Recebido em: 11/08/2016
Aprovado em: 31/10/2016
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos
60 e as narrativas sobre a história do negro na
avenida
The Rio de Janeiro samba schools in the 1960’s
and the black history narratives on the avenue
FARIA, Guilherme José Motta
1
Resumo: Na década de 1960, as Escolas de Samba conquistaram o protagonismo do
Carnaval carioca. A partir de publicações de cronistas e notícias extraídas do Jornal do
Brasil, este artigo procura mostrar que a temática afro-brasileira se tornou recorrente
nos anos 1960 apresentando visões narrativas diferenciadas na abordagem do assunto,
em diálogo com os acontecimentos políticos e as lutas de inserção social capitaneadas
pelos movimentos negros. O cotidiano do escravo na vida colonial; as lutas, resistências
e movimentos em busca da liberdade; a presença negra na cultura nacional e no folclore
são os três eixos narrativos que as Escolas utilizaram como norteador de enredos que
exaltavam direta ou indiretamente a “cultura negra” no Brasil. A ideia do pioneirismo
do Salgueiro na introdução de temáticas afro-brasileiras será relativizada com a
apresentação de sambas e enredos sobre a questão do negro apresentados por outras
agremiações cariocas. Mesmo não conquistando o reconhecimento na bibliografia
sobre as associações culturais, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro desempenharam
1. Pós-doutorando em História (USP); Doutor em História (UFF); Mestre em História (UERJ). Professor da
Universidade Veiga de Almeida – RJ. Contato: gguaral@uva.br
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos 60 e as narrativas sobre a história do negro na avenida
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 75-97, jul.-dez., 2016.
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um papel relevante no levantamento de temas e discussões acerca da história do negro
na sociedade brasileira.
Palavras-Chave: Escolas de samba; Salgueiro; Movimento negro; História; Memória.
Abstract: In the 1960s, the Samba Schools became the centerpiece of the Rio Carnival.
Taking chronicles and news extracted from the Jornal do Brasil as a starting point, this
article seeks to show how the Afro-Brazilian themes became recurrent during the 1960’s
introducing alternative narrative viewpoints on the subject, dialoguing with political
events and the struggle for social acceptance carried out by the black movements.
The daily life of a slave in the colonial period; the struggles, resistances and freedom
seeking movements; the black presence in national culture and folklore are the three
main narrative threads that the Schools utilized as guides to create plots that directly
or indirectly extolled “black culture” in Brazil. The idea of the Salgueiro School as a
pioneer in introducing Afro-Brazilian themes is relativized by presenting other sambas
and plots dealing with black issues created by different groups in Rio. Even if they
didn’t achieve recognition in the bibliography about cultural associations, the Rio de
Janeiro Samba Schools played an important role in surveying themes and promoting
discussions regarding the history of black people in Brazilian society.
Keywords: Samba School; Black Movement; Salgueiro; History; Memory.
O Carnaval e as Escolas de Samba do Rio de Janeiro
Os desfiles das Escolas de Samba foram se tornando, ao longo da segunda metade
do século passado, espetáculos grandiosos, despertando o interesse da população
brasileira, como parte de sua identidade cultural. A trajetória do evento pode ser
trabalhada em conexão com a História, onde a produção historiográfica permite uma
análise dos embates e conflitos que desde o início se colocaram na “avenida.
O recorte temporal deste artigo tem na década de 60 seu ponto de inflexão. O
motivo dessa escolha é a percepção de que neste período os enredos apresentados
passaram a ser ampliados e explicitamente, em alguns casos, retrataram personagens
negros da nossa história, pouco conhecidos do grande público. Nesse momento histórico
as questões ligadas as representações do negro na sociedade brasileira estavam
emergindo em várias manifestações culturais e de organização política.
No universo carnavalesco, esse processo também se fez presente. Em minhas
pesquisas sobre as agremiações encontrei vestígios desse processo que estava
ocorrendo em maior ou menor escala nas diversas Escolas de Samba do Rio de Janeiro,
apresentando os embates, as negociações e as disputas simbólicas em relação ao legado
dessa nova orientação estética que estava sendo incorporada aos desfiles.
As Escolas de Samba do Rio de Janeiro nos anos 1960
Para memorialistas, jornalistas e pesquisadores, o GRES Salgueiro, a partir da
FARIA, Guilherme José Motta
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entrada do cenógrafo do Teatro Municipal e professor da Escola Nacional de Belas
Artes, Fernando Pamplona, no posto de carnavalesco, teria “revolucionado” o Carnaval
carioca ao homenagear personagens e expressões da cultura afro-brasileira (CABRAL,
1996, p.179-180; COSTA, 1984, p. 90-94).
A partir de notícias publicadas no Jornal do Brasil sobre os preparativos das escolas
de samba do Rio de Janeiro, encontrei indícios desta temática presentes nos desfiles nos
anos 1950 (FARIA, 2014, p. 234-252).
2
Na década seguinte, os enredos apontaram um
contexto mais amplo e várias agremiações apresentaram narrativas acerca da história
dos homens e mulheres negros no Brasil. O objetivo principal desse artigo é buscar
compreender, entre as Escolas de Samba, como essa temática foi trabalhada e como se
estabeleceram suas correntes narrativas.
A análise dos enredos e letras dos sambas permitiu perceber a estruturação de
um discurso sobre a história do negro no Brasil contada pelas Escolas em três vertentes
narrativas: o cotidiano da escravidão; as lutas e movimentos de resistência; e as práticas
culturais (festas, danças e religiosidades) de influência africana. Ao encontrar histórias
pouco contadas e dadas como perdidas foi possível notar que a narrativa sobre o negro
estava presente em várias agremiações e não foi somente pioneirismo do Salgueiro,
versão cristalizada na bibliografia sobre o tema.
Outo ponto deste artigo é a compreensão acerca da produção das Escolas de
Samba como agremiações culturais, sintonizadas com as discussões dos movimentos
negros na década de 60 e questionar o porquê das agremiações serem ignoradas pelas
principais lideranças dos Movimentos negros no Brasil e não estarem contempladas na
bibliografia sobre a militância dessas instituições.
A História do Negro nos desfiles dos anos 60
I - O cotidiano escravo no Brasil Colonial
A primeira corrente narrativa que as escolas utilizaram para contar a história do
negro no Brasil estava centrada no cotidiano da escravidão. As principais representações
tinham na figura do escravo, nos períodos colonial e imperial, seu símbolo maior. Assim,
as Escolas retrataram o cotidiano dos escravos durante a travessia atlântica, nos portos
de desembarque, onde eram vendidos como animais de carga, inseridos na dinâmica
da produção açucareira, da extração do ouro e do café, vivendo em senzalas. Nessa
corrente narrativa, o que predominava, era uma lembrança do passado de escravidão,
em que os sentimentos mais aflorados eram dor e humilhação por conta das punições,
castigos físicos a que eram submetidos quando desobedeciam as ordens dos seus
senhores.
A Estação Primeira de Mangueira (1962 e 1964) estruturou seus desfiles nessa
vertente narrativa. O primeiro enredo parecia estar em sintonia com a aceitação do
2. Sobre essa questão, há os exemplos de enredos sobre Castro Alves, na década de 40, no Império Ser-
rano e Vila Isabel, o Salgueiro (1954) com Homenagem a Bahia, Mocidade Independente de Padre Miguel
com Apoteose ao Samba (1958), Unidos da Tijuca com Leilão de Escravos (1958) e Tupy Brás de Pina com
Memórias de um Preto Velho (1959), entre outros.
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“mito” da democracia racial. A escola havia escolhido como tema Casa Grande e
Senzala, inspirado no livro de Gilberto Freyre.
Analisando a letra do samba é possível perceber que o negro era o tema central
do enredo, e o seu passado na escravidão era uma lembrança que legitimava a sua
inserção na sociedade brasileira, pois foi por meio do seu trabalho que o país teve suas
bases econômicas estruturadas. A novidade no enfoque era a positivação do passado.
No samba Casa Grande & Senzala, dos compositores Jorge Zagaia, Leléo e
Comprido, a referência à obra de Freyre, ou ao que se costuma entender sobre ela,
parece evidente. O livro embasou a construção da teoria da democracia racial no Brasil,
buscando revelar a plasticidade e a convivência harmônica entre negros e brancos na
formação social do país.
Pretos escravos e senhores/Pelo mesmo ideal irmanados/A desbravar/ Os
vastos rincões Não conquistados/Procurando evoluir/Para unidos conseguir/A
sua emancipação/Trabalhando nos canaviais/Mineração e cafezais/Antes
do amanhecer/Já estavam de pé/Nos engenhos de açúcar/Ou peneirando o
café/Nos campos e nas fazendas/Lutaram com galhardia/Consolidando a
sua soberania/E esses bravos/Com ternura e amor/Esqueciam as lutas da
vida/Em festas de raro esplendor/Nos salões elegantes/Dançavam sinhás
donas e senhores/E nas senzalas os escravos/Dançavam batucando os seus
tambores/Louvor/A este povo varonil/Que ajudou a construir/A riqueza do
nosso Brasil.
3
O samba apontava as lutas de negros e brancos “pelo mesmo ideal irmanados”,
reforçando um dos pontos fundamentais das ideias de democracia racial. As
representações de ambas as raças visando ao progresso por meio de seu trabalho,
reforçava os mitos fundadores da nação. Amenizar as lutas e buscar a integração entre
esses dois “mundos”, a casa grande e a senzala, sabidamente segregados, como um
espaço possível de convivência saudável entre brancos e negros era um dos pontos
centrais do livro de Freyre, e, pela análise da letra, só se faz confirmar.
Em 1964, a Escola também retratou o tema da escravidão. A narrativa iniciava-
se a partir de um enfoque mais tradicional, com a partida dos negros escravizados na
África, a travessia nos navios negreiros e sua venda nos portos brasileiros. O detalhe
diferencial foi criar a narrativa a partir de um personagem intitulado preto velho e sua
trajetória da África à senzala, onde morreu. Nesse enredo, foi encontrada uma mescla
de imagens positivadas da escravidão, com a bondade do senhor e da importância das
festas na afirmação da cultura afro-brasileira. Os compositores do samba, Hélio Turco,
Comprido e Pelado, buscaram sedimentar a figura do negro como um dos pilares da
história brasileira.
Era uma vez um preto velho/Que foi escravo/Retornando a senzala/Para
historiar o seu passado/Chegando a velha Bahia/Já no cativeiro existia/
Preto velho foi vendido/Menino a um senhor/Que amenizou a sua grande
dor/Quando no céu a lua prateava/Que fascinação/Preto velho na senzala/
Entoava uma canção/Ô ... ô... ô.../Ô ... ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô.../Ô ... ô...
ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô.../Conseguiu tornar realidade/O seu ideal a liberdade/
Vindo para o Rio de Janeiro/Onde o progresso despontava/Altaneiro/Foi
3. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 12/05/2013.
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personagem ocular/Da fidalguia singular/Terminando a história/Cansado
da memória/Preto velho adormeceu/Mais o lamento de outrora/Que vamos
cantar agora (bis)/Jamais se esqueceu/Ô ... ô... ô.../Ô ... ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô...
ô.../Ô ... ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô... ô...
4
Histórias de um Preto Velho, enredo pouco citado na bibliografia sobre as
escolas de samba, dentro do quadro das representações sobre a temática do negro,
era um manifesto que buscava sedimentar o elemento negro, desde sua ancestralidade
africana, sua vinda forçada para o Brasil até sua integração nos espaços sociais do
período colonial brasileiro.
Outro exemplo desse viés narrativo centrava-se na participação do escravo
no cotidiano urbano, circulando entre a elite branca, principalmente na cidade do
Rio de Janeiro, denominados “escravos de ganho” (SILVA, 1988). Esses personagens
conquistaram espaço e foram apresentados pela Portela e Império Serrano em seus
enredos, em 1962. Na Portela, a representação do negro seria a do tempo do pintor
Johann Moritz Rugendas.
5
A Escola apresentaria a visão do artista sobre o Brasil, na
transição do período colonial para o Império. A letra do samba de Ze Kéti, Batatinha,
Carlos Elias e Marques Balbino exaltava o artista, que ganhou um nome abrasileirado.
Achou tão maravilhoso/Os costumes e a nossa natureza/Que transportou
para as telas/Toda imensa beleza/Deixou muitas aquarelas/Retratos a óleo,
paisagens diversas e composições/A arte de desenhar nasceu em suas mãos/
Há de existir no museu de Munique/Documentado em pintura/As cenas
tristes e alegres/Das fazendas do Brasil/Nos tempos idos da escravatura/
Retratou vários tipos raciais/As paisagens e os costumes regionais/Do nosso
Brasil de outrora/Catalogou os seus trabalhos e, embevecido/Publicou-
os, se tornando conhecido/Um pouco do Brasil por este mundo afora/João
Maurício Rugendas/Para nós uma glória/Cantar e reviver teu passado/Tua
obra grandiosa e tua história.
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Analisando somente a letra do samba, seria possível ter dúvidas quanto à
representação dos negros como escravos, mas as gravuras inseridas na matéria,
entretanto, ajudam a dar essa certeza.
7
O Império Serrano seguiu a mesma linha da
Portela, optando por um enredo sobre a história do Rio de Janeiro no período dos Vice-
Reis. A partir da proposta das alegorias, presente na sinopse, a matéria apontou o que
a agremiação estava preparando.
O Grêmio Recreativo Império Serrano apresentando como seu enredo para
o carnaval de 1962 o ambiente do Rio dos Vice-Reis, procura mostrar as
origens da cidade e os elementos que contribuíram para a sua evolução social
e urbanística. Assim é que traz como alegorias, após a abertura do desfile,
pelo tradicional abre-alas, um quadro simbolizando a Festa do Divino, com
4. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 14/07/2013.
5. O pintor alemão chegou ao Brasil, em 1821, e passou a viajar pelo país para coletar material para pin-
turas e desenhos. Dedicou-se também ao registro dos costumes locais ao detalhar os tipos humanos, as
espécies vegetais e sua relação na paisagem brasileira.
In bndigital.bn.br/200anos/brasiliana.htm, pesquisado em 13/05/2013.
6. <www.portelaweb.com>. Acesso em: 13/05/2013.
7. Gravuras que sugerem os carros alegóricos que a Portela iria apresentar. In Jornal do Brasil, 22/02/62,
caderno B, p.3.
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o cerimonial de que se revestia. Segue-se um estafermo, figura que era
encarregada de abrir o espetáculo das touradas ou jogo das argolas, muito
popular na época. Era o estafermo um dos personagens vivos mais típicos do
Rio dos Vice-Reis.
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A representação do negro seria efetiva no desfile do Império Serrano. Não
teria como ser diferente, pois, de fato, os negros escravos ou libertos circulavam pela
cidade, prestando serviços e bastante integrados nas práticas culturais, religiosas, nas
festividades, como a Festa do Divino, Congadas e nas danças-lutas, como a capoeira. O
enfoque geral era da integração, por meio das manifestações culturais, percebidas pelo
seu viés folclórico, na qual a participação do negro era imprescindível. A letra do samba,
composta por Mano Décio da Viola e Davi do Pandeiro foi apresentada como mais um
elemento de compreensão da proposta dos imperianos.
Rio de Janeiro/Obra-prima de rara beleza/Foste engalanada pela própria
natureza/Rio dos vice-reis/Dos chafarizes, das velhas congadas/Rio dos
capoeiras/Cenário eletrizante/Das famosas cavalhadas/Quando badalavam
os sinos/Anunciando a festa do Divino/Era lindo o seu ritual/Admirado até
na Corte Real/O monumento dos Arcos/Com todo o seu esplendor/Rio das
lindas paisagens/E das belas carruagens/Obra de grande valor/Lá, lá, lá, lá, lá,
lá, lá/Lá, rá, lá, lá, rá, rá/Rio, ó meu Rio de Janeiro/Serás sempre o primeiro/
Na história do mundo inteiro.
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Outro exemplo que corrobora com essa primeira corrente narrativa, estava na
matéria dos jornalistas Mauro Ivan e Luis Paulo sobre a União de Jacarepaguá, em 1964.
O texto deixava evidente que a intenção da escola era representar a história do negro,
ligada à escravidão, mas com a perspectiva da integração social, durante as festas
que foram realizadas no Arraial do Tijuco, interior de Minas Gerais em homenagem à
coroação de D. João VI. A história, de fato, parecia inusitada. Pouco se conhecia desta
festa.
Segundo os jornalistas, a artista plástica Ana Letícia tinha proposto o enredo, e
os detalhes ela buscou na documentação do folclorista Luís da Câmara Cascudo. Esse
circuito de informações e referências tornou-se mais intenso com o crescente número
de artistas de formação acadêmica circulando nas agremiações. O samba da Escola, de
autoria de Jorge José dos Santos (Mexeu), foi citado na matéria. Essa composição não foi
encontrada em nenhum site especializado, sendo importante o seu resgate.
Foi em 1818/no dia 6 de fevereiro/D. João VI foi coroado/fato que sempre será
lembrado/Porém quatro meses depois no Tijuco/na velha cidade tradicional/
hoje Diamantina/que foi palco de repercussão nacional/de estilos coloridos/
que representavam a Monarquia/Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt/
homem inteligente de valor/intendente das minas e do Império Senador/
com seus esforços realizou/estes festejos com esplendor/ ôôôôôôôôôôôô/
os negros prestaram homenagens/nesse cortejo de consagração/aos brancos
se misturaram/sem a menor distinção/Destacamos: Tipos e costumes sem
iguais/o teatro, a congada e outros mais/Rei Congo e Rainha Xinga/príncipes e
princesas com suas belezas/que desfilavam sob um pálio com toda a nobreza/
8. Jornal do Brasil, 27/02/62, caderno B, p.5.
9. Jornal do Brasil, 27/02/62, caderno B, p. 5.
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foram três noites e três dias de alegria/De festa monumental/Dona Carlota
Joaquina assistia/Com outros membros da Corte Imperial.
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Essa corrente narrativa continuou bastante presente no Carnaval de 1969, como
atesta a matéria do Jornal do Brasil, no domingo de carnaval. O Caderno B apresentou
os dez sambas das escolas do primeiro grupo, seguindo a ordem do desfile. Um subtítulo
dava o tom do que parecia ser o mote das agremiações no final dos anos 60:
A História do Brasil, seus homens, seus feitos; as coisas do Brasil, sua glória,
sua cor. Os sambas-enredo das escolas de samba para o desfile de hoje à
noite, cantam o Brasil e sua população, na simplicidade (e esplendor) da voz
do povo.
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Duas Escolas exemplificam essa corrente narrativa: Imperatriz Leopoldinense e
Em Cima da Hora. Com o enredo Brasil Flor Amorosa de Três Raças, a agremiação do
bairro de Ramos estava sintonizada nessa perspectiva buscando reafirmar a importância
das três matrizes formadoras no processo da integração étnica no Brasil, influenciados
pela releitura da tese do naturalista alemão Von Martius, de meados do século XIX.
O samba, dos compositores Mathias de Freitas e Carlinhos Sideral seguiu a linha
interpretativa traçada pelo pesquisador europeu procurando enaltecer as qualidades de
cada “raça” na formação do nosso povo.
Vejam de um poema deslumbrante/Germinam fatos marcantes/Deste
maravilhoso Brasil/Que a lusa prece descobria/Botão em flor crescendo um
dia/Nesta mistura tão sutil/E assim, na corte os nossos ancestrais/Trescalam
doces madrigais/De um verde ninho na floresta/Ouçam na voz de um pássaro
cantor/Um canto índio de amor/Em bodas perfumando a festa/Venham ver
o sol dourar de novo esta flor/Sonora tradição de um povo (bis)/Samba de
raro esplendor/Vejam o luxo que tem a mulata/Pisando brilhante, ouro e
prata, a domingar/Ouçam o trio guerreiro das matas/Ecoando nas cascatas
a desafiar/Ó meu Brasil, berço de uma nova era/ Onde o pescador espera/
Proteção de Iemanjá, rainha do mar/E na cadência febril das moendas/Batuque
que vem das fazendas/Eis a lição/Dos garimpos aos canaviais/Somos todos
sempre iguais/ Nesta miscigenação/Ó meu Brasil/Flor amorosa de três raças
(bis)/És tão sublime quando passas/Na mais perfeita integração.
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A Em Cima da Hora, dentro do mesmo viés narrativo, parecia dialogar com a
história econômica. O enredo da Escola do bairro de Cavalcante buscava ser mais
contundente em termos de postura afirmativa; ao passo que a revolta passava a ser
um novo ingrediente das representações sobre os negros. Segundo a agremiação, ainda
que estivessem escravizados, os negros, desde o início da colonização pelos brancos
portugueses, demonstravam sua revolta com relação à situação a que foram submetidos
nas terras brasileiras.
A composição parecia marcar posição ideológica e demonstrava com firmeza a
forma de abordar a temática da escravidão. Alguns versos eram contundentes, como
10. Jornal do Brasil, 05/02/64, caderno B, capa.
11. Jornal do Brasil,17/2/69, Caderno B, p. 5.
12. Idem, idem, idem.
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os que apontavam que a força do negro escravizado era que, de fato, movia a economia
brasileira. O samba, intitulado Ouro Escravo, dos compositores Normi de Freitas e Jair
dos Santos não se tornou muito reverenciado, mas, merecia um olhar mais atento dos
pesquisadores da história das Escolas de samba.
Do homem africano ressaltamos o valor/Nestas páginas marcantes/Que o
“Em Cima do Hora” desfolhou/Que apresentamos neste carnaval/O ouro
escravo/No tempo do Brasil colonial/Brilha nos anais desta história/Que
apresentamos neste carnaval/Solto no campo, na serra ou junto ao mar/Ao
índio bronzeado não puderam escravizar/Enquanto o negro era martirizado/
Na escavação do ouro trabalhando sem cessar/A toda crueldade resistia/
Oh! quanto o negro sofria/A exploração era geral/Na mineração e também
no vegetal/O pau-brasil/De um século para outro sumiu/Transformado em
anilina enriquecendo o tecido/Que o colo de ricas damas cobriu(Breque!)/E
as montanhas de esmeraldas/E as pepitas brilhantes/Aumentavam as ilusões
dos aventureiros bandeirantes/ E o negro trabalhava(Breque!)/Nesta terra
importante/Tratava da plantação/Na lavoura verdejante/Ô ôôlara, lara, lara,
ra, ra, Ra/Só o homem africano era braço produtor/Que mais tarde a Lei
Áurea libertou.
13
O enredo dialogava com a história econômica brasileira, destacando seus ciclos
principais, demonstrando que o negro esteve presente como força motriz na produção
da maior parte de nossas riquezas.
Os exemplos trabalhados acima, pequena parte de um universo bem mais amplo,
torna possível perceber que, mesmo não tendo explicitamente a conotação de enredos
afro-brasileiros, as Escolas, em sua maioria se relacionaram com a história dos negros
no Brasil. Enredos sobre a História do Rio de Janeiro, sobre fatos da história brasileira;
homenagens aos estados do nosso país, aos artistas e suas manifestações artísticas
(literatura, artes plásticas, música); a exaltação ao folclore, com suas festas e danças,
eram momentos aproveitados para contar e cantar a história dos negros em diversos
períodos e espaços culturais nas terras cariocas em particular e nas terras brasileiras,
em geral.
Confrontando a proposta dos enredos com os sambas que as Escolas apresentaram,
a maioria publicados no Jornal do Brasil, fica bastante visível que a história do negro
estava sendo contada sobre vários ângulos, às vezes de forma indireta, outras de forma
contundente. As possibilidades discursivas variaram no leque de enredos apresentados,
ora exaltando a ancestralidade africana, ora retratando a escravidão (entre lamentos
e castigos na senzala, circulando pela cidade do Rio ou refugiando-se em quilombos e
preparando revoltas), apresentando personagens pouco conhecidos que conseguiram
subverter a ordem social, pregando a igualdade social por meio da democracia racial, e
pelas festas, danças, práticas culturais religiosas, apresentando uma identidade cultural
negra que foi sendo moldada no Brasil.
O viés narrativo sobre a escravidão acompanhou os desfiles nas décadas
seguintes do século XX, mas incorporou cada vez mais um olhar crítico de denúncia,
na tentativa de que a escravidão nunca mais fosse restaurada. O diálogo entre os
movimentos negros com os agentes sociais de várias classes sociais trouxe em seu bojo
novo olhar analítico.
13. Jornal do Brasil,17/2/69, Caderno B, p. 5.
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II - Luta, Resistência e os Heróis negros
O segundo viés narrativo estruturou-se na figura do negro como líder, agente
social responsável pelas revoltas e lutas que culminariam com a abolição, ou de
personagens que conseguiram, por sua trajetória individual, romper barreiras,
ascendendo socialmente no Brasil Colonial.
Os enredos destacaram a formação dos quilombos, os conflitos armados e as
figuras pouco conhecidas, abrindo novas possibilidades de questionamento da história
oficial baseados em exemplos que simbolizavam ações afirmativas de negros e mulatos
na conquista de direitos civis e sociais.
O primeiro enredo desta corrente narrativa a ser destacado fazia referência
à Revolta de Palmares, apresentado pelo Salgueiro no Carnaval de 1960. Durante o
período pré-Carnavalesco, vários textos referentes ao enredo e à Escola ocuparam as
páginas do Jornal do Brasil. A sinopse do desfile, tido como um dos grandes segredos
de cada agremiação teria sido uma gentileza do então presidente Nelson de Andrade,
com o referido periódico.
Com 1.200 figuras divididas em 26 alas, a Escola de Samba Acadêmicos do
Salgueiro desfilará no domingo de carnaval, para reviver a história da Revolta
de Palmares. Cabe hoje ao JORNAL DO BRASIL o privilégio de divulgar – com
quase um mês de antecedência – como serão enredo, alegorias e fantasias
do desfile. É a primeira vez na história do carnaval carioca que uma escola
de samba consente em anunciar, com tamanha antecipação, o que pretende
fazer. Obrigado, Salgueiro.
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O enredo parecia ser emblemático de uma vertente que ampliava as possibilidades
de narrativa sobre a história do negro no Brasil. Nessa corrente, o que prevalecia era a
atitude guerreira e destemida de líderes negros, que comandaram uma experiência que
mesclava autonomia e criatividade no período colonial brasileiro, quando a escravidão
do negro limitava a conquista de espaços e o respeito social. O elo com o continente
africano estabelecia-se no caráter guerreiro das diversas tribos que tiveram seus
elementos dispersados pelo “Novo Mundo”.
A exemplificação dessas novas ideias estava presente na matéria impressa. A
apresentação das baianas, por exemplo, que desfilariam com bandeiras vermelhas,
situava a ideia de luta mais no plano simbólico. Perfilando com soldados portugueses e
negros escravos, era uma forma de representar os conflitos raciais que ocorreram no
Brasil. A ala seguinte, das tribos africanas nos “seus mínimos detalhes”, seria a afirmação
da ancestralidade africana que permitiria um redirecionamento do negro na sociedade
brasileira, não mais como subserviente e humilhado, mas como altivo guerreiro, dono
do seu destino.
Entre elementos simbólicos como as bandeiras brancas, a escola terminaria seu desfile
criando conexões com os festejos culturais do Maracatu, festa popular em Recife, tendo negros
e mulatos como alicerces das suas apresentações. O último destaque da matéria foi para a
adoção de novos instrumentos na bateria da agremiação, com o diferencial de serem “africanos”.
O segredo era fundamental, mas creio que a matéria aguçou a curiosidade de muitos para o que
14. Jornal do Brasil, 04/02/60, 2º caderno, p. 4.
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos 60 e as narrativas sobre a história do negro na avenida
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a escola apresentaria no domingo de Carnaval.
15
O samba, dos compositores Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira tinha uma
letra extensa e imagens descritivas do quilombo e sua geografia. Os aspectos históricos
foram mesclados com imagens mitológicas, evocando a cultura grega, comparando
Palmares com a cidade de Tróia.
No tempo que o Brasil ainda era/um simples País colonial/Pernambuco foi
o palco da história/Que apresentamos neste carnaval/Com a invasão dos
holandeses/Os escravos fugiram da opressão/E do jugo dos portugueses/
Esses revoltosos/Ansiosos pela liberdade/Nos arraiais dos Palmares/
Buscavam a tranqüilidade/Ô-ô-ô-ô-ô-ôÔ-ô, ô-ô, ô-ô/Surgiu nessa história
um protetor/Zumbi, o divino imperador/Resistiu com seus guerreiros em sua
Tróia/Muitos anos, ao furor dos opressores/Ao qual os negros refugiados/
Rendiam respeito e louvor/Quarenta e oito anos depois/De luta e glória/
Terminou o conflito dos Palmares/E lá no alto da serra/Contemplando a sua
terra/Viu em chamas a sua Tróia/E num lance impressionante/Zumbi no seu
orgulho se precipitou/Lá do alto da Serra do Gigante/Meu maracatu/É da
coroa imperial/É de Pernambuco/Ele é da casa real.
16
Em matéria posterior, próxima ao desfile, foi apresentada uma descrição
detalhada em relação às tribos africanas que seriam retratadas. As representações das
nações Jaga, Mandinga, Fula, Cambinda e Casanje, com seus reis, alegorias e fantasias,
como frisaram os dirigentes na reportagem, “a indumentária e as alegorias terão um
caráter predominantemente africano.
17
As representações das nações africanas, com uma variedade de cores e traços,
pareciam propor uma nova plasticidade nos desfiles. O público e os componentes
estavam acostumados com as fantasias inspiradas nas cortes europeias, sobretudo a
francesa, e com as representações do negro como escravo, entre capoeiristas, baianas
de feira ou de escravos de libré
18
.
Com elementos diferenciados, o desfile do Salgueiro teve boa repercussão, sendo
noticiado na primeira edição do Jornal do Brasil, posterior ao Carnaval. Na capa do
periódico uma foto do desfile da agremiação estava em destaque, junto com os dizeres,
em letras generosas Acadêmicos foram espetáculo. Essa deferência revelava que o
Salgueiro havia realizado um desfile impactante.
Os Acadêmicos do Salgueiro, do morro de mesmo nome, na Tijuca, desfilaram
com um enrêdo inspirado na Guerra dos Palmares, travada no interior de
Alagoas entre os negros que se agruparam num Quilombo e as tropas do
Govêrno colonial, chefiadas por Fernão Jorge Velho. O desfile começou com
um negro, vestido de zumbi, chefe do Quilombo, empunhando um estandarte
com os seguintes dizeres: “Acadêmicos do Salgueiro apresentam: Palmares”.
Seguiram-se negros das cinco nações africanas transportadas para o Brasil e
baianas com bandeiras vermelhas. O samba, cantado em côro pela escola, que
falava que o que se ia contar tinha acontecido no tempo do Brasil colonial e
era uma história guerreira. Surgiram, então, os guerreiros, armados de lanças,
flexas e escudos. Vinha, em seguida, um pálio de Maracatu, de cuja dança êles
15. Jornal do Brasil, 04/02/60, 2º caderno, p.4.
16. Jornal do Brasil, 08/02/60, 2º caderno, p.9.
17. Idem, idem, idem.
18. Escravos com roupas de corte, carregadores de liteiras e responsáveis pelos serviços domésticos.
FARIA, Guilherme José Motta
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº2, p. 75-97, jul.-dez., 2016.
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cantavam um estribilho popular no Recife: Maracatu é da coroa Imperial;É de
Pernambuco, da casa real. Logo após vinhas as baianas, agora com bandeiras
brancas e entre elas a mulata Paula, considerada uma das atrações do desfile.
O samba revelava, então, que 48 anos depois a guerra dos Palmares acabou.
19
Outros exemplos de enredos no mote narrativo da luta e resistência incorporava
também a apresentação de personagens negros, que eram pouco comentados ou
desconhecidos do grande público e que poderiam simbolizar casos de superação social
e busca de conquista de espaços, mesmo com as adversidades da situação financeira
e da sua cor. O Salgueiro trouxe em sequência dois enredos que estavam dentro desse
diapasão narrativo, apresentando Chica da Silva (1963), e Chico Rei (1964). Essas
histórias foram ampliadas e amplificadas pela imprensa.
O samba de 1963, dos compositores Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira,
constituiu-se de muitos significados dentro da narrativa de resistência e luta dos negros
na história brasileira. Retratando uma mulher negra, escrava, que alcançou status social
por conta de seu envolvimento amoroso com o contratador de diamantes, João Fernandes
de Oliveira, Chica tornou-se uma personagem emblemática. O sucesso do desfile e
o título de campeã do Carnaval criaram uma condição de excepcionalidade naquele
acontecimento cultural que transcendeu o tempo/espaço dos festejos carnavalescos.
Apesar/De não possuir grande beleza/Xica da Silva/Surgiu no seio/Da mais
alta nobreza/O contratador/João Fernandes de Oliveira/A comprou/Para ser
a sua companheira/E a mulata que era escrava/Sentiu forte transformação/
Trocando o gemido da senzala/Pela fidalguia do salão/Com a influência e
o poder do seu amor/Que superou/A barreira da cor/Francisca da Silva/
Do cativeiro zombou/ôôôôô;ôôô, ôô, ôô/No Arraial do Tijuco/Lá no Estado
de Minas/Hoje lendária cidade/Seu lindo nome é Diamantina/Onde nasceu
a Xica que manda/Deslumbrando a sociedade/Com o orgulho e o capricho
da mulata/Importante/majestosa e invejada/Para que a vida lhe tornasse
mais bela/Mandou construir/Um vasto lago e uma belíssima galera/E uma
riquíssima liteira/Para conduzi-la/Quando ela ia assistir à missa na capela.
20
Esse enredo, de fato, foi um momento célebre na história dos desfiles e estrutura,
um dos marcos da construção do pioneirismo do Salgueiro na temática afro-brasileira.
A questão sobre a descoberta de personagens negros pouco conhecidos pela população
como uma ação exclusiva da agremiação do bairro da Tijuca, entretanto, merece ser
relativizada (FARIA, 2014).
Com um jogo de palavras, Salgueiro troca Chica por Chico para tentar ser
bi, a matéria do jornalista José Trajano destacou os preparativos do Salgueiro para o
Carnaval de 1964. O enredo da escola “Chico Rei” era baseado na história do nobre
africano, transformado em escravo e que se tornou um personagem interessante, a
partir de um estratagema engenhoso: escondia o ouro nos cabelos e depois de juntar
boa quantidade do metal conseguiu comprar sua alforria e dos demais companheiros.
A história de superação e integração, protagonizada por Chico Rei, do cativeiro à
liberdade, se estabeleceu a partir de sua conversão ao catolicismo.
A estratégia de Chico e a adesão de seus companheiros, narrada pela Escola,
19. Jornal do Brasil, 3/3/60, p. 12.
20. Jornal do Brasil, 24/2/63, p.10.
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos 60 e as narrativas sobre a história do negro na avenida
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parecia querer recriar o passado ancestral em solo brasileiro, baseado nas redes de
sociabilidade das tribos africanas. Esse ato de reagrupar seu povo, sob a benção do
Deus católico, protegido pela intercessão de Santa Efigênia, parecia ser um salvo
conduto para a ação de Chico e seus companheiros. O ideal de vida comunitária ligava a
experiência de Chico Rei ao Quilombo de Palmares e, na linha histórica, às comunidades
dos morros cariocas, de onde emergiam as Escolas de Samba.
O samba, dos compositores Geraldo Babão, Jarbas Soares e Djalma Costa
(Djalma Sabiá), segundo a matéria, era “um trio excelente. A letra merece ser lida como
texto poético e histórico. Nos anos 60, época de muitas transformações nos desfiles,
as escolas ainda resguardavam a forma de composição dos sambas enredo, geralmente
com letras longas e ricas em detalhes.
Vivia no litoral africano/Uma régia tribo ordeira/Cujo rei era símbolo/De uma
terra laboriosa e hospitaleira/Um dia essa tranquilidade sucumbiu/ Quando
os portugueses invadiram/Capturando homens/Para fazê-los escravos no
Brasil/Na viagem agonizante/Houve gritos alucinantes/Lamentos de dor/Ô-
ô-ô-ô, adeus, Baobá/Ô-ô-ô-ô-ô/adeus, meu Bengo, eu já vou/Ao longe Minas
jamais ouvia/Quando o rei, mais confiante/Jurou a sua gente que um dia os
libertaria/Chegando ao Rio de Janeiro/No mercado de escravos/Um rico
fidalgo os comprou/Para Vila Rica os levou/A ideia do rei foi genial/Esconder
o pó do ouro entre os cabelos/Assim fez seu pessoal/Todas as noites quando
das minas/Regressavam/Iam à igreja e suas cabeças lavavam/Era o ouro
depositado na pia/E guardado em outro lugar de garantia/Até completar a
importância/Para comprar suas alforrias/Foram libertos cada um por sua vez
E assim foi que o rei/Sob o sol da liberdade, trabalhou/E um pouco de terra ele
comprou/Descobrindo ouro enriqueceu/Escolheu o nome de Francisco/Ao
catolicismo se converteu/No ponto mais alto da cidade Chico-Rei/Com seu
espírito de luz/Mandou construir uma igreja/E a denominou/Santa Efigênia
do Alto da Cruz!.
21
A tríade de enredos do Salgueiro (1960-Quilombo de Palmares, 1963-Chica da Silva
e 1964-Chico Rei), dentro da chave narrativa das lutas e das estratégias de resistência
dos negros em relação à postura de dominação branca, criou para a agremiação
tijucana, um status de escola revolucionária. Esses enredos, citados em quase toda a
bibliografia sobre Escolas de Samba, e os resultados obtidos, dois títulos (1960 e 1963)
e um vice-campeonato (1964) ajudaram, sem sombra de dúvidas, a construção da ideia
de pioneirismo salgueirense nos temas afro-brasileiros.
Esse mote narrativo, exaltando momentos de luta ou estratégias de superação das
barreiras sociais, possuía também uma vertente de denúncia contundente do passado
escravista e das formas de resistência que os negros encontraram para superar essas
dificuldades impostas. O enredo do Império Serrano em 1969 também estava nessa
segunda corrente narrativa, onde o samba enredo prometia ser um dos pontos altos
do desfile. A canção Heróis da Liberdade, dos compositores Mano Décio da Viola, Silas
de Oliveira e Manoel Ferreira teve grandes problemas com a censura e após alguns
“ajustes” resultou em um dos melhores de todos os tempos.
Ô ôôô/Liberdade, Senhor/Passava a noite, vinha dia/O sangue do negro
corria/Dia a dia/De lamento em lamento/De agonia em agonia/Ele pedia/O
21. <www.letras.mus.br/salgueiro-rj/683010/>. Acesso em: 24/08/2013.
FARIA, Guilherme José Motta
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fim da tirania/Lá em Vila Rica/Junto ao Largo da Bica/Local da opressão/A
fiel maçonaria/Com sabedoria/Deu sua decisão lá, rá, rá/Com flores e alegria
veio a abolição/A Independência laureando o seu brasão/Ao longe/ soldados e
tambores/Alunos e professores/Acompanhados de clarim/Cantavam assim:Já
raiou a liberdade/A liberdade já raiou/Esta brisa que ajuventude afaga/Esta
chama que o ódio não apaga/pelo Universo/É a evolução em sua legítima
razão/Samba, oh samba/Tem a sua primazia/De gozar da felicidade/Samba,
meu samba/Presta esta homenagem/Aos “Heróis da Liberdade”/Ô ôô.
22
O samba alinhava diversos momentos de embates e lutas pela liberdade na
história brasileira. Sintonizados com os rumos dos debates e das ações dos movimentos
negros, o samba do Império Serrano centrava a história da abolição no próprio negro e,
ao contrário do samba da Unidos de Lucas de 1968, Sublime Pergaminho, analisado ao
final do artigo, não fez deferências à Princesa Isabel.
Esse embate de significados do dia 13 de maio estava sendo apropriado pelas
associações e grupos dos movimentos negros, e a omissão da representatividade da
Princesa parece ser um indício de que essa nova narrativa, que percebia a abolição
como uma construção histórica e social do legado da resistência e luta dos negros
brasileiros, estava também presente nas Escolas de Samba.
Os textos dos intelectuais e pesquisadores do folclore nacional foram motes
presentes nos variados discursos que as agremiações adotaram em seus enredos.
Os debates sobre autenticidade versus modernidade, na exaltação das Escolas de
Samba como manifestações folclóricas e o repúdio em relação à profissionalização das
agremiações e do fenômeno do “embranquecimento dos desfilantes”, foram pautas que
permearam a década de 60, gerando tensões, disputas e acarretando transformações
consideráveis no caráter de espetáculo das apresentações das agremiações (FARIA,
2014, p. 266-272).
Os congressos, palestras, seminários, como o I Congresso do Samba, organizados
por intelectuais militantes dos diversos segmentos do movimento negro no Brasil,
como Edison Carneiro, trouxeram discursos que também impactaram as propostas de
enredos apresentados ao longo do decênio de 1960. As ideias de democracia racial, de
pan-africanismo, de negritude, de resistência/revolta foram tendências que ao longo
da década fizeram parte das mudanças ocorridas nos movimentos negros no Brasil
e também encontraram espaço nas Escolas em seus enredos, fantasias e sambas
apresentados na avenida dos desfiles.
Dessa forma, essas representações, apresentadas acima como motes de luta
e resistência coexistiram com as representações do escravo passivo/humilhado,
analisadas no primeiro viés narrativo. Os enredos, fruto das disputas simbólicas por uma
narrativa da história do negro foram apresentados ao longo dos anos 1960 e refletiam
os debates que estavam inseridos nos meios acadêmicos e das associações culturais.
III - A presença negra na cultura nacional e no folclore
O terceiro viés narrativo dos enredos apresentou a presença do negro no
22. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 25/08/2013.
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processo formador da cultura brasileira, sobretudo, em seus aspectos religiosos, das
festas, danças, culinária, nos diversos estados brasileiros. O legado do passado africano
foi uma das referências fundamentais para a solidificação das variadas práticas culturais
no Brasil. As representações que essas práticas revelavam gravitavam entre uma África
mitificada/estilizada para uma África politizada e contemporânea nas lutas do processo
da descolonização.
Vários são os exemplos desse viés narrativo na história dos desfiles na década em
destaque, como o da Mangueira, em 1960, que seguiu nesta trilha. Com o enredo Glória
ao Samba, a agremiação apresentaria a história do surgimento do ritmo na perspectiva
da sua consagração máxima e da primazia das Escolas, apresentando, desta forma, um
diálogo com a narrativa do negro integrado socialmente, a partir da sociabilidade das
festas. A matéria sobre os preparativos da escola não explicitava a presença do negro
no enredo, mas a partir de uma leitura mais atenta e com a letra do samba é possível
perceber que sua apresentação estaria calcada nestas representações, tendo o carnaval
carioca como epicentro.
Retratar o morro com sua sociabilidade e a Praça XI, espaço destruído desde a
década de 40, mas possuidora de um simbolismo importante para a consolidação social
de grupos de negros e mulatos, era uma forma de sublinhar a filiação das Escolas de
Samba ao efervescente processo de circulação de agentes sociais no espaço urbano e
central da cidade do Rio e o seu futuro deslocamento para os seus morros e subúrbios.
A matéria apresentou a letra do samba que trazia uma representação da formação da
cultura carnavalesca na cidade.
Samba melodia divina/Tu és mais empolgante/Quando vens da colina/Samba
original és verdadeiro/Orgulho do folclore brasileiro/O teu linear de vitórias/
Foi na Praça Onze de outrora/Das lindas fantasias/Que cenário multicor/Das
velhas batucadas/E o saudoso sinhô/Oh! que reinado de orgia/Onde o samba
imperava/Matizando alegrias/Rei momo e as escolas de samba/Deram mais
esplendor/Ao nosso carnaval/E o samba fascinante Ingressava no municipal/
Sua epopeia triunfante/Atingiu terras bem distantes/ Não encontrando
fronteiras/O samba conquistou/Plateias estrangeiras.
23
A visão de samba como elemento folclórico era um marco discursivo presente na
letra da composição, pois o mesmo era visto como um ritmo essencialmente nacional,
que espalhava bons sentimentos e que continuava seu processo de expansão chegando
a terras distantes no “estrangeiro”. A forma de construir uma história de integração
social, sem enfrentamentos ou postura de luta aberta, parece ter sido a opção da
Mangueira para o desfile, mas ficava evidente também a valorização do negro e sua
contribuição à “cultura nacional”. Inegavelmente, a cosmogonia do samba, proposta
pela Escola, era propícia a uma ideia de afirmação dos agentes sociais do morro, a
partir da miscigenação, permitindo que aquela manifestação artística abrisse uma maior
permeabilidade social.
Dentro desse mote narrativo, outro tema recorrente eram as manifestações
culturais, artísticas e religiosas que os negros praticavam. O estado com maior número
de enredos até o início da década de 60 era a Bahia e as representações do negro em
seu estado incorporavam, ano após ano, um vocabulário ligado a culinária e às religiões
23. Jornal do Brasil, 24/2/60, 2º caderno, p.5.
FARIA, Guilherme José Motta
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de ascendência africana, como o samba da Mangueira de 1963, Relíquias da Bahia, dos
compositores Helio Turco, Cícero e Pelado.
Formosa Bahia/Teu relicário é tão vibrante/Estado lendário/Quantas
catedrais exuberantes/Foste do Brasil a primeira capital/Marco do progresso
nacional/Importante e primordial/Salve a velha Bahia/Tela do grande Senhor/
Os fieis em romarias/Bahia de São Salvador/Salve, salve/Bahia de tradição
tão gloriosa/Bahia do eminente Ruy Barbosa/Na ciência ou na arte/ Tens a
primazia/Dos poetas sublimam a velha Bahia/A Bahia do acarajé/ Do feitiço
e do candomblé/Teu panorama na imensidão/É uma fascinação/ Formosa
Bahia.
24
A Unidos de Padre Miguel, fundada em 12/11/1957, no ano seguinte, com o enredo
Feira da Bahia, seguiu a mesma inspiração temática e recebeu destaque na cobertura
jornalística do Jornal do Brasil. A matéria do jornalista José Trajano revelou em detalhes
as fantasias e alegorias que a Escola apresentaria no desfile principal. Um mérito do
texto foi o de articular os preparativos da agremiação com seus componentes, revelando
as condições sociais que cercaram a produção do desfile da agremiação. A Escola não
tinha grande destaque no noticiário carnavalesco, pois, desde sua fundação, esteve nos
grupos secundários.
Relacionado no terceiro viés narrativo, percebia-se na agremiação a busca de
um ideal de integração racial e social pela afirmação dos valores culturais do negro
brasileiro. O destaque às religiões de origem africana, plasmadas no território brasileiro,
era um indício de sua intenção. Integrar sim, mas com respeito às particularidades, que
constituíram a diversidade do povo brasileiro.
Sobre o enredo Feira da Bahia, o jornalista José Trajano não detalhou como
seriam as fantasias e alegorias, entretanto nomeou os seus criadores. O cenógrafo Válter
Monteiro, João Jerônimo e Jorge Carvalho. Em relação ao samba, o jornalista esclareceu
que a composição era “da ala dos compositores”, pois segundo seus dirigentes “na
escola não tem essa coisa de construir um nome e fixá-lo como compositor”
25
.
Bahia/teu nome representa glória/um símbolo em nossa história/nosso país te
consagrou/Ô ÔÔÔÔÔÔÔ/demonstramos em tuas feiras/ó Bahia fascinantes
colossais/Teus mercados ambulantes/com legumes verdejantes/ pescado e
outras coisas mais/Vendedores de papagaios/papa-vento, cerâmicas e balões/
Oh! Quanta beleza e esplendor/aparentando um mundo de ilusões/Também
são atrações em tuas feiras, Bahia/muito bonito e originais/ o famoso jogo do
maculelê/Dança de capoeira, com os seus berimbaus/lindas baianas de saias
rendadas/e colares de guias/com seus modos brejeiros/em acordes a cantar:
Compra ioiô, compra ioiô, compra Iaiá/ Bôlo de tapioca, milho cozido, acaçá
e mungunzá/compra ioiô, compra ioiô, compra Iaiá/doce de côco, acarajé e o
saboroso vatapá/Ra-ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra- ra.
26
O mote narrativo das contribuições negras para a cultura brasileira estava
presente, tanto na proposta do enredo, quanto no seu samba. Utilizando a chave
interpretativa da integração, exaltavam-se os aspectos culturais das feiras da Bahia,
24. Jornal do Brasil, 24/2/63, p.10.
25. Jornal do Brasil, 04/2/64, Caderno B, p.5.
26. Idem, idem, idem.
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sobretudo em sua capital Salvador, onde os negros eram e ainda são presenças
dominantes.
Ao cantar suas danças, sua culinária e sua religiosidade, o samba criou imagens
vivas e, ao ser analisado como texto, permite visualizar o colorido e o movimento
intenso dos homens e mulheres, negros em sua maioria, oferecendo serviços, seus
dotes culinários, dançando a capoeira e o maculelê.
O Salgueiro, em 1969, apresentou o enredo Bahia de Todos os deuses, e ampliou
o leque discursivo desta vertente narrativa apresentando orixás da mitologia africana,
presentes no candomblé. A matéria deu ênfase nas questões religiosas, onde a Escola
prometia abrir um espaço generoso em seu desfile para a representação do culto aos
deuses.
A Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro será a oitava escola a se
apresentar na Presidente Vargas. Cerca de quatro mil figurantes estarão
sambando com o samba-enredo mais corrido para este ano: Bahia de Todos
os Deuses. Homenageando a Bahia, Salgueiro fará um bom carnaval, trazendo
inclusive um autêntico terreiro de macumba para ilustrar o seu enredo. [...] O
culto a Iemanjá será o ponto alto do desfile. [...].
27
Ao enaltecer os costumes e práticas culturais, destacando os aspectos religiosos,
fortaleciam-se os laços com a ancestralidade africana, ao mesmo tempo que reforçava
uma postura de afirmação dos valores culturais dos negros no Brasil. Cito abaixo os
sambas do Salgueiro, que terminaria campeã do Carnaval de 1969, e da Unidos de
Vila Isabel. Ambos tiveram o mesmo mote temático, a Bahia, vista, entretanto, por
diferentes caminhos narrativos. O primeiro samba a ser destacado é o do Salgueiro, dos
compositores Bala e Manuel Rosa.
Bahia, os meus olhos estão brilhando/Meu coração palpitando/De tanta
felicidade/És a rainha da beleza universal/Minha querida Bahia/Muito antes
do Império/Foste a primeira capital/Preto Velho Benedito já dizia/Felicidade
também mora na Bahia/Tua história, tua glória/Teu nome é tradição/Bahia
do velho mercado/Subida da Conceição/És tão rica em minerais/Tens cacau,
tens carnaúba/Famoso jacarandá/Terra abençoada pelos deuses/E o petróleo
a jorrar/Nega baiana/Tabuleiro de quindim/Todo dia ela está/Na igreja do
Bonfim, oi/Na ladeira tem, tem capoeira/Zum, zum, zum/Zum, zum, zum/
Capoeira mata um!
28
A Unidos de Vila Isabel não teve grande espaço na matéria do domingo de Carnaval
de 1969. O samba dos compositores Martinho da Vila e Rodolfo, segundo a matéria, tinha
um diferencial que era apresentar uma narrativa ficcional, tendo como cenário a Bahia.
O samba trazia novidades em relação às novas possibilidades discursivas, permitindo
ampliar o leque de seu formato. A composição é uma das primeiras a abordar a questão
social, em um contexto cotidiano. Eis a letra do samba Yayá do Cais Dourado, da Unidos
de Vila Isabel:
27. Idem, 17/2/69, Caderno B, p. 5.
28. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 15/02/2011.
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No cais dourado da velha Bahia/Onde estava o capoeira/A Yayá também se via/
Juntos na feira ou na romaria/No banho de cachoeira/E também na pescaria/
Dançavam juntos/Em todo fandango e festinha/E no reisado, contramestre
e pastorinha/Cantavam laralalaialaiá/Nas festa do Alto do Gantois/Mas
loucamente a Yayá do Cais Dourado/Trocou seu amor ardente/ Por um
moço requintado/E foi-se embora/Passear em barco a vela/Desfilando em
carruagem/Já não era mais aquela/E o capoeira que era valente chorou/Até
que um dia a mulata/Lá no cais apareceu/Ao ver o seu capoeira/Pra ele logo
correu/Pediu guarita/Mas o capoeira não deu/Desesperada caiu no mundo
a vagar/E o capoeira ficou com seu povo a cantar/Lalaialalará./Cantavam
laralalaialaiá/Nas festa do Alto do Gantois.
29
As letras extensas e descritivas, uma das marcas características dos sambas
até o final dos anos 60, deparava-se com novas formas estilísticas, mexendo com os
paradigmas da sua tessitura. O samba da Unidos de Vila Isabel era um bom exemplo de
como a forma e o conteúdo estavam em processo de transformação.
A força deste mote narrativo pode ser percebida também na matéria Aprendizes
mostram o Brasil e fazem churrasco na Avenida, do jornalista José Trajano.
[...] A principal finalidade do enredo é atrair a atenção de todos para mostrar
o que existe de maravilhoso no Brasil. Em todas as regiões brasileiras existem
folguedos, danças e tradições, que se originaram na diversificada colonização
de portugueses, africanos, índios, etc.[...].
30
Segundo a matéria, “o samba-enredo, escolhido há muito tempo, depois de disputar
com mais dois outros o privilégio de ser cantado na Avenida, tem como responsáveis os
membros da Ala dos Compositores”
31
. A autoria era do trio, apresentado no texto como
“velhos sambistas”, Austeclínio Silva, Mario Santos e Jorge Zacarias, Cidadão-Samba do
ano anterior (1963). A letra, citada na íntegra, era a seguinte:
Lá-rá-lá-rá-lá-rá/Lá-rá-lá-rá-lá-rá/É deslumbrante o folclore do Brasil/E
os costumes de seu povo varonil/Lendárias tradições/Das suas regiões/de
Norte a Nordeste/Leste, Sul ou Centro-Oeste/E nesta viagem através do
Brasil/Momentos de beleza oferecem/Brasil! Gigante Brasil!/És tão sublime
és magistral/Tens do Rio de Janeiro/No samba a verdadeira capital/Chimarrão
e o churrasco/Festa da Uva no Rio Grande do Sul/Em Pernambuco o Frevo
e o Maracatu/(em ritmo de maracatu e com acompanhamento de palmas,
a seguinte quadra) Salve o maracatu/Como é bom de se dançar/Salve o
maracatu/Vamos todos cantar/Ô ÔÔÔÔÔ/Como é lindo no Pará/o pitoresco
Boi-bumbá/Brasil!/A majestosa Bahia/Brasil: Suas baianas com seus colares
e guias/Brasil/Também tem, o ritual candomblé/Para seu povo hospitaleiro e
de muita fé/E num gesto heróico arrojado e febril/Os jangadeiros singram os
mares do Brasil/Lará, Lará, Lará, Lará, Lará.
32
As intenções estéticas refletiam o que a escola compreendia como a cultura
29. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 01/05/2013.
30. Jornal do Brasil, 05/2/64, Caderno B, p.6.
31. Idem, idem, idem.
32. Idem, idem, idem.
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos 60 e as narrativas sobre a história do negro na avenida
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brasileira, representada na mistura das três matrizes étnicas formadoras do povo
brasileiro, refletidas em suas práticas culturais, denominadas então de folclore.
Pela descrição, o desfile teria várias alas representando danças típicas, cuja maior
parte delas era dançada/jogada por negros e mulatos, como o mineiro-pau, as congadas,
o maracatu, o bumba-meu-boi, danças em que as heranças culturais africanas foram
ressignificadas no Brasil e tornaram-se marcas identitárias dos negros brasileiros.
Assim sendo, o enredo estava inserido na chave interpretativa da integração, buscando
demonstrar que na realização das práticas culturais as diferenças sociais e, sobretudo
raciais, abrandavam as desigualdades, dando lugar a uma forma de celebração de uma
“cultura brasileira, com espaços garantidos para todos.
A Unidos de Lucas
33
, em 1969, apresentaria também um enredo centrado no
folclore. O foco narrativo era o das contribuições culturais negras na história brasileira,
sob a bandeira da integração racial. O samba, Rapsódia Folclórica, do compositor
Herlito Fonseca, também foi destacado na matéria do Jornal do Brasil.
Abrem-se as cortinas coloridas/Mostrando os matizes da vida/Num cenário
espetacular/Lendas, flores, lindas fantasias/Contos que o poeta vem cantar/
Do céu, da terra e do mar/Do sol, das noites de luar/Esclarecendo em alto
som/Que a liberdade é o lado bom/Em cortejo de grande alegria/O vaqueiro
anuncia a dança do Boi-Bumbá/O meu Boi morreu, o meu Boi-Bumbá/
Manda buscar outro, maninha lá no Ceará/Olêlê lêolê lê Olá lá Pernambuco
e Ceará/As legendárias Amazonas e a Rainha Conhori/Guerreira de braço
forte, que lutou até a morte/Na seita dos Canaraí/No Rio Grande do Sul/O
legendário negrinho do Pastoreio/Foi surrado e amarrado e jogado dentro de
um formigueiro/Foi o Príncipe Obá, homem de grande projeção/Que lutou
bravamente na guerra/Foi herói do seu batalhão/E as Pastorinhas com seus
belos madrigais/Entoavam lindos cantos/Que hoje não se houve mais/Na
Bahia tem, tem, tem/Na Bahia tem! Baiana/Água de Vintém.
34
A pesquisa mais aprofundada pode resgatar alguns sambas e enredos que
ficaram na obscuridade, esquecidos pela historiografia sobre o tema. Importa, portanto,
conhecer a realidade de uma escola pequena de um subúrbio distante, nos anos 60,
para perceber que uma vigorosa narrativa da história dos negros no Brasil estava se
consolidando entre as agremiações e seus agentes sociais, em sua maioria, negros e
mulatos.
Após várias referências às matérias apresentadas nas páginas do Jornal do Brasil
percebe-se que a temática sobre o negro estava presente e em processo de expansão.
Os exemplos apresentados permitem vislumbrar esse fenômeno. Se valendo de uma
manifestação popular, com todos os debates sobre a perda da autenticidade, as Escolas
de Samba alcançavam grande visibilidade, tornando a discussão sobre o negro e o seu
lugar na sociedade brasileira uma pauta necessária, na “ordem do dia”.
As escolas de samba e os movimentos negros
A maior incidência de trabalhos sobre os movimentos negros no Brasil deixou os
anos 60 como uma espécie de hiato na história da trajetória de organização e luta dos
33. A Unidos de Lucas resultou da fusão da Aprendizes de Lucas e Unidos da Capela, em 1966.
34. <www.vagalume.com.br/>. Acesso em: 01/05/2013.
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grupos e associações criadas no período. A ênfase maior foi destinada ao período final
da década de 70, no bojo do processo de Anistia e Abertura política do regime militar,
a partir de 1974. A criação do MNU (Movimento Negro Unificado), no final da década,
ganhou a centralidade na versão sobre a ação engajada dos movimentos organizados na
produção historiográfica sobre o tema.
As Escolas de Samba, associações culturais com grande importância nos anos 60
na cidade do Rio de Janeiro, eram visivelmente núcleos de negros que, pela via artística,
demarcavam espaços para o que se convencionava chamar de cultura negra. Mesmo
com essa nítida percepção de serem as agremiações associações recreativas e culturais
de origem negra, elas foram ignoradas na historiografia sobre os movimentos negros
produzida até os dias atuais.
35
Conforme a consideração dos enredos propostos e das letras dos sambas
apresentados pelas agremiações nos anos 60 como expressões da questão racial
é possível perceber que elas desempenharam um papel relevante como instituições
culturais de expressão da identidade cultural dos negros brasileiros.
Na segunda metade dos anos 50, as narrativas mais expressivas que
predominaram nas letras dos sambas estavam centradas na corrente narrativa do
passado de escravidão (MUSSA; SIMAS, 2010, p. 64), analisada na primeira parte do
artigo. Exemplos significativos desse contexto são os sambas da Unidos da Tijuca. Em
1958, Negro na Senzala, do compositor Darcy da Mangueira, os componentes cantaram
o samba que se referia as humilhações e aos maus tratos sofridos pelos negros
escravizados, segmentados no espaço social que lhes cabia nas fazendas, a senzala.
Nos idos tempos coloniais/no Brasil de escravo e senhor/o negro era
transladado/e depois arrematado/pelo escravizador/e dessa época pra cá/
sofrimento era demais, era demais/negro tinha que trabalhar/trabalhar até
cair/no engenho de açúcar/na colheita de algodão/negro era castigado/pelo
senhor do sertão/a casa grande/requinte de grande fidalguia/mas sem o labor
do negro/o senhor nada fazia/preta velha/ama do filho do senhor/negro
na senzala/esquecia os momentos de dor/com lindas danças e cantorias/
preto velho não pensava/em seus momentos de agonia.
36
Em 1961, a agremiação apresentou o enredo Leilão de Escravos. O samba
composto pelos sambistas Mauro Affonso, Urgel de Castro e Cici trouxe novamente
o mote do trabalho associado ao sofrimento, às desigualdades, encontradas entre os
espaços da casa-grande e da senzala.
Quem dá mais, quem dá mais (bis)/Negro é forte, rapaz/Era assim/Apregoado
em leilão/O negro que era trazido para a escravidão/Ao senhor era entregue/
Para qualquer obrigação/Trabalhava no engenho da cana/Plantava café e
colhia algodão/Enquanto isso/Na casa grande, o feitor/ Ouvia as ordens/De
um ambicioso senhor/Ôôôô/Tenha pena de mim, meu senhor (bis)/Tenha por
35. Sobre os anos 1970, é possível encontrar alguns poucos exemplos, como a tese de Gabriela Buscaccio
sobre a GRANNES QUILOMBO, criada em 1976, ou parcas menções no livro de Amílcar Pereira, O Mundo
Negro. As referências são rasas e incipientes, como no caso citado por Pereira, da articulação de grupos
culturais na periferia de São Paulo, em torno das Escolas de samba Nenê de Vila Matilde e Vai-Vai (PE-
REIRA, 2013, p. 239).
36. <www.vagalume.com.br/>. Acesso em: 10/01/2012.
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favor/E o negro trabalhava/De janeiro a janeiro/O chicote estalava/Deixando
a marca do cativeiro/E na senzala/O contraste se fazia/Enquanto o negro
apanhava/A mãe preta embalava/O filho branco do senhor que adormecia/
Ôôôô/Tenha pena de mim, meu senhor (bis)/Tenha por favor.
37
O samba de 1961 guardou semelhanças com o de 1958
38
, pois ambos tomaram
como ponto inicial da narrativa a travessia atlântica, dando ênfase ao momento em
que os senhores compravam seus escravos nos portos brasileiros. No samba Leilão de
Escravos, esse ponto inicial ganhou maior destaque. Na sequência, foram apresentados
os principais produtos cultivados. No samba de 1961, entre a cana e o algodão foi
acrescido o café. Essa inclusão amplia o corte temporal da canção, pois o café foi um
cultivo ligado ao período imperial.
O trabalho extenuante dos escravos foi ressaltado nos dois sambas, trabalhar
até cair (1958) e de janeiro a janeiro (1961). A violência física ficou, entretanto, mais
explícita no samba Leilão de Escravos com a referência aos castigos corporais inseridos
no cotidiano do trabalho. Outro momento mais direto apresentado pelo samba de 1961
foi o destaque a mulher negra escrava, ama de leite na casa-grande. O contraste da
situação ampliava o sentimento de injustiça e desigualdade, pois “Enquanto o negro
apanhava/A mãe preta embalava/O filho branco do senhor que adormecia.
O tom de lamento e pedido de piedade ao senhor de engenho eram retratados
também pelas associações artísticas e políticas do movimento negro, como o TEN
(Teatro Experimental do Negro) e a UHC (União dos Homens de Cor), que buscaram em
ações culturais e debates pensar sobre as desigualdades sociais entre negros e brancos
na sociedade brasileira (PEREIRA, 2013, p.123).
Os dois sambas da Unidos da Tijuca estavam diretamente relacionados aos
debates, sobressaindo o sentido de denúncia dessas desigualdades, mesmo que as
localizando no momento passado, da escravidão no período colonial e do império. Não
seriam esses enredos e seus sambas correspondentes peças de promoção de debate
racial? Não seria a Escola do morro do Borel, no bairro da Tijuca, uma associação
artística cultural em sintonia com as demais associações dos movimentos negros no
Brasil? Por que as escolas de samba foram excluídas dessa narrativa?
Uma possível resposta pode ser pensada com a análise do enredo apresentado pela
Mocidade Independente de Padre Miguel no Carnaval de 1958. Em Apoteose ao Samba,
composto por Toco e Cleber, a composição apresentava duas partes, aparentemente
diversas:
Nas noites enluaradas/No tempo do cativeiro/Todos devem conhecer/A fama
de carrasco/Do coronel Trigueiro/Mas existia um porém/É que o “seu” coronel,
toda fúria perdia/Quando escutava no terreiro/Um preto velho amarrado no
tronco/Que entoava sua melodia/Era o Samba, sim senhor/Entoado com
sofrimento e dor/Neste ritmo cadenciado/Que pelo Brasil se propagou/
Radiofonia, imprensa falada/Associação, departamento de turismo/Que com
37. <www.letras.mus.br/sambas/>. Acesso em: 15/02/2011.
38. Os pesquisadores Luiz Antônio Simas e Alberto Mussa apontam que os dois sambas podem ter sido
do mesmo ano de 1961, do enredo Casa Grande e Senzala, e o que foi citado como de 1958 teria sido o
samba eliminado na fase final da disputa pela escolha do samba oficial (MUSSA; SIMAS, 2010, p. 163).
FARIA, Guilherme José Motta
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muito brilhantismo/Pelo nosso samba trabalhou/Confederação Brasileira/
Lutou pelo mesmo ideal/Para que o samba se tornasse/O orgulho nacional.
39
Na primeira parte, ressaltava-se o cotidiano de violência a que o escravo
estava submetido, vencido, entretanto, pelo ritmo do samba, gestado na agonia e dor
do pelourinho/tronco. A segunda parte procurava exaltar os meios de difusão que
o ritmo samba conseguiu se relacionar em seu processo de expansão. O elogio aos
jornalistas, radialistas e funcionários do então Departamento de Turismo parecia ser
uma estratégia de negociação para a aceitação e legitimidade das agremiações. Essas
ações de aproximação poderiam ser interpretadas pelas organizações mais radicais
dos movimentos negros como uma ação subserviente, portanto descoladas do intuito
central das organizações surgidas nos anos 1940-50.
Segundo Antônio Sergio Guimarães, em seu artigo sobre o pensamento de Abdias
do Nascimento, até os anos 1950, as representações estavam bem alinhadas com a ideia
do lamento (escravidão) e da democracia racial (integração étnica), muito embora uma
variada gama de representações estava se estabelecendo, a partir de um constante
debate e da circulação de ideias de pensadores, como Arthur Ramos, Roger Bastide,
Florestan Fernandes, Edison Carneiro e do sociólogo Guerreiro Ramos, citados em seu
artigo (GUIMARÃES, 2005-2006, p. 158-160).
A busca pela ancestralidade africana, religiosidade e visualidade das vestimentas,
simbolizando as crenças e o olhar sobre o mundo, estava na ordem das discussões,
ganhando espaço entre os intelectuais que debatiam ou militavam nos diversos
segmentos dos movimentos negros no Brasil. Esse processo teve como base os anos
1950, quando a questão da negritude passou a ser incorporada na ideia de democracia
racial, que parecia ser o pilar mestre da concepção da presença negra no país.
Os sambas, apresentados até aqui, estavam, sem dúvida, dialogando com as
discussões encetadas pelos intelectuais engajados na militância e na pesquisa sobre os
negros brasileiros. A forma encontrada pelas agremiações não parece diferir tanto das
resoluções estéticas e ideológicas dos textos do jornal Quilombo ou das encenações
realizadas pelo TEN (NASCIMENTO, 2004, p. 43).
O samba da Mangueira de 1964, Histórias de um preto velho, já citado
anteriormente, não parecia estar muito distante das ideias dos movimentos negros.
O samba denunciava a falsa inserção social e não mascarava a questão do racismo
existente, mas, a partir de uma construção figurativa positivada dos negros, indicava a
possibilidade de integração, sem conflitos ou confrontos diretos. Por outro lado, a base
da democracia racial foi sofrendo, na virada dos anos 1950/60, uma inflexão, carregada
de tensões, em que os intelectuais, como Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Roger
Bastide e Solano Trindade, entre outros, procuravam articular a integração, sem perder
o contato com o legado cultural africano, nem perder a relação com os acontecimentos
políticos no continente americano e na África contemporânea.
A ideia da democracia racial foi utilizada por diversos grupos, como uma
bandeira de luta, ora amortecendo sentidos, ora aguçando novas ações. A ideia central
era que a sociedade brasileira formava uma democracia racial. O papel desempenhado
pela Princesa Isabel no processo abolicionista foi um dos exemplos desse embate de
visões. Nos sambas apresentados pelas Escolas, apresentados até aqui, em sua maioria
39. <www.academiadosamba.com.br/memoriasamba/artigos>. Acesso em: 11/01/2012.
As escolas de samba do Rio de Janeiro nos anos 60 e as narrativas sobre a história do negro na avenida
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tratavam do tema da abolição como uma consequência da ação do Estado. Uma pequena
parte, sobretudo, a partir dos anos 1960, buscou apresentar o processo da abolição da
escravidão como resultado da ação dos próprios negros.
A figura da Princesa Isabel estava no centro de um debate que ganharia contornos
mais explícitos na década seguinte, onde os movimentos negros questionavam as
comemorações do dia 13 de maio (Abolição da Escravidão) e incentivavam a adoção do
dia 20 de novembro (morte de Zumbi) como data mais significativa para os movimentos
negros no país. Esse debate também presente nos desfiles resultou no samba Sublime
Pergaminho, da Unidos de Lucas no carnaval de 1968. A opção da agremiação, na
contramão da militância, foi contar a história da luta pela abolição destacando a figura da
Princesa Isabel como a “redentora”, responsável pelo fim da escravidão no Brasil. Essa
imagem foi bastante fortalecida pelo samba dos compositores Carlinhos Madrugada,
Zeca Melodia e Nilton Russo.
Quando o navio negreiro/Transportava negros africanos/Para o rincão
brasileiro/Iludidos com quinquilharias/Os negros não sabiam/Que era
apenas sedução/Pra serem armazenados/E vendidos como escravos/Na
mais cruel traição/Formavam irmandades/Em grande união/Daí nasceram
festejos/ Que alimentavam o desejo/De libertação/Era grande o suplício/
Pagavam com sacrifício/A insubordinação/E de repente uma lei surgiu/E os
filhos dos escravos/Não seriam mais escravos No Brasil/Mais tarde raiou a
liberdade/Pra aqueles que completassem/Sessenta anos de idade/Ó sublime
pergaminho/Libertação geral/A princesa chorou ao receber/A rosa de ouro
papal/Uma chuva de flores cobriu o salão/E o negro jornalista/De joelhos
beijou a sua mão/Uma voz na varanda do paço ecoou:”Meu Deus, meu Deus/
Está extinta a escravidão”
40
A representação do negro humilde, sofrido e grato pela abolição construiu a
imagem da Princesa Isabel como “redentora”. O samba da Unidos de Lucas não ressaltou
a luta dos negros e seguiu a narrativa dos livros didáticos. O samba, alinhado as narrativas
de caráter festivo, não trouxe discussões sobre a questão da inserção social dos negros
na cidadania brasileira. Essas contraposições acompanharam por muito tempo o debate
das diversas tendências dos Movimentos negros no Brasil e também estavam presentes
nos desfiles das Escolas de samba, com visões muitas vezes antagônicas, mas frutos
dos mesmos questionamentos.
Considereções finais
Tomando como parâmetro o ano 1969 é possível perceber que os temas sobre o
negro haviam conquistado espaço definitivo nos desfiles. As três principais correntes
narrativas, apresentadas neste artigo, continuavam presentes e em intenso processo
dialético. As matérias, aqui destacadas, demonstram que a história dos negros no
Brasil estava bastante viva nos desfiles das agremiações ao longo da década de 60.
Seus enredos e sambas divulgados para todo o país por meio da imprensa revelavam a
importância das Escolas e seu poder na emissão de discursos.
A temática sempre esteve presente, pois, mesmo quando o enredo estava
embasado na história oficial, era uma versão construída e apresentada na chave da
40. <www.vagalume.com.br/>. Acesso em: 05/01/2013.
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narrativa da cultura popular. As Escolas de samba, dessa forma, ajudaram a construir
uma versão da história do negro no Brasil e, mesmo ignoradas pela historiografia dos
movimentos negros, foram importantes emissoras de reflexões sobre a situação social,
econômica e política dos homens e mulheres negros no país.
Com esse artigo procurei chamar a atenção para outra possibilidade narrativa
sobre a importância das Escolas de Samba na construção da história do negro no
Brasil, empenhadas em contar a sua versão sobre a perspectiva de sua própria origem.
A bibliografia sobre os Movimentos Negros parece desconhecer que as agremiações,
em plena ação nos anos 60 eram importantes instituições culturais que desenvolviam
o papel de contestação das desigualdades sociais e de imposição do orgulho em ser
negro no Brasil. Essa desatenção, acredito, precisa ser repensada e melhor analisada
em artigo posterior.
Fontes
Jornal do Brasil – acervo digital in http://www.jb.com.br/paginas/news-archive/
www.academiadosamba.com.br
www.letras.mus.br/sambas
www.portelaweb.com
www.vagalume.com.br
Referências
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FARIA, Guilherme José Motta. Os Acadêmicos do Salgueiro e as representações do
negro nos desfiles das escolas de samba nos anos 1960. Tese de Doutorado em História
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GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Resistência e revolta nos anos 1960: Abdias do
Nascimento. REVISTA USP, São Paulo, n. 68, p. 156-167, dez./fev. 2005-2006.
MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo – história e arte. Rio de Janeiro:
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NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Revista
Estudos Avançados, São Paulo, v.18, n. 50, Jan. 2004.
PEREIRA, Almicar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do
Movimento Negro Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/FAPERJ, 2013, p.
239.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na Rua: a nova face da escravidão. São Paulo:
Hucitec, 1988.