DOSSIN, Francielly Rocha
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 136-156, jul.-dez., 2016.
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Na década de 1870, um em cada doze cativos anunciados carrega, explicitamente,
as marcas ou os grilhões da punição: “tem sinal de castigo nas costas e nádegas”,
“tem sinais no pescoço [e nos tornozelos] provenientes de ferros”, “está com
ferro nos pés e gancho no pescoço”. Há também fugitivos com apenas “sinais
nas costas” ou “sinais de queimaduras nas costas”, descrições que podem ser
eufemismos para marcas de castigo, a proporção vai para um em cada dez
anunciados. Sem dúvida, é uma subestimativa da proporção que realmente
apresentava as marcas do cativeiro. Há vários senhores que, ao reconhecer
a presença de cicatrizes ou feridas em seus escravos, tentam distanciar-se
do fato, constrangidos: “tem sinais de castigo nas costas conforme já estava
quando o anunciante o comprou”, “tem sinais muito frescos de castigo que
sofreu em consequência de sentença do Júri”, “tem bastante sinais antigos de
castigos”. Na verdade, são sinais dos tempos modernos: na década de 1870,
não era mais de “bom-tom” anunciar violências “domésticas” para o mundo.
Por outro lado, é bem possível que as marcas corriqueiras de castigo fossem
tão comuns que não ajudassem muito a distinguir entre fugitivos. “Nenhum
[dos três escravos que fugiram] tem sinal de castigo”, diz um senhor, como
se a falta de marcas corporais permitisse a identificação. Finalmente fica
claro que a variedade na descrição dos anunciantes também contribui para
subestimar a incidência de castigos. Retirando-se da análise os anúncios mais
lacônicos, que registram pouco mais do que os dados pessoais básicos da
pessoa, a proporção de fugitivos com sinais explícitos de punições sobe para
aproximadamente um em cinco. (SLENES, 1997, p. 277/278).
Ainda no painel central, o artista nos apresenta e homenageia quatro personagens,
de diferentes regiões brasileiras, todos negros e reconhecidos por seus percursos
singulares na luta pela emancipação dos afro-brasileiros. Da esquerda para a direita,
os retratos de Chico da Matilde (Francisco José do Nascimento, 1839 —1914, também
conhecido como Dragão do Mar) e José do Patrocínio (José Carlos do Patrocínio,
1853 —1905), Luiz Gama (Luís Gonzaga Pinto da Gama, 1830 – 1882) e do Almirante
Negro (João Cândido Felisberto, também conhecido por João Cândido, 1880 — 1969).
Interessante notar que enquanto os quatro primeiros são reconhecidos
abolicionistas, o último, João Cândido, não tinha sequer completado os oito anos de
idade quando se deu o treze de maio de 1888. João poderia ser um dos meninos que
brinca com seus amigos no terceiro painel, o painel que carrega o momento posterior
a abolição.
E é sobre uma pós-abolição desoladora que fala o terceiro painel. Nesse
momento, em 1910, que o marinheiro João Cândido se tornou conhecido por ser uma das
principais lideranças da Revolta da Chibata, na qual os marinheiros rebelaram-se contra
a aplicação de castigos físicos. Juntando quatro personagens, não necessariamente
contemporâneos, Sidney Amaral acaba por recuperar uma tradição dos painéis
histórico-apologéticos do medievo e da primeira modernidade, onde personagens
nobres eram misturados a seus antepassados, a figuras bíblicas e/ou míticas, em uma
tradição laudatória de retrato e genealogia. Seu formato oval também nos remete aos
retratos familiares que em fotografias em preto e branco, ou coloridos à mão, figuravam
nos interiores das casas brasileiras. Mas se em alegorias como a gravura Honra e Glória
ao Ministério de 7 de março
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, víamos além de Pedro II e do Visconde do Rio Branco,
os demais políticos de seu gabinete
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; os homenageados de Sidney Amaral são notórias
12. Litografia de 1871 em homenagem ao ministério que aprovou a Lei do Ventre Livre.
13. Formavam o gabinete: Francisco de Paula de Negreiros Saião Lobato, João Alfredo Corrêa de Oliveira
Andrade, Teodoro Machado Freire Pereira da Silva, Manoel Francisco Corrêa, Domingos José Nogueira