Recebido em: 26/10/2015
Aprovado em: 21/03/2016
Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças
a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma
construção de si
Zélia Gattai and the publications Anarquistas
graças a Deus (1979) and Città di Roma (2000): a
construction of the self
BRAGA, Kassiana
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Resumo: O presente artigo pretende discutir a construção de si e o memorialismo em
duas obras da escritora paulista Zélia Gattai: Anarquistas graças a Deus, publicada
em 1979, e Città di Roma, lançada em 2000, procurando perceber as particularidades
temáticas e as intenções da autora a partir da tessitura de sua narrativa.
Palavras-chave: Memória; Construção de si; Autobiografia.
Abstract: This paper seeks to discuss the self-constructive and autobiographical
aspects in two of Zélia Gattai’s works: Anarquistas graças a Deus, published in 1979,
and Città di Roma, from 2000, attempting to analyze the thematic particularities and
intentions of the author based on the narrative weave.
Keywords: Memory; Self-construction, Autobiography.
1. Graduada em história pela Faculdade de Ciências e letras – UNESP – Assis e mestra pela mesma Uni-
versidade na qual desenvolveu a pesquisa: A Senhora Dona da Memória: Autobiografia e memorialismo
em obras de Zélia Gattai, fomentada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológi-
co (CNPQ). Email: kassianahistoriabraga@gmail.com.
Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma construção de si
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 176-193, jul.-dez., 2016.
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Zélia Gattai foi esposa do importante escritor baiano Jorge Amado. Assim como
ele, também construiu ao longo de anos uma carreira literária que contabiliza 17 livros
2
,
bem como reconhecimento por parte de seus pares e sua entrada na Academia Brasileira
de Letras, a ABL, no ano de 2001, embora a posse tenha se realizado em 2002. Também
conquistou outras vagas em mais duas instituições: a Academia de Letras da Bahia e a
de Ilhéus, no mesmo ano.
Sendo a grande companheira do escritor, desde a década de 1940, começou a
adentrar ao campo literário a partir do momento em que estabeleceu um relacionamento
com ele, depois que se separou do seu primeiro esposo Aldo Veiga, membro do PCB
(Partido Comunista Brasileiro), com quem teve seu primeiro filho. A cumplicidade com
Jorge Amado não era apenas no sentido pessoal: havia união e ajuda profissionais; era
ela quem cuidava dos afazeres domésticos e também quem datilografava e revisava as
obras do escritor desde Seara Vermelha, (1946).
Ela auxiliava o marido nas escolhas de nomes para alguns personagens,
acompanhando-o em seus diversos compromissos desde congressos até as atividades
do Movimento Comunista Internacional, além do exílio na Europa, no período de 1948 a
1952. Visitou inúmeros países como China, Itália, Alemanha, Portugal, Rússia, Mongólia,
entre outros, morando posteriormente na França e na Tchecoslováquia.
Começou a carreira de modo efetivo no final da década de 1970, publicando
Anarquistas graças a Deus, bem vista pelos críticos do período, a qual recebeu prêmios
e inspirou a realização de uma minissérie no ano de 1984.
Zélia Gattai e a construção de si
Zélia Gattai, “com a graça de Deus e a benção de Jorge” (BONFIM, 1979, p. 4), lançou
aos 63 anos de idade seu primeiro livro, no ano de 1979. Neste trabalho, concentrou-se em
narrar as histórias e construir as memórias dos seus antepassados que vieram ao Brasil
durante a imigração italiana em meados do século XIX. Estes desejavam implantar uma
colônia socialista experimental no Paraná que seria associada ao anarquismo desejado
posteriormente em outras partes da América Latina. Conhecida como Colônia Cecília, foi
idealizada por Giovanni Rossi, autor de I Comune in Rival Al Mare.
Nesse primeiro livro, Gattai dedicou várias páginas para relatar a saga de seus
familiares. Do mesmo modo, publicou posteriormente Città di Roma (2000) abordando
novamente o tema em questão, demonstrando uma profunda preocupação em registrar
e documentar tal evento a partir de sua narrativa e das fotografias que selecionou.
Nesse sentido, relata as dificuldades que os seus familiares enfrentaram desde o
embarque no Città di Roma até a chegada ao país distante:
2. A memorialista escreveu 17 livros; a maioria de sua obra é composta por autobiografias, no entanto,
dedicou-se a escrever também livros infantis e dois romances: Anarquistas graças a Deus (1979), Um
Chapéu para a Viagem (1982), Pássaros Noturnos do Abaeté (1983), Senhora Dona do Baile (1984), Re-
portagem Incompleta (1987), Jardim de Inverno (1988), Pipistrelo de Mil Cores (1989), O segredo da Rua
18 (1991), Chã de Meninos (1992), Crônica de uma namorada (1995), A casa do Rio Vermelho (1999), Città
di Roma (2000), Jonas e a Sereia (2000), Códigos de Família (2001), Jorge Amado: Um baiano romântico
e sensual (2002), Memorial do Amor (2004) e, por último, Vacina de Sapos e outras lembranças (2006).
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A travessia de Gênova para o porto de Santos foi longa e penosa, contava tio
Guerrando. Não posso esquecer. Amontoados e tristes como gado a caminho
do matadouro, os imigrantes enjoavam nos porões escuros e quentes, ao lado
das caldeiras do navio, um verdadeiro inferno. A gente ia aguentando sem
reclamar. Todo mundo tinha um medo insuportável de ficar doente e acabar
morrendo em alto-mar. Vocês sabiam, não é? Explicava titio, nos navios
daquela época não havia frigorífico para conservar os cadáveres, e os corpos
de quem morresse durante a travessia eram jogados no mar. (GATTAI, 2000,
p.13-14).
Segundo ela, embarcaram no Porto de Gênova cerca de 150 italianos, alguns
deles eram seus familiares como o avô Arnaldo Gattai e a sua avó Argia Fagnoni Gattai
com seus tios Guerrando Rina, Giovanni Ernesto Guglielmo, Aurélio e Hiena. Os Dacol,
seus familiares por parte de mãe, embarcaram no mesmo navio, no entanto, não eram
anarquistas, buscavam apenas novas oportunidades de trabalho.
A autora informa ainda que, além deles, outros italianos anarquistas de
diversificadas posições sociais e profissionais vieram ao Brasil nutrindo grandes
esperanças e sonhando com uma sociedade mais igualitária “governada pela justiça
e pelo sentimento humanitário, onde não haveria necessidade de leis, religião e
propriedade privada” (CARNEIRO, 2002, p. 59).
No entanto, o sonho de Giovanni Rossi e demais anarquistas em pouco tempo
foi desfeito. Ao contrário do paraíso que idealizavam, encontraram no Brasil trabalho
penoso dentre outras dificuldades, ocasionando o fim da Colônia.
O título Città di Roma (2000), escolhido, refere-se ao navio que os seus
antepassados embarcaram em Gênova rumo ao Brasil, viagem que segundo ela teria
ocorrido em 1890:
O grupo de idealistas embarcou no navio “Città di Roma” em fevereiro de 1890;
o regime imperial no Brasil havia sido derrubado a 15 de novembro de 1889.
D. Pedro II fora deposto e desterrado, a República proclamada. Os fundadores
da “Colônia Socialista Experimental” não podiam mais contar com a ajuda
e o apoio prometido pelo Imperador. Contariam apenas com seus próprios
esforços, com a vontade de vencer, mas nada os faria recuar. No porão do
“Città di Roma”, junto às caldeiras, viram-se amontoados os pioneiros que, em
breve, estariam integrando uma comunidade de princípios puros: a “Colônia
Cecília”. Iam cheios de esperanças, suportariam corajosamente as condições
infames da viagem. (GATTAI, 1979, p. 132)
Esta afirmação traz-nos duas imprecisões observadas por Isabele Felici (1998)
em seu artigo intitulado “A verdadeira História da Colônia Cecília de Giovanni Rossi”. A
primeira, em relação ao navio em que os imigrantes viajaram, que ao contrário do que
Zélia afirmara, não teria sido o Città di Roma, mas o navio Vittoria. A segunda falha diz
respeito à data do embarque que, segundo as pesquisas de Felici, teria ocorrido no ano
de 1891, como nos mostra no trecho a seguir:
Em fevereiro vários grupos embarcam em Gênova em direção à Palmeira. Seis
famílias originárias de Litorno partem no dia 03 de fevereiro de 1891, no navio
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Vittoria. Entre eles está Eugenio Lemmi. Um segundo grupo, mais numeroso,
dezesseis famílias e alguns solteiros, originários de Cecina, Gênova, Turim,
Milão e Brescia, embarca no dia 14 de fevereiro de 1891. No dia 10 de março,
é a vez de treze famílias e sete homens solteiros de Florença, Poggibonsi,
La Spezia e Milão. Francesco Argia Gattai, os avós de Zélia Gattai, e suas
crianças, fazem parte desse grupo que viajou no dia 10 de março de 1891, e,
portanto, não partiram a bordo do Città di Roma, contrariamente ao que ela
diz em seu livro de memórias, Anarquistas graças a Deus. Essa observação
não diminui em nada o valor do testemunho de Zélia Gattai e a carga emotiva
que contém o relato, particularmente comovente, que ela faz da viagem de
seus avós: a última criança da família Gattai, um recém-nascido, morre de
fome na chegada ao porto de Santos (FELICI, 1998, p. 18).
Como defendido por Felici, os dados imprecisos relatados por Zélia não excluem
o mérito de seus relatos, mas indicam equívocos que são muito presentes nesses tipos
de “escritas do eu”. Também denominadas como escritas de si, essas fazem parte
de um conjunto de escritos que contempla diários, correspondência, biografias e
autobiografias, como nos aponta Gomes a seguir:
Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando
um diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas
à escrita de si propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos
diários -, até a constituição de uma memória de si, realizada pelo recolhimento
de objetos materiais, com ou sem a intenção de resultar em coleções (GOMES,
2004, p. 11).
Desse modo, escreve sobre si, mas também aborda a história de vida de seus
antepassados, assim como fez outros memorialistas como Gilberto Amado
3
e Pedro
Nava
4
.
O intuito é contar uma história como sendo plenamente verdadeira, uma espécie
de “cópia” do passado, no entanto, tanto Zélia quanto esses escritores citados não
conseguem reconstituí-lo de forma fidedigna, pois narram as histórias a partir do seu
tempo presente:
O esforço da memorialista em reconstituir o passado tal como ele aconteceu
não pode ser alcançado plenamente. Lembrar é uma atividade do presente
sobre o passado e, por isso, sofre interdições e imposições, sem que a
escritora consiga, de fato, evitar todos “os artifícios, as interpretações, os
3. Gilberto de Lima Azevedo Souza Amado de Faria (1877-1969) nasceu em Estância – SE. Foi jornalista,
diplomata, professor, advogado e literato. Foi deputado federal por três mandatos. Ingressou na Aca-
demia Brasileira de letras em 1963. Publicou um grande número de obras, entre memórias, romances,
crônicas, estudos filosóficos e político-sociológicos, destacando-se, entre estes últimos, As instituições
políticas e o meio social no Brasil (1924), Eleições e representação (1931) e Presença na política (1958).
Escreveu cinco livros de memórias: História de minha infância (1954), Minha formação no Recife (1958),
Mocidade no Rio e Primeira Viagem à Europa (1956), Presença na Política (1958) e Depois da política
(1960). Informações disponíveis no site: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/
gilberto_ Amado>.
4. Pedro Nava (1903-1984) foi médico e escritor (memorialista). Publicou seis livros de memórias no pe-
ríodo de 1972 até meados da década de 1980. Recebeu o premio Jabuti no ano de 1983, ano de seu último
lançamento.
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lapsos e os recalques de toda uma vida sempre tão complexa e cuja totalidade
constantemente lhe escapa” (LACERDA apud MALUF, 2003, p. 59).
Em ambos os livros, relata os depoimentos de seus familiares. Dessa forma,
reconstrói, por meio da literatura, algumas histórias que julga pertinentes. Nesse sentido,
objetiva reproduzir o que realmente ocorreu no passado a partir das informações que
possui com o apoio de sua imaginação, pois conforme informa o historiador François
Dosse “o biógrafo se encontra o mais perto possível do autêntico, a ponto de alimentar
às vezes a ilusão de restituir inteiramente uma vida” (DOSSE, 2009, p. 59). Ou seja,
quem escreve sobre uma vida por meio de relatos pessoais preocupa-se em dizer a
verdade sobre os “personagens” biografados. Além disso, o leitor de um texto (auto)
biográfico pretende encontrar as verdades sobre essas trajetórias. Em outras palavras,
“publicar uma biografia, anunciá-la como tal e não como romance, é prometer fatos
verídicos [...]” (MAUROIS apud DOSSE, 2009, p. 59). No entanto, as lembranças, sejam
elas individuais ou coletivas, não são plenamente confiáveis, sendo transbordadas
de lacunas, passíveis, nesse sentido, de erros, falhas e esquecimentos voluntários ou
involuntários. Desse modo, com ou sem a intencionalidade do biógrafo, é comum nas
escritas de si ocorrerem desvios, algumas imprecisões em relação aos fatos históricos
ou mesmo sobre algumas datas dos eventos importantes relatados.
Podemos notar que desde o lançamento de Anarquistas graças a Deus, Zélia
começou a construir uma imagem de si como uma mulher que descendia de uma família
de anarquistas que sempre foram movidos pelos ideais de justiça e igualdade. Esse ponto
era ainda enfatizado nas entrevistas que concedia e em cada nova publicação. Desse
modo, coloca-se como herdeira desses pensamentos políticos, livre pensadora sem
vínculos políticos específicos, mas com uma concepção de mundo anarquista, a mesma
dos seus antepassados. Além disso, nos lançamentos das obras e em outras ocasiões,
relatava que para escrever as suas memórias recorria apenas as suas lembranças, não
fazendo uso de nenhum outro material ou anotações: “Escrevo muito ao sabor do meu
pensamento porque não tenho nenhuma anotação, tudo é escrito de memória” (JORNAL
DE LETRAS, 1986, p. 02-03). Nesse sentido, iniciava a sua carreira como escritora e
principalmente como memorialista, sendo a forma como almejava ser notada por seus
pares e pelo público leitor.
Caracterizamos a sua obra como memorialística a partir da constatação de que
sua escrita não se restringe ao individual, vai além, contempla o coletivo, a narração
das histórias de pessoas comuns e ilustres conhecidos. A sua escrita ao mesmo tempo
em que tem caráter autobiográfico, quando centrada em si, é também biográfica, num
sentido mais social, quando divulga acontecimentos cotidianos, eventos políticos e as
particularidades de certos “personagens” dos quais conta as suas histórias.
Apesar de ser a autora e narradora, posiciona-se como personagem, com o
emprego de alguns verbos como “nasci” e “cresci”, atestando o pacto autobiográfico. O
seu eu possui múltiplas facetas, “podendo ter sua pluralidade reduzida, pela primeira,
segunda, ou terceira pessoa. Seguindo a lição de Lejeune é, na verdade, um diálogo de
múltiplas instâncias.” (LEJEUNE apud SOUZA, 1997, p. 135).
O intuito é o de contar sobre a sua vida, a sua personalidade, levando em conta a
sua trajetória pessoal, seus sentimentos, medos, frustrações, alegrias e tristezas.
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Por vezes coloca-se em sua narrativa, mesmo que implicitamente, na posição
de testemunha, atestando eventos dos quais participou ou ouviu falar, e toma para si
a responsabilidade de divulgar episódios para que não sejam esquecidos. Por isso, há
em cada livro novo, a tentativa de transmitir, de registrar, de denunciar e “imortalizar”
certas lembranças que julga importante.
É nesse sentido que a sua obra torna-se literatura híbrida, porque é composta por
gêneros literários distintos, contemplando a autobiografia, a biografia e a construção de
memórias internas a uma literatura que é essencialmente ficcional.
Suas obras contemplam a sua própria infância, adolescência e fase adulta,
concede voz aos sujeitos desconhecidos, pessoas comuns, como Maria Negra, a sua
babá, seus parentes, vizinhos, seus irmãos e seus pais.
Conforme é possível perceber, contava as histórias de seus antepassados
para divulgar a herança familiar, justificando que cresceu em um ambiente cercado
por pessoas ligadas à reflexão e à militância política, o que foi fundamental para a sua
formação como ser humano, outra prática comum em escritas (auto) biográficas como
nos mostra Vilas Boas:
Biógrafos adoram recorrer a pais, avós e bisavós para tentar explicar
temperamentos, atitudes destrutivas, decisões arriscadas, fracassos,
repetições, compulsões, estranhezas, conquistas etc. Há os que explicitam
ou insinuam relações de causa e efeito entre o passado e o presente; outros
preferem apenas cumprir um ritual: fornecer registros informativos sobre
familiares (VILAS BOAS, 2014, p. 48).
Outro ponto que merece ser destacado diz respeito ao acesso ao “mundo da
cultura”, oferecido por seus pais desde a sua infância, por meio de leituras que faz
questão de relatar desde o seu primeiro livro de memórias:
Tendo terminado de folhear a “Divina Comédia”, sobrava-nos ainda muito
tempo pela frente para novas incursões pelo guarda-roupa. Mais uma rodada
de “Ferro Quina.... Vera e Wanda abriram as portas do armário de par em par,
tiraram de dentro uma pilha de livros. Vera foi lendo os nomes dos autores -
quem sabe, entre eles havia algum livro novo para nós? -: Pietro Góri, autor
muito nosso conhecido. Seu livro, reunião de dramas anarquistas, verdadeira
bíblia de dona Angelina, bastante manuseado, sempre com marcador de página
pelo meio. Dois livros de doutrina anarquista: de Bakunin e de Kropotkin. Néry
Tanfúcio, poeta humorístico - muito da predileção de dona Angelina. Ela sabia
o volume quase de cor, recitava seus versos espirituosos e críticos a toda
hora. Chegara a vez dos prediletos de mamãe e de minhas duas irmãs: “Os
Miseráveis” e “Os Trabalhadores do Mar”. Esses dois volumes estavam gastos
de tantas leituras. Mamãe gostava de ler trechos de “Os Miseráveis” para os
filhos e para Maria Negra. “Livro verdadeiro e muito instrutivo” - dizia. De
Émile Zola, havia três livros: “Thereza Raquin”, “Germinal” e “Acuso!”. Wanda
adorava “Thereza Raquin”; Vera, mais puritana, fazia restrições. Eu, que
não sabia ler, gostava era mesmo das ilustrações, pelo impressionante, pelo
proibido. “Germinal” só viria a ler, apaixonadamente, anos mais tarde, livro
que me marcou muito. “Acuso!” não nos interessava, não era romance, não
era ilustrado. Sabíamos, no entanto, tratar-se de livro muito importante, pois,
nas reuniões proletárias às quais comparecíamos, o “Caso Dreyfus” - tema
de “Acuso!” - era muito lembrado, sobretudo durante a campanha pró Sacco
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e Vanzetti. Os oradores faziam comparações entre os dois casos, citavam
Acuso!” como exemplo do que podia ser feito na luta pela verdade, contra a
perseguição política e racial. (GATTAI, 1979, p. 109)
Elencando as leituras que sua mãe fazia, demonstra o quanto teve contato em
sua infância com os livros mais engajados do ponto de vista político, o que fez com que
se construísse como um ser crítico a partir desses referenciais:
Os méritos dos pais pela busca de conhecimentos, pelo interesse com a
cultura são ressaltados por Zélia. O rebuliço da casa descrito nas páginas
das memórias de Zélia revela um cotidiano dinâmico co-habitado pelo que
se incorpora das reuniões anarquistas que frequentam, das peças de teatros
e das operetas, das músicas, das danças, da literatura e das fitas de cinema
assistidas, vivenciadas, lidas, ouvidas e relembradas. Essas experiências
artísticas lembradas de infância revelam uma relação pessoal, um modo de
apropriação e de uso de certos bens culturais a que seus pais têm acesso
independente dos bancos escolares, pelos quais eles não passaram, e dos
limites econômicos e sociais enfrentados, uma vez que o orçamento familiar
era muito modesto. (LACERDA, 2003, p. 161-162).
Apesar de não ser vinculada a nenhum partido político, sempre reforçou que se
identificava com os valores anarquistas. Nesse sentido, caracteriza-se em sua narrativa
da forma como almeja ser vista, como uma mulher dotada de cultura e preparada
politicamente e intelectualmente desde a infância, pois era capaz de ler os clássicos da
literatura tão apreciados por sua mãe, como os livros de Émile Zola, Bakunin, Kropotkin,
entre tantos outros. O que contrapunha-se à imagem de esposa e mãe exemplar tão
veiculada no imaginário social e nas inúmeras páginas dos jornais do país antes de se
tornar uma escritora.
Desse modo, era representada como uma mulher “comum”, que cumpria o
papel esperado para a mulher socialmente, o de esposa exemplar e mãe zelosa, que
estava sempre em auxílio ao marido em suas tarefas domésticas e também em seus
projetos profissionais, acompanhando-o em suas viagens, congressos literários, feiras
e compromissos políticos, agindo de acordo com os valores tradicionais da época.
Era conhecida como “Zélia Amado”, sendo retratada nos periódicos (jornais e
revistas) como uma mulher ideal, exemplo de esposa companheira, dedicada, que tinha
todos os atributos necessários para estar ao lado de seu esposo, o consagrado escritor
baiano, Jorge Amado. Em certa ocasião de entrevista ao jornal “O Globo”, foi representada
com a seguinte manchete: “Zélia, talvez anjo para Jorge Amado”
5
, demonstrando a
representação que se tinha de sua figura feminina naquele momento, sempre atrelada a
uma esposa virtuosa e de grande valor.
Em manchete de outro jornal da mesma década fora representada da seguinte
maneira: “Zélia Amado musa, esposa e ‘Amélia’ de um imortal”
6
, o que demonstrou,
mais uma vez, como a mídia representava os valores esperados da sociedade e a mulher
do período, utilizando até mesmo o termo “Amélia”, sinônimo de um perfil de mulher
ideal: submissa, de posicionamentos “corretos”, atenta às necessidades de seu esposo,
zelosa com os afazeres domésticos e com a criação dos filhos.
5. Folha de São Paulo, 05/11/1976.
6. Mulher Suplemento, 29/01/1977.
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Quando estreou seu primeiro livro em 1979, continuara a ser entrevistada pelos
jornais e revistas de grande circulação da época no papel de esposa ideal, mas também
agora, como escritora. Neste mesmo ano concedeu uma entrevista ao jornal “O Globo”
sob a manchete: “Zélia Gattai Amado – Com a graça de Deus e a benção de Jorge” em
que divulgava seu trabalho literário.
Nesta entrevista, relatou sobre o seu livro, sua vida pessoal e a relação com ele.
Apesar de o foco ser o lançamento de Anarquistas graças a Deus, os temas relacionados
ao seu papel social de mãe, de dona de casa e de esposa cuidadosa, e os referentes à sua
atividade como revisora, datilógrafa e fotógrafa foram igualmente abordados:
Dona de casa ela o é, mãe de três filhos: João Jorge, Paloma e Luiz Carlos.
Embora não se sinta diminuída, não se satisfaz com este único papel, e por
isso exerce amadoristicamente a fotografia, com laboratório instalado em
casa. Além de fazer pesquisas com os livros de Jorge Amado, como no caso
de Farda, fardão, camisola de dormir, em que fatos históricos precisavam ser
mencionados com precisão. (O GLOBO, 1979, p. 4).
Seu ofício de corretora e datilógrafa era sempre alvo de reflexão e de
questionamento por parte dos seus entrevistadores, da mídia em geral, dos escritores
da época, bem como dos seus leitores, que sempre enalteciam o escritor baiano pela
sua capacidade literária, no entanto, a escritora não era tão bem aceita como ele. A
grande indagação da época era se Zélia tinha competência neste campo ou se somente
estava no mercado por conta de ser a esposa de Jorge Amado, O jornal “A Tarde”, em
trecho de relato de 1984, ilustra-nos esta preocupação:
Agora, testemunhando sua brilhante e vitoriosa carreira, lembro que tive
um momento de hesitação ao saber que Zélia escrevia suas memórias para
lança-las em livro. Não é que duvidasse de seus méritos, de sua inteligência
e sensibilidade. Mas afinal era realmente muito atrevimento (como diria D.
Angelina) escrever uma estória e ainda por cima a própria estória, sendo
mulher do mais famoso contador de estórias deste país. Aos primeiros
capítulos, porém, respirei aliviada. Quem estava ali não era a mulher de
Jorge Amado, a companheira que todos aprenderam a amar e admirar, mas
Zélia Gattai, com seu nome próprio e sua geografia distinta. Realmente uma
escritora. E talentosa, graças a Deus. (A TARDE, 1984, p. 2).
De forma geral, as pessoas a viam, antes de se tornar escritora, como uma mulher
ignorante, desprovida de inteligência e que tinha o intuito de copiar a Jorge. Em relato a
A Gazeta” de 1984 Zélia transparece esta preocupação:
- Pode ser cisma minha, mas acho que meus amigos quando souberam que eu
estava escrevendo um livro, ficaram apreensivos. Acho que eles tinham receio
que eu fizesse uma imitação de Jorge. Os que não eram amigos, provavelmente
estavam me gozando, porque o preconceito existe. Sempre acham que
mulheres de homens famosos são burras e idiotas. Eu por exemplo, se estou
com Jorge em algum lugar procuro ficar na sombra, porque as pessoas têm
interesse em falar com ele. Daí a impressão, talvez de burrice. Mas essas
pessoas não sabem que existe amor, afinidade e troce de ideias, intercâmbio
de sensações, e que ficar apagada é uma opção. De certa forma, as coisas
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mudaram muito para mim depois de anarquistas. Já não sinto mais o pé atrás,
e nem me ignoram tanto quanto antes, como aconteceu muitas vezes... (A
TARDE, 1984).
Vale ressaltar, que em inúmeras entrevistas fez questão de afirmar que fez uso
do sobrenome do pai para não ter que ser reconhecida por conta de ser esposa de um
escritor consagrado. Desse modo, buscou certa autonomia para adentrar ao espaço
editorial como Gattai e não com o sobrenome Amado. Ou seja, trata-se de uma mulher
que quer ser reconhecida pelo próprio talento, o que demonstra que apesar de ser
grande companheira de Jorge Amado, almejava um lugar para si.
Logo, fez de sua construção memorialística uma ferramenta de reinvenção,
redefinindo a forma de ser vista, mostrando outros lados de sua vida desde o período
de sua infância e contemplando, ainda os momentos vivenciados posteriormente no
contato com diversos intelectuais ao longo de sua vida e no exílio europeu. Em outras
palavras, “o arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única
ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como lhe desejaria ser
visto” (ARTIÈRES, 1998, p. 23).
Como se pode observar, a prática de sua narrativa pessoal não foi neutra,
sendo dotada de inúmeras intencionalidades. Neste sentido, escreveu para registrar,
testemunhar, documentar e, sobretudo, para dar sentido a sua própria existência,
ou seja, “numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só
escolhemos alguns acontecimentos, como ordenamos numa narrativa, a escolha e a
classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas
vidas” (ARTIÈRES, 1998, p. 11).
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras no ano de 2002, a
continuou a mostrar-se como uma mulher que não pudera estudar em sua infância, mas
que sempre tivera acesso aos bens culturais proporcionados por seus familiares:
Com mamãe a coisa já era diferente: embora também tivesse grande
imaginação, preferia nos contar trechos de romances que lia e filmes que
assistia às quintas-feiras, na sessão das senhoras e senhoritas. Embora tivesse
tido pouco estudo, pois as condições financeiras da família não lhe permitiram
frequentar sala de aula por mais de alguns meses, mamãe lia correntemente
e nas leituras em voz alta dava ênfase, empolgando a quem a ouvisse. Minhas
irmãs Wanda e Vera me ensinaram a amar a poesia e a me encantar com
romances. Wanda era apaixonada por Castro Alves, sabia seus poemas de cor
e salteado. Vera varava as noites lendo romances.
Ainda pequena, eu mal sabia ler e já repetia com emoção poesias de Castro
Alves, Guerra Junqueiro, Olavo Bilac, Fagundes Varela e de tantos outros
poetas que Wanda me fazia decorar. Graças à Vera sabia frases inteiras de
“O Tronco do Ipê” e de “Iracema”. Brilhava, repetindo com largos gestos,
em saraus familiares: “... Ó verdes mares bravios de minha terra natal...” ou
“Iracema, a virgem dos lábios de mel...” (GATTAI, 2002).
Com tal atitude se reinventa, apoiando-se mais uma vez na herança familiar,
prática muito comum neste tipo de escritas (auto) biográficas, pois “os biógrafos
continuam à espreita principalmente das mães e pais de seus biografados, falam de
Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma construção de si
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mães maravilhosas ou más como agentes do destino por trás de homens e mulheres
publicamente conhecidos” (VILAS BOAS, 2014, p. 53).
Cabe salientar que começou a publicar suas obras num contexto de abertura
política (1979), período do fim do governo Geisel, e posse do general Figueiredo. Trata-
se ainda de um tempo de censuras, prisões, perseguições e repressões contra alguns
sujeitos que eram contrários ao poder vigente. Neste sentido, muitos movimentos
surgiram liderados por intelectuais, artistas, escritores, membros da esquerda,
estudantes e outros grupos, objetivando reivindicar mudanças no quadro político e
social. Além disso, foram criados comitês que lutavam em prol da libertação dos presos
políticos e do retorno dos exilados, pleiteando também a restauração do remédio jurídico:
Habeas Corpus. Além disso, foram criados vários comitês na ocasião, como o “Comitê
Feminino pela Anistia (MFPA) e o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBAS). A articulação
desses grupos consistiu em um grande marco que veio a culminar com importantes
manifestações em várias cidades do Brasil, como nos mostra Resende (2014):
De fato, o ano de 1979, principalmente para aqueles envolvidos na luta pela
anistia, significou um marco no fortalecimento do movimento com a eclosão de
manifestações nas principais cidades brasileiras, contando com eventos que,
em alguns casos, chegaram a atrair milhares de pessoas. Nesse sentido, tendo
como destaque cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, o espaço público
foi tomado por eventos em solidariedade aos presos políticos e pela anistia
ampla, geral e irrestrita. Isso porque, principalmente a partir de junho daquele
ano, o governo já acenava para a possibilidade de fazer um projeto de lei e, por
consequência, os movimentos pela anistia pressionavam para a aprovação de
um projeto que atendesse suas demandas e, sobretudo, garantisse liberdade
para um dos principais destinatários de sua luta: os presos políticos naquele
momento em greve de fome (RESENDE, 2014, p. 42).
A partir desse grande apelo e da forte pressão política vinda de inúmeros grupos
distintos, a Lei da Anistia n.6.683 foi aprovada em 28 de agosto do ano de 1979. Zélia,
dentro desse contexto, iniciava sua trajetória no campo editorial, em meio ainda a uma
ditadura civil militar. Desse modo, escreveu a partir das aspirações do tempo vivido
naquele momento, como fizeram outros escritores. Nesse sentido, toda a escrita do
passado está imbricada no tempo presente, como nos mostra Le Goff:
Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é
apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não
é só inevitável como legítimo. Posto que a história é duração, o passado é ao
mesmo tempo passado e presente (LE GOFF, 1990, p.51).
Trata-se de um momento em que muitas pessoas lançaram seus livros, algumas
peças de teatro e músicas com certo engajamento político ou com conteúdo “imoral”, que
feria os princípios dos militares. Assim, a censura era geral, nos meios de comunicação
como o rádio, a televisão e também nos espetáculos públicos. Evidentemente que nos
anos anteriores, as medidas punitivas ocorriam com uma maior frequência, como, por
exemplo, no contexto do Ato Institucional n.5 em 1968, também conhecido como AI
5, em que houve muitos assassinatos, exílios, torturas e censuras de livros, jornais e
revistas, além de prisões de inúmeras pessoas que lutavam contra o regime militar.
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Em relação às obras publicadas naquele momento, o censor era o responsável
por fiscalizar qualquer pessoa que publicasse “materiais subversivos”. Ou seja, “o
censor é uma figura pública investida de poder disciplinador para corrigir os excessos
cometidos. Os militares tinham uma obsessão pelos meios de comunicação, pois neles
transitavam as informações potencialmente perigosas” (ORTIZ, 2014, p. 116).
A censura a livros durante a ditadura militar, portanto, teve uma atuação mais
forte não nos chamados Anos de Chumbo (1968-1972), mas sim durante o governo Geisel
(março de 1974 a março de 1979), e especialmente no final desse governo” (REIMÃO,
2014, p. 85). Ou seja, quando publica Anarquistas graças a Deus, em 1979, ainda
estava ocorrendo um processo de forte censura nas diversas publicações apontadas.
No entanto, apesar de discutir assuntos relacionados ao anarquismo, denunciando
certos abusos do Estado Novo, pôde lançar seu livro sem maiores contratempos e sem
impedimentos, diferente do que ocorreu com muitos artistas e escritores.
A liberdade que teve para publicar seu primeiro livro, cujo título era bastante
provocativo, se deu de maneira tranquila, pois não apresentava perigo ao governo
militar, já que nunca foi vinculada a nenhum tipo de partido político de esquerda ou
mesmo movimento social ou grupos feministas. Desse modo, na ocasião, foi considerada
pelo governo militar apenas uma senhora de sessenta e três anos de idade, esposa de
um escritor famoso que já havia rompido com a sua militância política e que, portanto,
não causaria nenhum perigo ou ameaça ao poder vigente. Zélia, apesar de falar sobre o
Estado Novo e a sua repressão, relatando as torturas sofridas pelo pai Ernesto Gattai
durante o período (prática que também ocorria na ditadura do momento), e de tratar de
sua herança anarquista, ou mesmo discutir assuntos polêmicos do ponto de vista moral,
ainda pôde adentrar ao mundo editorial sem a menor dificuldade. O mesmo fato ocorreu
nas publicações seguintes. Tratava-se de uma “mulher comum”, sem um passado de
luta e que era mais conhecida como companheira inseparável de um escritor renomado
e muito considerado no Brasil e no mundo do que como uma militante vinculada aos
ideais da esquerda. Desse modo não era vista como uma mulher subversiva e perigosa
e, por esse motivo, poderia publicar seus livros.
Outro ponto importante a ser levado em conta diz respeito à memória de seu
esposo Jorge Amado que tanto em sua primeira publicação quanto em Città di Roma
(2000) não fora construída. Essa atitude fora proposital, pois se coloca no centro
da narrativa, construindo a partir de dados pessoais sua trajetória, dando sentido a
sua existência e iniciando seu nome como autora (escritora), o que configura em uma
marcação neste espaço/mundo editorial, o qual ainda lhe era um ambiente novo. Desse
modo, não falar do esposo na ocasião foi uma forma de mostrar seu próprio talento,
mostrando ao leitor que tinha um passado importante e que por este motivo ele deveria
ser relatado e divulgado, como foi feito a partir do final da década de 1970.
No livro, Città di Roma, reúne algumas fotografias de seus pais e familiares,
objetivando documentar as suas histórias. A capa de Città di Roma, publicado no ano
de 2000, é uma foto da autora de quando criança:
Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma construção de si
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FIGURA 1: Capa do livro Cittá di Roma, em sua 1ª edição, pela Editora Record, 2000.
Nas páginas seguintes, reúne 16 fotos suas e de seus antepassados, contemplando
num primeiro momento as fotos de sua mãe Angelina Gattai e do pai Ernesto Gattai:
FIGURA 2: Angelina Gattai e Ernesto Gattai.
Fonte: Città di Roma, 2000.
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FIGURA 3: Francesco Arnaldo Gattai e a esposa Dealma
Fonte: Città di Roma, 2000.
FIGURA 4: Famílias de Ernesto Gattai e Amadeu Strambi em um piquenique em Santos no ano de 1913.
Fonte: Città di Roma, 2000.
Zélia Gattai e as publicações Anarquistas graças a Deus (1979) e Città di Roma (2000): uma construção de si
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 176-193, jul.-dez., 2016.
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FIGURA 5: Zélia Gattai e os seus quatro irmãos.
Fonte: Città di Roma, 2000.
Posteriormente foram inseridas as fotos de Dealma e o seu avô Francesco
Gattai, sobre quem fez questão de enfatizar, que fora um anarquista, conforme legenda
apresentada. Nas duas páginas seguintes, publicou fotos de um piquenique da família de
seu Ernesto Gattai e de seu amigo Amadeu Strambi na serra de Santos no ano de 1913.
Além dessas, também reuniu duas páginas com as imagens dela e de seus quatro irmãos
quando eram pequenos no ano de 1919.
Nas páginas sequentes, mais uma vez, incluiu fotografias de seu pai Ernesto
Gattai, de sua mãe dona Angelina Gattai, além de fotografias de suas irmãs e dela
própria, no período escolar:
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FIGURA 6: Zélia Gattai no Grupo Escolar.
Fonte: Città di Roma, 2000.
Desse modo, selecionou as fotografias que julgava significativas, conservando
mais uma vez a história de seus antepassados: “trata-se de comprovar que pertence
a uma linhagem, que tem raízes” (ARTIÈRES, 1998, p. 14). A ideia era provar que tem
origens anarquistas e que descendia, portanto, de familiares fortes, engajados e críticos,
atributos que ela também possuía. Além disso, é uma forma de provar a sua história e
a dos seus familiares, sendo também “uma garantia de transparência um passaporte de
sinceridade é uma prova de ajustamento” (ARTIÈRES, 1998, p. 14).
Da mesma forma que faz uso de sua autobiografia para transformar-se em
uma pessoa pública, informando sobre o seu passado, Zélia utiliza as fotografias de
sua infância e de seus familiares objetivando “apreender uma realidade passada, uma
lembrança, em material para desconstruir-se – reconstruir seu passado, para recontá-
lo” (GRECCO, 2011, p. 112). Neste sentido, o seu memorialismo e as suas fotografias
mostram os momentos de sua vida e de seus antepassados, tecendo o sentido que
pretende dar a sua existência a partir de sua trajetória pessoal e familiar. Além disso,
se transforma a partir de sua escrita e a seleção das fotografias, legitimando-as “como
depoimentos de valor e de verdade” (LACERDA, 2003, p. 61). Portanto, Zélia apropriou-
se do álbum de família de seus antepassados com o intuito de conservá-lo e transformá-
lo em documento histórico, a fim de ser divulgado, registrado e marcado na história,
como nos alerta Le Goff (1990):
O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece
menos com a busca artística do tempo perdido que estas apresentações
comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família
sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas em ordem
cronológica, “ordem das estações” da memória social, evocam e transmitem
a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o
grupo vê um ator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou,
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o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua
unidade presente (LE GOFF, 1990, p. 466).
Dessa forma, por meio de sua escrita e das fotografias selecionadas, armazena
os acontecimentos de sua vida e de seus familiares permitindo divulgá-los no tempo
de sua escrita e também lançá-los ao futuro. Trata-se “de um processo de marcação,
memorização e registro [...]” (LE GOFF, 1990, p. 433).
Essa estratégia visual - que também é um tipo de linguagem - tem uma
intencionalidade. Trata-se da transmissão de inúmeras mensagens, sobretudo, a narrativa,
que continua a ser praticada em outras obras e em entrevistas, incansavelmente. Pode-
se dizer, que o ato de repetição dessas e outras fotografias e da escrita memorialista
configura-se em uma tática ou, mais do que isso,uma estratégia documental arquivística
e, sobretudo, memorialística:
Por tais razões servem as imagens e os arquivos. Para que possamos fazer
essas e outras descobertas; para que possamos preservar a lembrança de
certos momentos e das pessoas que nos são caras; para que nossa imagem
não se apague; para que não percamos as referências do nosso passado, dos
nossos valores, da nossa história, dos nossos sonhos; para que possamos
preservar as imagens [...] para que tenhamos provas, [...], para que não nos
esqueçamos (KOSSOY, 2002, p. 130).
É dessa maneira que tenta provar a sua capacidade como escritora ao leitor,
advogando em causa própria, mostrando que não pretende adentrar ao espaço editorial
via Jorge Amado. Pelo contrário, trata-se de Zélia Gattai, uma livre pensadora, mulher
preparada desde a infância, cheia de experiências, herdeira de princípios anarquistas,
cultura e bons modos, e que merece ter um reconhecimento por seus pares tendo em
vista que tem o seu talento nato. É, portanto, essa a forma pela qual almeja ser vista,
divulgada e, sobretudo, lembrada por todos. Nesse sentido, assume “um ponto de vista
a respeito de si mesmo” (OLMI, 2006, p. 75).
Vale notar que, para além do tema sobre o anarquismo e sobre a sua própria
história, faz questão de enfatizar em cada publicação nova o período do Estado Novo
brasileiro, e outros diversos assuntos, como o seu exílio e do esposo Jorge Amado na
Europa, no final da década de 1940 durante a guerra fria, ou ainda a sua rede de relações,
como os amigos que conheceu ao longo de sua vida, as viagens que fez, entre outros
assuntos.
Considerações Finais
Em ambas as obras analisadas, podemos notar que a escritora paulistana
pretendeu construir uma imagem sobre si como uma mulher que tem um passado
importante a ser narrado, tendo em vista que tem uma herança ideológica dos familiares
anarquistas que vieram ao Brasil implantar o sonho da Colônia Cecília, o que acabou
não sendo efetivado, como foi relatado.
Em Città di Roma, além da escrita memorialista que contemplou a história da sua
infância e a vinda dos seus pais e avós ao Brasil, em meados do século XIX, também
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apresenta as suas fotos particulares e as de seus familiares, a fim de divulgar, registrar
e, principalmente, documentar tais momentos de suas vidas. Dessa forma, cria a sua
própria história e lança o sentido que pretende dar a sua existência. Neste sentido,
reconstrói vestígios do passado e dos fatos históricos que fizeram parte de sua vida e
que almeja deixar à posteridade. Zélia, nesses trabalhos, mostra-se com talento próprio
e, apesar de ser esposa de um escritor considerado um homem imortal na literatura
brasileira, deixa seu legado e a riqueza de seu trabalho memorialístico. Trata-se de
uma memorialista, uma “guardiã” de suas memórias e das de seus entes queridos que
começou a escrever aos 63 anos cheia de lembranças e experiências de vida, dedicando-
se ao narrar, nessas e em outras obras posteriores.
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Suplemento. 29 jan. 1977, p. 12.
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