Ventos favoráveis às contradições: uma análise das
composições discursivas e imagéticas das
travestilidades no periódico Lampião da
Esquina RJ (1978-1981)
Favorable winds for contradictions: an analysis of the
imagery and discursive compositions of travestilities
in the journal Lampião da Esquina RJ (1978-1981)
RUBBI, Gustavo de Souza *
https://orcid.org/0000-0002-4731-2621
RESUMO: Este artigo tem como objetivo
analisar, em quarenta e uma edições do jornal
Lampião da Esquina veiculadas entre 1978 e
1981 , os discursos, imagéticos e textuais,
veiculados pelo periódico acerca das travestis.
Para isso, analisaram-se os diálogos e embates
do corpo editorial, buscando evidenciar as
tensões presentes nas diferentes formas de
compor a imagem das travestis. O estudo das
representações e visualidades elaboradas pelos
editores acerca das travestilidades demonstrou
que determinadas publicações e imagens que
compõem as edições do periódico são veiculadas
como símbolo do poder masculino e, em certa
medida, como afirmação de uma masculinidade
viril. A análise possibilitou ainda revelar que, no
decorrer das publicações, os editores buscaram
agrupar as múltiplas identidades que se
mesclavam em torno da concepção de
homossexuais, fabricando e reafirmando uma
hierarquia.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Lampião da
Esquina; Representação; Travesti; Visualidade.
ABSTRACT: This paper aims to analyze in forty-
one editions of the newspaper Lampião da
Esquina published between 1978 and 1981 ,
the imagery and textual speeches that the
newspaper reproduced about transvestites. The
conflicts of the editorial have been analyzed,
demonstrating the tensions in the different ways
of composing the transvestites' image. The study
of the representations and visualities elaborated
by the editors about transvestites showed that
certain publications and pictures in the journal's
editions were published as a symbol of male
power to assert virile masculinity. The analysis
made it possible to reveal that throughout the
publications the editors gathered multiple
identities around the conception of
homosexuals, producing and reaffirming a
hierarchy.
KEYWORDS: Gender; Lampião da Esquina;
Representation; Transvestite; Visuality.
Recebido em: 07/02/2023
* Graduado em história pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Ituiutaba MG. Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em História (PPGHI-UFU), Uberlândia MG. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Este artigo expõe resultados parciais da pesquisa em curso,
intitulada Perdidas na esquina: uma análise das lutas de representações e composições visuais das travestis no
jornal Lampião da Esquina - RJ (1978-1981). E-mail: gustavorubbi@hotmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
Aprovado em: 08/05/2023
Introdução
Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa liberalização do quadro
nacional: em ano eleitoral, a imprensa noticia promessas de um Executivo
menos rígido, fala-se na criação de novos partidos, de anistia, uma
investigação das alternativas propostas faz até com que se fareje uma
"abertura" do discurso brasileiro. Mas um jornal homossexual, para quê?
(O CONSELHO EDITORIAL, 1978, p. 2)
Brasil, 29 de agosto de 1974. Em discurso proferido no Palácio da Alvorada, o general
Ernesto Geisel colocou em prática o plano dos militares de institucionalizar o Regime Militar
e incorporar as bases e estruturas desse sistema na Constituição.
1
Esse processo, como
proferido por Geisel, deveria se resumir em uma “lenta, gradativa e segura distensão” (1974,
p. 122). O general delineou um lento processo de institucionalização que objetivou substituir
os sistemas de repressão, a censura e as prisões arbitrárias por medidas que garantissem a
segurança do regime e dos militares envolvidos (Fico, 2020, p. 95).
Paralelamente a esse projeto expandiu-se na cena cultural, política e social as
insatisfações ao governo. A oposição cresceu: as greves operárias do ABC paulista se
espalharam para outras cidades; o movimento pela anistia ganhou corpo e foi às ruas; o
movimento feminista brasileiro, que contestava a ordem política instituída pelo golpe militar
de 1964 e a volta do exterior de milhares de exilados, proporcionou mudanças no contexto
brasileiro e a eclosão, na esfera pública, de temas até então pouco explorados no campo
político, entre os quais as discussões a respeito das homossexualidades.
É nesse cenário de efervescência que Winston Leyland, editor do jornal
estadunidense Gay Sunshine, veio para o Brasil. Em 1977, Leyland encontrou-se com João
Antônio Mascarenhas e outros intelectuais e jornalistas para ser entrevistado. Em meio aos
encontros, Mascarenhas começou a organizar um grupo de homossexuais que, inspirados
pelas ideias de Leyland, passaram a discutir a possibilidade de criar no Brasil uma publicação
1
Carlos Fico ressalta que o debate a respeito de como transcorreu o fim da ditadura é um tema envolto em
grandes controvérsias. Por uma perspectiva, há pesquisadores que consideram que a resistência democrática
acelerou a redemocratização. Em contrapartida, aqueles que destacam que a democratização foi resultado
da imposição do projeto de abertura democrática arquitetado pelos militares. Ver mais em: (Fico, 2020, p. 94).
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que abordasse a homossexualidade e o seu contexto social (Macrae, 2018, p. 53). Assim, a
partir da realização de várias reuniões surgiu, em abril de 1978, o jornal Lampião da Esquina.
Sediado no Rio de Janeiro, o periódico publicado na chamada imprensa alternativa
2
propunha como objetivos em seu editorial desvincular a imagem dos homossexuais de
preconceitos e preceitos negativos, bem como “ir mais longe, dando voz a todos os grupos
injustamente discriminados” (Lampião da Esquina, 1978, p. 2). Produzido e editado por
homossexuais, o Lampião da Esquina circulou predominantemente entre Rio de Janeiro e
São Paulo, mas alcançou, de certa forma, outras capitais do Brasil por meio de assinaturas
individuais.
3
A publicação durou três anos com tiragens mensais de 12 a 15 mil exemplares,
com aproximadamente 20 páginas por edição (Rodrigues, 2020, p. 26). Entre abril de 1978 e
julho de 1981, foram publicadas 38 edições regulares e 3 edições extras, das quais cerca de
28 edições destacaram, através de reportagens, artigos de opinião, entrevistas e cartas, a
temática de gênero e corpo das
4
travestis.
5
Nota-se, portanto, um interesse, por parte do
conselho editorial em classificar, representar e definir as práticas e experiências que
envolviam as subjetivações dessas identidades.
Além de construir uma narrativa sobre a situação social e política do grupo de
homossexuais, o Lampião da Esquina selecionou “temas e assuntos que orientavam e de
certa forma fundamentavam a constituição e fortalecimento de identidades” (Rodrigues,
2
Imprensa alternativa ou também conhecida como imprensa nanica é entendia pelo autor Bernardo Kucinski
como um veículo de informação que se contrapunha ao discurso da grande mídia e ao discurso oficial. O autor
classificou duas grandes classes de jornais alternativos. A primeira de caráter político, com viés de valorização
do nacional e do popular. A segunda classe possuía influências da contracultura norte americana, do
orientalismo e do anarquismo. Ver mais em: (Kucinski, 2001).
3
Conforme informações disponíveis nas edições do Lampião da Esquina, o jornal foi distribuído no Rio de
Janeiro, em São Paulo, Curitiba, Londrina, Florianópolis, Jundiai, Campos, Belo Horizonte, Divinópolis, Juiz de
Fora, Vitória, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa e Campina Grande. Ver mais em: (Lampião da Esquina, 1980,
p. 2).
4
O termo travestis, no feminino, indica discussões a respeito da construção e afirmação de uma identidade
travesti. Assim, apesar da documentação utilizar o artigo masculino para designar as experiências das
travestilidades, neste texto se reconhece o avanço das lutas identitárias de organizações travesti em defesa do
reconhecimento de sua identificação feminina, portanto, em consonância com esses movimentos utiliza-se o
pronome feminino. Além disso, essa escolha se ampara em um conjunto de pesquisadores que também
optaram por reconhecer a identificação feminina. Ver mais em: (Duque, 2012; Cabral, 2015; Louro, 2004).
5
Esse dado é uma estimativa obtida através da análise das 41 edições. A leitura das edições foi acompanhada
da produção de uma ficha de análise que possuía o registro de uma ficha técnica (com dados referente à cidade
de produção, ao ano, número da edição e data da publicação) e uma descrição do jornal (com dados referentes
às informações contidas na capa e matérias que tratassem da temática das travestilidades). Além disso,
localizou-se a frequência com que as palavras travestis, transexuais, bicha-louca, mariposas, bicha biônica,
bonecas e deslumbradas (palavras utilizadas pelos editores como sinônimo de travesti) apareciam em cada
uma das edições. A partir disso, chegou-se à estimativa de que em mais da metade das edições disponibilizadas
a temática das travestis estava presente.
255
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2015, p. 92). Nesse sentido, este artigo objetiva compreender as elaborações referentes às
identidades travestis veiculadas pelo jornal, entre os anos 1978 e 1981, analisando de que
forma o projeto político, o projeto gráfico e as narrativas produzidas pelos editores
influenciaram nas representações e nas visualidades acerca das travestilidades.
6
Em um
primeiro momento são analisadas as estratégias do projeto político do Lampião da Esquina.
Buscou-se caracterizar os objetivos que moveram o projeto político e as estratégias que
foram utilizadas para a sua afirmação, de modo a situar o tratamento dado pelos editores às
temáticas referentes às travestilidades. Em seguida, são apresentados os esforços e
tentativas do corpo editorial em afirmar a identidade gay como um projeto viável para a
sociedade que estava sendo construída no período de abertura democrática, analisando
também o repertório imagético mobilizado pelos editores para compor a visualidade das
identidades que se mesclavam na concepção de homossexual, entre as quais, as
travestilidades.
Os “senhores do conselho” composto inicialmente pelo jornalista Adão Costa; o
escritor e jornalista Aguinaldo Silva; o crítico musical e jornalista Antônio Chrysóstomo; o
crítico de cinema e jornalista Clóvis Marques; o escritor e artista plástico Darcy Penteado; o
poeta, crítico de arte e jornalista Francisco Bittencourt; o jornalista e escritor Gasparino
Damata; o crítico de cinema e um dos teóricos do Cinema Novo Jean Claude Bernardet; o
advogado, jornalista e tradutor João Antônio Mascarenhas; o cineasta e escritor João Silvério
Trevisan e o antropólogo Peter Fry (Lampião da Esquina, 1978, p, 2) partindo da proposta de
criar um jornal que desse voz e representasse todos os grupos injustamente discriminados,
colocaram em prática os objetivos do projeto político do Lampião da Esquina. Mas quais
eram os objetivos e estratégias que moveram esse projeto? Além disso, como o projeto
político proposto pelo corpo editorial dialogou com as identidades que buscava representar?
Mais especificamente sobre as identidades travestis, como elas se encaixaram e se excluíram
desse projeto? São essas as questões centrais que mobilizam as discussões deste artigo.
Como forma de analisar as temáticas estabelecidas e responder aos questionamentos
propostos, buscou-se apoio em conceitos e categorias de pesquisa. Nesse sentido,
entendendo que as percepções do social não são discursos neutros, utilizou-se das
6
Conceito utilizado para se referir à multiplicidade de processos identitários pelos quais as travestis passam
para se construírem enquanto femininas. Indica também a complexidade das experiências relacionadas à
construção e desconstrução do gênero e corpo travesti. Ver mais em: (Pelúcio, 2007).
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categorias de práticas e representações de Roger Chartier. O autor define representação
como um instrumento pelo qual um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, constrói
significados sobre o mundo social (Chartier, 2002, p. 75). No que diz respeito ao conceito de
práticas, Chartier o define como modos de agir carregados de intencionalidade e que
correspondem a interesses específicos. Dessa forma, essas categorias tornaram-se úteis,
tanto para analisar a forma como as práticas travestis foram produzidas pelo jornal, quanto
para tornar inteligíveis as formas discursivas que elas utilizaram para se afirmar nos debates
estabelecidos com o corpo editorial do periódico.
Segundo Francisco Júnior, o conceito de representação não pode ser subordinado às
análises específicas das imagens em geral, visto que ele não abrange todos os processos de
construções de significados empreendidos no meio social. Além disso, uma imagem não
estabelece apenas relações representacionais, ela pode também colidir com o mundo que a
gerou (Júnior, 2008, p. 66). Portanto, a análise dos processos de composições imagéticas
das travestilidades realizadas nas publicações do Lampião da Esquina apoiou-se na
concepção de visualidades de Nicholas Mirzoeff. Para o autor, a visualidade é um termo que
faz referência à visualização histórica, ou seja, é uma prática imaginária criada a partir de
informações e imagens (Mirzoeff, 2016). Assim, considerando que a visualidade atua
construindo imaginários e formulando imagens e informações a respeito das coisas e das
identidades, o conceito tornou-se útil para a análise dos elementos imagéticos/visuais que
jornal utilizou para definir as travestilidades.
O primeiro sexo e as estratégias representacionais: as concepções de gueto defendidas e
elaboradas pelo Lampião da Esquina
"Como será que eles descobriram?” (Lampião da Esquina, 1978, p. 9). Essa foi a
dúvida que pairou sobre as pessoas que receberam a edição experimental do Lampião da
Esquina. O número zero do periódico teve sua circulação restrita e foi entregue protegido
por um envelope de papel pardo, de modo a não comprometer a identidade de quem o
recebesse (Rodrigues, 2007, p. 67-68). Com o periódico em mãos, lia-se estampado na capa
o nome Lampião
7
e a chamada para a notícia “Homo eroticus um ensaio de Darcy
7
Jorge Luís Pinto Rodrigues aponta que o número zero do jornal vem nomeado apenas como Lampião. A partir
do número um, o nome estampado na capa passa a ser Lampião da Esquina. Segundo o autor, a mudança
ocorre pois existia no Rio Grande do Sul um jornal registrado como Lampião. Entretanto, Edward Macrae
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Penteado” (Lampião da Esquina, 1978, p. 1). Não havia dúvidas de que se tratava de uma
publicação em cujo discurso abordou questões sobre as homossexualidades. O editorial
dessa edição demonstrou as principais estratégias que moveram os objetivos do projeto
político do Lampião da Esquina.
Em seu editorial, intitulado Saindo do gueto, os editores revelaram que a luta do
Lampião da Esquina se empenhou em “desmoralizar esse conceito que alguns nos querem
impor que a nossa preferência sexual possa interferir negativamente em nossa atuação
dentro do mundo em que vivemos” (Lampião da Esquina, 1978, p. 2). Como se percebe, um
dos motivos de criação da publicação relacionou-se com as tentativas dos editores de
desvincular as imagens dos homossexuais das representações que até o momento haviam se
cristalizado em torno dessas identidades.
Durante a década de 1970, era comum nos programas de auditório da televisão
brasileira a presença de figuras famosas e afeminadas. Personalidades como Clóvis Bornay,
Denner Pamplona Abreu e Clodovil Hernandez, eram constantemente utilizadas para
“provocar humor e gozações entre o público, sendo parte importante da popularidade
desses programas” (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 305) e, apesar de não serem
opositores públicos do Regime Militar, eles acabaram se tornando alvos das “campanhas
contra a homossexualidade e, especialmente, contra as representações de comportamentos
que fugiam das noções tradicionais de gênero” (Comissão Nacional da Verdade, 2013, p.
305). Além disso, essas identidades foram repetidamente utilizadas por esses programas
para construir e afirmar a composição visual de um homossexual estereotipado.
Os 11 nomes que formaram o conselho editorial, bem como as informações que
foram publicadas a respeito de suas profissões e ocupações, evidenciam as narrativas de
determinados editores em apresentar o jornal produzido por uma “elite cultural gay”
buscando, com isso, legitimidade para falar em nome das identidades homossexuais.
Frequentemente os jornais da imprensa alternativa formavam um conselho editorial
composto, principalmente, por personalidades de prestígio “com a finalidade de legitimar a
linha editorial, ampliar a base de sustentação do jornal ante as investidas da repressão e
pontua que o Lampião da Esquina tem esse nome para diferenciá-lo de uma editora paulistana chamada
Lampião. Já o conselho editorial, ao comentar os motivos do atraso da primeira edição, ressalta que “foi
preciso dar um sobrenome (da esquina) para evitar problemas de propriedade industrial”. Ver mais em:
(Rodrigues, 2007, p. 69); (Macrae, 2018, p. 143); (Lampião da Esquina, 1978, p. 14).
258
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identificá-lo com correntes expressivas de opinião” (Kucinski, 2001, p. 9). Devido a esse
perfil, os editores se consideraram os intelectuais responsáveis por apontar para novos
modos de perceber e conceber as homossexualidades.
Esse perfil sociocultural dos editores chegou a ser alvo de comentários entre o
público leitor. Parte dos assinantes sentiram-se contemplados pela composição do corpo
editorial. O leitor do Rio de Janeiro que assina sua carta como C. S. S comenta ser “animador
encontrar um grupo sério, capaz, fazendo algo em que acredita” (Lampião da Esquina, 1978,
p. 15). Rogério Naccache de São Paulo, evidenciou que a “luz do LAMPIÃO abre finalmente o
caminho que nos levará à luz elétrica”, expondo que a credibilidade do jornal estava no fato
de ter como “colaboração direta pessoas do naipe de Darcy Penteado, João Silvério Trevisan,
[...] e tantos outros” (Lampião da Esquina, 1978, p. 15).
Se, por um lado, a composição do conselho editorial agradou os leitores, por outro
gerou críticas. Um assinante de Recife, que se identificou como J. C. L, ressaltou ter achado o
jornal “meio metido a intelectual” e que os editores “deviam fechar mais com o bicharéu
para não parecer um jornal muito elitista”. Questiona diretamente o corpo editorial: “Onde
estão os travestis? Por que não tem uma no conselho de Lampião? tem professor e
artista? Que democracia é essa de vocês, onde o povo também não vota?” (Lampião da
Esquina, 1978, p. 19). É interessante perceber a ambiguidade contida na reivindicação feita
pelo leitor, pois, para ele, assim como para tantos outros, as travestis não poderiam figurar
entre os intelectuais, artistas, classe média, classe alta, e a elas era relegado o lugar de povo
e de subalterno. É contraditório, visto que o preconceito está muito presente nessa
cobrança que os leitores fazem aos editores, por algo que chamam de democracia.
Nesse contexto, nota-se que o periódico foi produzido por artistas, jornalistas e
intelectuais que tinham certa respeitabilidade e notoriedade fora do gueto homossexual e
que as posições ocupadas pelos editores, de algum modo, influenciaram no projeto do
periódico desde sua “estilística e formas discursivas até a abordagem e posicionamentos
diante das temáticas que propunha” (Bandeira, 2006, p. 49).
A busca pela constituição de novas representações das identidades homossexuais, as
tentativas de desassociar das representações que haviam sido construídas até o momento e
os esforços de compor visualidades para as identidades homossexuais levaram os editores a
fixarem o Lampião da Esquina para fora do gueto. As identidades tidas pelo discurso
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hegemônico como desviantes, ao performarem
8
o gênero fora dos padrões da moralidade
dominante, consequentemente, foge dos sistemas de regulação dos corpos e ao mesmo
tempo, são “expulsos, negados e reduzidos ao silêncio” (Foucault, 1988, p. 9). Suas
identidades passam a ser reprimidas. A repressão age como “[...] condenação ao
desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio e afirmação de inexistência [...]”
(Foucault, 1988, p. 10). Esses fatores conduzem essas identidades a se ocultarem e se
inserirem em guetos. Assim, o gueto se resumia em um lugar “onde tais pressões são
momentaneamente afastadas e, portanto, onde o homossexual tem mais condições de se
assumir e de testar uma nova identidade social” (Macrae, 2018, p. 57).
Os guetos eram espaços de sociabilidade, lazer e encontros de lésbicas, travestis e
gays, como, por exemplo, os bares, saunas e praças. Era nesses lugares que as identidades
reprimidas conseguiam construir suas subjetividades e adquirir coragem para assumi-la em
âmbitos menos restritos. Existia um movimento que pautava a valorização desses locais por
considerarem um importante “[...] foco de resistência, tentando expandi-lo por toda a
cidade e procurando uma diluição natural de suas fronteiras” (Macrae, 2018, p. 62).
Contudo, entre essas identidades, existiam aquelas que desprezavam os guetos. Alguns até
defendiam que esses espaços não eram adequados para a realização de suas práticas.
Diante disso, na apresentação dos objetivos do projeto político do Lampião da
Esquina, o grupo de editores pontuou que “é preciso dizer não ao gueto e, em consequência,
sair dele” (Lampião da Esquina, 1978, p. 2). Para eles, era necessário teorizar e refletir as
questões homossexuais fora da agitação desses espaços. Do mesmo modo que os editores, o
assinante C. S. S valorizou a saída do gueto. Como descrito em sua carta:
O essencial é integrar-se à comunidade sem prostituir-se, sem jogar fora os seus
valores [...] é necessário se atingir um tipo ideal de homossexual conscientizado de
sua verdadeira realidade sexual. É preciso que isto seja sempre mostrado, o
homossexual agindo conscientemente dentro de sua realidade sexual; é um
indivíduo comum [...] (Lampião da Esquina, 1978, p. 15).
8
Como argumentado por Judith Butler, a performatividade propõe pensar a constituição do gênero como atos,
gestos e atuações, que são [...] performativos, no sentido de que a essência ou identidade são fabricações
manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos”. A performatividade é
compreendida “[...] não como um “atosingular ou deliberado, mas como uma prática reiterativa e citacional
por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia.” (Butler, 2003, p. 111).
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Da perspectiva do conselho editorial, os guetos, além de não teorizarem sobre os
elementos que envolviam as práticas das identidades tidas como desviantes, acabavam por
quimerizá-las e envolvê-las numa roupagem estereotipada de identidade, alvo fácil do
preconceito da sociedade homofóbica. Assim, os editores de Lampião da Esquina buscaram
uma nova abordagem das questões homossexuais, “[...] queriam politizar a questão. A única
forma [...] era: tirá-la do gueto primeiramente, para, em seguida, questionar a postura da
esquerda tradicional” (Silva, 1998, p. 400).
As estratégias dos editores em promover uma saída do gueto das identidades tidas
como desviantes carregaram um conjunto de elementos simbólicos que buscaram
desvincular essas identidades, principalmente dos homens gays, de representações e
visualidades que os associavam ao binômio sexo/gênero, em que, ao sexo tido como
biológico, corresponderia automaticamente um gênero.
9
A estratégia do projeto político do
Lampião da Esquina era:
destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, [...], que encara a sua
preferência sexual como uma espécie de maldição, que dado aos ademanes e que
sempre esbarra, em qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto
ser humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter [...]
(Lampião da Esquina, 1978, p. 2).
Como se percebe no trecho acima, uma das razões de criação de um jornal
homossexual foi desvincular os homossexuais da “imagem-padrão”, isto é, a imagem de um
homossexual que tem como principal característica a busca, na constituição de sua
subjetividade, da performatividade feminina, com adoção de modos, gestos, roupas e
práticas relacionadas ao gênero feminino. Segundo o editorial, para acabar com essa
“imagem-padrão” o Lampião da Esquina não pretendeu “solucionar a opressão nossa de
cada dia, nem pressionar válvulas de escape” (Lampião da Esquina, 1978, p. 2). O projeto
político do periódico buscou apenas lembrar que “uma parte estatisticamente definível da
população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não reprodutividade numa
sociedade petrificada na mitologia hebraicocristã, deve ser caracterizada como uma minoria
9
Conforme apresentado por Donna Haraway, é preciso levar em consideração que sexo/gênero para além de
outras construções (sociais, culturais, biológicas) foi também construído linguisticamente e “o sistema de
sexo/gênero adquire outras formas em outros mundos de diferenças marcadas pelo poder e com suas
consequências.” Ver mais em: (Haraway, 2009, p. 206-209).
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oprimida” e que, enquanto uma minoria, era “elementar nos dias de hoje, precisar de voz”.
Com isso, apesar da afirmação dos editores de que pretendiam “ir mais longe, dando voz a
todos os grupos injustamente discriminados”, a ideia de “sair do gueto” representou a
negação de os homossexuais serem pessoas nas quais “seu sexo não é aquele que ele
desejaria ter”. Desse modo, descontruir a “imagem-padrão” dos homossexuais envolveu um
duplo deslocamento, no qual os editores buscaram desvincular os homossexuais de imagens
estereotipadas, mas, consequentemente, construíram, em seu lugar, outra imagem que
recorria a uma correspondência naturalizada entre vagina/feminino e pênis/masculino.
10
Nesse contexto, procurando fugir das representações cristalizadas a respeito do
homossexual enquanto um ser afeminado, o jornal buscou desvincular o gay das identidades
femininas e assumiu a masculinidade como uma característica marcante da
homossexualidade. Dessa forma, os editores tiveram como objetivo recusar o estigma de
“bobo da corte” e reivindicaram o fato de que os “homossexuais são seres humanos e que,
portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização, enquanto tal.” Com isso,
almejou-se preservar o sistema sexo/gênero, ou seja, ao sexo biológico (pênis) deveria
corresponder a identidade de gênero masculina e toda a performatividade ligada a ela.
Assim, certas publicações do Lampião da Esquina cobraram dos homossexuais uma
performatividade definidora do gênero masculino para que ele fosse aceito e reconhecido
socialmente, criticando, em determinados momentos, os afeminados por exemplo e,
claro, as travestilidades.
É importante pontuar que o projeto político e gráfico do Lampião da Esquina foi
marcado pela contradição e não possuiu um eixo conciso e unidirecional. Nesse sentido, o
periódico teve como estratégia preservar, em certa medida, o sistema sexo/gênero visto
que, ao construir um vínculo entre sexo masculino e uma certa masculinidade, distanciou-se
da crítica desse sistema ; contudo, não deixava de criticar a normatização da
heterossexualidade e a cisgeneridade numa sociedade binaria, em que o sexo "biológico"
corresponde "naturalmente" a um gênero. Assim teríamos um sistema em que são
reconhecidos dois sexos biológicos e, automaticamente, dois gêneros ligados a cada um dele
10
Durante os anos 1960 e 1970, o conceito de gênero era marcado por diferenças sexuais. Juntamente com
essas concepções, foram criadas práticas, discurso e espaços sociais específicos para discutir o gênero
enquanto diferença sexual. Esses espaços são caracterizados como espaços gendrados, ou seja, “marcados por
especificidades de gênero, [...] nos quais a própria diferença sexual pudesse ser afirmada, tratada, analisada,
especificada ou verificada.”. Ver mais em: (Lauretis, 1994, p. 206).
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pênis: masculino e vagina: feminino. O fato apontado no fragmento, de que os
homossexuais não negam seu sexo “biológico”, mas, ao mesmo tempo, não se reconhecem
como gênero masculino, traz à luz justamente essa ambiguidade, visto que contém uma
tentativa de desconstrução de certos elementos desse sistema.
A estratégia calculada pelo projeto político do Lampião da Esquina, que visou
desvincular, em determinados momentos, a imagem do homossexual masculinizado de
perfomatividades femininas, como por exemplo as performatividades travestis, precisa ser
inserida em um contexto político mais geral. Os pilares básicos
11
da repressão montada pelo
Regime Militar foram dirigidos, explícita e predominantemente, contra os “subversivos” e
“comunistas”. Entretanto, o aparato censório e a repressão ocorreram também em torno de
elementos psicossociais, ou seja, a repressão compreendia a dimensão moral, cívica e
religiosa (Quinalha, 2017, p. 36). Desse modo, homossexuais, travestis, prostitutas e outras
pessoas consideradas pelo regime como “perversas”, “anormais” e “desviantes” sofreram
perseguições, prisões arbitrárias e outras formas de censura e violência.
Nesse contexto, a estratégia do jornal pretendeu, em certo ponto, afirmar que a
homossexualidade principalmente nos homens gays masculinizados não representava
uma prática de subversão política e sexual, no interior de uma sociedade cis
heteronormativa, mas era um fator “natural” e “neutro” politicamente. Buscando
desconstruir a ideologia propagada pelo Regime Militar de que a homossexualidade estava
associada “a um submundo de degenerados ‘pederastas’, alcoólatras e prostitutas”
(Comissão Nacional da Verdade, 2013, p. 302) o Lampião da Esquina, em certos momentos,
tentou se desvincular de identidades femininas e afirmar para fora dos guetos a figura de um
gay masculinizado. Para os editores, era necessário mostrar que os homossexuais não
queriam “viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizassem [...]; e que sua
preferência sexual devia ser vista dentro do contexto psicossocial da humanidade como um
dos muitos traços que um caráter pode ter” (Lampião da Esquina, 1978, p. 2).
A afirmação do discurso da masculinidade encontra-se presente no próprio nome
dado ao periódico. O tulo Lampião da Esquina e sua logomarca remetem à figura do
11
Existem várias formas de analisar e entender os acontecimentos que marcaram a história do governo
ditatorial no Brasil. Parte dos pesquisadores centraliza seus estudos nos pilares básicos que contribuíram para a
manutenção do regime: a espionagem, a polícia política e a censura. Em sua produção, Carlos Fico demonstra
como, a partir da promulgação dos atos institucionais número dois e cinco (AI2 e AI5), a espionagem e a
censura passaram a atuar como forma de desarticular e reprimir os posicionamentos que fossem contrários ao
governo. Ver mais em: (Fico, 2009, p. 169).
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
cangaceiro, personagem histórica e símbolo da virilidade do cabra macho nordestino que
“[...] ao tornar-se ‘da esquina’ era capaz de localizar-se no ‘desvio’ da rota recomendada
pela moralidade dominante sem, contudo, abrir mão de sua masculinidade” (Bandeira, 2006,
p. 36). Além de considerar o nome escolhido para o jornal como um importante vestígio de
que o projeto político dos editores esteve pautado na afirmação da masculinidade, é
possível perceber, através do logotipo, mais alguns indícios que sustentam essa análise:
Imagem 1. Variações da logomarca do jornal. Edições 0, 1, 3, 24, 30 e 33.
Fonte: Fonte: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
A partir da imagem, pode-se visualizar em um primeiro momento a figura de um
cangaceiro. Mas em um segundo plano, retirando o elemento que representaria o chapéu
tradicionalmente utilizado pelos cangaceiros tem-se a representação visual de um falo.
Essa interpretação também foi realizada por um leitor em sua carta publicada na terceira
edição de 1978. Ao comentar sobre suas impressões referentes à forma e ao conteúdo do
Lampião da Esquina, o leitor expôs que o símbolo do jornal:
[...] foi interpretado como a combinação de uma representação estilizada do
rebelde com a representação de um falo, é uma coisa ‘fria’, e não pode ser
considerado feio ou bonito: é como se tivesse sido feito ‘em série’; a representação
fálica é uma atitude agressiva e machista; é uma posição desrespeitosa em relação
às mulheres (Lampião da Esquina, 1978, p. 14).
Uma imagem, além de atuar como uma representação, isto é, como um instrumento
que produz um sentido e faz “com que a coisa não tenha existência senão na imagem que a
exibe” (Chartier, 2002, p. 75), carrega uma certa autoridade que atribui aos símbolos uma
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
relação de poder que regula e modela os espaços físicos e psíquicos (Mirzoeff, 2016, p. 748).
Assim, tanto o nome escolhido para o periódico, quanto as imagens que compõem a
logomarca, cuja estética visual faz lembrar um falo, foram veiculadas como símbolo do
poder masculino e de uma masculinidade viril. Tais imagens, mais do que indicar “uma
atitude agressiva” e ser “desrespeitosa em relação às mulheres” representam a negação de
práticas femininas e de identidades que carregam como traços essas performances, tal como
as das travestis. Essas imagens mostram que o projeto político do Lampião da Esquina
pautou-se na afirmação de um sexo masculino, tido pelos editores como puramente
biológico. Com isso, elas expõem que a ideia do conselho editorial, de sair do gueto,
apontava para a inserção dos homossexuais “na cena pública, ocupando um novo lugar no
imaginário coletivo ao questionar a ideia de que o isolamento em lugares de tolerância era
fruto de uma preferência intrínseca a uma natureza homossexual e por si mesma obscena
[...]” (Bandeira, 2006, p. 46). É preciso pontuar que, de certa maneira, sair do gueto envolveu
a estruturação de uma espécie de traço característico essencial e metafísico que definiu os
homossexuais como uma grande uniformidade e, portanto, não levou em conta as
diferentes expressões das homossexualidades existentes no período de abertura
democrática.
O ato de sair do gueto não era assumir uma identidade individual, mas sim, fazer
surgir uma comunidade que tinha especificidades próprias (Canabarro, 2015, p. 34-35).
Representava a tentativa dos editores de construir uma identidade homossexual. Sair do
gueto, além de retirar os homossexuais da “sombra” significou distinguir e classificar as
identidades. Para sair do gueto e entrar na cena pública, foi necessário que o projeto político
dos editores atuasse de forma a organizar as diversas identidades que se aglutinavam em
torno da categoria de homossexuais. Ademais, para uma inserção na sociedade era essencial
que os homossexuais masculinos se afastassem, em determinados momentos, das
travestilidades e de suas “reações psicológicas exageradas e neuróticas” (Lampião da
Esquina, 1979, p. 5).
Mantendo a moral e os bons costumes: a busca do conselho editorial pela aceitação social
da homossexualidade masculinizada
Sexta-feira, 30 de maio de 1980. Entrou em circulação mais uma edição do jornal O
Estado de São Paulo. Entre as notícias publicadas, encontra-se a matéria “o problema da
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
mudança de sexo: repercussões ante nosso direito” (Estado de o Paulo, 1980, p. 26).
Segundo a reportagem, o principal “problema” da “cirurgia de castração” decorria “da
mudança artificial do sexo”. A cirurgia concedia o direito às pessoas de deliberarem a
respeito de seu sexo:
Teremos então as hipóteses das travestis ou fetichistas que sentem necessidade de
usar roupas, atitudes e complementos do sexo oposto ostentando a aparência do
mesmo homossexual que se realiza somente com as pessoas do próprio sexo, e
transexuais que possuem toda a disposição psíquica e afetiva do sexo contrário,
mas não se conformam com a própria condição (Estado de São Paulo, 1980, p. 26).
Além de atribuir um peso pejorativo à cirurgia, descrita ao longo do texto como
sinônimo de “síndrome de psicopatia transexual” a matéria categorizou e classificou as
identidades, colocando as travestis como pessoas que “ostentavam a aparência de
homossexuais”. A publicação homogeneizou as identidades tidas como desviantes e inseriu
os grupos de gays, travestis e transexuais em um termo generalizante que condensou essas
identidades na figura de homossexuais. A ideia de que mulheres lésbicas, homens gays,
travestis e transexuais resumiam-se exclusivamente às práticas e experiências de um grupo
denominado de homossexuais pairava nas representações da grande imprensa. Essa
concepção também foi difundida nos discursos do Regime Militar que tratavam de
homossexualidades no plural de modo a se referir a todas as formas de orientações sexuais
e identidades de gênero (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, 2013). No próprio
Lampião da Esquina essa ideia esteve presente. Para os editores, em determinados
momentos, a homossexualidade foi definida “como um grande aglutinador de identidades
mais ou menos marginalizadas e a travestilidade estava incluída nas práticas homoeróticas”
(Canabarro, 2015, p. 34-35).
Em um movimento de fortalecimento das identidades tidas como desviantes
compreendidas pelo Lampião da Esquina no termo de homossexuais nota-se que
determinadas publicações do periódico se pautaram em uma aproximação dessas
identidades. A principal tática
12
adotada pelos editores durante os percalços que marcaram
a tentativa de fortalecimento dos homossexuais masculinos foi a de unificação das
12
Para Michel Certeau, tática é a ação construída dentro de um campo estabelecido e consiste em
“aproveitar as ocasiões, sem base para estocar benefícios [...] ou prever saídas”. Essa categoria foi utilizada
para compreender as elaborações e reelaborações realizadas pelo corpo editorial acerca das identidades
dissidentes diante das frequentes imposições promovidas pelo governo ditatorial (Certeau, 2007, p. 100).
266
Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
identidades em torno das pautas desse grupo. Na edição de número quatro, João Antônio
Mascarenhas, que, ao ser acusado por seus amigos de desprezar as “bichas pintosas e os
travestis”, escreveu um artigo de opinião elencando os motivos pelos quais suas concepções
não poderiam ser acusadas de menosprezá-las: “julgo que não devemos dividir os
homossexuais, a fim de não os enfraquecer [...] as minorias oprimidas relevem eventuais
divergências para empenharem-se, coesas, na luta contra a desinformação [...]” (Lampião da
Esquina, 1978, p. 9). Aponta ainda que o jornal surgiu com o objetivo de:
[...] mostrar a todos os grupos oprimidos e, em especial, os homossexuais
assumidos com descontração, enrustidos, pintosas ou travestis que, no fundo, os
machistas são tigres de papel, desde que nós não concordemos em reconhecer os
direitos que eles mesmos se atribuem (Lampião da Esquina, 1978, p. 9).
Na concepção de Mascarenhas, a união de todas as identidades tidas como
desviantes em torno da figura de um homossexual coeso e singular consistia em uma tática
importante para a afirmação das práticas dessas identidades diante da repressão e do
apagamento posto pela sociedade. Ademais, para parte do grupo de editores era preciso
que, antes da construção das singularidades de cada subjetividade tida como desviante,
fosse necessária a criação de uma identidade monolítica capaz de se afirmar dentro dos
parâmetros existentes na sociedade.
Frederico Jorge Dantas, colaborador do Lampião da Esquina, apontou na mesma
direção das teorizações de Mascarenhas. De acordo com Dantas, o jornalismo underground
homossexual deve atuar no sentido de “informar aos nossos irmãos sobre necessidades
primárias, que vão desde o modo de encararmos o problema até onde e como devemos nos
impor” (Lampião da Esquina, 1978, p. 5). Entretanto, para a realização dessa tarefa o
jornalista mostrou ser necessário que as identidades se aproximassem e evitassem conflitos
“onde pequenos grupos criticam, rejeitam e combatem o aparecimento de novas ideias, de
mentalidades estruturadas numa nova filosofia de vida.” (Lampião da Esquina, 1978, p. 5).
Se, por um lado, a representação de uma identidade coesa foi necessária para a
afirmação das práticas dos homossexuais diante do apagamento posto pela sociedade, por
outro, foi imprescindível que houvesse um discurso no interior desses grupos que fosse
capaz de organizar as múltiplas experiências que se mesclavam em torno da concepção de
homossexuais. Na edição seis de 1978, o lampiônico JoFernando Bastos foi encarregado
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
de criar uma classificação para diferenciar os significados da palavra bicha. A publicação do
editor revelou uma grande complexidade no que diz respeito aos sentidos da palavra e
apontou para doze variações do termo.
De acordo com Bastos, a policha era aquela identidade que não se conformava com
seu corpo e recusava a masculinidade. Através de uma linguagem satirizada, expôs que a
policha “ultrapassa os limites da tricha e toma hormônios” (Lampião da Esquina, 1978, p. 9).
Nesse sentido, a policha estaria associada à figura de um homossexual que performa a
feminilidade e rompe com os limites do gênero, como, por exemplo, as travestilidades. A
bichic, bicheque e a bichwissair, por sua vez, consistiam nos homossexuais que possuíam
uma notoriedade social e eram abastados economicamente (Lampião da Esquina, 1978, p.
9). A bichene e a bichópolis eram os homossexuais que tinham um grande apego emocional
com as celebridades e que gostavam de se encontrar nos grandes centros turísticos
(Lampião da Esquina, 1978, p. 9). As bichoc e bichicleta foram classificadas pelo editor por
meio de seus elementos físicos. Enquanto a bichoc era o homossexual marcado por seus
traços de “feiura”, a bichecleta era “a atleta, que tem mania de correr de manhã”. A bicharm
e a bichada tinham como traços de suas identidades a solidão e a tristeza. E, por último, a
bicheira e a bichão eram os homossexuais que performavam intencionalmente a imagem de
heterossexuais (Lampião da Esquina, 1978, p. 9).
É evidente que as representações elaboradas pelo editor são limitantes, uma vez que
é impossível que todas as identidades tidas como desviantes se enquadrem nesses termos
restritivos. Essas elaborações não tinham o objetivo de propor uma categorização rígida ou
científica, mas expressaram as narrativas do Lampião da Esquina a respeito de como essas
identidades se colocavam no período. Durante o século XX, os sujeitos que até então não
possuíam espaço emergem e começam a se colocar e reivindicar seus direitos. Nesse
sentido, esses indivíduos que estão se inserindo na cena pública passam a organizar e a
instituir uma nova representação. Em outros termos, buscam elaborar a sua linguagem
própria e atribuir significados para suas identidades (Rodrigues, 2012, p. 20).
Dessa forma, a classificação criada por José Fernando Bastos teve como tática o
emprego do humor para a afirmação de características que supostamente estariam
associadas a essas identidades. A linguagem humorística empregada pelo editor, ao se
revestir de um sentido de leveza não propondo ser algo sério ou formal operou
construindo representações acerca das variações do termo bicha e associou a essas
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identidades elementos que estariam relacionados à produção de suas subjetividades. A
utilização do humor funcionou como tática, pois ao não se propor ser uma estruturação
rigorosa, conferiu ao texto uma narrativa incontestável que atuou criando elementos que
compuseram uma determinada identidade. Um exemplo desse teor inquestionável que
revestiu as elaborações criadas por Bastos pode ser observado no décimo terceiro
significado da palavra bicha criada pelo autor: a bichata, “aquela que se enquadrou em
algumas das variações, mas vai escrever pra falando mal do Lampião” (Lampião da
Esquina, 1978, p. 9).
Ao longo das edições do Lampião da Esquina é possível observar ora de forma
implícita, ora explícita, a criação de uma identidade homossexual comum” (Canabarro, 2015,
p. 36). Os processos de formações identitárias colocam em contato indivíduos e grupos que
passam a compartilhar um conjunto de práticas, representações e crenças (Candau, 2012, p.
11-12). Desse modo, as tentativas do corpo editorial de organizar as experiências das
identidades tidas como desviantes além de produzir uma identidade homossexual comum
levou os editores a construírem uma identidade coletiva, produzindo memórias a respeito
das homossexualidades e definindo o que deveria ser lembrado e esquecido acerca dessas
identidades. As identidades coletivas são estratégias discursivas e simbólicas que tentam
homogeneizar e caracterizar sujeitos individuais, criando noções gerais para agrupar os
indivíduos em coletivos coesos (Candau, 2012, p. 11-12). Nesse sentido, no decorrer das
publicações identificamos que os editores agruparam as identidades fabricando e
reafirmando uma hierarquia: entendidos ou esclarecidos; bichas/guei/
13
deslumbradas;
pintosas ou bonecas; bichas-loucas; travestis; bichas biônicas e transexuais.
A base da estrutura dessa hierarquização foi mapeada pelo historiador Ronaldo Pires
Canabarro. O autor elaborou uma “escala de importância” que privilegiava como parâmetro
o grau que o masculino “pesava” ou “importava mais do que o feminino”. Nesta pesquisa,
utilizaram-se como base os estudos de Canabarro para demonstrar a forma pela qual os
13
Os editores do Lampião da Esquina, frequentemente escreviam a palavra guei em oposição ao termo gay.
Essa postura representava as escolhas semântico-políticas do periódico, que pretendiam constituir uma nova
identidade homossexual. Pode significar também uma tentativa de abrasileirar o termo oriundo da língua
inglesa, pois conforme o editor Aguinaldo Silva o periódico “bagunçou logo o coreto, traduzindo a para guei,
que significa absolutamente nada”. Ademais, a linguagem escrita utilizada pelos editores é apontada por
Geovane Costa como sendo própria das características dos jornais alternativos, visto que “variava de uma
linguagem formal e erudita a uma linguagem mais coloquial, mais próxima da forma como se conversava nos
espaços de sociabilidade homossexuais.”. Ver mais em: (Canabarro, 2015, p. 28; (Lampião da Esquina, 1978, p.
5); (Costa, 2019, p. 20).
269
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editores buscaram estruturar o grande grupo de identidades que se resumiam nos
homossexuais. Além disso, nossas análises realizadas do jornal apontam para avanços e
contribuições na estruturação do autor: identificamos que os termos esclarecidos e
entendidos funcionavam como sinônimos, assim como as expressões bichas, guei,
deslumbradas eram utilizadas para designar um mesmo grupo, e as categorias pintosas e
bonecas constituíam uma terceira classificação.
Diferente de Canabarro, nossas investigações do Lampião da Esquina evidenciam que
o termo travesti estava mais associado às identidades que performavam o gênero feminino
de forma momentânea e utilizavam de uma montação efêmera (relacionada ao uso de
maquiagens e adereços que poderiam ser retirados) para se construírem. a terminologia
de bichas biônicas foi mais utilizada pelos editores para referenciar as identidades que
performavam a feminilidade e realizavam modificações corporais mais permanentes, como a
utilização de implantes e próteses. Verificamos que o termo indicava aquelas identidades
que vislumbravam em seus corpos formas de produzir e inventar o feminino. Ademais,
notamos que existia a identidade transexual que, em alguns momentos, foi representada e
classificada pelos editores.
A ideia de homossexual entendido surgiu no final dos anos 1960 com o objetivo de se
contrapor à figura da “deslumbrada” e das “bonecas” (Rodrigues, 2007, p. 59). E é a partir
dos anos 1970 que esse modelo passou a caracterizar o homossexual que mantinha relações
sexuais com outro homem homossexual, seja de forma ativa (penetrando) ou passiva (sendo
penetrado). Nesse modelo, independentemente se um homem realizasse a atividade ou a
passividade na relação sexual, ele passava a pertencer à identidade de entendido (Fry, 1982,
p. 93-94). Essa relação foi ilustrada na capa do jornal Snob
14
de 1969 publicada na edição 28
de 1980 do Lampião da Esquina:
Imagem 2. Capa do jornal Snob
14
O jornal Snob foi distribuído entre julho de 1963 e junho de 1969 de forma gratuita no Rio de Janeiro, nas
regiões da Cinelândia e Copacabana. Possuiu noventa e nove edições regulares e uma edição “retrospectiva” e
um dos fatores que levaram ao fim de sua circulação foi a intensificação da repressão à imprensa durante o
governo de Emílio Medici. Ver mais em: (Green, 2006, p. 155).
270
Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
Fonte: Lampião Da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
A ilustração, como descrito na parte superior, representava a “nova fase” do jornal
Snob. Nessa fase, a proposta era a de promover uma outra perspectiva a respeito dos
homossexuais, expondo que a relação entre dois homens poderia acontecer sem que um
dos parceiros precisasse abandonar os elementos de seu sexo masculino. A figura apresenta
dois homens caraterizados de forma masculinizada ; um deles com o pênis ereto e ambos
de mãos dadas, afirmando que os homossexuais “entendidos” sabiam muito bem o que
almejavam: se relacionar com outros homens sem que fosse necessário assumir trejeitos
femininos e abdicar de performar a sua masculinidade. Agildo Guimarães, um dos
responsáveis pelo periódico, relatou em entrevista concedida ao Lampião da Esquina que a
“nova fase” do Snob foi marcada por “um momento em que resolvemos ‘assumir’” e
“fizemos uma campanha para adotar outros nomes que não fossem de mulher” (Lampião da
Esquina, 1980, p. 6), fazendo menção aos pseudônimos femininos que os editores do
boletim utilizaram para assinar as matérias das antigas edições do Snob. As imagens e as
informações “modificam a impressão que possamos ter guardado de um fato antigo”
(Halbwachs, 1990, p. 28). Nesse caso, elas indicam que entendido é o homossexual que tem
clareza de sua sexualidade e, portanto, é esclarecido a respeito de sua identidade.
Assim, os homossexuais entendidos eram as identidades que representavam o
“mínimo de ameaça possível à masculinidade dominante, pois apenas diferiam do homem
heterossexual em sua prática sexual, mas não na aparência nem nos trejeitos” (Canabarro,
2015, p. 100). Para se afirmarem e se tornarem identidades válidas, “as representações
inovadoras necessitam contemplar, ao menos parcialmente, aquilo que se encontra em
andamento, em processo de constituição no seio da própria sociedade [...]” (Rodrigues,
2012, p. 21). Desse modo, o Lampião da Esquina, buscando legitimidade para os
homossexuais entendidos, acomodou-se na sociedade vigente. Esse movimento de busca
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
pela aceitação social gerou, em determinados momentos, um afastamento de identidades
que performavam em maior ou menor grau o feminino, como por exemplo, as
bichas/guei/deslumbradas. Dito de outro modo, a análise realizada acima expõe que a busca
de determinados editores pela aceitação social reforçou os padrões sociais vigentes.
O surgimento do Lampião da Esquina compõe um cenário diversificado e marcado
por relações conflitivas em torno das disputas e posicionamentos das identidades no interior
do grupo denominado de homossexuais (Rodrigues, 2012, p. 115). Como apontado pelo
leitor José Alcides Ferreira, as bichas não poderiam ser associadas aos entendidos, isto é, aos
homossexuais que são “homens normais” (Lampião da Esquina, 1978, p. 14). Assim, as
bichas, gueis ou deslumbradas, estavam um pouco abaixo dos esclarecidos, pois “ainda que
com características predominantemente masculinas, há trejeitos e afetações que denunciam
a feminilidade” (Canabarro, 2015, p. 100). Nas edições do Lampião da Esquina algumas
ilustrações que exemplificam a elaboração visual das deslumbradas:
Imagem 3. Publicidade do jornal Repórter
Fonte: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
A imagem 3, publicada na edição quinze de 1979, é uma publicidade do jornal
Repórter. Na gravura existem dois homens que, apesar de seus bigodes e traços fortes de
virilidade, estão em posição de “deslumbrados”, ou seja, de fascínio diante do jornal. A
palavra deslumbrada é o mesmo que: alucinada, ingênua e perturbada. A pessoa que está
deslumbrada tem a visão ofuscada devido à luz ou ao brilho em excesso. Deslumbrar
272
Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
significa, ainda, perturbar o entendimento de alguém. Nesse sentido, o homossexual
deslumbrado era aquele que apesar de seus elementos masculinos estava
momentaneamente trajando ou performando o feminino. Era a identidade que performava
na maior parte do tempo sua masculinidade não negava os traços de virilidade que
constituíam seu corpo , mas que, em certos momentos, se deixava ofuscar pelo brilho das
pintosas ou bonecas, perdendo, assim, o “esclarecimento” de sua identidade e ficando em
um estado de desentendimento.
As pintosas ou bonecas foram definidas pelo periódico como os homossexuais que
ultrapassavam “o limite das bichas e não passam despercebidas não têm passibilidade
heterossexual e ‘dão pinta’” (Canabarro, 2015, p. 100). Para o editor João Antônio
Mascarenhas, a pintosa, ao “falar com voz de falsete, fazer ademanes alambicados, dar
gritinhos e requebrar os quadris” estava imitando a “mulher objeto-sexual [...] idealizada
pelos machistas” (Lampião da Esquina, 1978, p. 9). Segundo Mascarenhas, esse tipo de
identidade não aceitava sua “orientação sexual com naturalidade (pois a efeminação é
evidentemente artificial)” e devido a isso passava a representar um empecilho para a
afirmação dos homossexuais entendidos, pois, ao “dar pinta”, os pintosos forneciam
“argumentos aos machistas, que se negam a admiti-los como um homem comum, que usa
sua sexualidade de forma não convencional” (Lampião da Esquina, 1978, p. 9). Em algumas
edições do Lampião da Esquina foi apresentada a visualidade das pintosas:
Imagem 4. Cartum, edição n. 22, 1980
Fonte: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
A imagem 4, extraída da edição 22, é um cartum que representa a visualidade do
homossexual pintoso. Além de deixar ressaltado os atributos femininos que marcavam o
corpo de um homossexual pintoso (como as pulseiras, o salto alto, as vestimentas) o
desenho exibe uma cesta sobre a cabeça da personagem carregada de falos. A imagem
reforça as elaborações criadas pelo editor de que essa identidade não aceitava sua
“orientação sexual com naturalidade” e que, portanto, não se enquadrava facilmente na
sociedade. Além disso, a cesta cheia de membros e os olhos da figura fixados em sua direção
indicam que os homossexuais pintosos não conseguem esconder seus desejos, tendo, assim,
estampado em sua cabeça suas vontades sexuais. Se o pintoso agredia por ter interiorizado
os valores machistas e, com isso, passava a agir de modo não natural, ou seja, de forma mais
feminina que um homossexual entendido, a bicha-louca era produzida por determinados
editores como uma identidade que estava em desvairo.
Para o jornal a bicha-louca era, muitas vezes, bicha por ser feminina e louca por ser
pouca esclarecida e desinformada a respeito de sua identidade homossexual (Bandeira,
2006, p. 103-104). O artigo intitulado louca e muito da baratinada, publicado na edição oito,
de 1979, e escrito por Hector e Ricardo da Frente de Libertação Argentina no Exílio expôs
que a bicha-louca tem comportamentos “exagerados” pois internalizou a opressão do
patriarcado. De acordo com os autores, a bicha-louca está na beira da insanidade e, ao
descartar “a possibilidade de penetrar genitalmente em seu companheiro” ocultando seu
órgão genital, ela produz uma dicotomia angustiante inserindo sua relação sexual “no campo
da heterossexualidade, como uma caricatura. A louca, negando seu corpo, e obrigando seu
companheiro a um determinado papel, permanecerá prisioneira do esquema machista”
(Lampião da Esquina, 1979, p. 1979) e estará muito perto de se tornar uma travesti ou, no
extremo de seu devaneio, uma bicha biônica.
As representações e visualidades construídas pelo Lampião da Esquina acerca das
identidades travestis foram marcadas por muitas contradições. Assim como o termo
homossexual que funcionou como um grande guarda-chuva que abrigava identidades
travestis, gays e lésbicas , a palavra travesti foi utilizada para apresentar uma multiplicidade
de experiências: “uma mais próxima do ‘ser’ travesti, com o corpo modificado [...]; e um
‘fazer’ travesti na montação [...]. Poder-se-ia ser travesti, mas também fazer travesti, ainda
que todas fossem, nos discursos correntes na época, homossexuais em uma escala de
feminilidade” (Canabarro; Meyrer, 2015, p. 21-22). Existia uma dicotomia que marcou as
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representações dessa identidade, e as imagens abaixo apresentam algumas dessas
diferenças:
Imagem 5. Cartum e capa publicados no periódico
Fonte: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
A imagem da esquerda é uma tirinha publicada em 1980 na edição vinte e três. Ela
demonstra que a travesti é um homem que se constrói de elementos femininos que podem
facilmente ser retirados ou desmontados. Nesse sentido, o desenho retrata uma mulher,
mas que à meia noite perde seu “encanto” e revela sua real identidade masculina. Portanto,
para os editores do periódico existiam aquelas travestis que poderiam “retirar toda a
feminilidade ‘artística’ da maquiagem e adereços” (Canabarro, 2015, p. 100). Já a da direita é
a capa da edição trinta e dois, de 1981, que exibe um grupo de travestis vestindo a camisa
do time de futebol do Vasco e, abaixo, os seguintes dizeres “cinco páginas sobre as bichas
biônicas, e mais uma entrevista com Rogéria, o Zico desta seleção”. Diferente da tirinha,
essas travestis não podem simplesmente remover o feminino de suas identidades; elas
possuem implantes, silicones e modificações que marcam permanentemente seus corpos.
Segundo o jornal, são as “bichas biônicas”, ou seja, identidades que fazem parte de “um
grande grupo de homossexuais masculinos, pessoas que nasceram com pênis, mas que não
costumam se relacionar afetivossexualmente com pessoas que nasceram com vagina”
(Canabarro; Meyrer, 2015, p. 16).
Apesar de suas transformações permanentes e da marca evidente do feminino em
seus corpos, a bicha biônica ainda era vista pelos editores como parte do grupo de
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homossexuais. Isso é reforçado pela fotografia vinculada na capa: as travestis performam a
feminilidade com seus cabelos longos, seios e implantes, mas estão vestidas com camisas de
time de futebol para relembrar os vestígios de sua performance masculina.
Como apontado por Ronaldo Pires Canabarro, as representações das identidades
homossexuais realizadas pelo Lampião da Esquina “deliberadamente não incluem as pessoas
transexuais, que desde aquela época carregam o rótulo de doentes mentais” (Canabarro,
2015, p. 101). Certamente, para os editores, as transexuais não estavam totalmente
associadas à identidade de homossexuais, entretanto, em algumas edições essa identidade
foi representada pelo periódico e, em determinado modo, relacionada ao grupo de
homossexuais e confundidas com as travestis. No artigo “homossexualismo: que coisa e
essa?”, escrito por Darcy Penteado e publicado na segunda edição, de 1978, o editor
apresentou que:
[...] o cérebro contém centros masculinos e femininos responsáveis pelo gênero de
atuação sexual. A homossexualidade resultaria então da predominância no centro
errado, isto é, do sexo oposto. Esta teoria é aceitável, mas não deixa de ser
discutível, porque se encaixa perfeitamente como definição de transexualismo,
mas carece de mais elementos para o homossexualismo, cujo comportamento
psíquico difere, sem ser gradativo ou correlacionado com o outro citado (Lampião
da Esquina, 1978, p. 2).
De acordo com o fragmento, o comportamento homossexual difere do
“transexualismo”, pois esse teria como principal característica uma mudança cerebral que
determinaria seu gênero “errado”. Assim, uma identidade transexual agiria de forma
contrária às normas ditadas pelo seu sexo/gênero, diferente de um homossexual, que não
necessariamente tem suas práticas incompatíveis com seu sexo/gênero. A teorização de
Penteado, não é um consenso entre o conselho editorial.
Para o editor Antônio Carlos Moreira, as identidades transexuais mesmo após terem
“cortado tudo”, não deixam de ser “visivelmente homossexuais” uma vez que, “são os
ambientes homos que elas procuram, são os amigos homos, é a mesma velha mitologia
homo que elas continuam a cultivar pela vida a fora”. Para Moreira, as transexualidades
mudam “a aparência, mas, debaixo desta, o que continua existindo é uma boa bicha,
castrada ou não” (Lampião da Esquina, 1981, p. 5).” Na edição trinta e cinco é exibida uma
ilustração que exemplifica essa concepção:
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Faces da História, Assis/SP, v. 10, n. 2, p. 252-279, jul./dez., 2023
Imagem 6. Cartum, edição n. 35, 1981
Fonte: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, edições 01-37, 1978-1981. Disponíveis em: <
http://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>. Acesso em: 07 jun. 2022.
A imagem expõe que, mesmo após a cirurgia, as transexuais continuam mantendo
antigos costumes, pelo fato de que sua identidade ainda que diante de todas as
modificações que possam ocorrer, permanece sendo masculina. De acordo com Antônio
Moreira, as transexuais “são bichas que ganham um arremedo de xoxota, mas continuam
com identidade masculina, ou seja, ainda são os senhores fulano de tal, e não as madames
que gostariam de ser” (Lampião da Esquina, 1981, p. 5). Nesse mesmo sentido, o editor João
Antônio Mascarenhas, apontou que a travesti caracterizada por alguns editores do
Lampião da Esquina como homossexual em nada diferenciava de uma transexual, visto
que ela chegava “a submeter-se a operações cirúrgicas para ocultar a identidade. Sua
ambição máxima consiste em transfigurar-se na mulher vamp, no sofisticado objeto sexual
tão comercializado por Hollywood nas décadas de 30 a 50” (Lampião da Esquina, 1978, p. 9).
Assim, em algum modo as travestilidades foram sim associadas por parte dos editores como
pertencentes aos homossexuais e como notamos, em determinadas publicações do Lampião
da Esquina, foram alvos de construções e classificações. Nesse ponto, é necessário perceber
que o discurso médico da época (nos parâmetros atuais considerado cis heteronormativo)
classificou as transexualidades como patologia e, indiretamente, esse discurso é reiterado
tanto nas narrativas de Antônio Moreira quanto de Darcy Penteado ou na ilustração de Levi.
A partir da análise realizada, é possível verificar que as composições acerca das
travestilidades foram motivos de disputas representacionais entre os membros que
compunham o conselho editorial do periódico. Tal fato pode ser entendido, visto que,
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existiram conflitos entre o corpo editorial devido às diferentes perspectivas que o periódico
deveria assumir. Membros como Aguinaldo Silva buscaram produzir um jornal
mercadológico que pudesse ser comprado por uma quantidade maior de pessoas. Outros
como João Silvério Trevisan com influências do movimento gay de San Francisco ,
direcionaram o jornal para um aspecto intelectual. Existia ainda, uma outra parte do
conselho editorial que desconfiava de tudo que vinha dos EUA e direcionava o jornal para a
crítica ao Regime Militar. Apesar disso, existiram dois grandes núcleos de editores que
comandaram o Lampião da Esquina o cleo do Rio de Janeiro, administrado
principalmente por Aguinaldo Silva, e o cleo de São Paulo, comando sobretudo por Darcy
Penteado e João Silvério Trevisan e, na maioria das vezes, como Aguinaldo desempenhava a
função de coordenar a edição a palavra final do que seria publicado era dele (Rodrigues,
2015, p. 100-106).
As tensões entre os editores a respeito da perspectiva que o periódico deveria
assumir se faz visível na edição trinta e dois, na qual desaparece todo o conselho editorial,
ficando apenas o nome de Aguinaldo Silva como coordenador da edição. Além do mais, as
disputas internas acerca da postura que o jornal deveria exercer em suas publicações são
apontadas pelo editor João Silvério Trevisan como um dos motivos que contribuíram para o
fim da circulação do Lampião da Esquina. Conforme relatado por ele em entrevista oral,
Aguinaldo Silva, com o tempo não abria mais espaço para artigos enviados de São Paulo
(Silva, 1998, p. 251). Cabe sinalizar, ainda, que segundo o pesquisador Jorge Rodrigues, as
imagens das travestis veiculadas nas capas do jornal passaram a afastar “o leitor enrustido,
ou mesmo o ‘entendido’” (Rodrigues, 2007, p. 119). Nesse sentido, os conflitos editoriais
que permearam as composições das travestilidades podem ser vistos como um dos fatores,
entre tantos outros, que resultaram no fim da publicação do periódico.
Considerações finais
Diante da discussão apresentada, nota-se que a ideia de uma homossexualidade
masculinizada construída por parte do corpo editorial do Lampião da Esquina é ainda uma
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forma de manter o entendimento da classificação das pessoas no mundo, dentro do sistema
sexo/gênero ou da diferença sexual, na medida em que as pessoas nascidas com pênis,
independentemente de terem relacionamentos sexuais e afetivos com outros homens,
deveriam continuar performando, socialmente, o gênero masculino. Assim, percebe-se que
certas estratégias do Lampião da Esquina estavam ainda tentando se encaixar nos padrões
de um sistema sexo/gênero e, em linhas gerais, não propunham efetivamente uma
desconstrução completa desse discurso.
Por fim, observa-se que as identidades travestis foram construídas pelos editores por
meio de representações conflitivas e contraditórias. Dessa forma, verificamos que não havia
um consenso entre o conselho editorial acerca das práticas e imagens que representariam
essas identidades. Entretanto, sendo a travesti considerada como parte dos homossexuais
seja pelos padrões impostos pela sociedade do período ou pelos discursos do corpo editorial
que, em certa medida, introjetavam a mentalidade de seu tempo foi necessário para os
editores que as travestilidades fossem classificadas, representadas e enquadradas, ora como
pertencente aos homossexuais, ora como identidades desvinculadas desse grupo.
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