Representação: construindo as diferenças em Ro-
cks at Whiskey Trench
Representation: Constructing the differences in
Rocks at Whiskey Trench
KOSTECZKA, Luiz Alexandre Pinheiro
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Resumo: Este artigo analisa o documentário Rocks at Whiskey Trench dirigido por Alanis
Obomsawin. Produzido como parte da “Oka series”, foi mais um dos documentários da
diretora dedicado ao evento conhecido como “O conflito de Oka”, no qual, populações
nativas de Kanehsatake e Kahnawake se embateram com o Estado canadense. A partir
de questionamentos pertinentes à historiografia contemporânea, esse resultado de
pesquisa empenha-se sobre o conceito de representação no filme documentário e
flexiona a respeito da constituição de identidade. Procurando arguir a respeito das
dimensões discursivas do documentário, busca-se refletir acerca das relações entre a
produção audiovisual e a escrita de história.
Palavras-Chave: Cinema; Documentário; História; Alanis Obomsawin; Canadá;
Representação.
Abstract: This paper analyzes the documentary Rocks at Whiskey Trench directed by
1. Mestre em História - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de Assis
- UNESP. Bolsista CAPES e ELAP. Email: akosteczka@hotmail.com
Recebido em: 18/02/2016
Aprovado em: 26/04/2016
KOSTECZKA, Luiz Alexandre Pinheiro
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 81-105, jan.-jun., 2016.
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Alanis Obomsawin. Produced as part of the “Oka series”, it was one of the documentaries
about the event known as “The Oka Crisis” in which native populations of Kanehsatake
and Kahnawake clashed with the Canadian State. Starting from relevant questions
pertaining contemporary historiography, this research focuses on the concept of
representation within the documentary and on the formation of identity. Arguing about
the discursive dimensions of the documentary, we aim to reflect upon the relationship
between audiovisual production and the writing of history.
Keywords: Cinema; Documentary; History; Alanis Obomsawin; Canada; Representation.
Introdução
2
Nascida nos Estados Unidos, Alanis Obomsawin, cujas realizações são
consideradas importantes para a produção cinematográfica canadense, cresceu e
vive no Canadá desde a infância. Sua arte não se limita à produção de documentários,
visto seu reconhecimento como atriz, storyteller, cantora e instrumentista. Com mais
de 80 anos de idade, a lista de produções de Obomsawin continua a crescer, pois ela
permanece ativa como documentarista na sede da ONF/NFB em Montreal. A carreira
de Obomsawin corre, então, paralela ao desenvolvimento das diversas estéticas para o
cinema documentário.
Seguindo a sua biografia escrita por Randolph Lewis, torna-se perceptível a
importância do produtor e documentarista britânico John Grierson (1898-1972) para a
obra da documentarista. A tomada inicial de Kanehsatake: 270 Years of Resistance (1993)
é feita com um mapa que localiza didaticamente a zona de um conflito entre aborígines
e as Forças Armadas do Canadá. No plano sonoro, surge um voice over, tendo em vista
que a indicação de autoria dessa voz à própria Obomsawin só se dará mais tarde. Essas
duas características indicam as proposições clássicas do documentarismo griersoniano
operando nos filmes da realizadora.
Resultaria em outro debate refletir acerca do posicionamento de Obomsawin
diante de tradições distintas do documentário, tais como, cinema vérité e do direct
cinema, reconhecendo que as essenciais diferenças entre os postulados do cinema
vérité, simbolizado em sua gênese Chronique d’un été (Morin e Rouch, 1961), e o
direct cinema encabeçado inicialmente por realizadores como Robert Drew e D. A.
Pennebaker. As duas tradições se diferem por considerar de forma singular a posição
do enunciador dentro do documentário e, por isso, intervir nesse debate não se trata
do lócus central de Obomsawin, muito menos refletir acerca do status do conceito de
verdade. No entanto, essa percepção não deve conduzir análises que simplifiquem a
apreensão de seus filmes, pois as estéticas griersonianas não são tacitamente aceitas e
são constantemente subvertidas.
Possivelmente, a asserção central para os filmes de Obomsawin encontra
explicação no conceito de “modelo sociológico” desenvolvido por Jean-Claude Bernardet
2. Este artigo é resultante da dissertação de mestrado intitulada Cinema documentário e escrita da histó-
ria: os filmes do conflito em Oka de Alanis Obomsawin defendida sob orientação de [omitido para fins de
avaliação do artigo]. Agradeço à CAPES pela bolsa regular durante o período de pós-graduação e também
ao Emerging Leaders in the Americas Program (Canadian Bureau for International Education/Foreign
Affairs and International Trade Canada) que possibilitou estágio de pesquisa (2012-2013) no Ontario
Institute for Studies in Education (OISE) da University of Torontosob a supervisão do Prof. Dr. Jean-Paul
Restoule, a quem agradeço como incentivador desta pesquisa.
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em Cineastas e Imagens do Povo (2003). A carreira da documentarista se iniciou na
virada da década de 60 para a de 70, momento de ascensão desse modelo documental
e no qual Obomsawin permaneceu estável em seus preceitos estéticos, adentrando
pouco em outros domínios como o experimental e, portanto, a compreensão da obra de
Obomsawin sob o prisma do “modelo sociológico” só é efetiva com o reconhecimento
de seu lugar social de produção: a ONF/NFB.
O Office Nationale du Film/National Film Board (ONF/NFB), órgão fundado em
1939 como National Film Commission – presidido desde seu estabelecimento por John
Grierson que perdurou no cargo de comissário até meados da década de 40 – é um dos
principais órgãos incentivadores das produções independentes no país.
As relações entre Estado e a persona de Grierson não estão circunscritas ao
Canadá, estendendo-se à Grã-Bretanha e chegando a países da América Latina,
tornando possível sustentar o fato de que seu legado esteja intimamente conectado às
aspirações estatais para com a imagem em movimento.
Conhecido por cunhar o termo documentário ao escrever a respeito de Moana
(1926) de R. Flaherty, Grierson vislumbrava a função social do material fílmico; tal
desejo foi ao encontro do desenvolvimento de órgãos estatais de produção e fomento
do cinema desde o período entre as Guerras da primeira metade do século XX. Nessa
perspectiva, The colonized eye: rethinking the Grierson legend (1988) de Joyce Nelson
é útil, pois, oferta um deslocamento de olhar diante da intensa biografia de Grierson,
almejando apresentar ao leitor as relações econômicas e políticas na formação do
legado deste personagem do cinema documentário.
O papel desempenhado pela ONF/NFB não é passível de desconsideração para a
história do cinema e do audiovisual mundial, tendo em vista as inúmeras intervenções
estéticas criadas em seus diversos estúdios espalhados pelo Canadá. Reconhecida pelo
apelo documental, com grande certeza pela presença fundamental do John Grierson
desde sua fundação, a ONF/NFB deu origem a inúmeras realizações de vários domínios
do cinema e do audiovisual, por exemplo, as experiências basilares de Norman McLaren
nos estúdios de animação de Montreal.
Julga-se de extrema importância para este artigo, considerar o grau de
representatividade de Obomsawin para os povos autóctones do Canadá. Antes mesmo
de Atanarjuat: the fast runner (2000), laureado filme de Zacharias Kunuk, produzido pela
Igloolik Isuma Film Corporation, Obomsawin apresentou ao público outra proeminente
e marcante produção: Kanehsatake: 270 Years of Resistance (1993). Esse filme se
originou da ebulição de um conflito entre indígenas e o Estado canadense ocorrido
no verão de 1990, no qual as populações dos territórios de Kanehsatake e Kahnawake
enfrentaram as autoridades estatais para barrar um projeto de construção civil que
adentraria nas reservas das primeiras-nações.
O primeiro embate iniciou-se quando os indígenas fecharam o acesso ao local
designado para o empreendimento imobiliário e turístico. A situação recrudesceu
e tornou-se violenta: um tiroteio entre a Sûreté du Québec (Polícia Provincial) e os
habitantes de Kanehsatake vitimou fatalmente o agente Marcel Lemay. Em seguida,
membros do território vizinho de Kahnawake fecharam a Mercier Bridge e foi nesse
momento que os confrontos ganharam projeção nacional, principalmente pela
intervenção militar do exército canadense e pelo início da cobertura jornalística. Nesses
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desdobramentos, Obomsawin ultrapassou o cerco militar e começou a documentar do
lado indígena do conflito e ali permaneceu durante os 78 dias de duração do impasse.
Após um longo embate com os administradores da Canadian Broadcast
Company – principal canal televisivo do Canadá - Kanehsatake: 270 Years of Resistance
foi transmitido em sua versão integral, em 1994. Tratou-se do momento de amplo
reconhecimento de uma documentarista, cujas atividades no meio audiovisual iniciaram-
se em 1972, com Christmas at Moose Factory.A projeção internacional de Kanehsatake:
270 Years of Resistancepode ser exemplificada com o alcance de audiência que o filme
teve no Japão, atingindo cerca de 18 milhões de espectadores.
Até o ano 2000, mais três filmes de Obomsawin dedicaram-se a documentar o
transcorrer desse conflito canadense. Essa coleção de quatro filmes é conhecida como
Oka series, ou seja, a série de Oka. Os testemunhos das experiências de diversos
sujeitos são expostos com grande ênfase, mas de maneiras distintas, nos documentários
My Name is Kahentiiosta (1995) e Spudwrench: Kahnawake Man (1997). Em My Name
is Kahentiiosta, a voz feminina de Kahentiiosta narra a trajetória de uma mulher detida
no conflito de Oka por se recusar a utilizar o seu nome euro-americano e insistir em se
apresentar no interrogatório com o seu nome aborígine. Nessa realização de cerca de 30
minutos, não se percebe a presença de Obomsawin no espaço diegético, característica
que destaca My Name is Kahentiiosta dentro da “Oka series”.
O segundo documentário tematiza o labor dos nativos na indústria de construção
civil da América do Norte por via de “Spudwrench, um dos personagens-chave da
narrativa de Kanehsatake: 270 Years of Resistance. Nesse documentário, vários
metalúrgicos são entrevistados e dialogam com a realizadora, desta vez, muito presente
na dimensão interativa do documentário, remetendo-se em muito às estratégias do
cinema vérité.
Rocks at Whiskey Trench(2000), filme que encerra a “Oka series”, é uma realização
resultante de outro momento impactante do conflito: a diáspora de crianças, mulheres e
idosos da zona de conflito diante do recrudescimento da violência entre os Mohawks e
os militares. Com duração de 105 minutos, o documentário, desde seu início, mostra ao
espectador uma massa enfurecida de habitantes de Châteuguay apedrejando o comboio
de refugiados que precisava passar pelo viaduto conhecido como Whiskey Trench.
As sequências iniciais são marcadas por vários cortes abruptos na edição,
depoimentos intercalam-se com tomadas dos apedrejamentos e o caos da ação, revelado
na tela, contrasta com os momentos das entrevistas em que o som e a imagem são
controlados.
Novamente, Obomsawin privilegia a voz das mulheres: três adultas e uma
menina surgem no espaço narrativo do filme antes da primeira aparição de um homem.
Simbolicamente, esse homem é Jean-Bosco Bourcier, representante do Estado, em
sua condição de prefeito da cidade dos enfurecidos. Em extensão, ele é o contraponto
aos aborígines que relatam suas histórias no decorrer do filme e seu aparecimento em
diversos momentos é um dos elementos cruciais para o argumento central da fatura
fílmica.
As entrevistas gravadas contrapõem os habitantes deChâteuguay, muitos dos
quais participaram ativamente do apedrejamento, aos depoimentos dos Mohawks que
faziam parte do comboio. Na tentativa de oferecer ao público a dimensão violenta da
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suposta multiculturalidade canadense, mais uma vez, Obomsawin recorre do passado
para evidenciar as admoestações sofridas pelos aborígines ao utilizar a captação de
ilustrações de mapas para situar geograficamente e explicar a origem do assentamento
em 1776, narrando com a sua própria voz em off as ordens de Luis XIV, em 1665, para
eliminar os Iroquois. Entretanto, em nenhum momento essas menções ao passado são
obliteradas de um claro diálogo com os acontecimentos ocorridos na década de 90. Essa
relação estabelecida com o passado possibilita à Obomsawin prenunciar, no interior da
diegese fílmica, a humilhação à qual os aborígines foram submetidos ao buscar refúgio
da zona de conflito.
É possível delinear algumas aproximações argumentativas com os outros filmes
da série, visto que a realizadora procura eleger um personagem que represente a
inserção dos aborígines na sociedade ocidental.
No caso de Rocks at Whiskey Trench, ela apresenta Alwyn Morris, campeão
olímpico de canoagem nas olimpíadas de 1984 e natural de Kahnawake, a partir de
entrevistas com o atleta, as quais são interpostas às imagens de sua competição e,
principalmente, ao instante de premiação em que se assumiu como membro das
primeiras-nações canadenses. Em outro momento incisivo do filme, a Obomsawin
contrapõe à fala de um homem branco e retoma um dos argumentos de Spudwrench:
Kahnawake Man(1997) ao inserir a entrevista de outro cidadão branco afirmando a
maciça presença de nativos na construção da Honoré Mercier Bridge.
O processo de revisitar o local de trauma também se constrói no interior desse
filme
3
. Várias tomadas reconstituem o caminho dos carros até a chegada ao local onde
se perpetrou o apedrejamento dos refugiados por meio das janelas de um veículo em
movimento, das quais o espectador consegue observar o trajeto dos carros em busca
de refúgio. A voz da narração dessas sequências não se limita à da realizadora; em
muitos momentos a voz perpassa uma entrevista e chega às cenas de deslocamento nas
estradas que ocorreram os fatídicos acontecimentos. O final do filme também é próximo
às escolhas empreendidas nas outras produções da série e, não menos importante,
propõe um desfecho para toda a “Oka series”. Avaliando o passado do acontecimento,
percebe-se que as vozes que permeiam esse momento tangenciam a importância das
mobilizações daquele ano de 1990 e enfatizam a estratégia de resistência frente ao
poder estatal.
Esse filme, assim como os outros que fazem parte da “Oka series”, é uma produção
discursiva imersa nas possibilidades e impossibilidades da representação. A atividade
fílmica está, assim, nos limites de um conceito fluido e a representação não se configura
em um aporte teórico estático e definitivo; a acepção para esse conceito é descontínua
em uma longa trajetória de apropriação da intelligentsia ocidental.
O presente artigo visa à apresentação de algumas definições desse conceito
propostas por Stuart Hall (1932-2014), intelectual de origem caribenha que dedicou a
sua vida aos estudos da identidade cultural, elemento que também permeia a diegese
fílmica de Rocks at Whiskey Trench. Hall e seus estudos pós-coloniais e culturais são
referencias fundamentais nas interpretações fílmicas canadenses.
Ainda que a proposta não seja uma discussão profunda da obra de Hall, é
3. As questões referentes ao trauma, testemunho e memória são tratadas no capítulo “O sentido da
experiência dos sujeitos: os testemunhos de Kahentiiosta e Randy “Spudwrench” Horne” de minha dis-
sertação de mestrado.
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necessário elencar suas confluências e, consequentemente, seus distanciamentos em
relação aos escritos de Michel Foucault quanto ao topos da representação na ciências
humanas.
O filme de Alanis Obomsawin, pelas qualidades intrínsecas do cinema
documentário, principalmente, a interatividade e a presença do realizador no interior
do audiovisual, é um frutífero lugar de reflexão de um mote caro à escrita da história.
Trata-se de uma orientação metodológica desse trabalho: identificar as várias vozes
que compõem a realização, incluindo a da própria cineasta, procurar na dimensão
visual e sonora a presença dos participantes e indicar as ausências. Tal metodologia não
corresponde a um exercício minucioso de procurar unidades mínimas de significação
para o filme. Os quadros analisados sempre estão sob o julgo da montagem e não podem
ser isolados do contexto de apresentação do filme. Indagamos a respeito de uma forma,
nas palavras de Aumont (2004), que é vívida e “trabalha”.
Não menos importante, o diálogo entre personagens influentes da paisagem
intelectual contemporânea permite a instrumentalização da dimensão política dos filmes
de Obomsawin, e a atividade da representação, entremeada ao universo da linguagem,
torna-se um espaço de embate onde o poder é um elemento formativo essencial. Aventar
essa qualidade da diretora enfatiza a forma e o conteúdo da resistência na poética do
cinema documental.
O problema da representação em
Rocks at Whiskey Trench
“Sigam em frente seus imundos e amaldiçoados índios selvagens!” (Fig. 1).
Essa frase cortante, dita em voz offpor um autor desconhecido, aparentemente uma
mulher, é um dos pontos nevrálgicos da atividade de documentar o fatídico evento
entre os refugiados do conflito em Oka e os citadinos de Châteuguay. Além de propor
um diálogo com o passado, o filme busca acentuar a percepção de que a expressão
“índios selvagens” é uma alcunha que atravessa os acontecimentos em Kanehsatake e
Kanahwake e persevera na sociedade canadense.
A tensão, que habita a contemporaneidade do relato dos indivíduos envolvidos,
persiste até os momentos que antecedem ao lançamento do filme, no ano de 2000.
Essa realização procura indicar a permanência de preceitos da recente colonização ao
norte do 49° paralelo, conectando-se a filmes ficcionais e documentais que também
procuram denunciar e se contrapor a uma oficialidade que se nega a reconhecer a
existência do colonialismo no interior do Estado canadense.
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Figura 1
A idealização desse artigo foi elaborada a partir da indicação de existência de uma
problemática central: se os filmes de Alanis Obomsawin postulam a continuidade da
empreitada colonial, como é possível submetê-los à possibilidade analítica denominada
de “pós-colonial” se o prefixo “pós” pode provavelmente indicar a superação do status
colonial?
É primordial projetar o “pós-colonial” como uma forma de aproximação a uma
condição (BESNER, 2003, p. 43), reconhecendo a complexidade de um conceito fluído
e utilizado em diversas situações, a fim de evitar, assim, uma simplificação de um termo
que não se propõe a demarcações definitivas e rígidas.
Neil Besner procura debater as indagações quanto ao Canadá “ser”, ou não, pós-
colonial. Para o estudioso da literatura canadense, esse conceito não deve definir a
essência cultural do país, pois a história e a formação social canadense não se centram
somente no binômio colônia/pós-colônia, incapaz de produção e reprodução da
diferença. Assim, é mais prudente reconhecer as subjetividades e tratar dos usos desse
entendimento para a conspecção dos problemas presentes nessa sociedade:
Entendida como uma metodologia, a abordagem pós-colonial pode auxiliar
a reformular o debate, mas, como todas as metodologias, esse enfoque não
separável dos sujeitos e objetos de sua investigação. O pós-colonial não é uma
condição, mesmo que em momentos seja visto como um estado de espírito.
(BESNER, 2003, p. 42, tradução do autor).
Stuart Hall, por sua vez, considera que os “pós” operam sob rasura e em uma
dupla inscrição (HALL, 2003, p. 112-113). Buscando responder às críticas em relação ao
pós-colonialismo providas por Shohat, Dirlik e McClintock, ele objeta as afirmações de
que o pós-colonial re-centrou a Europa e o Iluminismo na tarefa de abordar os objetos
de estudo.
Hall indica a proliferação dos discursos coloniais em detrimento de uma possível
extinção do postulado colonial e dialoga com as noções de tradução e transculturação
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de Homi Bhabha para indicar que as temporalidades multidimensionais, o sincretismo
e o hibridismo podem ser objetos iluminados por uma perspectiva pós-colonial (HALL,
2003, p. 104; 108; 109). Além disso, o teórico reconhece a dimensão conceitual e a
utilidade como ferramentas de análise, demonstrando que o pós-colonialismo não
pretende indicar uma ruptura ou a superação do discurso colonial.
Os filmes de Obomsawin situam-se nesse intermeio de reconhecimento da
conservação de preceitos fundados em um passado de imperialismo e colonialismo e
da possibilidade de voz dos povos subalternos. Seus filmes, produzidos no interior de
um dos aparelhos do Estado (a ONF/NFB), assentam-se na constante denúncia dos
problemas aborígines na constituição social canadense.
A biografia da cineasta também chama atenção para as políticas estatais que
marcam o modo de vida dos Abenakis e para a presença do racismo escolar, circunscrito
ao saber religioso, tão impactante para a jovem Obomsawin. Para sustentar essa
hipótese, Lewis analisa o clássicoNorthwest Passage (King Vidor, 1940), no qual de
Vidor tematizou o massacre na aldeia de Odanak no século XVIII e utilizou de motes
do cinema clássico, incluindo o star system
4
, para narrar um evento simbólico da
empreitada colonial anglo-saxônica.
Enquanto os tanques de Hitler cruzavam a Europa e pilotos japoneses
treinavam para seu assalto a Pearl Harbor, os estúdios MGM apontavam seus
olhos em um velho inimigo, alguém que uma derrota na tela poderia lembrar
os euro-americanos de suas habilidades para esmagar até mesmo o mais
sanguinário dos inimigos do progresso e da civilização. (LEWIS, 2006, p.9,
tradução nossa).
Obomsawin e seus ancestrais são marcados pela construção imagética dos
estúdios hollywoodianos. O eu detentor do discurso, outrora participante de um amplo
processo imigratório, transfigurou-se naquele que reafirma seu imaginário no interior
de produções audiovisuais. O outro é representado no ecrã desde os primórdios do
cinema clássico de Hollywood. Provavelmente, uma das razões de Obomsawin ser
documentarista é intervir nessa relação de alteridade, reposicionando o significado das
imagens e imaginários aborígines no interior da mídia fílmica.
Em seus aspectos gerais, a “Oka series” sugere a permanência do poder colonial
no Canadá contemporâneo, um país que, em termos oficiais, reconhece a presença de
várias culturas no interior de sua formação social.
A “Canadian Charter of Rights and Freedom”, de 1982, certificou
institucionalmente o Canadá como um país multicultural e bilíngue. No entanto, é
importante reconhecer o possível problema conceitual que incide nos formadores da
“dita” multiculturalidade canadense. Stuart Hall projeta conceitualmente o binômio
multicultural/multiculturalismo, propondo uma compreensão desse amálgama. Para o
intelectual,
4. “[...] a estrela é dotada de uma aura própria que não coincide unicamente com seu ‘valor de troca’; ela tem,
supostamente, uma qualidade de ser – ou, ao menos, uma qualidade de imagem – literalmente excepcional,
que a cada uma de suas aparições (nos lmes e fora dos lmes) um valor singular” (AUMONT; MARIE,
2006, p. 278).
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[...] multicultural é um termo qualificativo [...] em contrapartida, o termo
‘multiculturalismo’ é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas
para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade
gerados pelas sociedades multiculturais. (HALL, 2003, p.50).
Hall convenciona o multiculturalismo como um aparato de governança frente
à expansão multicultural, principalmente nos países centrais do ocidente, abertos a
um intenso fluxo migratório de antigas colônias. Esse jogo de poder é um componente
elementar na tentativa de estabilizar a volatilidade da constituição identitária das nações
pós-coloniais:
As representações relacionadas à cultura nacional, nesse sentido, são
compreendidas por Hall como dispositivos discursivos (HALL, 2001, p. 62), o que
torna clara a referência foucaultiana à noção de dispositivo e ao binômio poder/
saber. Entretanto, é importante considerar que o autor é reconhecido por cultivar uma
distância crítica de possíveis modelos explicativos e é arguto em apresentar os limites
de seus possíveis referenciais teóricos. Dessa maneira, é uma tarefa árdua isolar um
núcleo rígido para a formação de seu pensamento.
De acordo com a estudiosa Norma Schulmann (1993), os estudos culturais,
principalmente na sua origem, no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS)
da University of Birmingham, são uma empreitada interdisciplinar que se aproxima da
crítica literária. Para ela,
É difícil definir sucintamente os estudos culturais e, de acordo com Stuart
Hall, essa dificuldade é intencional, assim, os estudos culturais se orgulham
de não ter doutrina propriamente dita e nenhuma metodologia ‘aprovada em
casa’. É, antes, conscientemente concebido como sendo altamente contextual,
um modo variável, flexível e crítico de análise. (SCHULMAN, 1993, tradução
nossa).
Em suma, os textos de Hall apresentam amplas discussões em torno da
epistemologia das humanidades e ciências sociais e, a partir da abordagem de inúmeros
objetos, ressignificam as possibilidades de leitura das identidades culturais na pós-
modernidade, vistas como móveis e plurais. Não se deve, portanto, reduzir seus escritos
a uma descrição empírica de percepções pessoais de vários fenômenos.
Privilegiando a dimensão da linguagem como o meio pelo qual o sentido é
construído, o intelectual afirma que o sentido é produzido por meio de uma atividade
de representação contingente a um duplo processo de partilha de significados (HALL,
2003, p.17). O entendimento que Hall tem do funcionamento desses processos procura
o afastamento de uma noção reflexiva (reflexive approach), que considera o sentido
como implícito no objeto, e também se distancia de uma postura que centra o processo
de significação na intenção do autor (intentional approach).
Hall propõe uma aproximação à possibilidade analítica de perceber a construção
de significado na (in) e por meio (through) da linguagem. Ele identifica esse postulado
como construcionista (constructionist approach), associando-o à semiologia de
Ferdinand de Saussure e à abordagem discursiva de Michel Foucault. Essa postura
teórica procura romper com uma abordagem que naturaliza as vinculações entre o
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signo e o seu significado, postulando a arbitrariedade dessas relações.
Stuart Hall credita a Sausurre muitos dos desenvolvimentos da proposta
construcionista. A dependência da linguagem para a produção de sentido e a construção
da diferença por meio das oposições binárias é uma importante interjeição do linguista
suíço, afinal, “é a diferença entre significantes que constitui significado” (HALL, 2003,
p.32).
Outra questão captada dos escritos de Sausurre é a percepção das descontinuidades
da linguagem, sempre sujeita à história e à mudança: “[...] para nossos propósitos,
o ponto importante é a maneira pela qual essa aproximação à linguagem desafixa o
significado, rompendo qualquer inevitável elo natural entre significante e significado
(HALL, 2003, p.32). O sentido depende de um ativo processo de interpretação que
confere uma inevitável imprecisão à linguagem.
É importante indicar que Hall possui reservas diante das propostas do estudo
científico da língua empreendidas por Saussure. A profundidade estrutural da langue e
as fundações do que se reconhece como estruturalismo linguístico priorizam os aspectos
formais e excluem, em muito, os aspectos dialógicos da linguagem (HALL, 2003, p.35).
Hall, assim, discorre acerca do déficit de Saussure em considerar o conceito de poder:
“É, então, não surpreendente que, para Saussure, questões de poder na linguagem –
por exemplo, entre falantes de diferentes status e posições – não aparecem” (HALL,
2003, p.35).
Para Hall, Michel Foucault realoca a questão da linguagem, considerando
primordialmente o problema inerente do poder. Na sua leitura sobre o intelectual
francês, existe um deslocamento do estudo da linguagem para a análise das formações
discursivas e dos regimes de verdade na modernidade: “discurso diz respeito à produção
de conhecimento por meio da linguagem” (HALL, 2003, p.44). São regras e práticas que
regulam a construção de saber, sempre historicamente situadas, ou seja, o conhecimento
não se aparta de uma prática de poder que admite sua existência e permanência.
Processos de desestabilização são inerentes à história e, consequentemente, a derrocada
é inevitável à constituição da verdade. Assim, a atividade de representação se dá por
processos de regulação, permissão e interdição.
Edward Said, assim como Hall, também é um personagem referencial dos Estudos
Culturais. Em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990),eleendossa
substancialmente a circunspeção teórica de Foucault para sua postura analítica, pois
também considera o orientalismo como uma prática discursiva perpetrada pelo ocidente
em relação ao oriente.
Essa prática é visível no discurso escrito e iconográfico de viajantes, de literatos,
de funcionários do Estado e no decorrer do colonialismo e imperialismo das nações
ocidentais em uma vasta região do globo. Em suma, o Oriente, não limitado apenas a um
dado geográfico, é histórico e filiado a uma tradição de pensamento (HALL, 2003, p.17).
Said procura esmiuçar “[...] a força nua e sólida do discurso orientalista, os seus laços
muito íntimos com as instituições sócio-econômicas e políticas capacitantes, e a sua
temível durabilidade” (HALL, 2003, p.17).
Ao lado de Gramsci e Bachelard, Foucault figura como um dos principais alicerces
teóricos do Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990). Na obra, Edward
Said apropria-se da noção de que a linguagem é perpassada pela prática discursiva e
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está condicionada pelo embate entre forças que disputam o poder. O conhecimento é
resultante da curiosidade do ocidente em relação ao universo oriental, que pode ser
visto como uma espécie de alteridade e, assim, o saber manifesta-se pela primazia da
relação entre o texto e a sua condição de emergência.
Stuart Hall também considera essas premissas foucaultianas como referencias
necessárias para a sua formação teórica e reconhece o distanciamento de Foucault
em relação aos marxistas que vislumbram o Estado como objetivo único, porém,
afirma que o intelectual não consegue definir suficientemente a questão do próprio
Estado no interior de seus escritos (HALL, 2003, p.153-154). Hall também pondera a
possibilidade de seus seguidores empenharem-se em leituras reducionistas, visto que
sua preferência ao discurso poderia abalar a materialidade e os fatores econômicos e
sociais do horizonte de análise.
O poder é um espectro fundamental dos filmes produzidos por Alanis Obomsawin
e de uma extensa filmografia a respeito dos problemas das primeiras-nações do Canadá.
Recentemente, o filme We were children (Tim Wolochatiuk, 2012) delatou a sádica
história das Residential Schools, internatos mantidos pela associação entre o governo
civil e a Igreja Católica, existentes até meados do século XX, destinados a crianças e
jovens aborígines, na maioria das vezes, compulsoriamente apartados do convívio de
seus familiares e povos.
Composições reconhecidas da tradição ficcional aliam-se a códigos documentais
clássicos nesse filme e depoimentos de antigos residentes confluem às licenças para
a formalização de reconstruções ficcionais, elaboradas com uma cuidadosa misè-en-
scene, edição e iluminação.
A definição dos planos conserva as possíveis fronteiras entre o universo de
criação dos diretores da realização e o mundo dos depoentes. Assim, homens e mulheres
que relatam experiências de uma infância traumática são visíveis em um espaço distinto
da encenação ficcional que procura representar um dos aspectos do passado obscuro
do governo canadense.
A resistência de Obomsawin também conquista espaço no interior do documento
audiovisual, portanto, é necessário considerar que o lugar de enunciação não é somente
visível nas relações institucionais de Obomsawin com o governo canadense, com seus
povos ancestrais ou como uma tradição fílmica, pois, “[...] é dentro do texto que se
encontram os indícios da enunciação desse texto” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994,
p.42).
Esse lugaré clarificado ao compreendermos a intensidade de sua participação
no interior de suas criações audiovisuais. A escolha de um enquadramento sugere
uma postura ética do documentarista e de sua equipe de trabalho, já que “ética se
torna a medida das formas, nas quais as negociações acerca da natureza da relação
entre o realizador e o sujeito têm consequências semelhantes para os sujeitos e os
espectadores” (NICHOLS, 2001, p. 9, tradução nossa).
A estética do cinema documentário é, possivelmente, um lugar privilegiado
para a análise das intervenções autorais do realizador. A participação e a interação
do realizador desvelam-se constantemente no interior do filme, ora no campo, ora no
contracampoda realização.
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A produção da diferença: o
selvagem
e o
civilizado
No ensaio Cultural identityand cinematic representation (1989), Stuart Hall
propõe algumas considerações a respeito do cinema caribenho. Muito atento aos
problemas originários das generalizações classificatórias, ele crê que as distinções
de um “novo cinema” e das expressões fílmicas da diáspora “afro-caribenha”, feita
pelos países ocidentais, postulam as especificidades dos locais de emergência dessas
pluralidades cinematográficas. Sendo assim, problematizar a localização dos enunciados
fílmicos alicerça a significativa inclinação epistemológica dos escritos de um estudioso
que busca reafirmar a pertinência dos Estudos Culturais para a compreensão das novas
contingências da contemporaneidade.
Esse texto de Hall, publicado no final da década de 80, circunscreve a
interpretação da representação fílmica sob alguns conceitos de identidade cultural
desenvolvidos pelo próprio autor. Reconhecendo nessas expressões cinematográficas
um questionamento das noções de identidade e cultura, o autor procura indagar “quem
representa” e “qual é o lugar” dessa cinematografia (HALL, 1989, p. 68). A preocupação
com a análise fílmica está presente nesse esforço de reflexão, porém, a latitude estética
dos aparatos audiovisuais está submetida à sua extensa circunspecção teórica.
A estratégia de Alanis Obomsawin para compor Rocks at Whiskey Trench é
contígua aos outros filmes da “Oka series”, priorizando o lugar da fala dos aborígines
e exacerbando as contradições com os depoimentos dos habitantes da cidade que
estavam ao lado dos apedrejadores. Assim, a gravação das entrevistas aliada à edição da
captação de material audiovisual da época e às imagens fotográficas constitui a estética
primordial desse filme.
Evidentemente, cria-se um ponto de vista como resultado final dessa realização.
Nesse aspecto geral de sua obra, Obomsawin é distante de uma perspectiva multifocal.
Por mais que o filme em questão enuncie a possibilidade de ouvir vozes dissonantes em
sua narrativa, a posição do enunciador é clara e localizada: a do aborígine que com sua
equipe empunha a câmera e detém os níveis da produção fílmica. Obomsawin é, desse
modo, a representante por excelência deste olhar e transforma essa voz em um potente
exercício retórico.
A construção dos pontos de vista nos filmes de Obomsawin conflui com uma
tradição de filmar encabeçada por aborígines em distintas localizações do mundo. A
realizadora se reposiciona, alçando a posição de detentor da voz do documentário
e resultando em uma das intervenções que superam a “tradição vitimizadora do
documentário Griersoniano” (WINSTON, 1988) conferindo uma ética a seu trabalho.
É por meio de uma construção estética que conserva princípios clássicos aliados a
desenvolvimentos do cinema moderno que ela constrói seu olhar.
Para Carlos Melo Ferreira (2009), o ponto de vista é resultante de escolhas que
se originam na captação e se impõem durante o processo de edição. Ademais, é salutar
considerar que o ponto de vista no documentário é, em suma, resultado de uma relação
de poder.Como Marcius Freire, amparado na noção foucaultiana de poder, assevera:
“Um documentário é quase sempre, portanto, o resultado de uma relação de poder cujo
produto final é o emblema da supremacia do realizador nessa relação” (FREIRE, 2007,
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p. 15).
Aos 12 minutos e 46 segundos de duração do filme, duas entrevistas encerram
uma longa sequência de narração em voz offde Obomsawin. Nessa próxima série de
planos, a edição mostra dois homens em espaços cenográficos diferentes (Fig. 2).
O primeiro é o prefeito de Châteuguay, no momento do conflito em Oka, em
um local que aparenta ser seu gabinete, apresenta-se um quadro em que seu corpo é
focado em umplano-médio.
Nessa imagem, não se observa nenhuma interferência no plano sonoro além
da sua própria voz. Suas palavras procuram postar uma visão da população contrária
às manifestações dos indígenas e, em certa medida, justificar o trágico desfecho na
Whiskey Trench e se sobressaem por três planos de imagem, ao todo, com 14 segundos
de duração. O primeiro plano é de seu próprio depoimento no seu gabinete, onde é
intercedido por outros dois, que ilustram a fala do político, centrados em mostrar o
descontentamento dos citadinos, principalmente com o fechamento da ponte.
Figura 2
No total, 13 planos compõem a sequência de cerca de 1 minuto de duração, na qual
dois argumentos são apresentados. O depoimento do antigo prefeito de Châteuguay é
imediatamente seguido da fala de Donald Horne, homem que representa uma das vozes
aborígines no documentário, tais como das mulheres que testemunham desde o início
da realização.
A legenda, ausente no quadro do político, indica-o como chefe dos serviços
comunitários de Kanahwake Shakotiia’takehnhas e sua fala contrasta com a do primeiro
depoente, pois considera que a negociação pudesse evitar o trágico desfecho. O ângulo
da câmera em relação à Horne é semelhante ao ângulo do quadro da entrevista anterior,
porém, na profundidade do campo da imagem, observa-se a composição de uma
paisagem natural de árvores e arbustos. Nessa breve duração de 1 minuto reafirma-se
a característica de Obomsawin em promover a diferença no interior de seus filmes.
Nos documentários da “Oka series” é clara a procura por formalizar as oposições entre
ambos os lados do conflito.
É a narração em voz off de Obomsawin que distingue essas duas entrevistas de
pontos de vista diferentes. Logo ao final da sequência de depoimentos, a documentarista
ressurge no plano sonoro narrando os conflitos entre os cidadãos, insatisfeitos com as
mobilizações dos aborígines, e a polícia da província do Québec. Efígies representando
os índios são queimadas nas ruas e na banda sonora se destaca uma turba enfurecida
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que demanda o ataque aos sitiados (Fig. 3).
É importante ressaltar que Obomsawin não se ausenta em nenhum momento de
suas realizações e, como argumentado anteriormente, ela permanece interagindo com
seus participantes e procura controlar o enredo de seus documentários, estando, ou não,
presente na diegese fílmica. Esse controle se dá, em grande medida, pelo empréstimo de
algumas assertivas griersonianas no processo de finalização de seus filmes.
Figura 3
O olhar dos entrevistados ora se centra na câmera, ora desvia-se para um espaço
fora da imagem. Em um primeiro momento, as pessoas fitam a câmera e, ao deslocarem a
direção de seus olhos para a direita ou esquerda, indicam a existência de um importante
espaço fora da tela: um universo invisível ao espectador, mas inseparável da formação
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de significado do filme, onde se situa a autora desse documento audiovisual, imersa na
poética visual por ela mesma construída.
Como já enunciado segundo as preposições de Winston, a ação do realizador e
de sua equipe e, em consequência, a interação com aqueles que participam do filme são
elementos constituintes e intrínsecos do documentário.
A atividade de representação de Obomsawin, por exemplo, dista do curta No lies
(1972), de Mitchell Block, filme centrado no depoimento Shelby Leverington, uma vítima
de estupro.
No decorrer da narrativa, Shelby é perseguida incessantemente por uma câmera
empunhada pelo mesmo dono da voz masculina que a interpela com várias perguntas
desconcertantes. Nos créditos finais, o filme revela-se como uma ficção. A despeito
das implicações éticas do cinema direto, desafiadas em um habilidoso jogo de ironia,
identificado no artigo No Lies: Direct Cinema as Rape (1977), de Vivian Sobchack, é
importante ressaltar que o diretor se revela ao espectador desde o instante inicial do
filme.
Antes da primeira imagem, ouve-se uma voz off, em seguida, um quadro estático
de 2 segundos focaliza a mulher de frente para o espelho, ao passo que no reflexo, vê-
se o operador da câmera no mesmo espaço de cena da participante. A interação entre
quem sustenta a câmera, o artífice do filme, e quem é o objeto do filme é explícita desde
o início; o espelho serve como um artifício estético para esse argumento que sustenta
toda a realização.
Michel Foucault, em sua famosa introdução de As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas (1999) propõe-se à análise do quadro Las Meninas,
de Diego Velásquez, chamando a atenção para a presença de um espelho na porção
central do fundo da imagem. Nesse espelho, estão refletidas as imagens do Rei Felipe
IV e de sua esposa, visíveis como reflexos de um espaço exterior à cena construída na
pintura. Eles estão ausentes do espaço real do quadro, no entanto, são observadores
centrais de um artífice que se insere em sua obra e imerge em sua própria criação
imagética. Velásquez situa-se no interior da imagem, em frente de um cavalete de
pintura, e, ao seu lado, desvela-se a cena de homenagem à infanta, iluminada pela luz
proveniente de uma janela. Nessa representação pictórica de uma sala do palácio real,
ao fundo plano, o observador vê reproduções de quadros, ainda que pouco iluminadas
e com uma baixa tessitura de cores, identificáveis como Apolo e Pan,Escola de Rubense
Jordaens (RAGGHIANTI; COLLOBI, 1968, p.88-89).
Por meio de uma atenta consideração da mise-en-scène pictórica de Velásquez,
Foucault procura projetar a figura do pintor como producente de um olhar para o
espaço externo da pintura. Uma conexão entre a textualidade do signo imagético e a
exterioridade do espaço espectador é produzida pela obra:
Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa
que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real
e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos
observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga à representação
do quadro. (FOUCAULT, 1999, p. 5).
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Para Stuart Hall, a possível formação de uma teoria da representação de Foucault
está exposta na análise de Las Meninas, assim como a preocupação do filósofo francês
em relação ao papel do sujeito. Hall assinala que Foucault compreendeu a atividade de
representação como um jogo (inter-play) entre a presença e a absência (HALL, 2003,
p.59), configurando-se em uma prática que procura fixar o significado (HALL, 2003,
p.21).
O jogo instaura signos importantes, visíveis somente a partir do entendimento
de que o espaço da tela rompe os seus próprios limites. Além do mais, a presença do
espectador deve ser considerada para um efetivo entendimento dessa dimensão do
escrito foucaultiano:
É fundamental para o argumento de Foucault reconhecer que a pintura não
tem um significado completo. Apenas significa alguma coisa em relação com
o espectador que a contempla. O espectador completa o significado da figura.
Significado é, além do mais, construído em um diálogo entre a pintura e o
espectador. (HALL, 2003, p.60).
É possível, respeitando os óbvios limites que distanciam a criação de Velásquez
dos documentários de Obomsawin, compreender a narrativa de Rocks at Whiskey
Trench sob as perspectivas de Foucault e Hall sobre o conceito de representação; ainda
que nas gravações de entrevistas de Obomsawin sejam conservados axiomas clássicos,
que procuram respeitar os limites entre os entrevistados e a equipe de filmagem, em
nenhum momento dos seus filmes a diretora se ausenta.
Tanto Obomsawin quanto o aparato fílmico sob sua direção compartilham o
mesmo espaço dos entrevistados. Assim, os olhares dos depoentes, que se direcionam
para as câmeras, ao mesmo tempo, apontam para o espectador na frente do ecrã e
desestabilizam os referenciais de exterioridade e interioridade.
Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela
perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem
seu papel ao infinito. E, na extremidade esquerda do quadro, a grande tela
virada exerce aí sua segunda função: obstinadamente invisível, impede que
seja alguma vez determinável ou definitivamente estabelecida a relação dos
olhares. A fixidez opaca que ela faz reinar num lado torna para sempre instável
o jogo das metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o espectador e o
modelo. Porque só vemos esse reverso, não sabemos quem somos nem o que
fazemos. Somos vistos ou vemos? (FOUCAULT, 1999, p. 5-6.).
Foucault encontra na presença do espelho o “encantamento duplo” (FOUCAULT,
1999, p.8) da pintura de Velásquez. Artifício similar acontece com Mitchell Block ao
se revelar no interior de No lies e aoaprofundar o questionamento sobre o papel
do realizador e o poder da câmera na construção da possível verdade do cinema
documentário.
É importante perceber que as propostas de Foucault para entender a noção
de representação partem do princípio da duplicidade, que é inerente a toda atividade
representacional. Além do mais, esse jogo projeta a construção de lugares específicos
para os sujeitos que estão imersos no discurso. Para Hall,
Representação: construindo as diferenças em Rocks at Whiskey Trench
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Essa abordagem tem implicações radicais para a teoria da representação.
Pois, sugere que os próprios discursos constroem as posições-do-sujeito do
qual eles se tornam significativos e tem implicações. Indivíduos podem diferir
de classe social, gênero, ‘raça’, e características étnicas (entre outros fatores),
mas eles não poderão apropriar-se do significado até se identificarem com
essas posições que o discurso constrói, sujeitos eles mesmos às suas regras
e, a partir disso, tornam-se sujeitos ao seu poder/conhecimento. (HALL, op.
cit., 2003, p. 56, tradução nossa).
Hall questiona a possível tentativa de Foucault de postular um posicionamento
ideal para o sujeito, porém, considera em muito a questão poder/saber para a
representação da corporificação das diferenças. Em The Spectacle of the Other, ele
faza análise da representação da raça por meio de uma estratégia empírica que percorre
uma longa temporalidade, desde o imaginário acerca da África no medievo à imagética
publicitária do final do século XX, passando pelo período colonial e de plantation, na
América do Norte, até o período do pós-guerra.
Alguns eixos primordiais corroboram sua abordagem sobre as práticas que
tentam historicamente fixar a presença da imagem negra na formação da sociedade
ocidental. Hall reafirma seu alinhamento a uma perspectiva antropológica sobre a
compreensão das formas de produção da diferença (difference). Próxima à antropologia
de Lévi-Strauss, essa miragem intelectual lança o olhar para as práticas simbólicas
como constitutivas da cultura. Assim,
[...] cultura está sujeita a oferecer significado às coisas, conferindo diferentes
posicionamentos dentro de um sistema classificatório. A marcação da
‘diferença’ é, assim, a base dessa ordem simbólica, a qual denominamos
cultura. (HALL, 2003, p. 236, tradução nossa, grifos originais).
A essa possibilidade explicativa, alinham-se outras três, as quais não anulam
umas às outras: a primeira reside nos caminhos da linguística; a segunda centra-se no
dialogismo, inspirada em Mikhail Bakhtin; e a terceira percorre o viés psicanalítico. Hall
considera todas essas perspectivas e, por isso, nenhuma delas escapa ao seu horizonte
teórico, visto que seu texto caminha por dois eixos claros e conexos: a tipificação e
produção de estereótipos e o fetichismo.
Em Rocks at Whiskey Trench, Alanis Obomsawin constrói diferenças por meio
de uma operação binária, designando, no interior da mise-en-scène a alteridade entre
os agressores e os agredidos e, assim, dois sujeitos emergem desse documentário:
o perpetrador da violência e o vitimado pela selvageria. O uso de entrevistas e essa
estratégia de montagem reafirmam-se como os principais dispositivos para construção
do enredo.
A diretora indaga frequentemente quem seriam os selvagens do filme. Os
momentos de fúria predominam na representação dos habitantes da cidade de
Châteuguay. A instabilidade do registro desses acontecimentos contrasta com o
controle e tenacidade das cenas em que os aborígines contam suas memórias.
Para além dessa voz indígena, Obomsawin propõe retratar a violência empreendida
pelos historicamente reconhecidos como civilizados. Hall, em aproximação com as
proposições de Saussure, afirma que o sentido é relacional.
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A cor negra só ganha significado quando posta em relação à cor branca: “é a
‘diferença’ entre o branco e o negro que significa, a qual carrega significado” (HALL,
2003, p. 234). Não existe a essência do civilizado sem o reconhecimento do selvagem,
porque, no filme, a dimensão da brutalidade dos atos dos citadinos só obtém sentido em
contraste com a construção visual dos índios empreendida pela diretora.
Essa construção binária torna-se mais visível com a sequência de entrevistas de
Thomas Pashley, branco, tratado nas legendas do quadro como um homem de negócios.
Ele aparece em duas sequências no decorrer do filme, sempre no mesmo espaço de
cena, uma marina com um lago ao fundo do campo da imagem.
A primeira participação ocorre aproximadamente aos 27 minutos e 47 segundos
do documentário e se dá num plano-médio de 7 segundos. A fala inicial versa a respeito da
sua participação no apedrejamento da Whiskey Trench e argumenta sobre a trivialidade
de seu protagonismo, afirmando que se limitou a observar o acontecimento.
Aos 51 minutos e 10 segundos do filme, o voz off de Alanis Obomsawin narra as
medidas jurídicas tomadas contra alguns dos protestantes e, logo em seguida, indaga a
Pashley se ele havia atirado pedras no comboio.
Em um plano mais próximo que a entrevista anterior, o homem, incisivamente,
sem mudar a expressão de seu rosto, responde que não e que foi apenas sentenciado
por distúrbio da paz. Novamente, ainda não aparecendo no campo visual, Obomsawin
formula uma nova pergunta acerca do que significaria essa sentença.
Esse plano dura 31 segundos e começa a pontuar a intensidade da participação da
realizadora no interior do documentário. O homem, aparentando uma idade relativamente
avançada, começa a se construir como um dos referenciais representativos do agressor.
Desvela-se a produção da diferença para com pessoas que se assumem opostas aos
aborígines e ao menos duas identidades contrapostas formalizam-se no interior do
filme: a do nativo, em certo sentido vitimado, não tão somente pelo evento, mas por
uma prática histórica de cerceamento de direitos, e o seu oposto, o suposto civilizado,
perpetrador de uma violência selvagem.
Randolph Lewis, a partir da observação de cenas como essa, define os filmes
de Obomsawin como claros exemplos de uma produção que procura promover uma
mediação entre os nativos e os outros canadenses. Ele a define como middle ground
e, essencialmente, uma cultural broker. Nesses conceitos, o pesquisador exprime os
anseios de Obomsawin em também dar voz ao outro, nesse caso, Pashley, e promover
entendimento entre ambos os lados:
A tentativa de Obomsawin em conectar as pessoas ultrapassando as linhas
da diferença não apenas intelectual, histórica, ou lógica em seu apelo, e
seus filmes são mais do que recitações áridas, nas quais, os ‘fatos’ visuais
são empacotados como evidências no júri da opinião pública.Ela parece
estar muito atenta que formas mais viscerais de persuasão devem ocorrer
no middle groundintercultural, onde o sentimento é tão importante quanto
os subsídios. Por essa razão, ela é igualmente interessada na persuasão
emocional, na formação de sentimentos de uma audiência sobre histórias
e identidades indígenas, apesar de fazê-lo sem uma manipulação grosseira.
Quando o documentário alcança o coração de sua audiência sem descer à
demagogia, é dito que possui a intangível qualidade da paixão, algo que
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Obomsawin parece oferecer em abundância para seus espectadores. (LEWIS,
2003, p. 120, tradução nossa e grifo nosso).
Em certos momentos, Lewis parece muito encantado com a estética proposta por
Obomsawin. De acordo com uma resenha redigida pela antropóloga Nancy MarieMithlo,
trata-se de um componente crítico do livro:
Entretanto, na introdução Lewis compartilha com o leitor de que a real
compensação para o seu livro é ‘conhecer Alanis’, o leitor não tem indicação
da extensão das circunstancias, ou do grau de relação entre ele e ela, ou seja,
sua metodologia. Citações revelam apenas um contato pessoal: ‘Entrevista
com o autor, Montreal, agosto de 2002.’ Mas foi uma entrevista de uma hora?
Um dia? Um mês? Para esse leitor, tais distinções importam. (MITHLO, 2007,
p.749).
Não é possível negar as qualidades dessa pesquisa biográfica, porém, vale lembrar
que Lewis sugere com sua categorização de middle ground uma possível isenção da
diretora ao se posicionar sobre os temas de seus documentários. Nisso está inclusa a
relação controversa entre financiamento estatal e severa crítica contra o Estado e Nação
canadense. Para ele, paixão e sentimento seriam elementos constituintes dos filmes dela
e construiriam novas e necessárias representações imagéticas dos aborígines diante da
tradição do cinema ocidental.
É necessário refletir se a categoria analítica, denominada middle ground, não
sublimaria o trabalho estético que evidencia as linhas de diferença entre identidades
diversas, que entendo ser o locus central da filmografia de Obomsawin.
Evidentemente, Obomsawin transita no aparelho estatal, afinal, quase a totalidade
de sua produção fílmica é fomentada pelo governo, com o qual são economizadas críticas
como no episódio de seu embate argumentativo com o represente do Parti Québécois
em Incident at Restigouche (1984).
No entanto, é clara a parcimônia da realizadora em prostrar acusações gratuitas
contra quaisquer partes envolvidas, visto que em vários momentos de seus filmes os
argumentos se contrapõem. Essa dissonância de visões de mundo, contudo, mostra-se
como alicerce da alteridade e é criadora da diferença.
O sentido é, neste contexto, relacional e resultante de uma relação entre signo
e conceito fixados por um código. O signo, em si, é impossibilitado de determinar
significado é construído e produzido: “a questão central é que o significado não é
inseparável às coisas, no mundo. Ele é o resultado de uma prática significante, uma
prática que produz significado, que faz as coisas ganharem sentido” (HALL, 2003, p.
24).
A edição aloca a tomada de um depoimento no momento do conflito; um homem,
aparentando ser Pashley, discute com a câmera e afirma que os índios não deveriam
cruzar a estrada. Esse plano, filmado na tensão do evento, persiste por 15 segundos e,
em seguida, é cortado para um novo plano da entrevista gravada.
Um zoom-out retoma o plano médio da primeira cena com o homem e, após 9
segundos, em um significativo enquadramento pelas costas do participante, visualiza-
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se Obomsawin sentada diante de Pashley, realizando a entrevista.
Dois planos encerram a sequência: o primeiro é semelhante aos demais que
enfocam o participante, e o segundo, em uma posição não muito comum, enquadra-o
de lado, da esquerda para a direita. Forma-se, deste modo, um reaction shot, criando no
filme uma alteridade por meio de uma oposição binária. Assim, fixar o sujeito civilizado
e o selvagem é um dos claros objetivos da realizadora (Fig. 4).
Figura 4
O poder da fala do homem é confrontado pela presença da realizadora no campo
sonoro e visual da diegese fílmica. Ovomsawin instaura o “duplo encantamento,
inserindo-se no interior do filme por meio de um reaction shot, usando-se da câmera
para compor o quadro. O lugar da realizadora se ilumina, pois se trata do mesmo ocupado
pelo espectador, que é convidado também a se opor em relação ao entrevistado. Quem
assiste ao filme fica imerso nesse jogo de ausência e presença que define o próprio
significado da representação. Obomsawin desvela sua autoridade e baliza os limites de
seus filmes.
Essa lacuna é devida à ausência do rei – ausência que é um artifício do pintor.
Mas esse artifício recobre e designa um lugar vago que é imediato: o pintor
e do espectador quando olham ou compõem o quadro. É que, nesse quadro
talvez, como em toda representação de que ele é, por assim dizer, a essência
manifestada, a invisibilidade profunda do que se vê – malgrado os espelhos,
os reflexos, as imitações, os retratos. Em torno da cena estão depositados
os signos e as formas sucessivas da representação; mas a dupla relação da
representação com o modelo e com o soberano, com o autor e com aquele a
quem ela é dada em oferenda, essa relação é necessariamente interrompida.
Ela jamais pode estar toda presente, ainda quando numa representação que se
desse a si própria em espetáculo. (FOUCAULT, 1999, p. 20).
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Conclusões
É possível com esse artigo desvelar alguns fios condutores dessa série de Oka
e da estética, a qual Obomsawin propõe para o cinema documentário e é reafirmada a
partir de constantes interconexões entre passado, presente e futuro.
A exposição das controversas veiculações da mídia (impressa e televisiva)
canadense na cobertura dos eventos e o distanciamento em relação aos grandes
veículos de comunicação é reinvestida nesse filme, e, novamente, de maneira enfática,
o espectador é convidado a observar a participação do dispositivo fílmico, assim como
a intensidade da interação da realizadora com os participantes. Esses elementos são
conexos não só na série, mas também na trajetória fílmica de Alanis Obomsawin.
Rocks at Whiskey Trench inicia pela fala de uma mulher que diz que eles,
possivelmente o seu povo, são os testamentos vivos do que havia acontecido naquele
lugar e contarão a história do lado verdadeiro dos acontecimentos. A realização enreda
o desenrolar do fatídico evento, articulando a memória dos participantes à continuidade
que se estende ao passado colonial canadense.
No decorrer do filme, é observada a violência da ação dos apedrejadores
em contraste com a ponderação de participantes, alguns deles euro-americanos,
condenando o tratamento dispensado aos refugiados e reafirmando a procura da
diretora por corrigir algumas distorções argumentativas dos participantes opostos às
consideradas primeiras-nações.
A possível ausência dos indígenas em participar da edificação do Canadá como
uma nação desenvolvida é contraposta por meio da retomada do depoimento de um
senhor branco. Ela sustenta, em consonância com os argumentos do documentário
Spudwrench: Kahnawake Man (1997), a participação dos aborígines na força de trabalho
canadense e se soma às cenas do esportista vencedor olímpico originário de Kahnawake.
Além de revigorar ainda mais a presença dos aborígines nos lugares simbólicos
da moderna sociedade ocidental, o filme perfilha a superação e a perspectiva de futuro
como argumentos essenciais. Essa possibilidade é acentuada pela longa sequência da
resistência em uma das ilhas de Kahnawake, quando os militares foram forçados a se
retirarem a por via aérea.
Nos 20 minutos finais de Rocks at Whiskey Trench, o grande tema da narrativa é
a reflexão das relações de ambos os lados do conflito com o passado problemático das
comunidades. Em 1 hora, 30 minutos e 25 segundos de filme, uma sequência composta
por vários planos com duração aproximada de 1 minuto e 17 segundos tematiza a
possibilidade de esquecimento e perdão.
Essa cena desenrola-se numa estação de rádio, na qual membros das reservas
argumentam com ouvintes do programa. Por meio de um telefonema, constrói-se a
primeira voz da sequência: a voz em off de uma mulher afirma a impossibilidade de
reconciliação e superação do passado. Em contrapartida, no campo visual e sonoro,
participantes da entrevista afirmam a vontade de superação do trauma e da desavença
por parte dos aborígines.
O visível e o não visível, mais uma vez, são elementos formais primordiais do
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argumento. A fala da mulher não acompanha as imagens da sequência; o que é visível
são os quadros aproximados, alguns em close-ups, e as faces dos membros das
primeiras-nações, perplexos com os argumentos da ouvinte. Visibilidade e invisibilidade
marcam uma linha divisória entre duas distintas visões acerca dos ditames do passado.
Novamente, a realização posiciona-se próxima aos argumentos aborígines, pois a
câmera está imersa no espaço de encenação da sequência.
Nesses momentos finais do filme, ainda há espaço para a voz de Jean-Bosco
Bourcier. A edição favorece a transformação de seu caráter no decorrer do filme, tendo
em vista que, em certo sentido, agora o prefeito se alinha aos argumentos dos povos da
reserva. As tomadas de um Healing Circle5 demonstram a existência da superação por
ambos os lados do conflito. Nessa longa sequência, muitos habitantes de Châteauguay
participam das falas e afirmam o entendimento para com os habitantes de Kanehsatake
e Kahnawake.
A realização procura também destacar a permanência dos problemas que
originaram o conflito: a necessidade da contínua luta pela manutenção dos domínios
territoriais, a existência de preconceito e admoestações incidindo sobre os aborígines
e a irresolução total do conflito. O passado é referenciado por uma longa sequência de
fotos antigas, iniciada em 1 hora, 40 minutos e 11 segundos do filme, que tem a duração
aproximada de 1 minuto e 37 segundos. Entretanto, deve-se levar em conta que as
imagens memoriais são mediadas por tomadas de crianças e por uma fala que não se
dirige ao passado, mas se projeta ao futuro das primeiras-nações (Fig. 5).
Figura 5
Rocks at Whiskey Trench propõe que o vindouro futuro deva ser submetido
a uma reavaliação da condição dos aborígines no interior da complexa sociedade
canadense. Esse esforço político do filme é facilmente identificável em uma entrevista
5. Cerimônia das primeiras nações, na qual os participantes compartilhavam suas experiências de felici-
dade, tristeza, raiva, etc.
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de aproximadamente 40 segundos de duração. Em 1 hora, 37 minutos e 45 segundos do
documentário, um enquadramento muito próximo focaliza o rosto de uma senhora (Fig.
6). O close-up, de acordo com Giannetti,
[…] concentra-se em um objeto relativamente pequeno – a face humana, por
exemplo. Como o close-up magnifica o tamanho de um objeto, ele tende a
elevar a importância das coisas, geralmente sugerindo uma significância
simbólica. (GIANNETTI, 1990, p. 9, traduçãonossa).
Figura 6
A significância simbólica também se apresenta nas palavras proferidas pela
entrevista. O tópico selvagem conduz a sua fala encerrada pela afirmação de que
selvagens são aqueles que apedrejaram o seu comboio. Opera-se uma grande antítese à
fala dita por uma mulher branca em momentos ainda iniciais do filme.
O encerramento do filme se dá pela voz off de Alanis Obomsawin. Sua narração
não dá fim somente a esse documentário, mas oferece um balanço do legado do conflito
em Oka. Novamente, o passado se estende ao futuro na própria fala da realizadora. O
longo problema de desterritorialização só é contornado pela luta incessante, porém,
observa-se a constante preocupação em pontuar os princípios legais dessa ação que
deve compor a pauta do presente e das futuras gerações.
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