches in
the O Clarim da Alvorada newspaper
FRANCISCO, Flavio Thales Ribeiro
*
Resumo: O objetivo desse artigo é demonstrar como o jornal O Clarim da Alvorada (1924-
1932), periódico da imprensa negra paulista, interpretou e explorou as informações do jornal
afro-americano Negro World. Enquanto órgão representativo de ativistas negros de São
Paulo, o Clarim publicou artigos que combatiam o preconceito de cor e defendiam a
incorporação simbólica do negro a uma ideia de nação racialmente fraterna. Por outro lado,
o Negro World, periódico que divulgava as atividades políticas do líder radical negro Marcus
Garvey, advogava a renúncia dos afro-americanos à cidadania norte-americana,
promovendo o retorno para a África. O jornal brasileiro recontextualizou as informações do
Negro World, selecionando as mensagens de auto-afirmação e dignidade negra e
descartando um retorno para o continente africano.
Palavras chaves: Imprensa negra. Identidade nacional. Transnacional. Marcus Garvey.
Abstract: This article purpose to demonstrate how the newspaper O Clarim da Alvorada
(1924-1932), a periodical from Black Press of São Paulo, interpreted and explored the
African-American newspaper Negro World.. Regarded as one voice of the Black activism in
São Paulo, the Clarim published articles concerning the problem of race prejudice and
defended the symbolical incorporation of blacks into an idealistic national identity based on
idea of racial fraternity. On the other hand, the Negro World, a newspaper that diffused the
radical ideas of Marcus Garvey, advocated the refusal of african-american citizenship, and
promoted the return to Africa. The Brazilian newspaper contextualized again the news from
Negro World into the Brazilian reality, selecting the claims for self-affirmation and dignity
discarding any idea regarding the return to Africa.
Keywords: Black Press. National identity. Transnational. Marcus Garvey.
O Clarim da Alvorada, assim como grande parte dos jornais da imprensa negra do
Estado de São Paulo, nasceu como um periódico sem aspirações claramente políticas,
publicando poemas, contos e informações sobre eventos sociais dos clubes recreativos
negros. Em 6 de janeiro de 1924, Jayme de Aguiar, acompanhado de seu amigo José
Correia Leite, deu início à edição do jornal, preocupado em criar uma folha na qual pudesse
*
Doutorando do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade de São Paulo - Av. Prof.
Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900 - Cidade Universitária São Paulo - SP / Brasil. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa. E-mail: ffrancisco@usp.br.
Recebido em: 06 de abril de 2014.
Aprovado em: 10 de junho de 2014.
A redenção da raça negra em uma perspectiva internacional: discursos do garveysmo no jornal O Clarim da Alvorada
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 89-105, jan.-jun., 2014.
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divulgar a produção de escritores negros com humildes pretensões no campo da literatura.
Em sua primeira edição, o subtítulo anunciava o caráter “literário, científico e político”, não
se manifestando sobre qualquer tipo de articulação de ativistas negros na capital paulista.
A imprensa negra, que se formava no estado, foi produto da iniciativa de uma classe
ascendente de negros em um ambiente de associativismo étnico (DOMINGUES, 2003). Na
cidade de São Paulo, por exemplo, a paisagem foi marcada pela organização de
comunidades imigrantes em torno de entidades como clubes sociais, sociedades esportivas
e jornais (LESSER, 2000). Enquanto italianos, espanhóis, rios, libaneses e outros grupos
reforçavam suas redes institucionais, a população negra reproduzia a lógica a partir de
clubes recreativos que, com o passar do tempo, ganharam contornos mais políticos
(BASTIDE, 1973; FERRARA, 1986). Os jornais negros informavam os seus leitores sobre as
atividades nessas instituições e publicavam alguns artigos que tratavam das condições da
população negra no Brasil.
Nesse período, de formação do mercado de trabalho, após uma era de escravidão, a
população negra passava por uma situação de subemprego, concentrando-se em atividades
de pouca remuneração e enfrentando uma sociedade na qual a hierarquia racial se
reconfigurava. O funcionalismo público se apresentava como uma das poucas alternativas
para ascensão social de alguns poucos negros apadrinhados, possibilitando a formação de
uma “elite negra” (ANDREWS, 1998). A maioria deles não estava empregada em cargos de
prestígio, mas em ocupações auxiliares como assistentes em bibliotecas ou em outras
repartições como copeiros. Portanto, os clubes recreativos serviam como espaços de
afirmação de negros ascendentes que procuravam um lugar em uma sociedade que se
modernizava.
Em meados da década de 1920, os jornais negros ganharam autonomia em relação
aos clubes recreativos, abordando questões sobre o lugar do negro no Brasil e reduzindo o
espaço das colunas sociais. A partir de esforços individuais, os periódicos foram publicados
com dificuldade, dependendo dos recursos dos próprios jornalistas e de anúncios irregulares
de escritórios de advocacia, produtos de beleza e fortificantes. Em algumas ocasiões, os
jornais eram divulgados e vendidos em eventos recreativos dos clubes, mas, na maioria das
vezes, os exemplares eram distribuídos gratuitamente, pois a preocupação fundamental era
a de difundir as ideias do ativismo negro que se articulava.
No caso do Clarim que, como a maioria, tinha uma periodicidade mensal, os recursos
vinham dos bolsos de Jaime de Aguiar e José Correia Leite, que trabalhavam,
respectivamente, como bibliotecário e atendente de farmácia. Posteriormente, como um
meio de evitar a burocracia da sociedade anônima, houve a tentativa de se criar uma
cooperativa para atrair um número maior de sócios para o Clarim que não prosperou.
Apesar da dificuldade, com o estabelecimento da redação na casa de José Correia Leite, o
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periódico conseguiu atingir uma regularidade, algo incomum para a maioria dos jornais da
imprensa negra, que dificilmente passavam da terceira edição. Já em 1926, o Clarim
contava com colaboradores que participavam do ativismo negro paulista como Gervásio de
Moraes e Lino Guedes, que haviam adquirido uma larga experiência na publicação do
Getulino, periódico negro da cidade de Campinas.
O negro na nação brasileira
Para compreendermos o processo de seleção de notícias do Negro World procedido
pelo Clarim, é necessário, primeiramente, tratar do projeto político do periódico e de alguns
ativistas da cidade de São Paulo. Diferentemente da época atual, na qual o ativismo negro
elabora um discurso da diferença, por meio da crítica à democracia racial brasileira e da
valorização de uma identidade especificamente negra, as lideranças negras paulistas do
início do século XX imaginaram uma nação a partir de narrativas que idealizavam uma
suposta fraternidade entre negros, brancos e indígenas (SEIGEL, 2007). A intenção dos
articulistas do Clarim era a de se contrapor aos, ainda fortes, discursos racistas que
projetavam uma sociedade brasileira eminentemente europeia.
Nesse sentido, o periódico negro investiu em representações que dignificavam a
população negra e ressaltavam a sua participação na “edificação da nação brasileira”. O
Clarim também utilizou a estratégia de clamar por uma solidariedade negra capaz de reunir
os negros em uma comunidade que promoveria a inclusão à sociedade brasileira. Nas
páginas do periódico era possível, portanto, identificar uma identidade negra, que aparecia
nos discursos dos jornalistas, como instrumento de ascensão de um negro moderno,
preparado para os novos desafios do período pós-abolição. Os negros paulistas entendiam
que São Paulo se tornaria o centro da modernidade brasileira e que era necessário que a
população negra se ajustasse às novas exigências.
No entanto, o diagnóstico do Clarim, ao avaliar a situação do negro paulista e
brasileiro, em seus artigos, não era positivo. A sensação era a de que eles ainda não haviam
compreendido as regras de um novo jogo, ocupando cada vez mais um espaço marginal em
uma sociedade que se reestruturava. Alguns articulistas, entre eles José Correia Leite,
chegaram a sugerir que, durante a escravidão, a participação dos negros, no universo do
trabalho, havia sido muito mais efetiva e importante. Ao clamarem pelo fortalecimento de
laços entre os negros, de uma suposta comunidade negra paulista, os jornalistas e as
lideranças da época se autoproclamaram guias para uma nova era que exigia a assimilação
de uma ética do trabalho que havia se perdido:
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É esse, sem duvida, um dos “x” da nossa causa, um mal que esta se
generalizando assustadoramente, nos ameaçando aniquilar inteiramente,
um sulco profundo que a evolução vai deixando para trás, como um
episódio negro na nossa existência. A moderna geração que é a nossa
entrou no período agudo de suas remodelações sociais, o seu organismo
está enfermado, e, assim como o humano, esreclamando a intervenção
de todos quanto se interessam pelo evoluir progressista da moral do nosso
povo. (O Clarim da Alvorada, 25 de abril de 1926, p.12)
Os debates sobre as condições sociais da população negra, portanto, concluíam que
a sua situação dramática era consequência de uma mentalidade incapaz de compreender
um momento de mudanças intensas, mantendo-a em um estado apático de pobreza. Apesar
das inúmeras denúncias de preconceito feitas nas ginas do Clarim e de outras
publicações da imprensa negra, não havia a interpretação de que os negros eram vítimas de
práticas sistemáticas de discriminação que configurariam um racismo à brasileira. Os
jornalistas acreditavam na existência de uma articulação de pessoas com intuito de manter
os negros longe da esfera do trabalho, mas tinham uma crença maior num processo de
modernização em curso que naturalmente prevaleceria sobre qualquer força social que
excluísse a população negra.
A modernização do negro, nesse sentido, deveria colocar em prática o que se
imaginava ser um abolicionismo de fato, um projeto que se supunha estar no pensamento
de “apóstolos” como Luis Gama e José do Patrocínio. A ideia de abolição estava relacionada
não somente ao fim da escravidão, mas também à emergência de uma sociedade brasileira
na qual os negros fossem completamente integrados. O Clarim reproduziu, recorrentemente,
principalmente nas edições comemorativas da abolição da escravatura, as imagens dos
abolicionistas, tratados como heróis libertadores e, no caso dos abolicionistas negros, como
exemplos, concretos, de homens engajados em um processo de ascensão social. Sendo
assim, sob a inspiração dos “apóstolos da redenção”, os negros deveriam ampliar suas
redes de colaboração, educando-se de maneira adequada para o capitalismo e enfatizando
uma postura elitista que se contrapunha à imagem estereotipada de uma pobreza negra
relacionada à vadiagem.
Se por um lado o Clarim emitia a mensagem da necessidade da população negra se
articular a partir da ideia de um negro ajustado e moderno, por outro, o periódico investia em
uma série de símbolos que configuravam narrativas de uma história do negro associada,
intimamente, à construção da nação brasileira. O mais celebrado deles foi o da Mãe Preta,
representação da negra escrava que se dedicava a alimentar e educar os filhos dos
senhores de escravos. O periódico, de maneira entusiasmada, explorava intensamente essa
figura que simbolizava a ascensão de uma congregação racial no Brasil, construindo os
laços de uma fraternidade entre negros e brancos:
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O Brasil, um gigante que hoje vive a vertigem de sua civilização de suas
energias, cresceu ao calor do teu carinho, ouvindo o teu idioma de ternura
humana, que não fala senão pelas lágrimas e pelos sorrisos, e tudo
expressa num olhar, numa bênção e num gemido. O Brasil gigantesco foi
acalentado no teu colo, bebeu a seiva de seus seios opulentos, tu o criaste.
Sim, do teu seio noturno de escrava e mártir, de mãe por instinto e pelo
devotamento, bebemos o leite puríssimo, que nos foi alimentado para o
organismo e para a alma, porque desse leite generosamente dado dimana
nossa bondade, que nos singulariza como raça afetiva, que tem o dom do
agrado e a virtude suprema do perdão. (O Clarim da Alvorada, 13 de maio
de 1927, p.1)
Portanto, a estratégia do Clarim era a de clamar por uma solidariedade negra e
reivindicar a inclusão simbólica e social dos negros brasileiros. Nas páginas do jornal,
emergia uma identidade negra, porém em diálogo com um propósito maior que era o de
afirmação de uma identidade nacional fraterna “racialmente”. Os jornalistas e ativistas
paulistas, daquele período, imaginaram a incorporação da população negra à sociedade
brasileira como uma estratégia de grupo baseada em uma coletividade negra. A proposta
política do jornal brasileiro tinha uma perspectiva assimilativa em relação à ideia de nação,
diferentemente da ideia de retorno à África e renúncia a uma cidadania norte-americana
difundido pelo Negro World, como veremos a seguir.
Marcus Garvey e o jornal Negro World
Na década de 1920, os Estados Unidos passavam por grandes mudanças sociais,
uma delas estava relacionada ao fenômeno da Grande Migração, em que negros dos
estados do sul do país se deslocaram para o norte em busca de oportunidades de emprego
e de um “refúgio” ao racismo sulista, considerado como o mais violento do território norte-
americano. Sendo assim, a população negra, que se concentrava majoritariamente no sul,
devido a escravidão, migrou para os grandes centros urbanos do país como Chicago, Nova
Iorque, Detroit e Boston (GROSSMAN, 1989). Esse movimento histórico contribuiu para o
surgimento de guetos nas cidades do norte, onde emergiam núcleos de um ativismo afro-
americano (JORDAN, 2001).
Nesse período, ascenderam inúmeras lideranças negras nos Estados Unidos,
formando-se um espectro político variado com defensores de um viés integracionista como
William Dubois ou defensores de uma abordagem mais radical como a de Marcus Garvey,
que defendia o “retorno” dos afro-americanos para o continente africano, devido a
impossibilidade de conquista de uma cidadania negra no país. O seu discurso foi bastante
popular entre os negros nova-iorquinos que habitavam o bairro do Harlem, onde
estabeleceu o seu quartel general (LAWLER, 2005). Garvey, de origem jamaicana, tinha
uma posição moderada sobre o modo como as organizações negras deveriam atuar,
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contudo, ao fazer uma jornada pelo sul do país, testemunhando os inúmeros atos de
violência racial nos Estados Unidos, acabou assumindo uma agenda política radical.
Para colocar em prática as suas propostas políticas, Marcus Garvey criou a UNIA
(Universal Negro Improvement Association), em 1914, antes mesmo de se mudar para os
Estados Unidos. O jamaicano estava inserido, politicamente, em uma tradição pan-
africanista bastante difundida entre as lideranças afro-americanas. Desde o século XIX,
intelectuais e políticos, como Edward Blyden, refletiam sobre as conexões entre as
populações do continente africano e da diáspora africana nas Américas, gestando a ideia de
África enquanto berço da civilização negra. O próprio William Dubois, apesar de representar
uma liderança integracionista no início de sua trajetória política, foi considerado um dos
precursores do pan-africanismo, organizando congressos pan-africanistas e reforçando a
solidariedade política com os povos africanos (APPIAH, 1997). Marcus Garvey, no entanto,
foi além da simbologia de uma “Mãe-Africa”, especulando sobre a possibilidade de retorno
de negros do Caribe e dos Estados Unidos para África. A UNIA deveria cumprir a função de
materializar um projeto de colonização de terras na África por meio de um conjunto de
empreendimentos que arrecadariam os fundos necessários para a sua realização.
A iniciativa mais conhecida da organização de Marcus Garvey foi a Black Star Line,
uma companhia marítima que, primeiramente, faria o transporte de bens entre os Estados
Unidos e o Caribe e, posteriormente, assim que desenvolvesse uma estrutura maior, se
encarregaria de transportar colonos afro-americanos para a África. A princípio, o
empreendimento parecia ser um investimento promissor. Com uma tripulação inteiramente
negra, a primeira embarcação, o Yarmouth, depois de três meses de reforma, já estava
navegando. Contudo, com o passar do tempo, a operação da companhia tornou-se inviável,
caminhando subitamente para a falência.
O poder de persuasão de Garvey estava condicionado ao sucesso dos
empreendimentos da UNIA. Enquanto a Black Star Line entusiasmou os investidores e
seguidores, Marcus Garvey desfrutou de grande popularidade no cenário político do
ativismo afro-americano, confrontando, diretamente, aqueles que defendiam uma solução
moderada para a situação dos negros. Com a fama de liderança demagoga, Marcus Garvey
ficou marcado pelas suas exibições públicas que se assemelhavam a paradas militares.
Diferentemente da maioria dos ativistas negros, o jamaicano conseguia elaborar um
discurso com apelo popular, enfatizando a sensação de se habitar uma terra de estranhos
na nação norte-americana e reforçando a necessidade de se encontrar um espaço no qual o
negro poderia se redimir e encontrar a sua independência econômica.
O jornal Negro World cumpriu o papel, primordial, de divulgar as ideias de Marcus
Garvey. Em seus primeiros anos na cidade de Nova Iorque, o jamaicano ainda era um
tipógrafo que sonhava em difundir o seu programa de cooperação social e econômica entre
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os negros de Nova Iorque. Ao dar os primeiros passos como militante nos Estados Unidos,
ele usou a estratégia de manifestar as suas posições políticas em um púlpito, revelando
suas habilidades como orador e construindo a sua imagem de liderança carismática. Assim
que começou a atrair seguidores para a sua causa e a estruturar a UNIA, Marcus Garvey
criou o jornal Negro World, em 1918, com o intuito de difundir a sua mensagem para além
dos quarteirões do Harlem. O periódico, publicado semanalmente, em seu início, foi
distribuído gratuitamente. À medida que foi atingindo cidades em diferentes regiões do
território norte-americano, foi vendido por um preço que variava entre 5 e 10 centavos, uma
faixa considerada adequada para o perfil dos membros da UNIA, alcançando uma tiragem
de 60.000 exemplares (LAWLER, 2005, p.33).
O jornal, além de divulgar o pensamento de Marcus Garvey, publicava informes
sobre as atividades da UNIA, reservava uma seção de cartas para os leitores e celebrava
grandes figuras da história negra como o libertador haitiano Toussaint L’Overture, escravos
rebeldes como Denmark Vesay e Gabriel Prosser, além de narrativas heroicas de povos
africanos que desafiaram as autoridades coloniais europeias. O Negro World também
contou com a colaboração de ativistas de prestígio, como Thomas T. Fortune, e jovens
escritores negros que encontrariam a primeira chance no periódico. A posição política de
Garvey se reproduzia nos anúncios, que tinham relação com algum negócio ou iniciativa
liderada por negros e evitavam a propaganda de clareadores de pele. O líder jamaicano
tinha o controle sobre toda a edição do periódico, expressando as suas opiniões nos
editoriais da primeira página na qual anunciava uma era de redenção da “raça negra” e do
continente africano (CRONON, 1969, p. 47).
A ascensão do periódico de Marcus Garvey acompanhou a ascensão de outros
jornais da imprensa afro-americana que conseguiram atingir uma regularidade a partir das
primeiras décadas do século XX. Os primeiros, que datam do ano de 1827, foram
publicados por negros livres em um período de escravidão, encontrando enormes
dificuldades devido à pequena quantidade de negros alfabetizados. As comunidades negras
que se formaram nos grandes centros urbanos possibilitaram o surgimento de um público
leitor, criando um terreno fértil para a proliferação de periódicos negros. A emergência da
geração de ativistas negros na década de 1920 foi acompanhada de jornais regulares e com
esquemas de distribuição profissionais capazes de cobrir todo o território norte-americano.
O Chicago Defender foi o jornal que atingiu a maior tiragem no período, com 150.000
exemplares, seguido de perto do Crisis, periódico da NAACP, e do Baltimore African-
American (JORDAN, 2001).
A popularidade do Negro World, contudo, transcendeu as fronteiras nacionais,
seguindo a perspectiva de Marcus Garvey de criar um amplo panorama das atividades
políticas negras pelo mundo. Se jornais como Baltimore African American e Chicago
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Defender privilegiavam as questões dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, o
Negro World trabalhava com a noção de diáspora negra, difundindo a mensagem de
solidariedade negra em um amplo espaço transnacional. O periódico de Marcus Garvey,
mais do que qualquer outro, embarcou em uma onda de internacionalismo afro-americano
que se iniciou na Primeira Guerra Mundial. Com a participação de combatentes negros nas
áreas de conflitos na Europa, os ativistas negros ampliaram os seus horizontes, sobretudo
ao testemunharem outros padrões de relações raciais e experiências negras, como as dos
senegaleses que se juntaram ao exército francês (LENTHZ-SMITH, 2009). Um ano após o
fim da guerra, ativistas afro-americanos organizavam encontros com africanos radicados
na Europa para pensar a situação do continente africano e das populações negras pelo
mundo, como foi o caso do primeiro Congresso Pan-Africano, em 1919, na cidade de Paris.
Para Marcus Garvey, essa expansão de horizontes significava a possibilidade real de
estreitamento de laços entre as populações negras das Américas e do continente africano.
Com a expectativa de alcançar leitores fora dos Estados Unidos, o Negro World, em suas
quinze páginas, passou a publicar algumas seções em francês e espanhol. O periódico do
líder jamaicano circulou entre várias sociedades africanas, penetrando áreas remotas do
continente e atraindo a atenção de autoridades coloniais preocupadas com o conteúdo
“subversivo” de suas mensagens. Jomo Kenyatta, líder nacionalista do Kenya, comentou
que, durante a sua infância, nacionalistas do Kenya, muitos deles analfabetos, reuniam-se
em torno de uma pessoa que lia o Negro World umas três vezes, possibilitando, assim, a
memorização e difusão dos conteúdos dos textos (LAWLER, 2005, p. 33).
O periódico também chegou a alguns países onde se consolidava o discurso da
harmonia racial em contraposição à violência racial norte-americana. Em Cuba, o Negro
World circulou por cerca de vintes anos, onde encontrou, principalmente, minorias
jamaicanas entusiasmadas pelo discurso garveysta. Em 1921, Garvey desembarcou na ilha
para promover os seus ideais entre os cubanos, recebendo uma calorosa recepção por
parte dos seus compatriotas, enquanto a população nativa demonstrava certo ceticismo.
Para os cubanos, o discurso de Marcus Garvey não fazia sentido, já que os negros haviam,
durante a guerra para independência de Cuba, adquirido uma cidadania de primeira classe,
ajudando a construir uma nação onde se presumia a inexistência do preconceito racial
(ROBAINA, 1998).
O fato é que o Negro World se transformou em um periódico importante e, apesar
das proposições controversas de Marcus Garvey, encontrou um grande número de
interessados nas mensagens do líder radical além do cenário político norte-americano.
Nesse sentido, o periódico cumpriu um papel importante no que o sociólogo Paul Gilroy
(2001) define como Atlântico Negro: um espaço transnacional, entre a América, a África e a
Europa, onde circulavam as ideias concebidas por ativistas e intelectuais negros.
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As ideias de Garvey no Brasil
Ao longo de sua trajetória, o Clarim atribuiu diferentes significados às experiências
políticas afro-americanas. Em seus primeiros anos, o periódico negro brasileiro explorou
demasiadamente os embates entre negros e brancos nos Estados Unidos, ressaltando,
sobretudo, uma narrativa de conflitos raciais que radicalizavam cada vez mais as posições
de dois grupos fechados para uma solução pacífica. O assunto era sempre tratado de
maneira genérica, retratando uma sociedade completamente segregada e violenta,
ignorando os matizes do problema racial e a diversidade de posições políticas em jogo. O
objetivo fundamental era o de reforçar o contraste entre a vocação brasileira para a
fraternidade racial e o descontrole dos norte-americanos:
Enquanto o negro norte-americano desabotoa o peito e se atira contra o
branco numa luta exterminante, bárbara e sanguinária, arrastado pelo ódio
mortal; enquanto corre pelas sarjetas os jatos estuantes de sangues irmãos,
o negro brasileiro estende a mão da fraternidade aos brancos e fortalecem o
cunho de amizade que os ligam porque, apesar de tudo, do nosso esforço
educativo, o nutrimos ódio contra quem, em épocas longínquas, dominou
pelo poderio e venceu pela chibata. (O Clarim da Alvorada, 14 de novembro
de 1926, p.2)
No final da década de 1920, o Clarim mudou um pouco o seu discurso, publicando,
ainda, artigos que, genericamente, comparavam as sociedades brasileira e norte-americana,
mas retratando iniciativas positivas dos afro-americanos, tratando-as como exemplo para as
lideranças negras no Brasil. A agitação política, que culminaria com a Revolução de 30 no
país, teve consequências entre o ativismo negro que passou a criticar a República brasileira,
que não havia cumprido a expectativa de integrar a população negra. Nesse período, é
possível perceber o aumento na quantidade de artigos que afirmavam a importância de uma
fraternidade racial entre os brasileiros, mas que denunciavam inúmeros casos de
preconceito.
Parte da mudança na abordagem do Clarim em relação às experiências afro-
americanas esteve associada às suas fontes. Em seus primeiros anos, as informações
sobre os Estados Unidos eram reproduzidas dos grandes jornais do período, como O
Estado de São Paulo, ou coletadas das agências internacionais de notícias, como a
Associated Press e a United Press Association, já presentes no Brasil (MARTINS; LUCA,
2008, p.152). No final da década de 1920, o Clarim começou a receber exemplares do
Chicago Defender e do Negro World. No caso do primeiro, houve uma espécie de
intercâmbio entre o jornal brasileiro e o norte-americano, que surgiu a partir de uma rede de
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jornalistas iniciada com a viagem de Robert Abbott, editor do Chicago Defender, para o
Brasil, em 1923.
Em relação ao Negro World, não informações precisas sobre o modo como o
periódico começou a circular entre os ativistas negros brasileiros. José Correia Leite, que
havia se tornado a grande referência na edição do Clarim, em sua autobiografia, publicada
nos anos 80, conta que recebeu uma proposta de dois entusiastas de Marcus Garvey, os
baianos Alcino dos Santos e João Sótero da Silva, que propuseram a tradução de notícias e
artigos relacionados ao pan-africanismo do líder jamaicano (LEITE, 2007). Assim, José
Correia Leite incumbiu Mario Vasconcelos de traduzir o Negro World e selecionar o seu
conteúdo para os leitores brasileiros. As posições políticas de Leite, de certa forma,
contribuíram para a reprodução dos artigos internacionais de conteúdo garveysta. O
jornalista se apresentava como parte de uma minoria entre as lideranças negras que não se
entusiasmava com as tendências fascistas nacionalistas que orientavam grande parte do
ativismo negro paulista, o que posteriormente causaria problemas com a Frente Negra
Brasileira (DOMINGUES, 2003).
O primeiro artigo atribuído ao Negro World foi publicado em 1929, no momento em
que o Clarim questionava a república brasileira e suas políticas que marginalizavam a
população negra do Brasil. Os jornalistas do periódico brasileiro acreditavam que aquele era
o momento chave para organização e manifestação dos negros em todo o país. Nesse
sentido, as mensagens de cooperação e solidariedade garveystas, entre negros, foram
recontextualizadas para o cenário político brasileiro. Com o título “Eduquemos nossas
massas” e com um subtítulo que anunciava o jornal afro-americano como um órgão
“defensor da raça negra disseminada por toda a parte do globo”, o autor do artigo tratou da
necessidade da construção de uma coletividade negra entre as populações da diáspora.
Rememorando um período doloroso que despertara o sentimento de vergonha, o texto não
fazia nenhuma alusão à escravidão, mas descrevia um momento histórico em que os
“inimigos da humanidade” haviam privado o negro de seus direitos de ser humano. O artigo
não foi escrito por Marcus Garvey, mas o tom da retórica do autor soava como a do líder
jamaicano. No trecho final foi reforçada a mensagem de que “a força da nossa raça” bastava
para a inserção em um mundo em progresso:
Essa experiência é bastante para remédio de nossos males. Rechacemos
as ofertas lisonjeiras que cotidianamente nos oferecem, as quais aniquilam
as iniciativas do progresso que começam a sentir-se no seio de nossa
coletividade. Digamos com orgulho: nossas forças nos bastam! Não
esperemos glórias que outros nos oferecem; adquiramos estas por nosso
próprio impulso. Elas garantirão nosso porvir e de nossas gerações
vindouras, que robustecidas com o nosso labor econômico, chegarão muito
breve a cobrir a retaguarda no campo de ação de nossa raça, e ocuparão o
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posto que lhes corresponde na vida da civilização. (O Clarim da Alvorada,
03 de fevereiro de 1929, p.1)
O texto retirado do Negro World não apresentava nenhuma proposta de retorno para
o continente africano, mas continha um discurso que clamava pela união dos negros, o que
era um primeiro passo para a autonomia e o consequente progresso da “raça”. A
mensagem, contudo, adequava-se à proposta do Clarim e das lideranças negras de São
Paulo de construir uma coletividade negra na capital paulista. A ideia era a de demonstrar
que, assim como nos Estados Unidos, no Brasil, os negros também enfrentavam desafios. A
situação política no Brasil obrigava o negro a se articular, assim como se supunha que os
afro-americanos já faziam, há anos, para enfrentar a violência racial.
Para os jornalistas do Clarim era importante pintar um quadro adverso para os
negros no Brasil e em outros países, mas sem a manifestação de tensões que pudessem
comprometer um futuro de fraternidade racial. Porém, não era possível publicar todos os
textos retirados do Negro World que estimulavam a autodeterminação do negro e evitar
discursos garveystas que culpavam os brancos pela condição de miséria da maioria das
populações negras pelo mundo. Na edição de novembro de 1929, o periódico brasileiro
publicou um artigo de um dos seguidores de Garvey, que clamava pela independência da
população negra em relação aos brancos. Eles foram descritos como seres de natureza
ambiciosa que fariam de tudo para esgotar a energia e os recursos das populações negras,
submetendo-as ao seu domínio. Havia, assim, uma espécie de esforço orquestrado para a
afirmação da superioridade dos brancos. Marcus Garvey foi citado como exemplo de
insubordinação, uma personalidade política capaz de empreender seus projetos sem
depender dos anglo-saxões dos Estados Unidos.
[...] O homem branco está tentando tudo que está no seu poder para nos
subjugar. Ele é um ladrão e ainda está roubando tudo que suas mãos
podem pegar: ele está tentando enganar os negros a respeito de proteger o
seu dinheiro e seus direitos.
Sabeis que um gatuno tem ódio de ver alguém com um saco grande. Temos
um líder que está fazendo todo o esforço para garantir os nossos direitos e
estamos muitos satisfeitos com ele, não estamos pedindo para alguém nos
proteger. (O Clarim da Alvorada, 24 de novembro de 1929, p.1).
Apesar dos “excessos” dos textos retirados do Negro World, eles ganharam cada vez
mais espaços nas páginas do Clarim. Quando o periódico brasileiro resolveu organizar uma
seção específica para as notícias internacionais, a publicação de Marcus Garvey serviu de
inspiração. No “Mundo Negro” os leitores tinham acesso a um panorama internacional das
experiências negras. Nesse sentido, o Negro World foi uma das fontes que pautaram o
debate sobre a ascensão de organizações políticas entre as populações da diáspora negra.
Como vimos anteriormente, o jornal afro-americano tinha uma perspectiva internacional e a
A redenção da raça negra em uma perspectiva internacional: discursos do garveysmo no jornal O Clarim da Alvorada
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clara intenção de atingir leitores nas Américas e na África, construindo um cenário em que
as populações negras despertavam para o progresso.
Para os jornalistas do Clarim, principalmente José Correia leite, a ideia de progresso
negro era fundamental para integrar a população negra à modernidade paulistana: os
negros deveriam superar o atraso dos anos de escravidão e assimilar os valores de uma
nova sociedade. Portanto, não adiantava somente culpar a era da República como a
responsável pela marginalização negra, era necessário também a iniciativa dos negros para
a adequação a um novo contexto histórico. As narrativas dos textos reproduzidos do Negro
World ajudavam a reforçar o discurso de uma era de transformações, um momento decisivo
em que as populações negras assumiam o papel de protagonistas na modernidade.
Em maio de 1930, o Clarim publicou um texto atribuído a Marcus Garvey, no qual o
líder jamaicano tratava de combater as afirmações sobre a inferioridade das populações
negras, afirmando que as suas capacidades intelectuais poderiam garantir uma autonomia
em relação aos brancos, que a história demonstrava a impossibilidade de conciliação
entre os dois grupos. Os negros deveriam ser guiados por seus próprios líderes, que seriam
responsáveis por conduzi-los ao caminho do progresso, buscando um espaço na civilização.
Contudo, havia a ressalva de que qualquer superioridade tinha um lado perverso e poderia
despertar o desejo, tão comum entre os brancos, de subjugar outras “raças”:
A ideia de superioridade de raça é disputável, todavia devemos admitir que,
do estandarte do homem branco, ele é muitíssimo superior ao resto de nós.
Mas aquela qualidade de supremacia é inumana e perigosa para ser
permanentemente auxiliadora. Tal superioridade foi dividida e gozada por
outras raças antes, até mesmo pela nossa, quando nos gabávamos de uma
civilização nas margens do Rio Nilo, enquanto as outras ainda estavam nas
trevas.
A civilização pode durar somente quando alcançado o posto onde seremos
o guarda de nossos irmãos. Quer dizer, quando sentimos justo viver e
deixar viver.
Que nenhum homem preto sinta que tem direito exclusivo ao mundo. Se
outros homens não têm, que o homem branco também se sinta do mesmo
modo. O mundo é a propriedade de todo o ser humano, e cada um tem o
direito a uma porção. O homem preto precisa da sua, e em termos formais
ele não está pedindo. (O Clarim da Alvorada, 13 de maio de 1930, p.3)
A força retórica dos discursos de Garvey e seus seguidores no Negro World
entusiasmou alguns dos jornalistas do Clarim que começaram a reproduzir palavras de
ordem atribuídas ao líder jamaicano em algumas páginas do jornal. Em uma edição de maio
de 1931, por exemplo, é possível encontrar as frases “A cooperação racial interna é
necessária para a nossa redenção”, na primeira página, e, na segunda página, As outras
raças progridem por causa de suas ufanias e seus empenhos ao amor racial, por que nós
não fazemos o mesmo?”. Em uma das poucas vezes em que se manifestou no Clarim,
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Mario Vasconcelos, o tradutor, justificou a publicação de notícias internacionais, sobretudo
as mensagens de Marcus Garvey. Ele respondeu aos leitores que manifestavam antipatia
pelos afro-americanos, demonstrando como estavam equivocados e citando os casos de
negros nos Estados Unidos que enalteciam grandes figuras nacionais e estrangeiras. Assim
sendo, o periódico brasileiro tinha a função de divulgar os grandes feitos da “raça” pelo
mundo por meio da seção “Mundo Negro”:
O nosso Mundo Negro, pelo talento do seu correspondente, nas suas
possibilidades materiais, vai arraigando aos poucos em documentações
valiosas tudo quanto diz respeito à nossa raça, através do batalhão
incessante da educação das nossas massas para orientá-las em tudo a que
estão alheias.
Eis que o nosso órgão procura fazer em o Mundo Negro, a exemplo de
outros órgãos portentosos daqui e de fora. Portanto não se assustem
patriotas negros do Brasil! Nós queremos acompanhar a evolução negra do
mundo para sustentarmos as finalidades de um bom jornal, sem
percebermos as atitudes dos negróides que se debatem nas obscuridades
de suas obras negativas (O Clarim da Alvorada, 23 de agosto de 1931, p.4).
Para Mario Vasconcelos, estava clara a importância das experiências políticas pelas
diásporas negras. O colaborador do Clarim achava que elas poderiam estimular as
organizações políticas negras no Brasil, independentemente de defenderem agendas
controversas como a do retorno para o continente africano ou qualquer espécie de
autonomia em relação aos brancos. Os ativistas negros no Brasil, assim como os de outros
países, viviam um momento crucial e deveriam atuar como protagonistas no que se
imaginava ser um processo de redenção de toda a raça negra”. Nas páginas do Clarim,
reforçava-se, cada vez mais, uma perspectiva transnacional, em que a articulação das
lideranças eram consideradas parte de uma quadro amplo de lutas negras. O periódico
brasileiro, dessa forma, jogava com diferentes identidades, afirmando uma identidade
nacional relacionada ao projeto de inclusão do negro à nação brasileira. Uma identidade
negra, que clamava pela solidariedade dos negros de São Paulo, e uma transnacional, que
reconhecia as ações políticas dos negros de outros países como referências para a atuação
no Brasil.
Essa perspectiva que se revelava nas páginas do Clarim, baseadas em grande parte
no Negro World, é perceptível quando se observa as representações sobre a África. Nos
primeiros anos do periódico brasileiro, na década de 1920, e da imprensa negra em geral, o
continente africano foi retratado sempre como um lugar distante no espaço e no tempo, no
qual originaram-se os escravos que construíram as bases da nação brasileira. O esforço
para retratar a população negra do Brasil como um elemento fundamental na formação do
país foi feito por meio de um distanciamento em relação à África. Não era estranho, por
exemplo, comentários como os de que assuntos sobre o continente não deveriam ser
preocupação dos “homens de cor” do Brasil. Em muitas ocasiões, a África foi considerada
A redenção da raça negra em uma perspectiva internacional: discursos do garveysmo no jornal O Clarim da Alvorada
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como um “espaço selvagem” e do atraso, sem nenhuma perspectiva de progresso. Se os
negros pretendiam seguir os rumos da modernidade brasileira, deveriam, portanto, cortar os
laços imaginários com o continente negro.
Ao utilizar os jornais afro-americanos como fonte de informações regulares, o Clarim
passou a abordar as questões relacionadas à África de maneira diferente, deslocando-se de
uma África genérica e atrasada para uma dinâmica concebida por meio de uma
interpretação pan-africanista. Portanto, o continente ganhou um novo espaço no periódico
brasileiro, a partir de informações de jornais afro-americanos que tinham o debate sobre
países como a Libéria e a Etiópia como primordiais para as suas agendas no cenário político
norte-americano. O Chicago Defender, que representava uma posição integracionista, tinha
uma seção para assuntos internacionais, na qual as questões dos povos africanos eram
tratadas com certa relevância. No entanto, para o Negro World, os acontecimentos no
continente africano eram centrais para a elaboração do discurso radical de Marcus Garvey,
principalmente o projeto de redenção dos povos africanos.
Na seção “Mundo Negro” do Clarim, as informações reproduzidas do Negro World
transformaram o jornal afro-americano em eixo da cobertura sobre os acontecimentos na
África. Nem todas as referências sobre o continente eram retiradas do periódico de Garvey,
mas as páginas internacionais eram organizadas de forma a assegurar uma perspectiva
pan-africanista quando o assunto tinha alguma relação com a África, possibilitando a
construção de um quadro internacional que conectava as experiências negras nas Américas
com as experiências políticas africanas. Nesse sentido, as notícias orientadas pelo discurso
garveysta do Negro World situavam as ações do ativismo negro em São Paulo e no Brasil
numa perspectiva pan-africana da luta de autoafirmação das populações negras.
Na edição de agosto de 1930, o Clarim publicou o artigo de Arthur Grey, colunista do
Negro World, que clamava pela união dos povos negros em torno de um programa que
defendesse a África do colonialismo dos europeus. Grey identificava um período tenebroso
para os povos africanos. Os negros da diáspora deveriam se manifestar contra a opressão
dos brancos. Apesar da condição de desprivilegiados, já que as populações negras também
experimentavam os obstáculos raciais, impostos por diferentes sociedades nas Américas, os
negros ainda tinham o controle sobre os seus destinos e poderiam ser os “arquitetos do
porvir”:
A história nos ensina que somos os descendentes dos nossos
antepassados, que foram roubados da África; o presente nos ensina que a
África está sendo dividida entre as nações ladras do mundo como suas
propriedades. Hoje, milhões de povos pretos de descendência africana
estão se submetendo a dominação daqueles que têm roubado-lhes a
riqueza, o lar, a família e a cultura. (O Clarim da Alvorada, 23 de agosto de
1930, p.4).
Flavio Thales Ribeiro Francisco
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Discursos como o de Grey eram acompanhados por notícias do Negro World e de
outras fontes que possibilitavam um arranjo de informações de caráter pan-africanistas. A
África do Clarim, diferentemente daquela representada nos primeiros anos do jornal, não
era mais um incômodo. Por meio de notícias sobre os desafios às autonomias de países,
como a Libéria e a Etiópia, e dos conflitos, em outros territórios, submetidos aos europeus, o
continente se transformou, nas páginas do jornal brasileiro, em um espaço de convergência
das experiências políticas. Ainda que os jornalistas do Clarim e as lideranças negras de São
Paulo continuassem a afirmar a identidade brasileira dos negros, havia, no periódico, uma
nova postura que associava a dignidade das populações negras à autodeterminação dos
povos africanos. A ideia de raça, ainda impregnada por uma noção biologizante, funcionava
como elemento de aproximação simbólica com o continente africano.
Conclusão
Em um momento em que o Clarim demonstrava uma maior combatividade,
manifestando uma clara rejeição à República, o Negro World foi incorporado ao editorial do
periódico brasileiro com uma linguagem e um conjunto de ideias que traduziam alguns dos
anseios de parte do ativismo negro de São Paulo. Ainda que o jornal de Marcus Garvey
difundisse propostas controversas aos brasileiros, havia, no discurso do periódico, narrativas
de redenção do negro e de solidariedade racial que ajudavam os jornalistas do Clarim a
construir um amplo quadro político de ativismo negro, criando uma sensação de urgência
que exigia a manifestação de uma postura política frente às adversidades. Portanto, num
espaço transnacional de circulação de impressos, o Clarim utilizou o Negro World como um
recurso capaz de estruturar uma visão em que as populações negras assumiam o papel
ativo de agente na modernidade.
Referências:
Fontes:
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Arquivo do Estado de São Paulo.
O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.13 de maio de 1927, p.1.Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
A redenção da raça negra em uma perspectiva internacional: discursos do garveysmo no jornal O Clarim da Alvorada
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº1, p. 89-105, jan.-jun., 2014.
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O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.14 de novembro de 1926, p.2. Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.3 de fevereiro de 1929, p.1.Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.24 de novembro de 1929, p.1. Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.13 de maio de 1930, p.30. Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
O CLARIM da Alvorada (1924-1932).São Paulo.23 de agosto de 1931, p.4. Disponível no
Arquivo do Estado de São Paulo.
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