Mocidade independente: experimentalismo na TV
brasileira
Mocidade Independente: experimentation in Brazi-
lian TV
ALVES, Rafael Paiva
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Resumo: Procurando contribuir para a análise das relações entre a indústria da música
e a televisão no Brasil, o objetivo do artigo é investigar o programa musical televisivo
“Mocidade Independente, transmitido pela Rede Bandeirantes, entre junho e setembro
de 1981, de modo a trazer subsídios a respeito do contexto televisivo-musical do
período, principalmente, em termos de difusão musical. Tal programa se destacou do
restante do fluxo televisivo por ser o primeiro a dar “espaço” aos independentes: tanto
à produção musical do período, como à produção em vídeo. Em termos de linguagem
e estética, o programa teve em seu quadro profissional a participação dos integrantes
da produtora independente de vídeo “TVDO” (lê-se TV Tudo), o que torna possível
identificar elementos da influência televisual de Glauber Rocha - como o programa
Abertura”, da TV Tupi em 1979.
Palavras chave: Televisão; Vídeo independente; Música independente; Programas
1. Mestrando em História pelo Programa de Pós Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras
– UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antônio, 2.100, CEP: 19806-900,
Assis, São Paulo, Brasil. A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da Bolsa Capes.
E-mail: rafael_paiva_alves@hotmail.com.
Recebido em: 29/02/2016
Aprovado em: 27/04/2016
ALVES, Rafael Paiva
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 60-80, jan.-jun., 2016.
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musicais.
Abstract: This paper aims to contribute to the analysis of the relationship between the
music industry and television in Brazil. It does so by investigating the musical television
show “Mocida Independente”, broadcast by the network Bandeirantes between June and
September of 1981, thus providing background about the television and musical context
of the time, especially regarding musical diffusion. The show stood out from the rest of
the television flow for being the first to allow the participation of independent groups,
both for contemporary musical production and for video production. Concerning
language and aesthetics, the musical show had members of the independent video
production company “TVDO” (pronounced “TV Tudo”) in its staff, making it possible
to perceive influential elements from Glauber Rocha’s segment “Abertura”, aired on the
network TV Tupi in 1979.
Keywords: Television; Independent video; Independent music; Music shows.
Introdução
Qualquer músico, desde a década de 2000, pode compor uma canção, gravar
sua execução através de uma filmadora ou webcam, e ter seu desempenho, quando
disponibilizado em plataforma de vídeo digital online, visualizado via computador
doméstico, notebook, tablet ou aparelho de telefone celular; ocorrendo todo este
processo em um mesmo dia. Cada vez mais utilizado, sobretudo por músicos amadores
ou profissionais desconhecidos do grande público e da crítica, além de músicos cujas
carreiras não encontram mais eco junto à grande mídia, tal advento materializa bem
as possibilidades tecnológicas abertas ao processo de divulgação da música na última
década.
Mesmo com significativa repercussão no âmbito midiático/fonográfico, deve-
se ter claro que tal episódio é tão somente um, dentre outros relativos à emissão e
à recepção de produtos musicais. Contudo, o imediatismo, o alcance e os resultados
obtidos por aquele expediente servem a questionamentos e reflexões sobre o presente e
o futuro das etapas vigentes de controle e de determinação da distribuição de conteúdo
musicais pela indústria fonográfica e televisiva.
As atuais plataformas digitais online de compartilhamento de vídeos, como o
YouTube, modificaram profundamente a dinâmica de circulação da música e dos
videoclipes no cenário mundial. Aspectos e formatos de programas televisivos
musicais deixaram de ser apenas produtos televisivos, para tornarem-se integrantes
da cibercultura, modificando armazenamento, produção, circulação e a recepção dos
produtos audiovisuais.
Entretanto, possibilidades bem diferentes na divulgação musical eram
encontradas por músicos nas últimas décadas do século passado. A ampla difusão de
produtos musicais seguia ainda, de certo modo, dependente dos negócios do universo
fonográfico. No Brasil, no início dos anos 1980, a indústria cultural já estava consolidada,
conquistada em grande medida por associação ao capital estrangeiro, que impunha às
manifestações artístico-culturais, os esquemas organizacionais e as lógicas comerciais
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próprias dos grandes conglomerados midiáticos. No caso da ampla divulgação da música,
pouco espaço sobrava para além das grandes gravadoras, do rádio e da televisão.
Deste modo, este artigo visa à compreensão das relações entre a indústria da
música e a televisão no Brasil no início dos anos 1980. Para tanto, e a fim de mapear o
contexto musical e televisivo do período, foi escolhido o programa musical “Mocidade
Independente”, transmitido pela Rede Bandeirantes, em 1981, sobre o qual será feita uma
reflexão e análise sob a ótica daquilo que Jérôme Bourdon conceituou como contexto,
co-texto e texto, proporcionando pensar o programa para além de um mero difusor
musical, dito independente.
No contexto, a ênfase será dada para a recepção, no qual, sugere o historiador
francês, há uma vasta gama documental, uma vez que os programas televisivos
estão cercados por textos escritos, críticas, reações, comentários, cartas de leitores,
entrevistas e lembranças de telespectadores, tornando possível uma reconstituição do
espaço social da recepção. O co-texto se refere a relação do determinado programa
com o restante da grade da emissora, o caráter repetitivo e intercambiável de grande
parte dos programas, a concorrência entre as grades que levam os profissionais, e os
telespectadores a combinarem os programas de acordo com seus interesses. E já o
texto, são as características internas do produto, dentre elas estão, por exemplo, a
montagem, a forma e o cenário (BOURDON, 2011, p.18-19, tradução nossa).
A crise da indústria fonográfica no início dos anos 1980
A indústria fonográfica, após um período de grande crescimento nos anos 70,
inicia a década posterior com crise nas vendas, com um déficit de 10,6 e 20,8 %, nos
anos de 1980 e 1981, respectivamente, segundo a Associação Brasileira de Produtores
de Disco (ABPD); ao passo que no ano de 1982 ocorre uma rápida melhora, sofrendo
posteriormente, em 1983 e 1984, duas novas quedas. A crise, apesar de ter atingido
mais duramente as empresas de porte pequeno e orientação única, provocaria também,
diversas modificações nas estruturas das grandes empresas (majors) e seus efeitos
seriam, então, percebidos em cortes nos quadros funcionais e artísticos, nas verbas
para promoção e na contratação de novos nomes (VICENTE, 2014, p. 91-92).
Soma-se ainda a esse contexto, a forte concentração no setor com poucas
empresas detendo o poder da produção, como é possível constatar a partir de uma base
de dados acadêmicos
2
, na qual doze era o número de grandes e médias empresas do setor
no Brasil em 1979 (Som Livre, CBS, Polygram, RCA, WEA, Copacabana, Continental,
Emi-Odeon, RGE-Fermata, K-Tel, Top Tape e Tapecar) e quatro anos depois restariam
apenas oito (Som Livre, CBS, Polygram, RCA, WEA, Copacabana, Continental e Emi-
Odeon).
As etapas de produção musical das gravadoras transnacionais ou de empresas
nacionais de grande porte, nos anos 70 e 80, se constituíam de certa complexidade,
uma vez que estas passam pela,
Concepção do produto, a preparação do artista e do repertório, a gravação
em estúdio, mixagem, preparação da fita máster, confecção das matrizes,
2. Os dados foram encontrados em Márcia Tosta Dias (2008, p. 78) e Eduardo Vicente (2014, p. 89), os
pesquisadores usaram como fonte primária jornais de época.
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prensagem-fabricação, controle de qualidade, capa-embalagem, distribuição
e marketing-divulgação (DIAS, 2008, p.69).
Para a socióloga Márcia Tosta Dias, a gravação musical é um dos menores
problemas neste processo, pois a problemática maior reside nos expedientes da
difusão musical, dado que as grandes gravadoras (majors), juntamente com as rádios,
TVs e demais mídias, formam um sistema interligado, muitas vezes baseado em um
relacionamento não muito lícito de troca de favores entre as gravadoras e as demais
mídias. Trata-se da prática do mal afamado “jabá”. Este termo, originariamente
denominado ‘jabaculê’,
3
é assim definido por José Adriano Fenerick:
Uma forma ilícita de se conseguir colocar uma música no mercado por meio de
algum tipo de pagamento (ou um “favor” de outra ordem), para que uma mídia
qualquer, ou várias simultaneamente, veiculem um novo produto lançado pela
gravadora (FENERICK, 2007, p. 53).
Porém, segundo Márcia Tosta Dias, o tópico apresentado acima pode ser quase
considerado um tabu no universo da difusão musical, tanto que mesmo a imprensa
costuma não tratá-lo de forma aguda e frequente, até pelo fato da prática ser própria de
toda a indústria cultural. E, com isso, a indústria fonográfica trabalha com
responsabilidade de orientar a produção, a partir da crença de que o sucesso
de vendas é resultado da natural eleição do público. Ao contrário, vende-se
um produto a partir da intensidade e alcance de suas técnicas de difusão
e marketing. Assim, a difusão é, por excelência, um espaço de mercado, o
início da ligação direta entre o produtor e seu consumidor potencial. Por
seu intermédio, ocorre uma espécie de antecipação do ato de comprar, um
consumo aleatório ou, muitas vezes, compulsório, efetuado no momento
em que se escuta uma canção, que não é produto direto da escolha e/ou da
participação autônoma no processo (DIAS, 2008, p.161).
A respeito da difusão musical, o rádio simboliza apenas o caso mais clássico da
difusão, porque a música é uma das mercadorias da indústria cultural que estabelece
relações com todos os media. Ela está presente, por exemplo, nos diversos ambientes
sociais devido à difusão via rádio, cinema, televisão e internet e esse consumo aleatório,
e muitas vezes compulsório a que os cidadãos se expõem pelo simples fato de estarem
na mesma paisagem sonora, não é relacionado com as cifras da indústria fonográfica
(DIAS, 2008, p.19).
A difusão musical na televisão brasileira, como sugere Dias, além do alto preço
de divulgação no meio, padece também do problema de que, se o produto musical a
ser anunciado ou simplesmente apresentado não vier acompanhado com a legitimação
da grande empresa do disco, transferindo assim, a grande vendagem de discos em
audiência, compromete-se a apresentação do produto musical na TV, podendo este
não ser aceito na indústria televisiva, restringindo ainda mais o circuito musical no
3. Em texto denominado “10 mandamentos para 83” presente na seção “Crítica MPB” na Revista SOM-
TRÊS, nº50, fev. de 1983, Tarik de Souza faz um de seus “mandos” a “extinção (total) do jabaculê para
a eliminação do reumático processo dos listões nas rádios e falsas paradas de sucesso. Com isso seria
ampliado o acesso e propostas artísticas diversificadas aos meios de comunicação.
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país. (DIAS, 2008, p.164-165). O que sugere pensar, do mesmo modo, na pressão que
os índices de audiência provocam nas emissoras, diante da produção e permanência
dos programas musicais, uma vez que, certos gêneros musicais, apesar de merecerem
espaço dentro do meio televisivo, não conseguem se firmar frente à baixa audiência que
por antecipação lhes são dados.
No início dos anos 1980, o caminho independente não se colocava apenas em
razão de um fechamento das possibilidades, mas também para aqueles que desejavam
uma renovação, ou até mesmo uma subversão no estatuto da produção cultural do país,
uma postura diante da cultura e mesmo de ação contracultural dentro do contexto de
época (FENERICK, 2004, p. 166). Cabe lembrar que no decorrer de todo este processo
de consolidação da indústria cultural, e a partir daí, diversas áreas de comunicação
e expressões artísticas se viram sem espaço para divulgarem suas ideias, sua arte
ou mesmo seus produtos culturais, sejam eles por motivos econômicos, estéticos ou
ideológicos.
No âmbito da difusão musical independente, aos poucos foi se formando espaços
alternativos na cidade de São Paulo. Dentre eles, o Teatro Lira Paulistana, o SESC
Pompéia, o Museu da Imagem e Som (MIS), o Museu de Arte de São Paulo (MASP), a
Funarte, praças e parques, faculdades e até mesmo, em algumas poucas rádios, como
fora o caso da Excelsior FM com o programa conduzido pelo crítico musical e jornalista
Maurício Kubrusly e na televisão, os programas “Mocidade Independente”, transmitido
pela Rede Bandeirantes, em 1981, e “A Fábrica do Som”, pela TV Cultura entre 1983 e
1984.
Termos como independente, nanico, alternativo, underground e marginal foram
empregados para identificar posturas que lutavam por espaços artísticos e midiáticos
no cinema, no vídeo, na música, na imprensa, na literatura, na televisão, na poesia e
no teatro, entre outros. No entanto, como sugere Gil Nuno Vaz, ao examinar a música
independente, o que importa para além do termo adequado, é compreender o significado
do fenômeno a que ele se refere (VAZ, 1988, p. 11).
No final dos anos 70 e início dos anos 80 a definição de que certo artista era
independente, alternativo, marginal ou experimental, quando não duas características,
ou todas ao mesmo tempo, é um pouco confusa. Deste modo, é importante ressaltar que
estes, são conceitos que “não se excluindo, não são sinônimos”, bem como, qualificam
gestos e atitudes em suas atuações (MOSTAÇO, 1984, p. 5). Assim, segundo Mostaço:
Independente e alternativo recortam-se como conceitos que oferecem uma
dada relação com o Poder. [...] É-se independente: dado o domínio de certo
poder instituído, que impera sobre a ação de hegemonia, postar-se como uma
oposição a ele, como uma soberania própria e isenta de seu controle [...] uma
luta de libertação e reorganização do sistema de forças que o compõem. [...]
Este é o campo preferencial da política. [...] O independente é, então, o mais
radical opositor político do Poder. Alternativo indica, antes de mais nada,
uma posição; sem, todavia, constituir-se numa tópica [...] Sociologicamente
falando é um trânsfuga, antropologicamente falando, um miscigenado,
artisticamente falando, um híbrido. Ainda que quase sempre um alternativo
professe uma ideologia independente, esta relação não é de causas e efeito; e
nem esta relação necessita dar se ao contrário. [...] Experimental e marginal
são conceituações que também beiram os umbrais políticos, ainda que nem
sempre de forma translúcida. Nascidos em outro universo tonificam ou
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emprestam certo colorido àquelas duas acepções inicialmente distinguidas,
mas como qualidades e não como substâncias. [...] Não é, porém, o império da
Moeda que martiriza o experimental, mas o império do Sentido. [...] Aquilo que
está à margem, fora do tronco principal, invisível pelas perspectivas estreitas,
é marginal. [...] Do ponto de vista social ou moral, o marginal é aquele que
desafiando a ordem da Moeda ou do Sentido posiciona-se por ser um rebelde
que não integra um Partido; ou aquele que é arbitrariamente excluído destas
ordens por inconveniência, medo ou zelo (MOSTAÇO, 1984, p. 4-5).
Verifica-se assim, de acordo com Mostaço, que o artista independente ou alternativo
poderia, através de suas produções, se posicionar como marginal e/ou experimental.
Nesta perspectiva, portanto, os independentes e alternativos se configurariam com
ações mais ligadas à “percepção da estrutura de mercado e estruturação capitalista da
produção cultural e, seus trabalhos e organizações, visariam entrar na disputa destes
poderes constituídos”. De modo que os marginais e experimentais, teriam suas ações
mais ao nível de “desestabilizar por dentro estes poderes, evidenciando na crítica da
ideologia e/ou dos circuitos instituídos (inclusive pelos primeiros) a ênfase de suas
atuações” (MOSTAÇO, 1984, p. 5).
Televisão: O aumento dos receptores e o apoucamento dos produtores
A formação e o desenvolvimento da televisão no Brasil se deram sob a inspiração
do modelo de exploração privado/comercial, ou melhor, por meio de concessões de
serviço público cedido a particulares pelo Estado, como ocorrera anteriormente com o
rádio. Assim, políticos, empresários do ramo comunicacional e proprietários de jornais
e revistas, além de concessionários de emissoras de rádio, tem sido o perfil comum dos
concessionários de canais e redes de TV desde o início do meio no Brasil, situação que
resulta em maior poder destes, no campo da comunicação social do país e possibilitam-
lhes influir, não raras vezes, mesmo que indiretamente, no campo político e cultural da
nação (BUSETTO, 2007, p.195-196).
Ao longo do tempo, os aparelhos televisores passariam a ser fabricados pela
indústria nacional, tornando-os cada vez mais acessíveis às camadas populares, sendo
que, em 1983, o número de televisores em uso no país somaria a marca de 22 milhões
(Lintas..., apud. Anuário Brasileiro de Mídia 1982/1983, p. 38), e, assim, o meio televisivo
foi tornando-se, consequentemente, o principal veículo de comunicação social do
país. Em 1980, na distribuição das verbas publicitárias, os números destinados à TV já
apontavam 58% do total, seguido dos jornais com 16,1%, e das revistas e das rádios com
14 e 8% respectivamente (Grupo..., apud. Anuário Brasileiro de Mídia 85/86, p. 66).
A expansão da indústria televisiva através de intensos estímulos pelo governo
militar, bem como a possibilidade de duplicar e comercializar fitas de programas através
do uso do videoteipe, tornou possível a criação, ainda que de maneira tímida, das
primeiras redes nacionais de TV. Em consequência disso, apesar de se diferenciarem
em termos de estrutura organizacional, as redes obedeceriam a um mesmo formato. Em
suma, é uma junção firmada perante contrato que divide-se entre a emissora cabeça e
as afiliadas. Nesta relação, as emissoras cabeças
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administram o conjunto, inclusive em termos de programação; dão suporte
técnico, sobretudo ao que se referem às transmissões dos programas da
central de produção para as demais emissoras; e vendem as audiências de
toda a rede para os anunciantes [...]. Tem o direito absoluto para decidir que
programação deve ser transmitida simultaneamente por todas as afiliadas,
inclusive, se necessário, durante o tempo destinado a programação da afiliada.
[...] Age como um distribuidor, comprando audiências locais e regionais,
agregando-as e revendendo-as para anunciantes nacionais (JAMBEIRO, 2001,
p. 106- 107).
Já a afiliada, por sua vez, além de obter benefícios ao associar seu nome com os
programas e astros, amplamente promovidos em nível nacional,
mede o valor da afiliação pela audiência que os programas das redes atraem,
e lucra com a venda do tempo que a rede deixa em aberto para anúncios nos
intervalos dos programas [...]. Recebe serviços básicos como: apoio técnico
para a programação local, um ambiente publicitário que estimula os anúncios
locais, compensação financeira baseada no crescimento da audiência, e uma
organização de vendas que prioriza anunciantes nacionais [...]. São clientes
dos pacotes de programas vendidos pela “cabeça” das redes e, ao mesmo
tempo, fonte de audiências que aquelas “cabeças” compram para empacotar e
revender a anunciantes nacionais (JAMBEIRO, 2001, p. 108)
4
.
No plano cultural, este modelo significava que todo o país passava a compartilhar,
via TV, uma determinada representação de Brasil com características próprias, ou seja,
uma identidade nacional. Identidade que poderia ser entendida no singular, porque era
construída inteiramente por um poderoso grupo de mídia com hegemonia no sudeste
do país, posto que, no ano de 1981, os provedores de programas eram praticamente
os grupos Globo, Bandeirantes, SBT e Record. Em decorrência disto, as emissoras
detiveram o poder do conteúdo que os brasileiros devem ver. Na prática, o pesquisador
Gabriel Priolli afirmaria que eram quatro empresas que aludiam “para o Brasil, em
nome do Brasil, como se fosse todo o Brasil”, e que culturas regionais fortes como a
nordestina e a gaúcha ficaram à margem da difusão nacional, salvo nas interpretações
folclorizantes e redutoras que as emissoras cariocas e paulistas as davam (PRIOLLI,
2000, p. 16-20). Porém, na década de 1980, com o aumento das possibilidades do acesso
a tecnologias para produção em vídeo, diversos grupos à margem das grandes redes de
TV iriam questionar a hegemonia televisiva.
Diante disso, a reconfiguração do meio televisivo no início dos anos 1980 traria
novas concessões cedidas estrategicamente pelo regime militar. Assim, o setor concede
espaço a duas novas emissoras comerciais com transmissão a partir de São Paulo e Rio
de Janeiro, ou seja, SBT e Manchete, respectivamente. Esta reconfiguração do meio
televisivo levou uma série de lutas e pressões para conseguir espaço na mídia televisiva,
daí decorre o surgimento de produtoras independentes de vídeo, e, posteriormente, de
tevês comunitárias, livres e clandestinas.
4 A ortograa das fontes consultadas para este artigo será mantida nas citações tal como estão no
original.
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Abre-te Sésamo: as produtoras independentes de vídeo
Os trabalhos produzidos por aquilo que Arlindo Machado denominaria de
“primeira geração” de realizadores de vídeo, na década de 1970, consistiam, em sua
maioria, basicamente, no registro do gesto performático do artista em tempo real em um
único plano e por uma câmera fixa. Era o confronto da câmera com o corpo do artista,
ou melhor, “o corpo entre duas máquinas (a câmera e o monitor), de modo a produzir
uma imagem instantânea, como a de um Narciso mirando-se no espelho” (MACHADO,
2007, p. 21-22). Para além do uso do desempenho, como alternativa criativa, os artistas
associavam a suas obras o conceitualismo e a body art
5
, bem como questionavam
expedientes dos meios de comunicação de massa. Revelando assim, uma resistência
e consciência crítica em torno do poder autoritário da mídia televisiva (MELLO, 2007,
p.6-9).
Já a segunda geração, também denominada por Arlindo Machado como
“geração do vídeo independente” surge com o intuito de explorar o vídeo na televisão
broadcast, devido sua amplitude expressiva e seu potencial de agente promotor de
mudanças socioculturais (MACHADO, 1998, p.81-82). Portanto, além de acrescentar
àquela perspectiva crítica da TV, buscavam uma linguagem nova para o meio, além de
gerar alternativas estéticas de relacionar-se com aquela mídia (MELLO, 2007, p. 6- 9;
MACHADO, 2007, p. 18). Composto em geral por jovens recém-saídos das universidades,
a segunda geração já crescera vendo a TV, e buscava “explorar as possibilidades da
televisão como um sistema expressivo, e transformar a imagem eletrônica num fato
da cultura” de seu tempo (MACHADO, 2007, p. 18); assim como, pretendia interferir
artística e politicamente na realidade social imediata do país através de seus programas,
postura que os diferenciam radicalmente dos pioneiros da videoarte, que eram ferrenhos
críticos da rede comercial de televisão e difundiam sua arte em espaços como festivais
e museus.
Não se pode desconsiderar que o projeto ético-estético do Cinema Novo no
Brasil, com seu propósito de reinterpretar a produção cultural, a realidade social e a
situação política do país a partir do periférico, do marginal e da perspectiva do não
oficial, antecede o movimento do vídeo independente e irá influenciá-lo. Deste modo,
os videomakers da segunda geração do vídeo independente buscavam como fonte o
experimentalismo, preconizado também pelo cinema, o que contribuiria muito para a
produção audiovisual televisiva com vários profissionais, ou ainda na subversão dos
modelos de representação, de linguagem e dos formatos na TV brasileira, com vistas a
grandes inovações estéticas. (FECHINE, 2003, p.3; 2007, p.95).
Vale ressaltar porém, as diferenças de situações tecnológicas encontradas
pela primeira geração do vídeo, nos anos 70, quando comparadas ao início da década
posterior, quando surge a segunda geração. Tais transformações podem esclarecer
alguns elementos importantes da cena artística brasileira na videoarte. Assim, percebe-
5. A criação do movimento Body Art na Europa e nos Estados Unidos, no final da década de 60, represen-
ta o reconhecimento da capacidade de comunicação do corpo humano, do próprio artista ou de qualquer
outra pessoa, enquanto veículo portador de ideias e de atitudes, explorando de forma direta e livre de
preconceitos temas como o género e a sexualidade. Foi fortemente influenciado pela cultura do corpo, da
nudez, da comunicação corporal e da liberdade sexual, que marcaram os inícios dos anos 60. As manifes-
tações de Body Art assumiram geralmente o carácter de performances, onde os artistas se exprimiam de
forma pessoal, revelando tendências muito diversas.
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se que, a primeira geração do vídeo no país, ainda não tinham o acesso aos equipamentos
de edição para disporem em suas obras, situação que mudaria significativamente
com a chegada ao país de alguns equipamentos portáteis semiprofissionais, como o
U-Matic, ¾ de polegada, no início da década de 80. Com preços bem menores do que os
similares profissionais, então adquiridos pelo parque industrial dos conglomerados de
comunicação, abria-se a possibilidade de obtenção, pelo menos em termos, ao acesso
deste equipamento aos profissionais considerados “independentes” às grandes redes
de comunicação.
Outros equipamentos que merecem destaque, e que modificaram as formas de
se fazer videoarte, foram os videocassetes domésticos fabricados no Brasil no ano de
1982, no qual utilizavam o formato VHS, de ½ polegada, e as primeiras câmeras VHS de
vídeo comercializadas de forma oficial no país, ambas as iniciativas da marca Sharp, na
qual disseminavam seus aparelhos nos lares brasileiros. Segundo Mello, com tal oferta, a
indústria permitiria que pouco a pouco houvesse “a substituição dos processos caseiros
de captação e edição de imagens em super-8, pela captação e edição de imagens em
vídeo” (MELLO, 2008, p. 96).
Dentre as produtoras independentes que atuaram na segunda geração do vídeo,
é possível citar como exemplo significativo e pioneiro, a TVDO (lê-se Tudo TV) e a Olhar
Eletrônico, ambas sediadas em São Paulo e atuando com diálogo e troca de experiências
artísticas e estéticas. Embora, muitas vezes, se estabelecesse uma relação de rivalidade
entre elas, que segundo o videomaker Marcelo Tas, constituía-se no combustível
gerador de motivação e criatividade para o par de produtoras (TAS, 2007, p. 211). As
produções de ambas expressavam elos estéticos que dizem respeito ao questionar e fazer
confundir as verdades e as mentiras das informações transmitidas pela mídia televisiva,
representando assim, uma espécie de resistência e ativismo político contra o poder
hegemônico informacional a que o país estava submetido pelas redes de comunicação
broadcast. Deste modo, as independentes TVDO e Olhar Eletrônico interferiram de
forma tão radical na programação alternativa da TV, que para a pesquisadora Christiane
Mello, seus projetos nesse campo são os mais experimentais do meio televisivo brasileiro
(MELLO, 2007, p. 12).
Considerado um dos mais importantes grupos da segunda geração do vídeo no
Brasil, a produtora TVDO (lê-se também Tvudo) era constituído pelos videastas Tadeu
Jungle, Walter Silveira, Ney Marcondes, Paulo Priolli, e, posteriormente, Pedro Vieira.
Com uma ligação estreita ligada aos meios vanguardísticos da cidade de São Paulo que
despontaram no início dos anos 80 (MACHADO, 2007, p. 19), tal projeto foi criado no
ano de 1979 dentro da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA- USP) e tratava-se de uma experiência plural e interdisciplinar que se inseriu além
do meio televisivo em discussões no campo da videoarte, com trabalhos expressivos
como: Ateliê de TV, Bvcetaz Radcays, Programa do Ratão, Teleshow de Bola, Quem Kiss
Teve, Ivald Granato in Performance e Duelo dos Deuses.
Com a ideia de entrar no meio televisivo e buscar uma produção mais alternativa,
a TVDO, “incorporou certos procedimentos da montagem e do discurso mais delirante
da videoarte a formatos, já legitimados dentro da TV mais comercial” (FECHINE, 2007,
p. 94). Sobre o grupo, afirma Arlindo Machado,
Responsável pelas experiências mais radicais do ponto de vista da invenção
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formal e da renovação dos recursos expressivos do vídeo. Mas a familiaridade do grupo
com a televisão e com as normas em geral da cultura de massa, a sua resoluta decisão de
operar na fronteira entre a cultura popular e erudita, bem como também a sua vontade
de intervir criticamente na realidade do país, tudo isso acaba contribuindo para tornar
mais “acessíveis” e generalizáveis as conquistas formais e temáticas que se dão na
vanguarda da invenção estética, sem incorrer, todavia, em diluição (MACHADO, 2007,
p. 19).
O programa “Abertura”, de criação e direção de Fernando Barbosa Lima, foi ao
ar de fevereiro de 1979 a julho de 1980, com transmissão pela TV Tupi, sendo o primeiro
programa jornalístico sobre política e cultura produzido após a extinção do AI-5. Nele
vários intelectuais, com posturas completamente divergentes do regime militar, tinham
espaço no programa através de quadros, como, por exemplo, Glauber Rocha, Ziraldo,
Villas Boas Corrêa, Antônio Callado e Fausto Wolf. O programa fora ao ar quando a
emissora passava já por um contexto de crise e com diversos problemas de greves em
seu quadro de funcionários, devido à falta de pagamento dos salários, situação que, em
parte, resultaria no seu fechamento, devido a não renovação de sua concessão pelo
governo militar.
Uma das influências mais marcantes para a TVDO foi, sem dúvida, o trabalho
de Glauber Rocha, não exatamente do cinema, mas sim em seu quadro no programa
televisivo “Abertura”, no qual o cineasta baiano protagonizou exibições e intervenções
demolidoras, com apresentações provocantes e controvertidas, “inaugurando um estilo
de apresentação bastante provocador, isento de formalidades, falando alto, a câmera
enquadrando-lhe o rosto em closes muito fechados, como se lhe fossem tocar o nariz”
(MACHADO, 2007, p. 33). Desta forma, a TVDO torna-se impensável sem a influência
glauberiana. Além de Glauber Rocha, outro grande mentor de práticas artísticas com o
vídeo, que também iria influenciar a produtora paulista, era o apresentador de programas
de auditório: Chacrinha. Para Christiane Mello, ambos exploravam ao máximo,
O ruído da informação, a imagem conflituosa, a ruptura das regras tradicionais
de se comportar diante de uma câmera de TV [...] e conseguem, com suas
participações libertárias na televisão brasileira, dizer que existe uma forma
de produzir pensamento audiovisual não originado nem no cinema, nem nas
regras rígidas concebidas pela própria televisão. Antes de tudo, eles chamam
o fato para uma nova linguagem: o vídeo (MELLO, 2008, p. 95).
Considerado a melhor tradução para a mídia eletrônica em termos de espírito
demolidor e anárquico de Glauber Rocha (MACHADO, 2007, p. 19), Tadeu Jungle,
integrante e um dos fundadores do TVDO, ao relembrar a respeito do grupo e suas
influências, descreve da seguinte maneira o contexto cultural à época,
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP,
1980, cinzas da ditadura. Quatro estudantes, um de cinema e três de televisão,
se uniam para fazer TV. Nosso lema era: “Tudo pode ser um programa de
televisão”. Tudo. O que acontecia era. O que não acontecia, também era.
TV. Para nós, não havia limites. Achávamos que podíamos tudo. Nascemos
no meio acadêmico batizado pela cultura de massa. Principalmente pela
televisão. Eram ainda tempos de “filme de autor”, lembranças da tropicália,
e vídeo era apenas o nome de uma fita. No nosso caldeirão de referências
Mocidade independente: experimentalismo na TV brasileira
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 60-80, jan.-jun., 2016.
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havia J.R. Aguilar, Glauber Rocha, Godard, Eisenstein, Dziga Vertov, Augusto
de Campos, Maiakovski, Zé Celso Martinez Corrêa, Oswaldo de Andrade,
Caetano Veloso, Rolling Stones e.... Em lugar de honra: Chacrinha (JUNGLE,
2007, p. 203).
Como toda a geração do vídeo independente, a TVDO também fazia televisão,
porém fora da TV, e aos poucos foi conseguindo espaço tanto nas emissoras comerciais
como públicas. Porém, o mundo da TV se insere ao mundo do entretenimento e da
comunicação e não da arte, aí ficaria a dúvida entre experimentalismo e televisão. Visto
tal imbricação, os videomakers não caminharam em tal dicotomia, e de forma criativa,
produziam na possibilidade de convergência de ambos. No que tange ao circuito da TV,
a produtora independente TVDO teria participações em programas como “Mocidade
Independente” e “90 minutos”, veiculados à TV Bandeirantes, “Avesso” e “A Fábrica do
Som”, na TV Cultura e “Realidade”, na TV Gazeta (MELLO, 2007, p. 11).
“Mocidade Independente”, Rede Bandeirantes, 1981.
Para pensar o programa televisivo musical “Mocidade independente, será
pontuado de antemão, o que Jérôme Bourdon conceituou de co-texto televisivo, ou seja,
tudo que esteja inserido na questão da emissão de um programa como a influência das
demais emissoras, de profissionais de TV, do público telespectador, e que, mormente,
não são consideradas por diversos pesquisadores. Posteriormente, a análise discorrerá
sobre a materialidade do programa em si em termos de linguagem e emissão de seu
texto televisivo, para por fim, se chegar ao mapeamento do contexto social no qual o
programa foi difundido.
Em janeiro de 1981, Walter Clark assumiria a direção geral da TV Bandeirantes,
anunciando uma programação baseada em jornalismo, esporte e serviços com muita
preocupação na informalidade, calor humano e criação. Na realidade, Clark deu a
impressão de estar disposto a criar na emissora Bandeirantes um antipadrão Globo,
procedendo à autocrítica e a revisão daquilo que ele próprio criou, pois, com a
implantação do padrão Globo de qualidade, a autocensura e a abolição dos auditórios,
além de eliminar a espontaneidade, fez com que a TV Globo passasse a submeter sua
produção a um conjunto de convenções formais que lhe garantiu um estilo próprio.
Porém, de certo modo, acarretava na padronização de alguns formatos de programas
da emissora (RIBEIRO, 2010, p.119).
Após seis meses de direção geral Walter Clark na Bandeirantes, o crítico
televisivo da Folha de São Paulo, Gabriel Priolli, faria um balanço da nova programação
da emissora no jornal. E concluía que, de todos programas estreados o mais ousado seria
sem dúvida, o musical “Mocidade Independente” uma criação do inquieto Nelson Motta.
Não por acaso, o musical foi escolhido para abrir o pacote de estreias. E acrescentava
Priolli que
Começar uma nova programação pelo que ela tem de mais radical, inovador,
talvez funcione como um balizamento, a atrair para o seu caminho todo o
resto. Se a Bandeirantes queria impacto e com esse impacto sensibilizar
também seus próprios quadros, acertou na escolha (PRIOLLI, 1981a, p. 34).
ALVES, Rafael Paiva
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A concepção do programa estava a cargo do compositor, produtor musical e
de grande capital social nos meios de comunicação eletrônicos Nelson Motta. Este já
havia vencido o Festival Internacional da Canção em 1966 com a canção “Saveiros”, em
parceria com Dorival Caymmi, quando também ganhariam um coro de vaia. Nelsinho,
como também era chamado, já possuía neste período grande capital social tanto no
meio musical como no televisivo, visto que já havia sido jurado de festivais musicais
televisivos, bem como apresentador dos programas de TV “Papo Firme” e “Sábado
Som”, ambos na TV Globo. Soma-se ainda, a criação da primeira trilha sonora especial
para uma telenovela: “Pigmalião 70”.
Na “reportagem” da revista Veja “A fonte da Juventude”, de 01 de julho de 1981,
diferente das edições anteriores, que contava com pouco espaço sobre o meio televisivo
na revista, nesta edição a estréia do programa contava com quatro páginas inteiras
sobre o musical. Embora sempre antenado às novas tendências musicais, segundo a
revista Veja, Nelsinho teria outros motivos para a produção do programa. Pois,
Decidido a estender a filosofia do programa a outros meios de comunicação,
Nelson Motta prepara-se agora para lançar sua própria gravadora de discos,
o selo Hot. Para isso conta com a ajuda de Leonardo Netto, ex-gerente de
Marketing da gravadora WEA e seu sócio em todos os projetos empresariais.
Juntos, eles pretendem criar uma alternativa dentro da atual crise do disco
no país. A estratégia é despadronizar o tamanho e o número de faixas dos
discos, barateando-os, e criar uma estrutura simples, que lhes permitam
lucrar com vendagens muito inferiores às das grandes gravadoras. O primeiro
lançamento do selo Hot está previsto para julho: um compacto com o grupo
Gang 90 e Absurdetes, do qual faz parte a namorada de Motta, a paulistana
May Pinheiro (A FONTE..., 1981, p.118).
Além do programa “Mocidade” e da nova gravadora, o selo Hot, Nelson Motta
mantinha uma coluna no jornal O Globo, além de ser sócio proprietário do Noites
Cariocas, uma boate instalada ao ar livre no alto do morro da Urca e da casa de show
Paulicéia Desvairada em São Paulo. Ou seja, em tempos de indústria cultural consolidada
no Brasil, era uma estrutura que pensada em termos musicais, Nelson Motta contava
com gravação dos álbuns (selo Hot), local para shows (boate Noites Cariocas ou Paulicéia
Desvairada), crítica especializada impressa (jornal O Globo) e promoção e difusão no
meio televisivo (“Mocidade Independente” na Rede Bandeirantes).
A princípio, o programa entraria no ar às 16 horas, mas como para Walter Clark o
programa havia ficado tão bom, que decidiu-se colocá-lo concorrendo com a telenovela
“Baila Comigo” às 20 horas. Era uma estratégia de segmentação do público na busca
de tentar guinchar a juventude que não assistia telenovela para o musical, ou seja,
se configuraria, de certo modo, como um programa para jovens. Torna-se evidente a
relação que o programa estabelecia com a grade das outras emissoras, em especial,
ao programa de maior IBOPE do horário: a telenovela da Rede Globo. Bourdon utiliza
o conceito de co-texto televisivo para designar esta concorrência entre as grades
das emissoras, tanto no nível da produção (por parte dos profissionais) quanto no
âmbito da recepção (por parte dos telespectadores) com o intuito final de combinarem
os programas de acordo com seus interesses (BOURDON, 2011, p.18-19). No caso do
programa “Mocidade Independente”, o combate no mesmo horário com a telenovela da
Rede Globo, justamente no sábado quando era apresentado um capítulo esticado até às
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22 horas, isto é, ocupando todo o horário do musical, vai ser fundamental para o futuro
do programa, ou melhor, para o não futuro do programa. Que ficará no ar apenas oito
edições por falta de altos índices de audiência (PRIOLLI, 1981b, p. 32).
Ao pensar a relação entre programação televisiva e publicidade, José Mario Ortiz
Ramos afirma que a produção de entretenimento e as necessidades dos anunciantes
sempre caminham lado a lado (RAMOS, 2004, p. 42). A partir desta reflexão
aparentemente simples, pode-se pensar o papel e a influência do mercado publicitário
no sistema televisivo comercial. Ramos destaca também que, no início das transmissões
televisivas, a ação dos anunciantes não foi secundária, ao contrário, foi direta com as
agências do setor criando e produzindo os programas televisivos. Posteriormente,
acrescenta ainda que os profissionais da área de publicidade, como Boni e Walter
Clark, conferiram à TV Globo amplas visões de marketing além de uma racionalidade
administrativa empresarial. Soma-se ainda, o avanço da pesquisa de mercado, a noção
de público-alvo e as inovações da emissora na venda de audiências qualificadas em
diversos horários, com a venda do tempo comercial e não mais a programação, ou seja,
à venda de audiência.
Principalmente após a reorganização da programação no início dos anos 80, as
emissoras iriam compor suas grades de programação em consonância com as demais
emissoras, imitando alguns gêneros e formatos de sucesso ou, ao contrário, colocando-
se como uma alternativa para não disputar o mesmo público-alvo. O diretor de vendas
Rubens Carvalho, que trabalhou na Rede Bandeirantes na gestão inovadora de Walter
Clark, entre 1980 e 1981 e, posteriormente em 1983, no criticado SBT, esclarece a
influência do mercado publicitário na programação das emissoras privadas e define
bem o período através de seu depoimento:
Quando eu estava na Bandeirantes e o projeto de Walter Clark falava em
qualificação do público, o mercado me pedia índices de audiência mais altos.
Agora que estou aqui e o SBT já pode exibir altos índices de audiência, o
mercado nos exige qualificação (SBT INVESTE..., 1983, p. 12).
Segundo Nelson Motta, a ideia do programa nasceu com as aparições de Glauber
Rocha no programa “Abertura” na TV Tupi em 1979, pois se dizia impressionado com
a loucura, a anarquia que Glauber Rocha fazia com a televisão. E assim acrescentava,
Fiquei dez anos na Globo, que me deu uma boa formação mas também um
senso preciso de como a TV oficial é amarrada. Não diz nada aos jovens. A
única ruptura que vi na linguagem oficial da TV foi a atuação de Glauber Rocha
no programa “Abertura”, e ele me inspirou muito na concepção do “Mocidade”
(A FONTE..., 1981, p.118).
Para adentrar na questão do texto televisivo com o intuito de analisar a
materialidade do programa em si, é preciso primeiramente, identificar os profissionais que
atuaram na produção do programa. Portanto, a produção do “Mocidade independente”
contou com a presença de outros artistas além do apresentador Nelson Motta, como
o grupo musical-teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone e a produtora independente de
vídeo TVDO ou TV Tudo. Deste modo, o primeiro grupo estaria na responsabilidade de
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fazer pequenas cenas de humor, além de satirizar alguns aspectos econômicos, políticos
e sociais, ou mesmo de da própria televisão. Fundado por Regina Casé e Luís Fernando
Guimarães o grupo teatral através de criações coletivas e aparições informais buscavam
descontruir a dramaturgia, sobretudo a comédia. Já os videomakers revezariam entre
a assistência de produção, direção e edição do programa. Explicava Tadeu Jungle na
época, “a grande ambição da TV é ter fórmulas, formatos, para construir uma indústria
de programas e facilitar as coisas. Nós oferecemos uma opção ao esquema, que pode
ser usada eventualmente pelas emissoras” (A FONTE..., 1981, p.117).
Se a concepção do programa estava a cargo de Motta, a materialização só foi
efetivada graças aos integrantes da TVDO. Com uma proposta atrevida de renovação, o
programa seria bem recebido pela crítica especializada, como pode-se perceber, através
da crítica do jornal Folha de São Paulo apenas três dias após a inauguração do musical,
Mocidade independente não apenas divulga vanguarda, mas se quer vanguarda.
A diferença é essencial. Já que a linguagem de um programa condiciona seu
conteúdo. Fazer TV em linguagem careta equivale apresentar uma nova teoria
literária com um texto escrito em ortografia antiga, ou aberração semelhante.
E a TV, com o advento do padrão Globo de Qualidade é uma área da produção
cultural onde não se vê, há muito tempo, nenhuma grande inovação de
linguagem. O que mais há são cópias, com um ou outro retoque na maquiagem
(PRIOLLI, 1981a, p. 34).
A vinheta de abertura do programa era uma espécie de pássaro no formato de M
e I, ou seja, as letras iniciais do programa que sobrevoava longamente até flutuar no ar
e começar a chocar um ovo, que dentro de instantes trincaria sua casca para dar vida
ao “Mocidade Independente, tudo em cores fortes e marcantes; tudo ao som de uma
canção de rock chamada tesouros da juventude, que constituiria a primeira parceria
entre o letrista Nelson Motta com o músico Lulu Santos.
Figura 1: Frame da vinheta de abertura. Fonte: Biblioteca Municipal Digital Nair Lacerda em Santo André (SP).
“Mocidade independente”, 1981, VHS, 21”. Acesso em 14 de abr. de 2016.
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Após a vinheta ocorriam frequentemente algumas chamadas em off que eram
pronunciadas - sempre carregadas de um tom irônico - com dizeres como: Atenção
senhores pais, este programa não provoca qualquer tipo de dependência física ou
psicológica: é independente, ou então, atenção senhores filhos, este programa não
contém cenas de sexo explícito nem nu frontal.
Ao buscar ousar na produção e apresentação do programa percebe-se que não
havia roteiro e quase nada era pré-planejado. Os programas eram gravados na casa de
rock Paulicéia Desvairada, em São Paulo, onde os músicos e convidados passavam a
tarde e improvisavam atuações ao vivo. O público presente também era escolhido das
diversas áreas culturais e artística pela produção do programa. A apresentação estava
a cargo de Nelson Motta que como um anfitrião ora entrevistava, ora orientava as
apresentações. Embora, planejasse no decorrer das edições dos programas, deixar de
aparecer no vídeo a ponto do programa se configurar como um documentário-musical.
Assim, o programa que abriria a nova programação da emissora a cargo de Walter
Clark seria o “Mocidade Independente. Em termos musicais, já na estreia do programa,
no dia 27 de junho de 1981, se apresentariam “ao vivo
6
Arrigo Barnabé e Caetano
Veloso, takes dos grupos norte americano de funk Kid Creole and The Coconuts, e o
rock Blondie, além de uma homenagem do artista plástico José Roberto Aguillar a Bob
Marley. Assim Gabriel Priolli descreveria o programa de abertura,
Mocidade Independente tem um ritmo vertiginoso. No programa de abertura
de sábado, isso não foi tanto um resultado da música de Arrigo Barnabé,
Caetano Veloso, Kid Creole (August Darnell) and The Coconuts ou Blondie,
mas um ineticuloso trabalho de edição de imagens. É justamente na edição,
além da câmera portátil que faz as cenas de detalhes, que está o charme
do programa. Nela está também o trabalho da TVDO (TV Tudo), o grupo de
jovens produtores de TV incorporado à equipe do programa. Foram eles que
instalaram um saudável espírito de anarquia na equipe, materializando a
concepção de Nelson Motta (PRIOLLI..., 1981a, p. 34).
Acrescentava ainda Priolli que o “Mocidade” visava divulgar a vanguarda cultural
e artística brasileira, o trabalho daqueles com sensibilidade geralmente além da mediana,
que agradava uma parte dos telespectadores e horroriza a outra, e que desde o AI-5 e
a escalada da repressão político-cultural, que a produção da vanguarda estava afastada
dos meios de comunicação de massa. Reduzir essa distância já seria um objetivo mais
do que suficiente para legitimar qualquer programa de TV” (PRIOLLI, 1981a, p. 34).
Outras atrações artísticas fizeram parte do musical como a homenagem que
Aguillar fez para Bob Marley. Enquanto o clipe de Jimmy Cliff cantava músicas de
Bob Marley, o artista Roberto Aguillar fazia uma intervenção de grafite com o rosto
do jamaicano na parede do Paulicéia Desvairada, somando-se ainda, as participações
teatrais de Paulo Priolli e à poesia de Tavinho Paes. Outra homenagem feita no programa,
foi a reportagem referente ao artista tropicalista Hélio Oiticica em que Wally Salomão
recita uma poesia. Segue-se abaixo o frame do poeta.
6. Diferente da maioria dos programas de auditório, os músicos não utilizavam o “play back” e tocavam
ao vivo no programa. Porém, eram editados e somente iriam ao ar dias depois.
ALVES, Rafael Paiva
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Figura 2: Frame do poeta Wally Salomão Fonte: site da Associação Cultural Videobrasil. Disponível em: < http://
site.videobrasil.org.br/acervo/obras/obra/89715>. Acesso em 20 de fev. de 2016.
Em sua intervenção artística, Wally Salomão abre uma cortina de fitas coloridas
e despeja sua poesia encarando o telespectador. E assim recitava o poeta: também num
assim chamado mundo das artes plásticas, o samba tem só uma nota: HO, ou seja, Hélio
Oiticica. Quero dizer com isso que o golpe de fada, quer dizer com varinha de códon,
não se produz nenhum Mondrian, Malevich ou Duchamp. Hélio Oiticica é o rio de fogo
que se tem que cruzar para atingir o território da invenção. Na edição do programa e
após trabalho de pós produção, ocorre um corte brusco de imagem, ao som de uma
rajada de tiros e sons de sirene quando na tela aparecem fortes cores que rapidamente
se transformam em preto e branco ao passo que os barulhos aumentam.
A fim de mapear o que Bourdon denominou de contexto televisivo do programa,
ou seja, a reconstituição do espaço social de recepção será pontuada como a imprensa
do período recebeu o programa. A Folha de São Paulo descreveria que pela primeira vez,
“a televisão preocupa-se em fazer um programa para o público jovem com uma nova
linguagem”, sendo capaz de incorporar à própria estrutura dos espetáculos as loucuras
normalmente oferecidas no conteúdo, e acrescentava que “os jovens não terão apenas
assuntos de seu interesse tratados na linguagem convencional de TV, mas verão uma
integração de conteúdo e linguagem” (A MOCIDADE..., 1981). Para Priolli, “criaram
uma linguagem “telefágica” que está devorando a TV tradicional, para gerar uma nova,
inquietante, instigante. Ainda não fizeram 10% do que podem e devem fazer” (PRIOLLI,
1981a, p.34) ou segundo a revista Veja em suma, era um “Fantástico” de vanguarda, sem
farmácia e, também, sem a poderosa estrutura a Globo (A FONTE..., 1981, p.117).
Na segunda semana, o programa contou com a presença de Itamar Assumpção e
Raul Seixas. E se parte do público gostava do formato do programa, outra parte deveria
ficar ficaria impressionada com a ousadia dos convidados. Ao som de um pesado Rock
and roll, Raul Seixas começaria o programa gritando diversas palavras de ordem como:
“Eu quero matar a minha vozinha. Eu quero cuspir no copo de meus amigos! Eu quero
matar minha mãe! Eu não acredito mais em nada! Eu sou Punk!”. Tudo ao mesmo tempo
invocava um desempenho em que bagunçava os cabelos despenteados e intercalava
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socos no próprio peito, em uma sequência de frases aos gritos e gemidos do cantor
baiano de “Meu Deus”. Não mais guitarrista e tal como um maestro, Raul Seixas num
jogo cênico com as mãos faz com que a música pareça uma mágica, que sumia aos
poucos, até acabar na palma de sua mão, quando é jogada no chão em sintonia com a
banda que encerra a apresentação da canção.
No mesmo programa, mais um corte brusco e segue Motta a perguntar
serenamente o que o baiano achava da abertura política, que responde: Eu fiz um disco
em homenagem a ditadura brasileira chamado Abre te Sésamo, O Ali babá e os 40
ladrões. E após um pequeno diálogo sobre a crise brasileira, e uma discreta cusparada
no chão do programa, Raul começa a cantar a música Aluga-se, contendo em sua letra
uma crítica impiedosa e sarcástica à relação econômica brasileira durante o regime
militar com outros países, especialmente com os Estados Unidos. Na performance do
programa, a letra da música é modificada da versão original do LP, e no lugar de “está
tudo pronto aqui é só vim buscar”, o baiano improvisa a letra “está tudo pronto agora é
só vir roubar. A solução é alugar o Brasil”, ao passo que enquanto a banda segue em solo
de guitarra, Raul se joga ao chão com os pés levantados para cima. Realmente era o caos
e a não linearidade da narrativa. Posteriormente, o cantor baiano dá de presente ao
apresentador Nelson Motta uma aranha fazendo alusão à música censurada “Rock das
Aranhas”, a qual, apesar de constar no LP supracitado, era proibida de ser tocada em
lugares públicos, o que não impediu o apresentador e Rauzito de cantarolarem o sucesso
e terminarem com altas gargalhadas debochadas. Por fim, segue-se à apresentação
musical das canções Abre-te Sésamo e Metamorfose Ambulante.
Itamar Assumpção e a Banda Isca de Polícia, por sua vez, ao apresentarem a
música Luzia
7
, que diferente da música do LP onde Itamar tem grande participação
como instrumentista, nesta performance o personagem Beleléu apenas canta e assume
sua postura cênica. A ambientação do cenário fica a cargo dos edifícios de São Paulo
pintados na parede da casa de show Paulicéia Desvairada. Deste modo, ao pensar o
produto final, observa-se planos inusitados e instigantes onde a vanguarda musical
se entrelaçava com a linguagem televisiva que também se queria vanguarda, ao passo
que, apareciam na tela as provocativas frases: O Som aumenta e Aumenta o som. A
participação contava ainda com gravações em takes de depoimentos de Itamar sobre
diversos assuntos urbanos da metrópole paulista.
7. Na performance da música Luzia do LP “Beleléu, Leléu, eu”, Itamar Assumpção além de cantar grava
as linhas de percussão, baixo, piano e guitarras. Este álbum foi lançado pelo selo Lira Paulistana em 1981.
ALVES, Rafael Paiva
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Figura 3: Frame da cantora Baby Consoelo Fonte: site da Associação Cultural Videobrasil. Disponível em: < http://
site.videobrasil.org.br/acervo/obras/obra/89715>. Acesso em 20 de fev. de 2016.
Acima segue a imagem da cantora Baby Consoelo – que cantava acompanhada
de violão a música Minha oração – que aos poucos ia sendo desconfigurada devido
à maleabilidade do vídeo e voltava as cores naturais e vice e versa. Tal procedimento
só era possível graças às possibilidades de intervenção no vídeo, e conforme analisa
o pesquisador de comunicação e semiótica Arlindo Machado, a constituição física
eletrônica, diferentemente das imagens fotoquímicas,
É muito mais maleável, plástica, aberta a manipulação do artista, resultando,
portanto, mais suscetível às transformações [...]. Pode-se nela intervir
infinitamente, subverter seus valores cromáticos, inverter a relação figura
e fundo, tornar transparentes os seres representados [...], assim, se definirá
rapidamente como uma retórica da metamorfose: em vez da exploração da
imagem consistente, estável e naturalista da figura clássica, ela se definirá
resolutamente na direção da distorção, da desintegração das formas, da
instabilidade dos enunciados e da abstração como recurso formal (MACHADO,
2007, p. 25-26).
Outras apresentações musicais interessantes do programa foram a dos benditos
Luís Melodia e Jorge Mautner; em take de Luís Melodia sem camiseta ao som da música
Fadas, que em termos de linguagem televisiva, em parte, lembrava o programa “Ensaio
de Fernando Faro, na busca de closes e detalhes do cantor; e Jorge Mautner deitado sem
camiseta em um sofá de oncinha divulgando seu LP Jorge Mautner: Bomba de estrelas,
já seria algo inusitado. Agora se soma à imagem, uma baixa varredura em que a câmera
lenta disforma e modifica a voz do músico tornando-o quase que uma alucinação
psicodélica. De sua boca, a sátira camuflada do compositor ao lembrar-se do episódio
da bomba Rio Centro em que militares contrários a abertura política planejavam injetar
as bombas em um show no dia do trabalhador de 1981, porém, a bomba explodiria dentro
do carro dos militares. O texto era: Senhor general da bomba, da bomba de estrela é
lógico, sou eu quem está lançando este novo disco: Jorge Mautner: Bomba de estrelas,
que é um disco incrível e conta com o seguinte convidado: Robertinho de Recife, Nelson
Jacobina e participações de Gilberto Gil, Moraes Moreira, Caetano Veloso, Pepeu
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Gomes, Zé Ramalho e Amelinha.
Outro elemento importante do programa diz respeito aos músicos internacionais,
estes também eram divulgados toda semana no programa. Cabe lembrar que Nelson
Motta já tinha apresentado um programa com estas características na TV Globo no
início dos anos 1970, o “Sábado Som.
Sobre o fim precoce do programa, credita-se em parte, à falta de infraestrutura
técnica e administrativa da Rede Bandeirantes ou mesmo a concorrência com a novela
global e seu capítulo especial de sábado. Glauber Rocha e seu quadro no “Abertura”
também não durou muito na TV, ou melhor, não teve muito tempo de transmissão.
Entretanto, para além de analisar os programas com maiores índices de audiência, da
melhor emissora ou coisa que os valha, este artigo procurou focar um programa que
furou o bloqueio da televisão comercial, e que mesmo não tendo índices de audiência
compatíveis ao horário nobre, conseguiu seu espaço, ainda que brevemente. Na secção
“Cartas” ao jornal Folha de São Paulo, o mesmo telespectador do musical que após
o quarto programa escrevia: “Mocidade independente tá com tudo! Estilhaça” ou um
programa “oswaldianamente delicioso” (A FORÇA..., 1981, p. 27), após o término do
programa, se manifesta sua indignação e dispara assim sua crítica na mesma coluna do
jornal três meses depois,
Tirá-lo do ar é revelar com todas as letras (e imagens) o poder da burrice
platinada que impera na Bandeirantes. [...] E mais: Mocidade Independente
bebe na iluminada inteligência do brilhante Glauber Rocha. (E preciso beber em
Glauber). [...] Por isso um programa cheio de ousadia, criatividade permanente
(BURRICE PLATNADA..., 1981, p. 27).
No dia 22 de agosto de 1981 morria, no Rio de Janeiro, o cineasta, ator e escritor
Glauber Rocha vítima de um choque séptico, cujos sintomas começou a sentir em
Sintra, Portugal, onde realizava filmagens. No mesmo dia, em São Paulo, o programa
“Mocidade independente” transmitia sua última edição na Rede Bandeirantes. Apesar
da rápida passagem televisiva de Glauber Rocha, no “Abertura”, na Tupi, ela modificaria
completamente o futuro da linguagem televisiva no país, bem como influenciaria a
produtora paulista TVDO em seus futuros trabalhos.
Assim, com o auxílio conceitual do historiador francês Jérôme Bourdon (BOURDON,
2011) foi possível tentar pensar o programa musical “Mocidade independente” em sua
totalidade ou pelo menos sob diversos ângulos. Pois, inserido em um momento peculiar
da história da música brasileira, onde a indústria cultural no país já estava consolidada
e novas propostas - econômicas, ideológicas ou estéticas - tinham pouco espaço de
difusão nos grandes meios de comunicação social, em especial na televisão, o programa
musical se tornou simbólico e influenciaria na concepção e criação do programa musical
A Fábrica do Som” dois anos após pela TV Cultura.
Sob a ótica musical, o programa abriria espaço no meio televisivo para que
diversos músicos difundissem seus trabalhos em rede nacional, visto que no período,
a Rede Bandeirantes já possuía um total de 22 emissoras entre próprias e afiliadas.
E, em termos de público, chegava-se a casa de milhões de telespectadores. Assim, ao
abrir espaço para diversos músicos independentes, o programa se diferenciava de toda
a programação da grade tanto da própria emissora como das demais concorrentes. E
ALVES, Rafael Paiva
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 60-80, jan.-jun., 2016.
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a concretização do programa só foi possível, graças à nova proposta de programação
de Walter Clark, que abriu espaço a ideias inovadoras. O programa “Mocidade
independente” também é pioneiro no que se refere à introdução das denominadas
produtoras independentes de vídeo dos anos 1980 no setor televisivo, pois a TV Tudo
inauguraria, e modificaria esta relação entre independentes e a TV broadcasting.
Por fim, o inovador texto televisivo do programa foi muito bem recebido pelo
contexto de crítica televisiva da época, uma vez que a concepção de Nelson Motta -
completamente influenciado pelas aparições de Glauber Rocha na TV - se materializava
nas mãos da TVDO em algo inovador e experimental
8
. Buscava-se assim, através de
uma estética própria e com elementos e ritmo alucinante influenciados pela videoarte,
a ilustração das músicas com os videoclipes. Porém, não era mais a mera descrição das
letras musicais em imagens, conforme ocorriam nos quadros musicais do programa
“Fantástico” da Rede Globo no mesmo período. No “Mocidade independente, tal como
as figuras de linguagens para a literatura, as imagens realçavam o texto televisivo e
dependendo do vídeo difundido na tela, experimentalmente, a própria produção do
sentido musical era transformado.
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8 No ano de 1981 quando o programa “Mocidade independente” ia ao ar propondo videoclipes
experimentais para as canções, nos Estados Unidos era inaugurada a primeira emissora musical: a MTV.
Mocidade independente: experimentalismo na TV brasileira
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