Recebido em: 13/10/2015
Aprovado em: 17/11/2015
Forjando o historiador: periodização e longa Idade
Média
COPPES JR., Gerson Ribeiro
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“Permito-me assinalar que na língua céltica, mais particularmente em bretão,
o ferreiro é dito “Le Goff”” (LE GOFF, 2015, p.104)
O falecimento de Jacques Le Goff, em abril de 2014, foi tão impactante quanto
a morte de Eric Hobsbawm dois anos antes. Com a partida de Le Goff, abria-se uma
lacuna, um vazio nos estudos medievais daquele que foi um dos seus escudeiros mais
fiéis na luta contra as sombras que insistiam em ser colocadas sobre esse período; assim
como no campo metodológico, onde a perda não fora menor para os fundamentos da
teorização da chamada História Nova.
O último livro de Le Goff - A História deve ser dividida em pedaços?
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- mostra, nas
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Mestrando em História - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de
Assis - UNESP - Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900,
Assis, São Paulo - Brasil. Bolsista CNPq. Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito
do Projeto Temático “Escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP. E-mail: gersoncoppes@
hotmail.com
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Livro originalmente lançado em fevereiro de 2014, na França, sob o título
Fault-il vraiment découper
l’historie em tranches?
, publicado no Brasil pela Editora UNESP, em 2015.
Forjando o historiador: periodização e longa Idade Média
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p.202-206, jun.-dez., 2015.
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palavras do autor, um “livro-percurso” que atravessa sua trajetória como historiador.
As indagações as quais Le Goff se propôs a investigar seriam como a emergência de
uma mundialização, implicando nos questionamentos da noção de periodização ou da
ação do homem sobre o tempo.
Se o recorte do tempo em períodos é importante para a História, deve-se levar em
consideração que esses recortes não são neutros e, além disso, são objetos de disputa.
Desta forma, para compreender as vicissitudes da periodização - sua necessidade ou
não, remetendo à pergunta-título - Le Goff examinou as motivações que estiveram
presentes na formação de dois períodos, a Idade Média e o Renascimento.
Apesar das diferentes tentativas de periodização que se seguiram até o século
XV, a noção de Idade Média como período singular só surgiria entre os séculos XIV e XV,
quando certos grupos de escritores e poetas, principalmente na Itália, pressupunham
viver em um período distinto e novo e precisavam definir um nome para o período do
qual apontavam estar saindo.
Mesmo que o primeiro autor a utilizar o termo “Idade Média” tenha sido Petrarca
no século XIV, seu uso não seria corrente até o século XVII e, assim, iniciou-se também
sua associação a um tempo sombrio, visto claramente como exemplo na tradução da
expressão para o inglês britânico - Dark Ages.
Seria necessário percorrer até o século XIX para que tal conotação negativa
fosse desvinculada e se tornasse possível vislumbrar um período brilhante. No século
XX, Marc Bloch e os Annales perseguiram de forma semelhante uma época com seus
brilhos e sombras. No entanto, o aspecto negativo resistiu a essas tentativas de rever
esse período sob uma perspectiva diferente.
A construção de uma visão negativa da Idade Média, para Le Goff, expõe como a
periodização da História não era e não é um processo neutro e passível de modificações
conforme o decorrer do tempo. A própria noção de Renascimento seria um exemplo
desses aspectos de construção/reconstrução, visto que o termo não existia antes do
século XIX e demorou a ser imposto sobre a Idade Média.
Da mesma forma, a noção de Antiguidade que, na Idade Média, referia-se
somente à Grécia e a Roma, se transforma, posteriormente, nesse processo que emerge
no período medieval conveniando, atualmente, em chamar de Antiguidade Tardia o
período datado do século III ao VII, marcando nessa transição para a Idade Média uma
transformação longa e dinâmica.
A necessidade de fracionar a História surgia em função de sua própria evolução
como saber particular e matéria de ensino. Se os monges e cronistas prefiguravam
um saber histórico, os progressos da erudição na análise das fontes no século XVII
indicavam uma “revolução” do método. O amor pela verdade passava pela análise da
prova, pois a construção de periodizações baseava-se em estabelecer uma verdade
histórica.
A História como matéria de ensino, no entanto, só surgiria como tal no século
XVIII e XIX e ainda presa a exemplos morais ligados a noção de historia magistra vitae.
A evolução do ensino de História durante o século XIX refletia duas preocupações:
manter a religião e tomar consciência da nação. A transformação da História em matéria
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de ensino levou à sistematização em períodos que tornasse capaz captar seus pontos
de alternância. E nesse aspecto, durante o século XIX, ressurge a oposição entre Idade
Média Obscura e Renascimento das Luzes.
Nos capítulos Nascimento do Renascimento e O Renascimento Atualmente, Le
Goff continua sua análise agora buscando a invenção dessa expressão para denotar um
período singular, o Renascimento, e como o período foi abordado pelos seus teóricos
durante o século XX.
Se a expressão Idade Média surge com Petrarca, no século XIV, também surge
com ele a noção de um novo período em oposição a um anterior, para a qual seria
designada uma expressão própria somente no século XIX.
Na História da França de 1833, Jules Michelet apresentava uma visão positiva de
Idade Média como período de luz, criação. No entanto, no decorrer de sua trajetória a
Idade Média, que atuava como um “espírito materno” se tornava longínqua, distante, uma
inimiga. Se até aquele momento não havia o hábito de se dividir a História em períodos,
com exceção da divisão entre “antigo” e “moderno, e a adição do tempo mediano,
“medieval”, criado por Petrarca, Michelet cunhou o Renascimento com maiúsculo como
um movimento distinto na História oposto ao obscurantismo do período medieval.
No século XX, Le Goff aponta que o discurso enaltecedor do Renascimento, que
atravessou o século XIX, continuou com nomes como Eugenio Garin, Erwin Panofsky
e Jean Delumeau.
Eugenio Garin apontava que a maioria dos historiadores do século XX havia
reavaliado a Idade Média e rebaixado o Renascimento. Portanto, ele buscava em seus
trabalhos destruir essas “catedrais de ideias” sobre o período medieval. Garin enunciava
duas ideias centrais na análise da relação entre Idade Média e Renascimento: a Itália
como centro e coração do Renascimento; e o novo homem que ela forma reunindo nesse
território todos os conflitos dessa época. Erwin Panofsky apontava ainda para uma
pluralidade de renascimentos precursores e Jean Delumeau apontava que dois aspectos
que faziam do renascimento um período completo eram a descoberta da América e a
circum-navegação mundial.
Nos capítulos A Idade Média se torna “os tempos obscuros” e A longa Idade
Média, as visões sobre o Renascimento são confrontadas com a construção em torno
de uma Idade Média como período de trevas. Le Goff busca a construção uma nova
visão sobre esse período. Se a necessidade de acessar a Antiguidade levou ao desprezo
dos humanistas de um dito Renascimento pela Idade Média, que teriam ignorado esse
período, Le Goff se põe a apontar o inverso, como a Idade Média se apropriou e deu
continuidade a certos aspectos da Antiguidade.
Entre o século XV e XVIII a ideia de uma Idade Média ligada às trevas era associada
a um recuo da racionalidade dando lugar ao sobrenatural. Porém, a racionalidade se
entremeou de certa forma na teologia chegando a transformá-la em ciência no século
XIII. Apesar da periodização de Santo Agostinho – os seis períodos na História como
metáfora para as seis idades do homem – ter prevalecido, existiam clérigos que
discordavam da ideia de que o “mundo envelhece” e se reconheciam como “modernos”.
Le Goff frisava, contudo, a dificuldade do uso do termo moderno durante a
Idade Média, pois poderia ter um sentido tanto laudatório quanto pejorativo por essa
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concordância/discordância com o envelhecimento do mundo. A noção de moderno era
incompatível com a finitude das seis idades.
Para Le Goff, o renascimento intelectual do século XII, cujas mudanças levaram
esses clérigos a flertarem com a concepção de moderno, foi conservado sob uma zona
cinzenta. A escolástica continuou como objeto principal da crítica e rejeição dos letrados
entre os séculos XVI e XVIII, como Voltaire, que apontava que a teologia escolástica era
uma filha bastarda de Aristóteles.
Apesar da reabilitação da Idade Média no século XIX, Ernest Renan ainda
apontava a escolástica como barreira para o delicado; os homens e mulheres medievais
ainda eram bárbaros. Desta forma, Le Goff delineava uma Idade Média multifacetada e
também apontava, como contraposição, que certos aspectos atribuídos a esse período
estavam localizados, temporalmente, no Renascimento, como os pogroms, a inquisição
e os movimentos milenaristas.
No capítulo A Longa Idade Média, Le Goff retoma sua tese e intenta provar
que não haveria mudança fundamental durante o século XVI e XVIII que justificasse
a separação entre Idade Média e Renascimento, um período novo. O historiador
visa a apontar as continuidades do período medieval no mundo “moderno” e, assim,
apesar da descoberta da América, em 1492, ser apontada por Delumeau como ponto
característico da singularidade do Renascimento, Le Goff expõe que a América só se
tornaria interlocutor da Europa após as Independências entre o fim do século XVIII e
XIX. Não existia um mundo unificado, mas territórios do mundo.
As carestias na área agrícola foram frequentes desde o século X até o século
XVIII e a alimentação europeia foi primordialmente vegetal até o século XVIII. O século
XVI foi um período marcado pelas guerras de religião e o cristianismo é majoritário até
o século XVIII. Apesar do assassinato de Carlos I, em 1649, na Inglaterra, a monarquia
francesa conservou-se até o século XVIII.
Se Cristóvão Colombo descobre a América em 1492, ele ainda era um homem da
Idade Média, pois sua preocupação consistia em trazer aos pagãos/indígenas todos os
preceitos e fundamentos condizentes à doutrina e à fé cristã. Nisso, Le Goff indaga se
no prolongamento do período medieval o que é mais importante: as continuidades ou as
rupturas? Desta forma, para Le Goff, a Idade Média só se encerraria com o advento da
indústria moderna e das enciclopédias. O Renascimento do século XV e XVI é, portanto,
encarado como o último renascimento dessa longa Idade Média prenunciando os tempos
modernos.
No último ensaio, Periodização e Mundialização, Le Goff tenta voltar à ideia inicial
do texto, de entender como a mundialização implicava no questionamento da noção de
periodização. Para o autor, a periodização se torna indispensável para o historiador
compreender o tempo tendo em vista que a própria periodização seria a necessidade
do homem de agir sobre o mesmo. A mundialização causaria essas questões em torno
do tempo, das continuidades, rupturas, dos modos de pensar a História. A periodização
seria deste modo, o meio encontrado por Le Goff de problematizar essas questões,
esclarecendo como a humanidade se organiza e evolui no tempo. Desta forma, a História
deveria sim ser dividida em partes.
Le Goff, em A História deve ser dividida em pedaços?, retoma problemas que
já haviam sido expostos no livro Uma Longa Idade Média (2008) evidenciando como
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o conceito de longa Idade Média se desenvolveu nos trabalhos do autor a partir da
década de 1980. Os problemas levantados por Le Goff durante sua pesquisa em torno
da extensão temporal da Idade Média encontraram certa continuidade em alguns
historiadores.
Jerome Baschet, no livro A civilização feudal (2006), prefaciada por Le Goff,
ampliava o conceito de longa Idade Média, utilizando-a para analisar uma “herança
medieval” no México durante a colonização. No tópico intitulado “Periodização e longa
Idade Média”, Baschet defende que a Idade Média seria um antimundo, um mundo
de tradição oposto ao moderno, e essa imagem oposta só seria possível pela ruptura
representada pela Revolução Industrial, e não pelo Renascimento. O estudo da Idade
Média seria, então, um exercício de alteridade.
A obra A História deve ser dividida em pedaços? poderia ser vista, como
questiona Virginie Tournay, como um testamento intelectual? (2014). O esforço de Le
Goff para situar suas obras na historiografia já estava presente desde os anos 2000,
como em Uma Longa Idade Média. Este livro poderia ser visto como a última peça
dessa construção de sua trajetória, durante a qual, Le Goff, de próprio punho, visava
à agregação de todas essas discussões que manteve, reforçando os caminhos tomados
durante sua carreira e um esforço próprio do autor de se autoperiodizar.
Referências
BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do Ano Mil à Colonização da América. São
Paulo: Editora Globo, 2006.
LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP,
2015.
________. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
TOURNAY, Virginie. Faut-il vraiment découper l’histoire en tranches?Lectures [online],
Lescomptesrendus, 2014. Disponível em: <http://lectures.revues.org/15220>acesso
em: 09 de novembro 2015.