MUACHISSENE, Eduardo Simba Rashe Jeremias*
https://orcid.org/0000-0003-0830-8336
RESUMO: O patrimônio industrial pela sua
significância contribui para a fruição cultural e
o deleite histórico. Em Moçambique e,
sobretudo, na cidade ferroviária de Moatize,
este tipo de patrimônio cultural é pouco
conhecido e se desconhece o quão
representativo ele é no tecido sociocultural. O
objetivo é demonstrar e explicar os valores e
significados que os objetos técnicos industriais
ferroviários possuem na construção da
memória cultural coletiva; daí questionamos: o
que representa e que significados têm os
espólios ferroviários de Moatize para os
cidadãos? Nossa abordagem foi qualitativa,
explicando com categorias argumentativas o
valor representacional deste patrimônio. De
forma cruzada, usamos o método cartográfico
para ilustrar a distribuição espacial do
patrimônio industrial ferroviário de Moatize e
da rede ferroviária da região centro de
Moçambique, entendendo a sua polissemia e
significâncias úteis para a cultura e para a
história das sociedades que surgiram pelo seu
efeito e para a ciência.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio industrial;
espólios ferroviários; legado cultural;
memória coletiva; Moatize.
ABSTRACT: Industrial heritage due to its
significance contributes to cultural enjoyment
and historical delight. In Mozambique, and
especially in the railway town of Moatize, this
type of cultural heritage is unknown; and,
unaware of how representative it is in the
socio-cultural tissue. The aim is to
demonstrate and explain the values and
meanings that railway industrial technical
objects have in the construction of collective
cultural memory; hence we question: what
does the railway remains of the Moatize line
represent and what meanings do they have for
citizens? Our approach was qualitative and
explain it with argumentative categories the
representational value of this heritage. In a
cross way we use the cartographic method to
illustrate the surface distribution of the
railway industrial heritage of Moatize and of
the railway network of the central region of
Mozambique, understanding its polysemy and
useful significance for the culture and history
of the societies that emerged by its effect and
for science.
KEYWORDS: industrial heritage; railway
spoils; cultural legacy; collective memory;
Moatize.
Recebido em: 13/02/2023
Aprovado em: 15/04/2023
* Mestre em Patrimônio Cultural e Museologia, estudante do doutorado no Programa de Pós-graduação em
História na Universidade Federal de Ouro Preto/Minas Gerais. Assistente universitário na Universidade
Púnguè Moçambique. Bolsista da ProAfrica. E-mail: eduardomuachissene@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Considerações Iniciais
A constituição de patrimônios industriais através de objetos/bens e determinados
agentes culturais que o representam é ainda uma prática muito receosa e menos
entendida em Moçambique ao ponto de se constatar perdas de objetos
técnicos/industriais de elevados valores e significância representacional da cultura. Pelo
valor que atribuímos e que representam os bens ferroviários, enquanto manifestações
técnicas e socioculturais devem merecer um outro cuidado e proteção a fim de serem
perenes. Nesse sentido, as políticas de preservação do patrimônio cultural devem ser
mais abrangentes, fortes e atuantes para permitir a devida contemplação cultural pelos
indivíduos, pois reforça identidade coletiva e possibilita formação e educação dos
citadinos, como se descreve no texto adentro.
A produção do universo cultural através de representação por objetos técnicos é
uma tarefa possível e benéfica para a cidade de Moatize que tem uma história adjacente
com a história do Caminho-de-Ferro de Moçambique (CFM). Os equipamentos existentes
na estação ferroviária de Moatize emanam uma memória histórica e estruturadora da
identidade organizacional que, igualmente, auxiliará na compreensão do tecido cultural
das cidades e vilas ferroviárias da linha/troço ferroviário Moatize-Beira. É nosso
objetivo, neste texto, demonstrar e explicar os valores e significados que os objetos
técnicos industriais ferroviários possuem na construção da memória cultural coletiva. E
para legitimar este objetivo e os bens patrimoniais em voga, recorremos a um processo
metodológico cruzado que pudesse nos permitir alcançar o nosso propósito. Importa
referir que o nosso artigo é norteado pelo seguinte questionamento: o que representa e
que significados têm os espólios ferroviários da linha de Moatize para os cidadãos?
Apesar de serem muito escassas as pesquisas e estudos ligados à arqueologia
industrial (Patrimônio Industrial) e ferroviária de forma muito específica, o artigo se
propõe em desenvolver reflexões à volta deste patrimônio que se desaproveita para a
fruição cultural e intelectual. A teoria de suporte a esta reflexão é a de Arqueologia
Industrial, surgida na escola inglesa depois do fim da II Guerra Mundial para preservar e
salvaguardar os bens e saberes da revolução da ciência e da técnica. Para Nabais (1999,
p. 177 [sic]), “Património Industrial compreende todos os testemunhos móveis
máquinas, instrumentos, ferramentas, equipamentos, arquivos, desenhos fotográficos,
produtos, e.t.c e imóveis edifícios, armazéns, sítios, jardins, portos, pontes,
aquedutos, vilas e.t.c.” A estes são associadas as imaterialidades contidas, as
transformações que a sociedade sofreu devido à ação das fábricas, indústrias e das
empresas de cariz industrial.
Usamos o método cartográfico (SANTOS, 1985) para ilustrar os espaços e a
distribuição territorial/de superfície do patrimônio industrial ferroviário de Moatize e da
rede ferroviária da região centro de Moçambique. Foi-nos útil a análise documental e
bibliográfica sobre a arqueologia industrial/patrimônio industrial para entender a sua
polissemia de significância úteis para a cultura, para a ciência e para os transportes.
Todavia, a abordagem é qualitativa, explicando com categorias argumentativas o valor
representacional do patrimônio ferroviário. Destaca-se na nossa abordagem os seguintes
autores: LIMA, 1971b; MENDES, 1990, 1992, 2000; NABAIS, 1999; CHOAY, 2016,
MUACHISSENE, 2019, que permitiram o conhecimento conceptual do patrimônio
industrial versus arqueologia industrial, seus aspectos técnicos, sociais e culturais.
Entretanto, o patrimônio industrial “tem um valor documental sobre uma fase da
civilização industrial [...]” (CHOAY, 2016, p. 192) que, uma vez capitalizado, trará uma
outra dinâmica cultural para a empresa e permitirá maior interesse pelas pesquisas em
arqueologia industrial em Moçambique.
Localização geográfica da cidade de Moatize
A cidade de Moatize (FIG. 1) situa-se a nordeste da cidade de Tete, província do
mesmo nome na região centro de Moçambique. A cidade situa-se entre os paralelos 15°
37’ e 16° 38’ de latitude Sul e entre os meridianos 33° 22’ e 328 de longitude Este em
relação ao Meridiano de Greenwich.
Figura 1. Cidade de Moatize.
Fonte: Elaborado por José Passe, solicitado pelo autor.
A cidade é atravessada pela Estrada Nacional n.o 7 EN7, que a liga com o país
vizinho Malawi. Moatize é a terminal das linhas férreas Beira-Moatize e a de Nacala-
Moatize. Possui uma extensão territorial de 46 Km2 e é composto por 7 bairros
habitacionais.
Caracterização socioeconômica da cidade de Moatize
Devido à existência dos megaprojetos de extração mineira, a cidade de Moatize
vem registrando gradual crescimento socioeconômico e um fluxo populacional sem
precedentes, proporcionando uma dinâmica assinalável de crescimento populacional.
Apesar da existência dos megaprojetos de mineração e a reativação de várias outras
instituições econômicas, a agricultura familiar e o comércio informal e semiformal
sustentado por produtos agrícolas, pesqueiros e outros de uso corrente, transportados
por comboio e camionetas, continua sendo a atividade econômica base e de maior
dinâmica para o sustento de várias famílias. o obstante, a atividade econômica formal
tem vindo a ganhar corpo de forma paulatina e tem possibilitado a melhoria do ambiente
urbano com edificações de novos estabelecimentos comerciais e a criação de zonas de
expansão urbana com moradias modernas.
Em 1998, a cidade ascendeu à categoria de autarquia e volvidos mais de 22 anos, o
município tem o objetivo de a tornar mais urbana, proporcionando uma
infraestruturação territorial com água, luz, vias de acesso ordenado que permita, de
modo claro, ultrapassar o ambiente rústico dos bairros que a compõe. O bairro
ferroviário, erguido na cada de 1940/50, apresenta uma organização e estrutura
urbana que se pode considerar histórico, permitindo que haja nele um roteiro turístico de
apreciação às residências de estilo colonial ligado à atividade ferroviária; porém, este
vem perdendo seu estilo original por rias razões, que vão desde à falta de intervenção
ou reabilitação por parte dos seus ocupantes e da própria empresa dos caminhos-de-
ferro.
A pobreza é um elemento que se faz sentir nesta cidade, notadamente pela
existência de famílias carentes que não conseguem proporcionar uma habitação,
educação, alimentação e plano de saúde adequado aos seus membros. Este cenário é
ainda pior nas zonas situadas além da cidade as percorridas ou adjacentes à linha
férrea, onde se casas de pau a pique e capim, um ambiente totalmente rural. Mas,
outras zonas em que o CFM criou bairros ferroviários e proporcionou um ambiente
diferente do rural e, com uma estratificação social diferente; assinalamos a vila de
Mutarara, Marromeu, Inhaminga junto da linha Moatize Beira, que conheceram uma
dinâmica cultural e civilizacional semiurbano e urbano. Nestes pontos o comboio
impulsiona a atividade comercial ao se constatar uma maior circulação de pessoas e
bens.
Sistema de transporte ferroviário e seus vestígios em Moçambique
O sistema ferroviário em Moçambique surgiu no final da década de 80 do século
XIX, impulsionado com a descoberta das minas de diamante (e vários outros recursos
minerais como grafite e ouro) na República da África do Sul. O seu patrimônio foi
regionalizado (zona Sul, Centro e Norte) devido aos interesses econômicos de Portugal e
pelas políticas de concessão de terras implementadas em finais do século XIX para que
não perdesse os seus territórios coloniais a favor de outras potências imperialistas. Mas,
“não é a valorização econômica do distrito que impõe a construção do caminho-de-
ferro; é principalmente, a integridade política cada vez mais ameaçada por ambições
estranhas.” (LIMA, 1971b, p. 239).
Distinguem-se três principais polos/estações dos caminhos-de-ferro em
Moçambique Maputo, Beira e Nacala, que se situam junto dos principais portos do
país. Os caminhos-de-ferro de Moçambique constituem uma organização que detém
maior número de infraestruturas industriais no país, muitas delas estão abandonadas
devido a guerra civil que terminou em 1992, e outras, desde o ano de 2000, vão sendo
reabilitadas para o seu reaproveitamento.
O sistema ferroviário do Centro, com sede na cidade da Beira, começou a
funcionar nos finais do século XIX, e a 14 de julho de 1900 foi inaugurada uma nova linha
do caminho-de-ferro para a então Rodésia atual Zimbabwe. Desde então, várias
estações foram sendo edificadas no corredor ferroviário Centro, destacando-se neste
conjunto a estação de Moatize-Tete, concluída em 1949
1
, para dinamizar o escoamento
de vários produtos econômicos, com enfoque no carvão mineral. Foi edificado em
Moatize uma gare (Porto seco) como primeira obra insólita de gênero em Moçambique,
adstrito à companhia ferroviária, que hoje rui sem nenhuma intervenção.
O CFM Moatize possui vários empreendimentos espalhados pela cidade, desde
a esplanada, o edifício do clube e campo de futebol, piscinas, bairro dos funcionários,
para além do edifício central da estação
2
; circundado de armazéns, oficinas e alpendres.
Mesmo com muitas das suas infraestruturas a ruir, a “Estação de Caminho de Ferro
1
A inauguração teve lugar a 29 de junho do mesmo ano.
2
O edifício da estação não carrega hoje os traços arquitetônicos de quando da sua construção.
parece ser hoje o único elemento que preserva a memória da importância da cidade.”
(MAGALHÃES, 2012, p. 6).
Entretanto, a história da cidade de Moatize o se faz sem referenciar o CFM e as
minas do carvão mineral que conjuntamente atraem mais indivíduos, tornando a região
mais habitada. Nesse sentido, é indispensável que haja uma ação de preservação do
patrimônio industrial ferroviário por parte do CFM e da sociedade para manter viva a
memória coletiva quer organizacional quer sociocultural.
O sistema ferroviário de Moçambique, mormente na região centro, é dinamizado
por duas principais linhas ou troços, nomeadamente: a linha da Beira, junto ao Porto a
zona fronteiriça de Machipanda, e a linha de Sena esta que tem como o fim em Moatize
na província de Tete (FIG. 4). Destaca-se ainda nesta linha a monumental ponte
ferroviária Dona Ana (FIG. 2) sobre o rio Zambeze, construída entre 1931-1935, que na
altura da sua inauguração era a maior ponte ferroviária do mundo, e atualmente é a
maior ponte ferroviária da África Austral.
Figura 2. Ponte Dona Ana.
Fonte: autoria própria.
A linha férrea de Moatize desempenhou e desempenhará, se acauteladas todas as
formas de gestão patrimonial das suas infraestruturas, um papel preponderante para o
desenvolvimento da província de Tete e dos distritos potencialmente agrícolas no
escoamento dos seus produtos para mercados diversos. Aliás, a cultura organizacional
permite olhar com rigor todas as formas de valorização e rentabilização do patrimônio,
interligado às várias atividades econômicas de promoção da imagem institucional; “esse
novo olhar passa pela assunção da organização como cultura.” (GOMES, 2000, p. 16).
Este enfatiza que “a organização o é um mero receptáculo de culturas societais,
podendo ela própria estar na origem duma cultura, ser um meio portador de cultura ou
local de aprendizagem cultural, pelo que faz sentido falar-se de cultura organizacional a
par de culturas societais ou nacionais.” (GOMES, 2000, p. 16). Mendes (1997a, p. 144) e
(1997b, p. 252), conceitua cultura de empresa como o “conjunto de normas, valores e
modos de pensamento comuns que marcam o comportamento dos empregados a todos
os níveis e, por conseguinte, a imagem da empresa”. E, enquanto cultura, “a organização
dispõe de meios para se representar e apresentar: uma história, uma identidade, uma
linguagem própria, histórias (sobre como aproveitar oportunidades, superar crises,
vencer ameaças, e.t.c), modelos de comportamentos desejáveis e indesejáveis.” (GOMES,
2000, p. 16 [sic]).
Entretanto, (MUACHISSENE, 2019) realça que a cultura
organizacional/empresarial envolve normas, valores, ações e modos de pensamento que
permitem uma partilha de informação a todos os níveis e com todos os funcionários ou
colaboradores para maior progresso da empresa com a gestão dos símbolos, objetos,
histórias, o que permite a afirmação/consolidação da sua imagem. A técnica evoluiu e
consigo evoluiu a forma de funcionamento da empresa, cujos marcos dessa evolução
interna e externa estão ricamente em cada uma das peças e pessoas que encontramos.
Existe em Moatize aqueles que foram antigos trabalhadores do CFM que guardam
uma memória, um manancial histórico do que foi esta organização que hoje funciona em
moldes tão variantes do que foi. Desta classe trabalhadora,
3
pode-se ter informações que
muitas das obras publicadas não fazem menção, pois eles constituíram uma o de obra
na construção dessa organização e ferrovia, prestando bom serviço ao projeto que hoje
o país usufrui. Essa relação social é uma memória e, concomitantemente, elemento do
patrimônio pelo grau do seu envolvimento e significância (FONSECA, 2009).
O sistema ferroviário de Moçambique não liga o país, na extensão Norte a Sul, por
linhas ferroviárias; este fato deve-se, em parte, pelo contexto econômico colonial
português, ao concessionar terras às companhias arrendatárias belgas, britânicas,
alemãs e canadianas, cujo interesse fora meramente econômico voltado para a
exploração de infraestruturas de longa duração que não garantiram o desenvolvimento
social inclusivo. Foi iniciativa do estado português, com parceria privada, construir linhas
férreas que pudessem desenvolver a colônia e ligar a costa do Índico com o hinterland
às colónias britânicas, de modo a facilitar o escoamento de produtos diversos. (vide FIG.
3).
3
Não foram visíveis pesquisas que abordam sobre o resgate da memória ferroviária ou do patrimônio
industrial ferroviário com enfoque nos antigos trabalhadores e na sua relação de dominação e hierarquias
estabelecidas, nem de mudanças socioculturais por si promovida. Muitos trabalhos versam sobre a
economia dos transportes ferroviários e do patrimônio arquitetônico das estações.
Figura 3. Rede de vias férreas da região Austral de África.
Fonte: Revista Xitimela, 2006
Em 1895, inaugura-se na zona Sul a primeira linha férrea em Moçambique que
ligava Lourenço Marques
4
, (atual Maputo) com a África do Sul. A este subsistema
ferroviário sul, (corredor sul) compreendem os troços de Xinavane, Marracuene,
Manhiça, Limpopo, Gaza e Inhambane. O CFM Centro é composto, como dissemos,
pelas linhas de Sena com o terminus em Moatize; Machipanda e Quelimane;
5
e, por
último, e menos extenso, é o corredor ferroviário Norte, composto pelo caminho de ferro
de Nacala, Nampula, Cuamba e Lichinga. Este subsistema ferroviário foi o último a ser
estabelecido em Moçambique e data do ano de 1913.
Por quase meio século, os caminhos-de-ferro estiveram sob tutela administrativa
de companhias privadas, aquelas que teriam contribuído com um capital maioritário
aquando da sua construção, como forma de recuperar o capital investido e o lucro do
investimento. Como exemplo, afirma Lima (1971b, p. 146) que:
4
Delagoa Bay Baia de Maputo, que foi o ponto estratégico e onde se construiu o Porto para descarga
dos produtos que vinham da África do Sul. Nesta altura, os recursos minerais como o ouro e o diamante
constituíam o principal produto de escoamento proveniente das descobertas minas do Transvaal
Kimberley. O Caminho de Ferro de Moçambique como hoje se denomina funcionou sempre ligado com os
Portos, razão que leva também a denominação de Portos e Caminhos de Ferro.
5
O antigo caminho de ferro da Trans Zambezia Railway.
Todas as concessões de que a Beira Railway era titular terminavam para efeitos
de contrato de compra, à meia-noite de 6 para 7 de Abril de 1949, revertendo
nesta data para o Estado português todos os direitos que constituíam objectos
dessas concessões, assumindo este a posse do Caminho de Ferro com todos os
direitos e obrigações inerentes deste contrato e dos acordos e contratos
celebrados pela Beira Railway.
A semelhança do CFM Centro, outrora a Beira Railway company, estivera nas
mesmas circunstâncias de gestão o CFM Norte e Sul. O Estado português teve a
administração direta deste empreendimento em outubro de 1949.
A passagem do caminho de ferro da Beira para a administração directa do
Estado português se bem que se tenha efectuado oficialmente no dia 1 de
Outubro de 1949. No sul, o mesmo processo teria iniciado em Setembro desse
ano, onde os inspectores teriam começado a instruir o pessoal das estações
sobre a forma de trabalhar nos moldes das escritas das estações dos C.F.M. com
a adaptação às circunstâncias especiais do tráfego em serviço combinado
(LIMA, 1971a, p. 16-17).
Afirma o Eng. Pinto Teixeira no relatório anual do CFM de 1951 que, “A
nacionalização do Caminho de Ferro da Beira embora exigindo, de começo, um grande
sacrifício, representa um ato de elevado patriotismo e uma conquista no sentido da
valorização da província de Moçambique [e do seu patrimônio].” (GAZETA, 1953, p. 195,
grifo nosso).
Em 1948, tinha sido reconhecido o quão importante seria o CFM Moatize no
desenvolvimento da região;
Êste caminho de ferro acima mencionado, além de ser a condição sine qua non
para o desenvolvimento efectivo das riquezas carboníferas de Tete, será, ao
mesmo tempo, a solução criadora do distrito mineiro, porque desenvolver-se-ão
outros jazigos mineiros que se encontram abandonados por falta de meios de
transporte (LIMA, 1971b, p. 232).
A abertura desta via férrea e consequente edificação da estação tem um
significado nacional; trouxe novas e boas sinergias de mobilidade organizacional e
cultural quer para o CFM, quer para a população da vila, da província e da região Centro,
tornando possível o fluxo da economia, comunicação e mobilidade populacional em
Moçambique, em tempos de difícil acesso aos meios de transporte.
É sobre todo este sistema ferroviário que tem várias estações, obras de arte em
edifícios e pontes, linhas secundárias e terciárias que muitas delas deixaram de funcionar
e estão totalmente obsoletas, que nos focaremos em desenvolvê-lo, retratando a sua
significância e relevância patrimonial, sociocultural, histórica e simbólica, enquanto
memória coletiva e representacional do país.
Alcançada a independência em 1975, o modelo de gestão regional do CFM
continuou centralizado e com sede geral em Maputo. Esta gestão centralizada teve
suporte na política de economia centralmente planificada que vigorou de 1975-1990. No
mesmo período, o contributo ferroviário foi reduzido para o país devido à guerra civil
que se fez sentir. Depois da guerra, o tráfego ferroviário retomou e vários
empreendimentos se erguem no país que gradualmente a preponderância do CFM vem
sendo, cada vez mais, reconhecida.
Situação atual do sistema ferroviário Centro, Moatize Beira
Depois de um período de quase vinte anos,
6
em que o CFM teve um
funcionamento muito abaixo da sua capacidade normal devido à guerra civil que afligiu o
país e, consequentemente, muitas vias e ramais ferroviários ficaram destruídos; a partir
dos meados dos anos 90, o CFM começou um processo gradual e contínuo de
reestruturação do sistema ferroviário moçambicano. “A trajectória que conduziu à actual
fase de reestruturação dos CFM, iniciou-se em meados dos anos 90, quando os
primeiros sinais de abertura ao envolvimento do sector privado na gestão das infra-
estruturas da empresa foram dados.” (XITIMELA n.º 17, 2006). no início do ano 2000,
o sistema ferroviário moçambicano conheceu uma nova dinâmica, mas ainda é notória
uma certa ausência de políticas claras de gestão patrimonial e uma cultura
organizacional que se interesse na preservação do patrimônio no seu todo, que dele se
perceba o seu valor quer para a dinâmica da organização quer para a dinâmica da
sociedade em si; e de modo particular, para a região Centro do país pela história que se
circunscreve a este empreendimento. A cidade de Moatize e muitas outras cidades e
vilas do país surgiram ou tem uma história adjacente à história do CFM, o que reforça a
ideia de considerar o patrimônio ferroviário um património histórico-cultural. “A
história dos Caminhos de Ferro de Moçambique confunde-se com a nossa história como
povo e como nação.” (MOÇAMBIQUE. Presidente, 2015, p. 7).
O processo de reestruturação é feito em parceria, ou simplesmente, com o
envolvimento do setor privado de modo a dar à empresa maior competitividade
econômica, quer no país, quer na região. “Hoje vivemos um novo contexto. A empresa e
o sector empreenderam uma transformação estrutural, onde operadores privados,
6
Em 1976, teve início em Moçambique a guerra civil que dificultou, de sobremaneira, a transitabilidade das
ferrovias e o funcionamento normal da empresa que só em meados da década 90 do século passado,
começou de modo dinâmico, o processo de reestruturação da empresa, recomposição e reposição das
linhas.
nacionais e estrangeiros, dão a sua participação ao sistema.” (MOÇAMBIQUE.
Presidente, 2015, p. 7). A mesma parceria envolve este setor na gestão das
infraestruturas da empresa para torná-la altamente rentável e provedora de serviços de
qualidade à altura das exigências do mercado nacional e internacional.
É de assinalar a reposição de todas as principais linhas ferroviárias no país.
Porém, o corredor norte e parte do centro carecem de recuperação dos ramais
secundários e das linhas terciárias, aquelas de ligação de zonas comerciais aos portos;
por ex., a linha de Mocuba Porto de Quelimane, Mutarara Porto de Chinde, e os
ramais da província de Cabo Delgado.
Em 40 anos de Independência Nacional, fomos construindo a Nação através das
ferrovias que nos ligam de lés a lés. Referimo-nos as linhas de Ressano,
Limpopo, Goba, os ramais da Machava e Salamanga; as linhas de Xinavane e
Marracuene; as antigas linhas de Xai-Xai e de Inhambane; as linhas de
Machipanda ou de Sena, ou as Linhas do Norte, do antigo ramal do Lumbo, a
linha de Nacala a Lichinga. O ramal de Entre-Lagos, mas também os
estratégicos portos de Nacala, Beira e Maputo, os portos de Mocímboa da Praia,
Pemba, Quelimane, Angoche, Inhambane, entre outras (MOÇAMBIQUE.
Presidente, 2015, p. 8).
Entretanto, o novo paradigma de visão empresarial do CFM tende a uma gestão
estratégica fundamentalmente direcionada para o futuro, atendendo às dinâmicas
econômicas que o país e a região têm registado; alargando a sua base de atuação e
permitindo a sua modernização e rentabilização. Desta forma, a rentabilidade econômica
do CFM deve preocupar os seus dirigentes a cultivar um código e/ou uma estratégia de
comunicação horizontal de modo a se alcançar não as metas de rentabilidade mas,
também e principalmente, da salvaguarda de todo o seu patrimônio ferroviário móvel e
imóvel; e, de todo o seu patrimônio sociocultural e humano.
Os trabalhos de reposição da linha de Sena com términos em Moatize (com 545
km de extensão), teve início em 17 de fevereiro de 2003 e o seu fim em 2010. Diante de
todo esse trabalho de reposição das linhas (vide FIG. 3) e da reconfiguração da empresa,
a preocupação com o patrimônio tem sido muito pouco referenciada nos diferentes
diplomas e decretos ministeriais; aliás, todo o patrimônio ferroviário do corredor centro
não está preservado para a sua perenidade. É crucial a salvaguarda dos espólios
ferroviários Centro pela pertinência que este teve e tem tido na promoção econômica
e social do país desde o limiar do século XX.
Figura. 4. Corredor ferroviário Centro: Moatize Beira Manica/Machipanda e seus
ramais.
Fonte: autoria própria.
Moçambique carece de pesquisas e estudos ligados à arqueologia industrial ou
patrimônio industrial (e ferroviário de forma muito específica)
7
que o descreve desde o
seu início aos dias correntes com interesse de tornar o rentável, do ponto de vista
econômico como se esforça em fazer, mas também cultural.
A rica história que emana do CFM como organização secular não pode
desaparecer sem nenhuma meria registrada e evidente. Todavia, a salvaguarda dos
equipamentos e máquinas diversas tem de ser para o CFM uma prática desenvolvida,
comum e habitual. Em Moçambique, a conservação de máquinas e equipamentos
técnico-industriais ainda não se tornou uma prática comum nos estabelecimentos fabris
ou industriais, grandes ou pequenos, verificando-se que variadíssimos materiais técnicos
se encontram dispersos sem a devida atenção de conservação e salvaguarda. É
fundamental que o CFM Moatize (FIG. 5.), e todo o corredor centro, aposte na
salvaguarda do seu espólio ferroviário, valorização e divulgação de uma cultura
7
Estudos sobre os Caminhos de Ferro de Moçambique e seu patrimônio principiaram no final da década de
60 do século XX, com os trabalhos do jornalista e historiador Alfredo Pereira de Lima. Outros estudos
visíveis versam sobre a arquitetura monumental do edifício da estação de Maputo e sobre a temática
econômica dos corredores ferroviários.
organizacional apostada numa imagem forte e moderna de seu funcionamento e valor,
quer com os bens da organização quer com os trabalhadores, rebuscando seu
preponderante passado em que se ergue este presente.
Figura. 5. Área de cobertura do patrimônio ferroviário da Estação de Moatize.
Fonte: Elaboração: Joaquim Txifunga, solicitado pelo autor.
O patrimônio ferroviário de Moatize é composto por várias infraestruturas que
emanam, simultaneamente, a história da cidade, da técnica, da indústria, da revolução
industrial, da empresa (como organização), da locomotiva e da engenharia de edifícios e
pontes que devem ser vistos como conhecimento útil e vital para a representação da
memória coletiva. Como dissemos acima, a história da cidade se confunde com a história
do CFM pelo impacto deste no desenvolvimento social e cultural das comunidades. Mais
de 70 anos que as infraestruturas ferroviárias impactam na vida dos citadinos de
Moatize, pela preponderância dos mesmos no tecido social, consubstanciando valores
identitários e de memória e de representação no tempo e no espaço. Moscovici (1978, p.
25) realça que “uma representação social é a organização de imagens e linguagem,
porque ela realça e simboliza atos e situações que nos são e que nos tornam comuns.” As
estações, os espólios ferroviários, as locomotivas a vapor, as linhas férreas e seus
ramais, os arquivos, as construções habitacionais que deram origem a cidade, o ser
trabalhador do CFM, o viver nas casas do CFM (construídas para os trabalhadores); tudo
isso, reflete como imagens na consciência de muitos indivíduos que vivem nessa cidade e
se traduz em uma linguagem coletiva dos seus modus vivendis, constituindo dimensões
da representação de que nos referimos. Esses elementos mencionados, que pelo seu
significado, constituem elementos de construção e de mudança dessas comunidades que
ergueram e consolidaram suas estruturas, sem olvidar das metamorfoses sociais, dignas
de um processo histórico evolutivo. Entretanto, o CFM por constituir fator mobilizador e
agregador de pessoas e bens é possível afirmar, por analogia, que sem ele a cidade não
seria o que ela é.
Os vestígios dos processos industriais de produção, extracção, transformação e
infra-estruturas envolvem também considerar o ambiente cultural e natural, as
dimensões materiais (edifícios, objetos, lugares) e imateriais (como o saber
relacionado, a memória), organização de trabalho e trabalhadores, além do
modo de vida das comunidades operárias. Essa concepção diz respeito a uma
cultura industrial que pode ser muito bem caracterizada no tempo e no espaço,
ainda que com variações históricas de sua manifestação (OLIVEIRA, 2017, p.
314).
Podemos (re)afirmar que o CFM é simultaneamente promotor da cultura e de
mobilidades sociais, uma realidade inegável. Os espólios são portadores de tempo e
ajudam-nos a percorrer o tempo para perceber a evolução dos transportes que partira
das locomotivas a vapor, com toda sua estrutura, exigência e precauções, ao tempo de
locomotivas a diesel. Este aspecto em particular é fundamental, que se perceba o
transporte que revolucionou a vila e esta deve-se rever pelos seus vestígios
(MUACHISSENE, 2019).
Caminhos-de-ferro um legado patrimonial, cultural e identitário
O CFM contribuiu na mudança de hábitos de vida das populações, cujos
territórios são atravessados pela via férrea. O caminho de ferro não beneficiou a
essas populações como também beneficia uma comunidade complexa quer por constituir
um meio de transporte de pessoas e bens, quer por constituir um posto de trabalho e um
fator mobilizador de sinergias socioeconômicas que permitiu um florescimento cultural e
civilizacional das regiões que afirmamos (MUACHISSENE, 2019). Os espólios ferroviários
de Moatize evocam distintas atividades laborais de homens e mulheres que vão desde
carvoeiros, maquinistas, revisores de material, escriturários, manobristas, auxiliares,
estafetas, telégrafos, eletricistas, mecânicos, serralheiros, ferreiros, administradores e
outros, que de forma diversificada realizaram suas atividades, marcadamente
quotidianas, que ao serem mantidas vivas, este passado contribui para o consumo de
uma história que se perdia despercebida, mas que é vetorial. Como uma experiência
histórica evolui relativamente à experiência do sujeito que encontra no objeto/espólios,
um valor sempre renovado, novo, tornando sempre o patrimônio uma peça viva, uma
realidade merecedora de um reconhecimento (MARTINS, 2017).
O estudo das representações sociais diz respeito ao entendimento de como os
indivíduos se percebem na relação com a sociedade mais ampla, como se sentem frente à
realidade. Nesse processo, sua identidade se constrói, dando-lhe especificidade
(MINAYO, 1994). E para Gomes (2003), as representações sociais são elaboradas nas
esferas próximas da vida social, ou seja, não se constroem representações sociais sobre
o que não se relaciona ou do que pouco se tem conhecimento. Entretanto, os espólios
ferroviários de Moatize constituem máquinas de memória e eternizam atividades e
relações laborais, sociais e econômicas havidas. E, como afirma Folgado (2005), os
objetos industriais evidenciam e eternizam a relação mais simbólica com o sujeito que
ainda usufrui e os sente como seus. As representações sociais podem ser entendidas,
segundo Minayo (1994, p. 108), como “imagens construídas sobre o real” e “elas são
elaboradas na relação dos indivíduos em seu grupo social, na ação no espaço coletivo
comum a todos, sendo assim, diferente da ação individual” (ARAUJO, 2008, p. 100).
Portanto, as representações sociais têm um caráter dinâmico e relacional à
trajetória do grupo. Elas são fruto de um processo sempre atuante, desencadeado pelas
ações coletivas dos indivíduos, mas implicam em um reflexo nas relações estabelecidas
dentro e fora do grupo, no encontro com outros indivíduos ou outros grupos sociais
(ARAUJO, 2008).
Desde o final do século XIX e, mais precisamente, para o caso de Moatize, desde a
primeira metade do século XX, construiu-se a memória histórica da região sobre
atividade ferroviária que hoje constitui um suporte de novas atividades econômicas,
sobretudo no escoamento de minérios de carvão para os portos da Beira e Nacala. Os
espólios ou objetos industriais ferroviários traduzem e explicam uma realidade dinâmica
que não se deve perder, porque engrandecem o conhecimento existente sobre realidades
não imaginadas. Reiteramos a significância simbólica e cultural dos objetos em Moatize e,
como afirma Muachissene (2019, p. 83), “Os espólios ferroviários têm um percurso
técnico valioso e culturalmente impressionante, devendo não cair em desgaste sem que
haja uma ação de resgate. Para além da materialidade técnica e laboral é ainda
impressionante a sua significância, essencialmente marcada pelas atividades laboriosas.”
A estação de Moatize constituiu e constitui uma peça estruturante da rede
infraestrutural ferroviária, invocada como símbolo do desenvolvimento socioeconômico
da cidade e da província. “Conhecemos também a ligação afetiva de uma parte
significativa da população moçambicana a essa herança secular, entendida como valor de
relevância insubstituível do padrão identitário.” (NAVARRO, 2012, p. 200). Mendes,
(1990, p. 119), afirma que:
Muitos monumentos revestem-se de um significado histórico-cultural que muito
reforça o seu valor intrínseco. A qualidade do produto ou serviço, o tipo de
inovação eventualmente introduzido, o significado para a população da
respectiva localidade o qual, frequentemente, se encontra bem vivo na
memória e no respectivo imaginário são elementos a que é necessário
atender.
O CFM - Moatize é referenciado pela população como um elemento de identidade,
uma referência histórica que permite encontrar nele elementos de identidade coletiva. É
comum ouvir dos habitantes da cidade de Moatize quando perguntados onde vivem, suas
respostas, majoritariamente, tem sido: “Vivo na vila ferroviária de Moatize”. Outros
dizem que: nasci na vila ferroviária. Esses referenciais identitários tornaram-se um
legado (MUACHISSENE, 2019).
8
E, sobre a significância dos espólios, um trabalhador
reformado do CFM disse: “eu vivi e vivo desde a minha mocidade, aos 21 anos aqui. (…)
isso me toca o coração…. Portanto, fiquei familiarizado e percebi que estou numa
empresa que me podia fazer crescer, por isso mesmo que até agora estou aqui”. Um
outro disse: “() para mim significa minha vida […].” (MUACHISSENE, 2019, p. 149).
nos entrevistados um conhecimento prático e referencial sobre o CFM e sobre os
espólios que é compartilhado e que pode contribuir para a construção de uma realidade
comum, social e cultural.
Choay (2016, p. 22) afirma que “o passado invocado e convocado, de certa forma
encantada, não é um passado qualquer: foi localizado e selecionado para fins vitais, na
medida em que pode, diretamente, contribuir para manter e preservar a identidade de
uma comunidade.” Estes elementos são característicos de um legado, uma herança que
não se deve perder nem postergar. Os bens da cultura técnica são preponderantes na e
para a manutenção do tecido social das comunidades, sem descurar as organizações
empresariais; pois, estes feitos consubstanciam valores identitários e de memória, para
além dos valores científicos de representação no tempo e no espaço. Mais do que a
noção técnica e de memória do patrimônio é relevante atestar efetivamente a
8
Algumas dessas respostas foram dadas aquando das entrevistas realizadas em 2019.
consciência valorativa patrimonial no seu todo, sem perder seu valor funcional
(MUACHISSENE, 2019).
Fonseca (2009, p. 51) afirma que “a questão de patrimônio se situa numa
encruzilhada que envolve tanto o papel da memória e da tradição na construção de
identidades coletivas, quanto os recursos de objetivação e legitimação da ideia de nação.”
Assim sendo, os espólios ferroviários traduzem uma memória, uma dor de um trabalho
forçado, de uma história de exploração, mas, também, uma invenção da tradição cultural
quando se viu circular um novo meio de transporte. As novas vilas, novos operários
trabalhadores das ferrovias , novos hábitos, novas sociabilidades, constituíram novas
identidades circunscritas ao caminho-de-ferro, como nos referimos nas páginas
anteriores. Por outro lado,
Os espólios ferroviários possuem um valor de testemunho e ainda uma relação
interpretativa e informativa dos estágios da empresa, que emanam de modo
intrínseco um interesse cultural e concomitantemente histórico, científico,
técnico, social e, sem deixar de fora, o reflexo do valor de memória, antiguidade,
raridade, exemplaridade e singularidade. Esses objetos reforçam a identidade da
empresa e a possibilitam compreender o grau de significância local, regional e
nacional (MUACHISSENE, 2019, p. 86).
Os espólios ferroviários permitem a leitura da ligação intrínseca entre o sujeito e
objeto, o trabalhador e seu instrumento de trabalho, vendo refletido nestes o seu
percurso profissional, sua rotina e vivência laboral, sua história existencial e da
existência dos seus predecessores em uma representação onde se articulam as
categorias de tempo e espaço. Esses espólios enquanto patrimônio e meios de referir o
passado proporcionam prazer aos sentidos, ao ponto de produzir e veicular
conhecimento.
O patrimônio, tal como afirma Mendes (2000, p. 201), é “de índole diversa
(histórico-cultural, económica e relacionada com o desenvolvimento e com a própria
memória) [...]”, memória esta que o país tem de se valer dela como importante legado que
nos permita reelaborar o passado e fruir o presente. Fonseca (2009, p. 51) diz que “os
bens que constituem os patrimônios culturais se propõem como marcas do tempo no
espaço [...];” onde nele é indissociável a percepção, o simbolismo e a imaginação da
sociedade (SARMENTO, 2004).
A índole representacional do patrimônio industrial ferroviário se traduz na nossa
experiência histórica através das suas implicações e polissemia. Não são experiências
estáticas ou ideais retidos no passado, do qual não pode evoluir (MARTINS, 2017). Mas
sim, “são experiências que compõem uma memória viva, crucial como fonte de
orientação para o futuro, a memória funcional que tem consequências para os
processos identitários.” (CHIARINI, 2009, 105). Os espólios são objetos da cultura
material feitos pelo homem para o homem e estiveram sempre ao serviço do homem; são
provas de um processo e progresso técnico, e não são obras do acaso, são testemunhos
valiosos, vivos e históricos.
Caracterizados como de importância polissêmica, os objetos detêm uma dimensão
social ao constituírem elementos que medeiam relações sociais, não na estação como
local de trabalho mas, também, nos bairros e vilas ferroviárias que surgiram com suas
características típicas que não se dissociam das peças ferroviárias e que criaram um
estilo e contextos de vida em Moatize, Sena, Marromeu e Inhaminga. Neste contexto,
estes bens devem ser encarados como medidas civilizacionais, pois “as pessoas também
se ‘constroem’ a partir da relação que estabelecem com os objetos, uma vez que estes
possuem poder de ação sobre o homem social.” (SAMPAIO, 2017 p. 73).
Como uma experiência histórica evolui relativamente à experiência do sujeito que
encontra no objeto um valor sempre renovado, novo, tornando sempre o patrimônio uma
peça viva, uma realidade que deve merecer um reconhecimento (MARTINS, 2017).
Podemos (re)afirmar que os espólios são portadores de saberes e ajudam-nos a
percorrer o tempo para perceber a evolução dos transportes ferroviários com toda sua
estrutura, exigência e precauções. Na medida em que as configurações culturais se
consubstanciam em Moatize, o patrimônio industrial é o garante da memória identitária e
guarda a sua própria consistência socioeconômica e cultural. E, perante o dispor desse
patrimônio, é imperativo o aproveitamento desses espaços que são, simultaneamente,
uma elevada expressão do espírito secular da economia social, valorizando-o,
administrando-o em prol do seu múnus.
Figura 6: Vista aérea e parcial do parque industrial ferroviário da Estação da Beira.
Fonte: autoria própria.
Conclusão
O potencial do espólio ferroviário de Moatize (e de toda a linha de Sena) é enorme
e permite desenvolver muitas atividades que garantam a preservação do patrimônio
industrial existente e consolidar cada vez mais a cultura. Entretanto, o CFM constituiu e
constituirá em Moçambique (e em Moatize) um vetor fundamental de mobilidade
populacional, de uma história clara de representação identitária, cheia de simbolismos e
categorias socioculturais. Este valor do patrimônio industrial é em si o motivo de se
preservar os espólios ferroviários que constituem, no seu todo, o patrimonial cultural;
testemunhos da atividade econômica/produtiva e de adorno territorial.
O vasto material ferroviário desaproveitado na estação de Moatize (e ao longo da
via-férrea) constitui um rico patrimônio arqueológico industrial que deve ser preservado
e estudado por e para constituir uma base de dados que pode ser usado para vários fins.
Como se viu descrito ao longo do texto, os objetos industriais emanam valores
polissêmicos de uma memória funcional que vão além de uma simples referência cultural
e temporal, pois estes categorizam o espaço social, cultural e histórico em um diálogo
fruitivo e perene.
Os espólios ferroviários detêm uma dimensão social e cultural ao constituírem
elementos que medeiam relações sociais não na estação como local de trabalho, mas
também, nos bairros e vilas ferroviárias que surgiram com suas características típicas,
que não se dissociaram das peças ferroviárias e que criaram um estilo e contextos de
vida diferenciado em Moatize.
Entretanto, o patrimônio industrial e ferroviário pode ser culturalmente
reutilizado, rememorado e granjear maior cuidado por tudo quanto ele representa e
representou para a cidade, a província e para o país. Pois, sem dúvida, na medida em que
as configurações culturais se consubstanciam, o patrimônio industrial é o garante da
memória identitária e guarda a sua própria consistência socioeconômica e cultural.
Portanto, a preservação destes bens patrimoniais é pertinente e imprescindível
para salvaguardar as suas significâncias culturais, que vão além de uma simples peça.
Estes objetos traduzem uma invenção da tradição cultural secular circunscrita em torno
de um meio de transporte. As novas vilas, novos operários e trabalhadores, novas
práticas e sociabilidades, constituíram novas identidades circunscritas ao caminho-de-
ferro.
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