“Vinho novo em odres velhos”: tempo e narrativa em Os Donos do Poder de Raymundo Faoro.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 143-158, jan.-jun., 2016.
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A história, por não ter o país uma sociedade civil viva, estruturada e atuante,
desenvolve-se em decorrência dos impulsos ditados pelo poder público. Em
conseqüência, em lugar de projetar um desenvolvimento que se expande
para o futuro, triturando o passado, superando-o em novas manifestações, a
história é recorrente, repetitiva. Não temos um processo histórico, mas uma
sucessão temporal, com retornos de formas e de tempos que não passam de
um recondicionamento de outro tempo (FAORO, 1993, p. 17-18, grifos nossos).
Nosso destaque na citação acima evidencia que para o jurista gaúcho, uma das
incongruências de nosso processo histórico é que ele não se expande para o futuro,
superando e “triturando” o passado.
Se forem aplicadas aqui as categorias koselleckianas veremos que sua
representação do passado brasileiro não limita, mas, pelo contrário, visa abrir o
horizonte-de-expectativa para a mudança. Segundo o autor alemão, a partir da
modernidade
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a relação entre espaço-de-experiência e horizonte-de-expectativa
passou a ser conflituosa, isto é, o crescimento de um redunda no recolhimento do outro
(KOSELLECK, 2006).
Parece-nos que em sua escrita da história, Raymundo Faoro se ressente da
distância entre a experiência brasileira e a temporalidade moderna. Nas entrelinhas,
há um lamento pelo tempo nacional não triturar e ultrapassar o passado ibérico e
patrimonial, mas insistir em repeti-lo, mesmo que com atualizações superficiais. Em
uma compreensão geral, ao ler criticamente o passado do Brasil com os conceitos
de capitalismo politicamente orientado, patrimonialismo e estamento, o autor visava
encurtar, ou, talvez, superar esta experiência que insiste em se reeditar. Para tanto, de
acordo com a perspectiva de Reinhart Koselleck, faz-se necessário uma ampliação do
horizonte-de-expectativa.
Alguns têm criticado o autor de Os donos do poder por dizer que sua análise
oferece uma visão desesperançada da política (RICUPERO E FERREIRA, 2005), enquanto
outros chegam a dizer que sua interpretação é nociva, pois “culpa e explica o atraso
brasileiro pela simples presença do Estado. Na medida em que políticas estatais distintas
são apenas ‘vinhos novos em odres velhos’, mero disfarce do velho mal” (SOUZA 2000,
p. 181).
Campante sublinha que, ironicamente, a obra de Faoro foi utilizada por uma
“elite conservadora”, que conduziu o país de forma patrimonial nos anos 1990, para
legitimar o enxugamento do Estado como promotor de inclusão social. Segundo ele,
esta recepção, de alguma forma, distorce o argumento faoriano, embora haja em sua
obra elementos que permitam tal leitura. Dentre estes destacar-se-ia a idealização do
potencial igualitário da sociedade de classes (em contraponto a sociedade estamental)
e do mercado
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(CAMPANTE, 2003).
9. Anteriormente, até as últimas décadas do século XVIII, a concepção de história preponderante era a
magistra vitae (mestra da vida). Tal concepção estava galgada na ideia de que o passado ofereceria lições
ao presente e elucidaria o futuro. Qualquer mudança na temporalidade histórica ocorreria em um ritmo
tão lento que a percepção dos atores era de que nada havia de novo. Visava-se uma nítida correspon-
dência entre o espaço-de-experiência e o horizonte-de-expectativa. Tal correspondência garantia o olhar
para o passado em busca da exemplaridade (KOSELLECK, 2006).
10. Ao contrastar o estamento com a classe em Os donos do poder, Faoro diz que “ao contrário da classe,
no estamento não há igualdade de pessoas” (FAORO, 2008, p. 61) e ainda que no Estado patrimonial de
estamento “a forma de domínio, ao contrário da dinâmica da sociedade de classes, se projeta de cima