Recebido em: 26/02/2016
Aprovado em: 14/03/2016
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro
ensaios de iconografia política. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2014.
LINO, Raphael Cesar
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O historiador italiano Carlo Ginzburg, nascido no ano de 1939, em Turim, é uma
referência indispensável dentro dos estudos de história cultural e reconhecido por seus
trabalhos sobre crenças populares, heresias e processos inquisitoriais, sendo muitas
vezes associado ao surgimento da micro-história, especialmente devido à publicação
do livro O queijo e os vermes (1976) e por sua participação na coleção Microstorie,
publicada na Itália entre os anos de 1981 e 1993. No entanto, sua produção é bastante
eclética no que tange à sua autoria sobre muitas reflexões teóricas e metodológicas,
além de trabalhos relacionados à História da Arte.
A obra aqui apresentada, Medo, reverência, terror: quatro ensaios de iconografia
política (2014) traz a marca de uma das principais características da produção intelectual
de Ginzburg: ser um historiador da inovação, da experimentação. Seu estilo de pesquisa
e escrita foi o que Henrique Lima conceituou como método de “deslocamento, que
consiste na transferência de questionamentos e ferramentas de um lugar ao outro,
1. Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras
de Assis - UNESP - Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900,
Assis, São Paulo - Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: rph_lino@yahoo.com.br
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 211-215, jan.-jun., 2016.
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“filologia textual aplicada a textos não literários, problemas de História Social aplicados à
História da Arte, análise iconológica recolocada diante dos mitos, morfologia empregada
para análise de materiais históricos” (LIMA, 2006, p. 281).
O livro é composto de quatro capítulos independentes, que, em conjunto, se
preocupam em evidenciar a conexão entre a produção iconográfica e a política, o que
tampouco quer dizer que uma responderia à outra mecanicamente. O destaque para
este trabalho é justamente evitar este tipo de relação causal. A análise é construída a
partir do estudo das trajetórias individuais, das redes de relações pessoais, bem como
do conjunto de referências e escolhas que se constituem e precedem as iconografias.
O primeiro capítulo, Medo, reverência, terror: reler Hobbes hoje, consiste em uma
análise de Thomas Hobbes, partindo do livro O Leviatã e sua ilustração mais conhecida
2
.
Na interpretação de Ginzburg, o pensamento hobbesiano se baseia na constatação de
que o medo, juntamente com a sujeição, legitimado pela religião cristã, são os fatores-
chave para a formação do Estado. O desenvolvimento dessa afirmação é uma busca na
trajetória intelectual e nas vivências pessoais de Hobbes.
Dessa forma, as obras De Cive e, posteriormente, O Leviatã, não buscam
somente esboçar uma teoria política, são também resultado da experiência vivenciada
em seu contexto histórico. Ao mesmo tempo em que assistia a disputa entre o rei e o
parlamento Inglês, Hobbes se exilou na França, em meados do século XVII, após o início
da Revolução Inglesa e foi nessa época em que realizou uma tradução de A guerra do
Peloponeso de Tucídides.
Em uma das passagens deste trabalho, Hobbes concluiu que o medo dos deuses
guiava as leis e os limites da sociedade grega. Com a proliferação da peste em Atenas este
medo perdera seu sentido e, desse modo, também toda a coesão social. Na sociedade
ocidental, o medo de seu semelhante obriga os homens a cederem seus direitos naturais
ao monarca
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. A ênfase no medo é colocada em evidência por Ginzburg por um desvio
de Hobbes em sua tradução de Tucídides: apeirgein (em grego) “manter sob controle” é
transformado em to awe (em inglês) – “amedrontar”.
Ao desenvolver esta teoria, Hobbes realizava uma variação de vocabulário, o
que quer dizer que suas leituras foram readaptadas, palavras foram traduzidas com um
sentido distinto daquele que teriam em outros idiomas, fato que, para Ginzburg, não
tem outra explicação senão o de transformar o medo em algo útil. Hobbes faz dele a
própria base do Estado.
Ginzburg finaliza o capítulo estabelecendo uma relação com a geopolítica atual,
em que as disputas entre os Estados se assemelham ao estado natural do homem,
e, na busca pela hegemonia, medo e terror são duas armas utilizadas amplamente
nessa disputa, com objetivos hobbesianos como a submissão e renúncia às liberdades
individuais, criando um mundo cada vez mais globalmente controlado.
O segundo capítulo, David, Marat: Arte, política, religião, trata sobre uma análise
do quadro Marat em seu último suspiro, do pintor francês Jacques-Louis David (1793).
Não é uma descrição feita a partir do ponto de vista artístico, mas das correspondências
políticas com as quais a obra dialoga, pois foi elaborada em um momento decisivo da
2. A primeira imagem ilustrativa d’O Leviatã foi uma homenagem ao rei Carlos II (GINZBURG, 2014, p.26).
3. O estado natural para Hobbes seria a “luta de todos contra todos”: Bellum omnium contra omnes
(GINZBURG, 2014, p. 14).
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república proclamada na Revolução Francesa.
Como sabemos, a Revolução foi uma tentativa de ruptura com o Antigo Regime,
contra a monarquia e contra o cristianismo. A ruptura com a primeira foi decidida
na guilhotina, no caso da religião foram elaborados um conjunto de novos símbolos
“republicanos” para substituí-la.
Marat, assassinado e retratado, foi visto como um mártir da República, mas
permeado por elementos da tradição cristã. Por exemplo, seus objetos de trabalho,
que foram expostos como relíquias sagradas, assim como disputa pela posse de seu
coração, retirado de seu corpo antes de ser sepultado, criaram um verdadeiro culto a
Marat. Este descompasso entre as intenções e as ações foi comentado por Ginzburg:
“Marat falava numa língua clássica, mas com sotaque cristão” (GINZBURG, 2014, p. 44).
David teve uma carreira política dentro da revolução, fora deputado, secretário
e depois presidente da Convenção. Ao mesmo tempo, sua carreira artística foi
impulsionada, tornando-se uma espécie de cenógrafo político. Seu quadro em
homenagem a Marat foi um ato político e com responsabilidades políticas. Obra esta
que acabou considerada como marginal no decorrer dos acontecimentos na França
naqueles anos, e que, mesmo anos depois da morte de David (1825), continuou vista
como fruto dos excessos do Terror.
Ginzburg procura desvendar a história do quadro pelo conjunto de influências
artísticas que David acumulara em sua formação e em sua vida. Uma obra anterior a
Marat teria semelhanças inegáveis com o quadro francês, Stanislas Kostka, de Pierre
Legros (sem data). David a teria conhecido durante seus anos de formação artística, em
Roma (entre 1775 e 1778). Stanislas teria elementos indiscutivelmente similares a Marat,
a posição do corpo, as mãos, o sorriso dado na hora da morte.
Além desta constatação, entretecem tradições no quadro de David: a clássica
greco-romana e a cristã. Esta escolha para representar um mártir republicano seria
inconciliável com o ideal de república, o cristianismo era considerado propício à tirania.
A derrubada da monarquia, sustentada pelo direito divino, necessitava de
legitimidade e invadia a esfera do sagrado, até então monopolizado pela religião.
Finalizando esta passagem, do mesmo modo que a religião se apropriava dos mais
variados elementos para se transformar e assim sobreviver, a arte também se apropriava
de outros elementos, mas com o objetivo de criar algo oposto. Marat ilustrava essa
tendência.
No terceiro capítulo, Seu país precisa de você: Um estudo de caso em iconografia
política, Ginzburg se utiliza do conceito do historiador alemão Aby Warburg, “fórmulas
de emoções” (Pathosformeln, em alemão), para pensar a iconografia, cujo foco é a
representação de um olhar que cria a impressão de acompanhar o espectador a partir
de qualquer ângulo.
O ponto de partida deste capítulo é o cartaz inglês de recrutamento feito durante
a Primeira Guerra Mundial, que trazia o General Lord Kitchener estampado, com seu
bigode espesso e que, apontando imperativamente com sua mão direita, convocava os
jovens a se alistarem como voluntários no exército. Expectadores contemporâneos ao
cartaz dão uma percepção sobre como se sentiam observados: “de qualquer ângulo
que se observassem, os olhos se encontravam aos do espectador e nunca o deixavam
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
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(DAVRAY, H.D. 1962, p. 55 apud GINZBURG, 2014, p. 77).
Ginzburg traça uma digressão histórica, remontando alguns comentários
artísticos sobre a representação de rostos, como, por exemplo, Alexandre, o Grande,
ou os santos na Idade Média. O chamado de Kitchener seria uma versão atualizada e
contextualizada do gesto de Jesus nas pinturas medievais, cujo efeito do olhar se baseia
na mesma técnica de representação, fazendo um chamado religioso. No cartaz inglês,
o chamado seria às armas, evocando autoridade e submissão. Ademais, o cartaz de
recrutamento é fortalecido pela linguagem publicitária, difundindo numericamente o
chamado de general aos ingleses.
Biógrafos do general associam sua imagem ao Grande Irmão de George Orwell
(1949). Tal referência não é despropositada, pois a descrição de Orwell sobre a imagem
do Grande Irmão traz uma frase próxima à descrição do referido cartaz: “o grande
irmão está de olho em você” (ORWELL, 2009, p.11-12). Como sempre, atento à trajetória
biográfica de seus interlocutores, Ginzburg associa à descrição de Orwell a uma possível
lembrança de sua infância na Inglaterra, para onde se mudara em 1907. George Orwell
publicara aos 11 anos um primeiro poema em um jornal fazendo apelo ao chamado de
Kitchener.
Da descrição do quadro de Alexandre, o Grande (montado em um cavalo e
segurando um raio – de Zeus) ao Grande Irmão de George Orwell, a imagem como
elemento de interferência na realidade e na percepção das pessoas ressurge
historicamente.
O último capítulo, A espada e a lâmpada, é uma leitura de Guernica, de Pablo
Picasso, elaborada e exibida em 1937 em uma exposição em Paris. Nesta ocasião, a
exposição era dominada pela apresentação de obras de arte dos países totalitários,
Alemanha, Itália e URSS, marcados pela utilização de elementos clássicos e neoclássicos
em suas composições. A arte moderna seria uma contraposição aos regimes totalitários,
o que fez da exposição uma arena ideológica.
Guernica era um manifesto contra Franco que na época, liderando o exército
insurgente contra a recente república espanhola, com ajuda da Alemanha, bombardeou
a cidade espanhola de Guernica. O grande número de fotografias e anotações existentes,
feitos durante a pintura, a tornam a mais bem documentada obra de arte do mundo
ocidental.
Inicialmente, Picasso escolhera como tema “o pintor e seu modelo, mas após
a notícia sobre o bombardeio de Guernica o artista alterou seu projeto. Os esboços
iniciais realizados para a pintura do quadro mostram que quase não houve alterações do
primeiro desenho feito por Picasso. Quase. Este quase é enfatizado por Ginzburg, que
parte dele para as próximas considerações e pelo estudo dos esboços reconstitui seu
desenvolvimento até chegar à obra final. Guernica é analisada segundo uma trajetória
evolutiva das opções artísticas do pintor, variando de elementos clássicos a modernos,
que se mesclaram na versão final. Processo que envolveu incertezas, explorações e
escolhas.
Pela leitura de trabalhos que comentam Picasso, Ginzburg coloca em destaque
um comentário pouco conhecido de Marcel Proust, que olhava atentamente as trocas
artísticas de Picasso com o francês Cocteau. Havia referências aos gregos nessa relação
e que apareciam em alguns esboços iniciais do quadro.
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Enquanto os Estados totalitários detinham nas mãos a arte que se utilizava de
antigos mitos clássicos em suas composições, Picasso transmutava esses mitos pela
sua estética artística, cuja origem seria o irracionalismo que, ao mesmo tempo, distorcia
a realidade e permitia novos olhares sobre ela. O mito presente na arte deveria ser
retirado do Fascismo e este foi o grande triunfo do pintor espanhol.
Os esboços que anteciparam a elaboração de Guernica permitem entrar no
estúdio-laboratório de Picasso. Seguindo suas intuições ao estilo de Morelli, Ginzburg
retraça os caminhos da arte neoclássica que se desenvolveu no mundo cristão e
ocidental e, por meio de semelhanças e repetições encontra uma série de relações
entre diversos pintores: a posição dos corpos, distribuição da imagem e referências a
símbolos mitológicos, reconhecendo “citações” de outros artistas em diversas pinturas
(GINZBURG, 1989).
Os temas clássicos se repetem na história, como, por exemplo, a representação
da morte de Caio Graco (reformador romano), pintada no século XVIII em homenagem
a um jacobino guilhotinado por tentar derrubar o Diretório, pintado por Topino-Lebrun
(também guilhotinado posteriormente em 1800).
Essa descrição entra como hipótese, mas não conclusiva, das possíveis influências
que Picasso teria ao pintar Guernica, especialmente pela presença de Picasso em Paris
em 1912 em companhia de Georges Braque. O quadro Estúdio com cabeça de gesso seria
a antecipação de Guernica que combinava o cubismo com referências da Antiguidade
Clássica.
Guernica foi uma obra de resistência ao fascismo, e, dentro do plano ideológico
estabelecido na arena da exposição, marcou bem sua posição, não se sujeitando as
inclinações dos países totalitários. O fascismo deveria ser derrotado na esfera das
artes, o que remete à Guernica e à arte moderna.
Concluindo esta pequena apresentação do livro, vemos que a relação entre
iconografia e política é pensada por diferentes dimensões, centrada na trajetória
individual de cada uma, de sua autoria aos seus interlocutores. Estas interlocuções
também estão em consonância com a própria marca de Carlo Ginzburg, cuja formação
intelectual o faz um historiador capaz de intensos diálogos com diferentes disciplinas.
Medo, reverência, terror é mais um resultado desta característica, que o torna um
importante ícone na história da historiografia, especialmente para temas culturais.
Referências:
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
______. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais – morfologia
e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: Escalas, indícios e singularidades. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.