Usos do relato histórico pelo poder régio em Castela e Leão (1252-1284)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 157-175, jul.-dez., 2016.
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limitava unicamente à lei. A história e os registros do passado, de forma geral, podiam
servir ao mesmo propósito. Com o auxílio destes documentos, buscava-se construir
uma memória social na qual era reforçada a imagem de uma realeza soberana que
pretensamente conseguia sustentar seu poder e sua proeminência perante as forças
locais. Neste sentido, as crônicas régias possuem papel determinante na edificação
destes ideais.
Ao relatar nas páginas das crônicas a história do reino, o poder régio projetava
sobre o passado as expectativas e anseios que alimentava no presente. Tomemos como
exemplo o relato conhecido hoje como Primera Crónica General de España ou Estoria
de Espanna. Redigido entre os reinados de Afonso X e Sancho IV, esta obra detém-se,
majoritariamente, nas ações perpetradas pelas cabeças coroadas que já haviam vivido
em território hispânico, desde a época da dominação romana até o século XIII.
No caso afonsino, mesmo que a crônica não tenha retratado o reinado do próprio
Afonso X, é possível nos valermos de sua narrativa para perceber as atitudes que o
rei tentava inscrever no imaginário da população de seu tempo. Em uma conjuntura
marcada por sucessivos episódios em que o poder central teve sua autoridade posta
em cheque pelas aristocracias senhoriais – tal como foi o governo de Afonso X – é
possível identificar nos relatos de cunho histórico episódios nos quais a soberania da
realeza tenta se projetar por sobre as forças dissidentes do reino. Um destes momentos
é constituído pelas cerimônias em que os reis aparecem exercendo a justiça e punindo
os “insurgentes e criminosos” do reino, frequentemente apresentados como nobres
que ameaçavam a população camponesa.
Consideremos, como exemplo da questão acima levantada, observar o momento
em que a Estoria de Espanna ou Crónica General de España relata a intervenção régia
em um senhorio onde o senhor daquelas terras havia roubado a herança de um de seus
camponeses:
Vn inffançon que moraua em Gallizia, et auie nombre don Fernando, tollio por
fuerça a um laurador su heredat; et el laurador fuesse querellar all emperador,
que era em Toledo, de la fuerça quel fazie aquel infançon. (...) Ell inffançon,
como era omne muy poderoso, quando uio la carta dell emperador, fue muy
sannudo, et começo de menazar al laurador, et dixo que matarie, et non le
quiso fazer derecho ninguno. Quando el laurador vio que derecho ninguno
non podie auer dell inffançon, tornosse al emperador a Toledo (...). Et ell
emperador pues que sopo todo el fecho, fizo sus firmas sobrello, et llamo
omnes buenos del logar, et fue com ellos, et parosse a la puerta dell inffançon
et mandol llamar et dezir que saliesse all emperador quell llamava. Quando
ell inffançon aquello oyo, ouo muy grand miedo de muerte, et começo de
foyr; mas fue logo preso, et aduxieronle antell emperador. Et ell emperador
razono todo el fecho ante los omnes buenos (...) Et ell inffançon nin contradixo
respuso contra ello ninguna cosa, et ell emperador mandol luego enforcar de
la su puerta misma.
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5. Um nobre que morava na Galiza e que havia por nome Fernando tomou pela força de um lavrado a sua
herança. O lavrador foi querelar ao imperador [da Espanha] que estava em Toledo, da força que sofreu de
tal nobre [...] o nobre, como era homem muito poderoso, quando viu a carta do imperador, foi muito irão e
começou a ameaçar o lavrador, e disse que o mataria, e que não lhe iria fazer direito algum. Quando o la-
vrador viu que justiça alguma partiria do nobre, voltou ao imperado em Toledo [...] e o imperador quando
soube de todo o feito colocou sua assinatura sobre ele, e fez vir homens bons de outros lugares, e foi com
eles até as terras do nobre, e manou-o chamar e sair [da sua casa] para ficar diante do imperador que o
chamava. Quando o nobre aquilo viu, teve muito medo da morte e começou a fugir, mas foi logo preso e