Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma construção de si
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 176-193, jul.-dez., 2016.
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Por vezes coloca-se em sua narrativa, mesmo que implicitamente, na posição
de testemunha, atestando eventos dos quais participou ou ouviu falar, e toma para si
a responsabilidade de divulgar episódios para que não sejam esquecidos. Por isso, há
em cada livro novo, a tentativa de transmitir, de registrar, de denunciar e “imortalizar”
certas lembranças que julga importante.
É nesse sentido que a sua obra torna-se literatura híbrida, porque é composta por
gêneros literários distintos, contemplando a autobiografia, a biografia e a construção de
memórias internas a uma literatura que é essencialmente ficcional.
Suas obras contemplam a sua própria infância, adolescência e fase adulta,
concede voz aos sujeitos desconhecidos, pessoas comuns, como Maria Negra, a sua
babá, seus parentes, vizinhos, seus irmãos e seus pais.
Conforme é possível perceber, contava as histórias de seus antepassados
para divulgar a herança familiar, justificando que cresceu em um ambiente cercado
por pessoas ligadas à reflexão e à militância política, o que foi fundamental para a sua
formação como ser humano, outra prática comum em escritas (auto) biográficas como
nos mostra Vilas Boas:
Biógrafos adoram recorrer a pais, avós e bisavós para tentar explicar
temperamentos, atitudes destrutivas, decisões arriscadas, fracassos,
repetições, compulsões, estranhezas, conquistas etc. Há os que explicitam
ou insinuam relações de causa e efeito entre o passado e o presente; outros
preferem apenas cumprir um ritual: fornecer registros informativos sobre
familiares (VILAS BOAS, 2014, p. 48).
Outro ponto que merece ser destacado diz respeito ao acesso ao “mundo da
cultura”, oferecido por seus pais desde a sua infância, por meio de leituras que faz
questão de relatar desde o seu primeiro livro de memórias:
Tendo terminado de folhear a “Divina Comédia”, sobrava-nos ainda muito
tempo pela frente para novas incursões pelo guarda-roupa. Mais uma rodada
de “Ferro Quina...”. Vera e Wanda abriram as portas do armário de par em par,
tiraram de dentro uma pilha de livros. Vera foi lendo os nomes dos autores -
quem sabe, entre eles havia algum livro novo para nós? -: Pietro Góri, autor
muito nosso conhecido. Seu livro, reunião de dramas anarquistas, verdadeira
bíblia de dona Angelina, bastante manuseado, sempre com marcador de página
pelo meio. Dois livros de doutrina anarquista: de Bakunin e de Kropotkin. Néry
Tanfúcio, poeta humorístico - muito da predileção de dona Angelina. Ela sabia
o volume quase de cor, recitava seus versos espirituosos e críticos a toda
hora. Chegara a vez dos prediletos de mamãe e de minhas duas irmãs: “Os
Miseráveis” e “Os Trabalhadores do Mar”. Esses dois volumes estavam gastos
de tantas leituras. Mamãe gostava de ler trechos de “Os Miseráveis” para os
filhos e para Maria Negra. “Livro verdadeiro e muito instrutivo” - dizia. De
Émile Zola, havia três livros: “Thereza Raquin”, “Germinal” e “Acuso!”. Wanda
adorava “Thereza Raquin”; Vera, mais puritana, fazia restrições. Eu, que
não sabia ler, gostava era mesmo das ilustrações, pelo impressionante, pelo
proibido. “Germinal” só viria a ler, apaixonadamente, anos mais tarde, livro
que me marcou muito. “Acuso!” não nos interessava, não era romance, não
era ilustrado. Sabíamos, no entanto, tratar-se de livro muito importante, pois,
nas reuniões proletárias às quais comparecíamos, o “Caso Dreyfus” - tema
de “Acuso!” - era muito lembrado, sobretudo durante a campanha pró Sacco