MANTUANO, Thiago
https://orcid.org/0000-0003-1347-2018
SILVA, Raphael Castelo Branco da**
https://orcid.org/0000-0003-2434-5161
Tradução de Raphael Castelo Branco da Silva
Recebido: 05/03/2023
Aprovado: 08/03/2023
Daniel Castillo Hidalgo
1
é um historiador espanhol, formado na Universidad de Las
Palmas de Gran Canaria (ULPGC) sob orientação do saudoso professor Miguel Suárez
Bosa. Em seu doutoramento, defendeu tese sobre o porto de Dakar, publicada pela
Vereda Libros com o título Puerto de Dakar, puerta de África Occidental. Una Historia
Económica de Senegal (1857-1957), em 2015.
Atualmente, é professor associado do Departamento de História no IATEXT-ULPGC,
onde é secretário da Cátedra PORMAR. Também é coordenador científico
Red Iberoamericana en Comunidades Portuarias (RIICOMA) e participa de projetos de
pesquisa sobre os portos canários, da costa ocidental de África, sobre navegação
marítima e defesa costeira.
Conhecemos Daniel e sua produção por intermédio do professor Cezar Honorato e no
desempenho de suas funções como secretário da Rede Internacional de Investigação La
Gobernanza de Los Puertos Atlánticos, Siglos XIV-XX. Gostaríamos de agradecer ao
professor por aceitar ser entrevistado. Muito nos honra que suas análises e informações
Doutor em História pela UFF, Niterói-RJ. Professor de História do Atlântico (DFCH/PPGH-UESC) e doutor em
História (PPGH-UFF). E-mail: thiago_mantuano@id.uff.br
** Mestre em História pela UFF, Niterói-RJ, doutorando em do Programa de s-Graduação em História da UFF,
Niterói-RJ. Professor de História dos Transportes (PGHRJ-IPN). E-mail: raphael.castelo.branco.da.silva@gmail.com
1
Para mais informações sobre Daniel Castillo Hidalgo: <https://www.danielcastillohidalgo.com/>.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
integrem o dossiê História dos Transportes no Brasil e no Mundo (XVI-XXI) desta edição
da Revista Faces da História.
Thiago - em meados do século XX que a História, entendida como ciência,
conseguiu romper com o primeiro paradigma da disciplina. A leitura de obras de
autores que podemos identificar como positivistas, escritas no século XIX e
princípios do século XX e que de certa forma trabalharam na História dos
Transportes, viram-na como uma ilustração do heroísmo e dos grandes feitos de
quem ordenou a construção ou de quem comandou os veículos terrestres e fluviais,
assim como os meios de transporte e suas condições de circulação no espaço. A
partir do paradigma científico da História, como podemos entender a forma de
abordar os transportes?
Daniel - Efetivamente, até meados do século XX, não se encontrava uma metodologia
precisa de estudos históricos sobre o transporte e a mobilidade que fosse além dos
estudos quase hagiográficos que são apontados. Penso nas monografias e estudos
publicados sobre as empresas de navegação e seus responsáveis, ou nas abordagens de
caráter técnico, para não comentarmos nada sobre a história ultramarina ligada à Era
dos descobrimentos. Essa historiografia era resultado de seu tempo e das diferentes
perspectivas que existiam também sobre o progresso das nações, assim como a evolução
das sociedades. Sendo assim, a história do transporte era, em boa medida, uma história
de triunfos e glórias imperiais. faz um tempo que esse tipo de história foi relegado a
um público particular. Atualmente, são vários os campos de estudos que podem abordar
temas que vão da História dos Transportes à mobilidade. O leque é muito amplo, indo de
questões relacionadas, por exemplo, com o próprio financiamento de infraestruturas, a
distribuição geográfica das mesmas e o impacto da conectividade no desenvolvimento
econômico regional. Podemos abordar tudo isso também de um ponto de vista social,
analisando o papel dos trabalhadores na configuração de redes de transporte, na
organização do trabalho, o impacto social da atividade portuária nas cidades marítimas, a
influência cultural e institucional do desenvolvimento de meios de transportes terrestres
como a ferrovia etc. Em resumo, a investigação neste campo oferece possibilidades
apaixonantes para a investigação de qualquer época histórica em contextos geográficos
muito diversos.
Thiago - É possível estabelecer um marco geral de fontes históricas especialmente
aplicáveis à História dos Transportes? Quais documentos históricos podemos
identificar como de maior valor ou mais recorrentes na historiografia dos
transportes?
Daniel - Como assinalei anteriormente, a variedade de temáticas é tão ampla que é
complicado oferecer um panorama preciso de fontes documentais. Em meu caso, como
especialista na história do transporte marítimo na época contemporânea, posso
confirmar que a variedade de fontes é, praticamente, inesgotável. Em todo caso, para
resumirmos, para a época contemporânea encontramos fontes secundárias, como os
anuários estatísticos e comerciais. Em tempos quantitativos, podemos arrolar muita
informação relevante sobre a atividade comercial, empresarial e de outros tipos,
incluindo também aspectos sobre a conectividade. Ressalto que existem outras fontes
interessantíssimas que eu tive a sorte de trabalhar, como os registros privados de
empresas seguradoras como a Lloyd, que contabilizavam a mobilidade dos navios
assegurados em escala mundial. Isso permite traçar de forma precisa a estrutura das
redes internacionais de transporte. Por outra parte, se nos interessa a história social do
transporte, podemos encontrar informes oficiais sobre a situação social desses grupos,
informes das próprias empresas, de inspeção de trabalho etc.
Raphael - Em nossa percepção, os trabalhos pioneiros na História dos Transportes
centraram seu objeto em apenas um modal ou em experiências limitadas ao
transporte terrestre, marítimo e fluvial. Tal visão é válida? Em sua opinião, algum
modal concentrou uma maior proporção dos trabalhos pioneiros sobre a História
dos Transportes? É possível dizer que o desenvolvimento mais recente na História
dos Transportes aponta para estudos sobre contatos de mais de um modal, ou
mesmo como deu-se a integração dos modais?
Daniel - É uma percepção absolutamente intuitiva e válida em certa medida.
Efetivamente, a intermodalidade do transporte é muito antiga na História, mas não tanto
nos estudos, com aproximações que integram as diferentes modalidades de transporte
em algo superior, em redes logísticas de caráter suprarregional. Tudo isso parece muito
vinculado ao mundo digital atual e ao sistema de produção Just In Time, mas se
examinamos a historiografia, encontramos aproximações valiosas sobra a expansão da
intermodalidade desde a Segunda Revolução Industrial. De fato, é impensável falar da
Primeira Globalização sem a presença da integração intermodal (ferrovias e navegação à
vapor). O aspecto que me parece mais interessante é analisar o impacto de tudo isso nas
sociedades, atendendo ao seu contexto histórico específico.
Thiago - Poderia o professor resumir os enfoques mais relevantes do tema dos
transportes a partir de uma perspectiva histórica? É possível discriminar o aporte
da produção historiográfica em termos de magnitude, distâncias e funções? Quais
pessoas, bens e objetos foram historicamente transportados?
Daniel - A meu ver, a principal mudança de paradigma que experimentamos nas últimas
décadas é passarmos de um enfoque relativamente estático, do transporte, a um
dinâmico, que é a mobilidade. Neste sentido, Kopper e Moraglio (2015) assentaram as
bases deste novo paradigma, lançando novas interrogações para o desenvolvimento dos
estudos nesta temática. Consequentemente, os parâmetros assinalados em sua pergunta
apresentam-se a partir de um enfoque global, colocando em destaque a maior integração
econômica internacional desde a segunda metade do século XIX. Evidentemente, para
estudos prévios a esse marco cronológico, as possibilidades de integração suprarregional
podem aparecer muito mais condicionadas, especialmente em lugares distantes dos
grandes centros de comércio e trocas. Inclusive, temas fundamentais como o comércio
de escravos no Atlântico estão experimentando transformações metodológicas radicais
graças à revolução digital e a utilização de métodos quantitativos para o tratamento
massivo de dados.
Thiago - Qual é a importância de que o historiador transite entre a análise dos
transportes nos marcos de determinada(s) sociedade(s) que os produziram e,
também ao contrário, estudar a História dessa(s) sociedade(s) através de como as
pessoas se moviam e transportavam?
Daniel - Esse é o aspecto relacionado ao impacto social dos meios de transporte que
mencionei anteriormente. Salvo quando se trata de estudos de caráter eminentemente
técnico, o estudo do transporte e da mobilidade é inseparável da sociedade. Do mesmo
modo que não se compreende uma história portuária sem suas comunidades (empresas,
trabalhadores e instituições), seria complicado escrever uma História dos Transportes
ferroviários ou rodoviários sem observar seus usuários, gestores, trabalhadores etc.
Pensemos nas consequências da relevância de uma linha férrea que se estende por uma
região e não por outra. Possivelmente, essa infraestrutura gerará efeitos positivos em
muitos âmbitos, e também efeitos negativos, que impactarão os coletivos sociais mais
próximos da mesma. As regiões que não se beneficiam dessa infraestrutura terão maior
dificuldade na mobilidade pessoal, mas também em relação aos intercâmbios comerciais,
com consequências nos níveis de vida e de acesso aos recursos públicos essenciais. É
um exemplo do caráter indissolúvel da relação entre meios de transporte e sociedade.
Raphael - Em sua opinião, quais os métodos recentemente desenvolvidos pelas
Ciências Humanas mais promissores para o desenvolvimento da História dos
Transportes?
Daniel - Por um lado, o uso massivo de dados e de aproximações quantitativas que
permitem aprofundar-se as análises de redes complexas. Por outro, a geolocalização e a
aplicação de metodologias de distribuição espacial que permitem atender a evolução de
processos de transformação territorial em um longo prazo. Os casos que conheço
melhor, neste âmbito, referem-se aos avanços desenvolvidos no continente africano.
Ambas as abordagens estão produzindo resultados interessantíssimos sobre os efeitos
multiplicadores das infraestruturas de transportes, particularmente as ferrovias e
rodovias. Existem outras iniciativas interessantes, como a que acaba de publicar Warren
Whatley (2022), sobre as rotas terrestres da escravidão na África, com uma
determinação precisa da duração de trajetos e geolocalização dos grandes centros de
extração de pessoas. Em resumo, as ciências humanas e sociais estão se beneficiando da
aplicação de metodologias de outras áreas do conhecimento.
Raphael - Sempre se menciona a ferrovia como um dos elementos que marcaram o
capitalismo no século XIX, e este paradigma influenciou uma série de estudos sobre
o tema. Você acredita que, para compreender melhor o desenvolvimento capitalista
recente, é necessário integrar estudos não sobre ferrovias, mas também sobre
outros modais que, em alguns países, estão ainda mais presentes?
Daniel - A ferrovia representa a imagem do progresso tecnológico do século XIX. Foi
uma disrupção tecnológica com extraordinários efeitos que impactaram o conjunto da
economia e da sociedade. Por exemplo, a ferrovia facilitou a conquista e a colonização do
continente africano, elemento chave para a exploração e controle efetivo do território.
Entretanto, em alguns contextos, a importância se situa no transporte marítimo. Eu falo
com vocês das Ilhas Canárias, um contexto insular no qual a ferrovia não foi implantada
por questões geográficas. Como é evidente, o peso historiográfico se situou em outro
lugar: no transporte marítimo e sua influência no desenvolvimento econômico. Parece-
me que esta questão é comparável em outros entornos, particularmente insulares, mas
também naqueles lugares no qual o tráfego por via fluvial foi determinante. Pode-se
encontrar outras formas de intermodalidade, como demonstram os estudos realizados
no norte da Europa para as grandes redes comerciais fluviais.
Raphael - É possível associar a História dos Transportes com outras áreas de
estudos, como a história das rotas comerciais ou a história da circulação de livros e
impressos? É possível fazer uma História Cultural dos Transportes?
Daniel - Sem dúvida. Quando falamos da história da mobilidade, pensamos naturalmente
no movimento de mercadorias e pessoas. Eu gosto da contribuição da professora Alice
Mah (2014), que representa as cidades portuárias seguindo um padrão de duas cores: o
azul e o negro. O azul representaria o comércio, o futuro, os intercâmbios, as
expectativas, o horizonte, em definitivo, as transformações culturais. A cor negra,
contudo, representaria os aspectos negativos vinculados à marginalidade social, o
contrabando, a pobreza, a precariedade, a contaminação; em suma, os aspectos obscuros
desses enclaves urbanos. Sendo assim, oportunidades muito interessantes na área.
Pensemos no papel da censura nos portos e centros ferroviários no período
entreguerras. As forças policiais se afanavam em controlar a informação que se
transmitia nestes entornos, posto que a transferência era extraordinária. Penso, por
outra parte, nos diários de viagem, desde os primeiros de Antonio de Pigafetta (primeira
volta ao mundo), e as possibilidades que existem desde o ponto de vista da literatura
comparada e da visão de outros indivíduos desconhecidos.
Raphael - Poderia o professor indicar trabalhos recentes na História dos
Transportes que sejam inovadores? Existem investigações recentes dedicadas à
reflexão sobre o transporte em áreas temáticas, espaciais ou cronológicas
previamente inexploradas?
Daniel - Essa questão é muito complexa e requereria uma análise muito extensa. Como
eu disse, trabalhos interessantes acerca das fases de difusão tecnológica no
transporte e nas telecomunicações em escala internacional, como os de Yrjo
Kaukinainen. Outras aproximações da geografia espacial e a análise de redes me
parecem especialmente atrativas, como as múltiplas contribuições de César Ducret.
Ambos os autores frisam as revoluções tecnológicas nas duas grandes ondas de
globalização. Para o caso particular do continente africano, encontramos importantes
contribuições citadas anteriormente, ainda que haja aproximações novas em relação
às redes de transporte terrestre por parte de autores como Herranz, Moradi, Fourie,
Engerman, Chaves, Magrinyà e Oliete. Merece uma menção à parte as decisivas
contribuições de Ayodeji Olukoju sobre a história marítima e a mobilidade do transporte
na época contemporânea na África Ocidental. Neste sentido, tive sorte de coordenar um
livro editado junto com o professor Olukoju sobre portos na África na época
contemporânea, cinquenta anos depois do trabalho pioneiro de Hilling e Hoyle (1970).
Thiago - Qual é a principal recomendação que é possível fazer aos estudantes de
história que desejam investigar temas concentrados em diálogo com a História dos
Transportes?
Daniel - Minha sugestão é que elejam um tema que os apaixone, no qual queiram dedicar
boa parte de sua vida. Por outra parte, devem ter em conta as fontes disponíveis e o
potencial interesse de seu trabalho em oferecer alguma contribuição ao conhecimento
existente.
Referências
HOYLE, Brian Stewart; HILLING, David. Seaports and Development in Tropical Africa.
Londres: Macmillan, 1970.
MAH, Alice. Port Cities and Global Legacies: Urban Identity, Waterfront Work and
Radicalism. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014.
MORAGLIO, Massimo; KOPPER, Christopher. The Organization of Transport: A History
of Users, Industry, and Public Policy. New York: Routledge, 2015.
WHATLEY, Warren. How the International Slave Trades Underdeveloped Africa. The
Journal of Economic History, v. 82, n. 2, p. 403-441, 2022.