Recebido em: 08/03/2015
Aprovado em: 06/08/2015
Uma representação literária da construção da
identidade nacional no México: o caso de Juan Rul-
fo
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A literary representation of the making of the na-
tional identity in Mexico: the case of Juan Rulfo
1
OLIVEIRA, Paulo Ferraz de Camargo
2
Resumo: No livro de contos Chão em chamas (1953) e no romance Pedro Páramo (1955),
o escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986) foi capaz de escapar do enquadramento
narrativo típico das chamadas novelas de la revolución, que abarcam escritores como
Martín Luis Guzmán, Mariano Azuela, José Rubén Romero, Federico Gamboa, José
Revueltas, Agostín Yáñez, entre outros, que produziram obras marcadas pelos conflitos
revolucionários e que se constituíram em crítica social. Rulfo, ao mesmo tempo que
produz sua crítica social, não se preocupa exclusivamente com a Revolução. Suas
personagens, apesar de inseridas no México revolucionário, são construções simbólicas
relacionadas a determinada condição humana, a de indivíduos desprovidos da assistência
do Estado, das condições mínimas de sobrevivência e, sobretudo, de esperanças. Assim,
pode-se identificar em Rulfo um escritor menos colado em sua realidade imediata, ainda
1
Adaptação de parte da dissertação
As representações temporais na obra de Juan Rulfo
apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História Social, do Departamento de História da Universidade de São
Paulo (FFLCH/USP). A pesquisa foi realizada com o financiamento da FAPESP.
2
Historiador. Mestre em História Social no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFL-
CH/USP). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento
de História. E-mail: canteirodosaber@gmail.com.
Uma representação literária da construção da identidade nacional no México: o caso de Juan Rulfo
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p. 161-175, jun.-dez., 2015.
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que esta seja essencial para a composição de sua obra, e mais voltado para questões
relativas ao ser humano.
Palavras-chave: Juan Rulfo; História e ficção; História da América; Literatura mexicana;
Revolução Mexicana.
Abstract: In the short stories The burning plain and other stories (1953) and in the novel
Pedro Páramo (1955), the Mexican writer Juan Rulfo (1917-1986) was able to escape from
the typical framework of the so called novelas de la revolución, which cover writers
such as Martín Luis Guzmán, Mariano Azuela, José Rubén Romero, Federico Gamboa,
José Revueltas, Agostín Yáñez, among others, who have also produced works influenced
by the revolutionary conflicts and that have turned out to be a social critic. Rulfo, at the
same time that produces his social critic, is not worried exclusively with the Revolution.
His characters, despite of living in the revolutionary Mexico, are symbolic constructions
that refer to a certain human condition, the one of the living beings devoid of State
assistance, of minimal conditions of surviving and, above all, of hopes. Thus, one can
identify in Rulfo a writer less attached to his immediate reality, although it is essential to
the composition of his work, than to issues regarding the human being condition.
Keywords: Juan Rulfo; History and fiction; History of America; Mexican literature;
Mexican Revolution.
Introdução
Os avanços da metodologia de pesquisa histórica obtidos ao longo do século
XX, com mais vigor após a criação, por Marc Bloch e Lucien Febvre, da revista
Annales
d’Histoire Économique et Sociale
, ou Escola dos Annales, possibilitaram a ampliação do
corpo documental utilizado pelos historiadores.
A ideia de novas formas de narrativas históricas embutia também novos
problemas, novas questões e novas abordagens. Esse movimento renovador incluía,
entre outros aspectos, o uso das fontes literárias ficcionais como elementos válidos de
pesquisa.
Daquele momento em diante, a literatura ficcional foi se tornando, cada vez
mais, elemento importante na busca pela melhor compreensão histórica. No entanto,
é imprescindível ressaltar os limites aos quais esse tipo de fonte está submetido, na
medida em que não se deve tomar a literatura ficcional como espelho da realidade da
época que está sendo narrada, ou seja, não se deve buscar nela elementos diretos de
historicidade.
A literatura de ficção oferece uma representação do real, na qual a história pode
ser identificada pelos topoi, pela linguagem empregada no texto, tanto a do narrador
como a das personagens, pela estrutura narrativa que sustenta a obra, pela construção,
física e psicológica, das personagens, pelas maneiras como elas interagem etc.
[...] no lugar de uma literatura puro espelho da vida real, ciosa de uma eventual
necessidade de retratá-la fielmente, Sarlo, por meio de Borges, identifica
uma outra conexão entre a prática literária e a representação do mundo
real. Trata-se do jogo alegórico que ficcionaliza a realidade e a apresenta
metaforizada, da vontade de raspar o limite do real – sem o atingir – de
representá-lo, perturbando-o, atingindo-o, questionando-o. É um modelo
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que, imaginário, propõe a substituição do real por outra formulação, cujo
efeito de verossimilhança [...] coloca em xeque, ao mesmo tempo, o estatuto
de realidade e de ficção; resgata, na ficção, a proximidade possível do real [...].
A ficção não surge em substituição simples da realidade, mas criando
alternativas que a revelam e a exorcizam. [...]
A história aparece, assim, transmutada numa representação imaginário-
ficcional que abre lugar de crítica plena ao mundo vivido, escapando, dessa
forma, dos limites impostos pela representação hipoteticamente colada à
realidade (PINTO, 1998, pp. 256; 258-259).
A literatura ficcional mexicana que incorporou a Revolução Mexicana a sua
composição narrativa muito contribuiu para que se pensasse sobre as inflexões
dadas pelo discurso ficcional a ela e de que forma os agentes sociais a sentiram e a
transformaram em experiências sociais, políticas e culturais.
A construção de discursos literários passa, portanto, pela constatação de que
a cultura é uma experiência coletiva, que não é determinada pelas instâncias políticas,
sociais e econômicas, mas que tampouco as determina. Em vez desse jogo de reflexos,
o que existe são mediações complexas entre essas esferas (NAPOLITANO, 2009, p. 76).
Obras de ficção que tomaram a revolução como tema ajudaram a corporificar
uma certa identidade mexicana – não existe uma única identidade nacional, mas um
conjunto de experiências de diversos grupos sociais espalhados pelo território nacional
e pelo tempo –, ao menos aquela vinculada aos eventos revolucionários e às populações
que mais sofreram suas consequências, com destaque para as camadas campesinas
mais pobres, da qual fazem parte muitos dos descendentes das populações indígenas
nativas.
Desse modo, a obra ficcional rulfiana constitui-se em mais um meio pelo qual
o historiador pode rastrear as implicações decorrentes da Revolução Mexicana nos
discursos identitários mexicanos do século XX.
A busca por uma identidade em Juan Rulfo
Nacionalismo e modernismo. A articulação entre esses dois conceitos gerou, a
partir do século XIX, inúmeros discursos identitários em todo o mundo ocidental. O
primeiro termo surgiu no século XIX como forma de delimitar o próprio em função
do outro: ser francês em oposição ao inglês. Ou, mais ainda, em função da unificação
territorial de regiões antes autônomas que foram obrigadas a se agrupar sob uma mesma
bandeira: ser italiano, e não mais napolitano, piemontês ou calabrês; ser alemão, e não
mais bávaro, friburguense ou renano.
Em um sentido mais amplo, no último terço do século XIX o nacionalismo se
prestou à demarcação dos imperialismos das nações europeias, que levou, por fim, à
Primeira Guerra Mundial, pondo fim àquele sentimento de inexorabilidade do progresso
humano que marcou tão profundamente a Belle Époque. Nesse momento, surgiram
concomitantemente as primeiras manifestações modernistas na Europa. Diversas
áreas do conhecimento humano foram, portanto, regidas por novos conceitos e novas
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maneiras de se compreender o mundo, um mundo tão diferente daquele que existia até
aquele momento que levou Baudelaire a falar em modernidade ainda em meados do XIX
e a escrever:
– O quê!? Você por aqui, meu caro? Num lugar suspeito? Você, o bebedor de
quintessências? O comedor de ambrosia? Na verdade, tenho de surpreender-
me!
– Você conhece, caro amigo, meu pavor pelos cavalos e pelos carros. Ainda
há pouco, quando atravessava a avenida, apressadíssimo, e saltitava na lama
em meio a esse caos movediço em que a morte chega a galope por todos os
lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou
da minha cabeça para a lama da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei
menos desagradável perder minhas insígnias do que deixar que me rompessem
os ossos. E depois, pensei, há males que vêm para bem. Posso agora passear
incógnito, praticar ações vis e me entregar à devassidão, como os simples
mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como vê! (BAUDELAIRE, 2011, p. 215).
É a cidade, lugar dos automóveis, das largas vias, da vida corrida com seus
habitantes não andando, mas saltitando em meio ao caos. A cidade, local apropriado
para a manifestação da maldade humana, escondida no anonimato para praticar as
ações mais condenáveis.
Pensemos em toda a teoria freudiana, nas novas concepções advindas das
descobertas da relatividade, nas novas maneiras de se produzir mercadorias e de vendê-
las, gerando um novo padrão de consumo, nos primórdios da fabricação de automóveis,
nos luminosos que borravam a distinção entre o dia e a noite, no já consagrado flâneur,
que a Encyclopaedia Larousse, ainda no século XIX, designava como “a figure who loiters
in the city, shopping and watching the crowd” (PARSONS, 2003, p. 17), personagem
prontamente reconhecida, respectivamente, em “A uma passante”, de Baudelaire, e em
“O homem na multidão”, de Edgar Allan Poe.
A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.
Um, relâmpago e após a noite! – Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado – e o sabias demais!
(BAUDELAIRE, 1985, p. 236).
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Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, estava eu sentado ante a
grande janela do Café D... em Londres. [...] Com um charuto entre os lábios e
um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espiando
os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora
espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Era esta uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante
o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou e quando
as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes
desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu
nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de
cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti
finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me
na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação assumiu um feitio abstrato e generalizante.
Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações
gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar,
com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte,
semblante e expressão fisionômica (POE, 1986, pp. 131-132).
Na América Latina, a articulação entre o nacionalismo e o modernismo tingiu-
se de cores locais – a tal da profusão da cor local da fase inicial de Borges –, muito
específicas e singulares. O nacionalismo, aqui, tinha de se resolver com a questão da
identidade indígena, profundamente arraigada na cultura de todo o continente – mais
presente em alguns lugares, como Peru e México, mais diluída em outros, como Argentina
e Uruguai, na proporção direta da participação das culturas indígenas nos projetos de
formalização dos respectivos Estados nacionais. O modernismo, assim, desenvolveu-
se em meio às constituições nacionais permeadas por discursos ideológicos acerca do
caráter dos povos latino-americanos.
No continente latino-americano, a literatura se configurou como agente de novos
discursos políticos, em seu desejo de entender e dar forma às mudanças sofridas pelos
diversos países, em especial a partir dos movimentos de independência. Em resposta
à literatura realista de meados do século XIX, os novos movimentos artísticos e, no
caso, literários pretendiam, rompendo com as antigas tradições do realismo, configurar
respostas e novos padrões de análise e interpretação das realidades locais. Por isso, é
essencial a compreensão dos discursos literários modernistas latino-americanos à luz
das constituições nacionais.
O nacionalismo contém, em seu interior, não apenas o germe daquilo que
um povo se pretende ser, não só a criação de traços comuns, reais ou imaginários,
de um determinado agrupamento humano, mas também, e, sobretudo, construções
realizadas em função daquilo que vem de fora, da alteridade, mais do que da identidade
própria. Para além das constituições identitárias de nação baseadas na alteridade,
também contribuem para o fortalecimento das identidades as descrições monstruosas,
fantasiosas, de outros povos. A invenção de imagens distorcidas destes é resultado da
dificuldade de se descrever os, assim chamados, outsiders. Nos termos de Gobineau, a
monstruosidade é a alteridade deturpada (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2007, p. 70).
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O nacionalismo, tal como foi sendo desenvolvido na Europa ocidental, foi
incorporando em si muitas das antigas tradições dos povos locais, tanto as que se fazem
presentes no cotidiano dessas populações e que são realizadas de forma espontânea
nas diferentes regiões de cada país como, e eis a parte mais importante e significativa,
aquelas que há muito haviam sido esquecidas. Reavivou-se, portanto, muito das
antigas práticas folclóricas, conferindo-lhes um novo status: não mais regional, mas
agora nacional. Certas características foram convertidas, enriquecidas e, até mesmo,
alteradas.
No limite, o nacionalismo chegou mesmo a inventar tradições, como no caso
comentado por Hugh Trevor-Roper sobre a transformação do kilt escocês feito de
tartan e da gaita de foles em símbolos nacionais. Considerados utensílios simbólicos de
um primitivismo, de “montanheses velhacos, indolentes, rapaces e chantagistas”, eles
foram, recentemente, transmutados em símbolos máximos de uma identidade diversa
da inglesa (TREVOR-ROPER, 2008, p. 25-52).
A busca identitária em função do outro.
Ao mesmo tempo que a ideia de nacionalismo ganhava cada vez mais terreno,
o imperialismo reforçava os preconceitos entre diferentes povos. Ocultos antes pelos
termos “linhagem” e “pureza de sangue, o racismo do século XIX surgia impregnado
de pretensa ciência, o cientificismo, o que lhe conferiu enorme poder persuasivo
(FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2007, p. 87). Se, na Europa, o racismo foi dirigido a todos
aqueles considerados inferiores, ou seja, o mundo todo, e no Brasil ele foi orientado
contra o escravo negro, na América Hispânica o alvo foram os povos indígenas.
Na América Espanhola o indígena foi um elemento que esteve indubitavelmente
presente no imaginário social desde a época do Romantismo. Valorizado como
representante do nacional, foram-lhe agregadas qualidades que o negro não possuía.
Ou, melhor dizendo, os intelectuais responsáveis pela criação mítica do indígena
conseguiram criar uma imagem idealizada dele, traço bastante marcante também da
literatura romântica brasileira.
De uma maneira mais abrangente, que acaba por englobar, também, o indígena,
o nacionalismo latino-americano não pode ser dissociado das questões relativas aos
aspectos culturais populares.
Nesse sentido, Vivian Schelling faz duas importantes observações sobre a
cultura popular. A primeira trata da ampla gama de atividades culturais que acabam
sendo encaixadas dentro dessa definição. Ou seja, tudo que não é reconhecido como
pertencente à “alta cultura” é passível de se tornar cultura popular. A segunda, e
possivelmente a mais importante, é sobre a própria definição de cultura popular,
que deve ser identificada com muito cuidado e cautela, pois quem define o que é ou
não popular acaba sendo uma dada tradição intelectual, uma estrutura disciplinar
(SCHELLING, 2004, p. 171).
Assim sendo, em um ambiente escassamente urbanizado, fortemente estratificado
entre uma classe dominante e as massas indígenas, cuja classe-média urbana era
extremamente reduzida, os escritores assumiram uma postura professoral. Caberia a
esses intelectuais, segundo eles próprios, a função de ensinar às elites sobre os próprios
países nos quais eles viviam. Daí a importância do apontamento feito por Schelling.
Esses poucos leitores urbanos do século XIX e primeiras décadas do XX,
entretanto, buscavam no exterior, modelos do que a ficção podia atingir (WILSON, 2004,
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pp. 85-88). Nessa relação entre a realidade local e as ideias estrangeiras, lembremos que
erigir uma nacionalidade implica em somas e subtrações. O primeiro caso é ilustrado
pela sobreposição de diversas práticas culturais autóctones, em geral oriundas do
campo e das populações nativas.
No caso da ausência destas, como na Argentina de fins do século XIX que havia
exterminado quase todo o contingente indígena, substituiu-se a herança indígena
pela figura do gaucho, um elemento perdido entre o campo e suas remotas origens
criollas. Nesse caso, há uma miríade de produções literárias que tentam dar conta dessa
construção. Os mais sintomáticos são, sem dúvida, Hilario Ascasubi, autor de Paulino
Lucero (1846), Estanislao Del Campo, e seu Fausto, impresiones del gaucho Anastácio
el Pollo en la representación de la Ópera (1866), José Hernández e seu famoso Martín
Fierro (1872 e 1879), Eduardo Gutiérrez, criador de Juan Moreira (1880), e Ricardo
Güiraldes, com seu Don Segundo Sombra (1926), este já nas primeiras décadas do
século XX.
Do lado oposto, tem-se uma nacionalidade formada por subtração. De acordo
com essa ideia, a busca pelo nacional na América Latina teria sido baseada na percepção
de que nossa vida seria puramente imitativa dos hábitos europeus e que, portanto, para
se alcançar o nacional, deveria ser removido tudo quanto fosse estrangeiro. Contudo,
como Roberto Schwarz diz, “não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver
de modo mais autêntico”. Refletindo sobre as relações de empréstimos entre a cultura
“genuína” e a que vem de fora, Schwarz concluiu pela impossibilidade dessa renúncia,
sobretudo no mundo moderno.
De qualquer forma, o original seria, de acordo com esse modelo de conduta, a
matriz do nacionalismo. Mas, qual teria sido a trajetória que elevou o original à categoria
de símbolo representativo de um povo? A pergunta é indubitavelmente válida, pois o
original nem sempre foi buscado ou valorizado. Enquanto as regras neoclássicas de
composição artística-cultural vigoravam, a cópia era a aspiração dos artistas. Ela era
valorizada na medida em que incorporar as formas canônicas era uma maneira de se
inserir na tradição ocidental que remonta, no limite, à Grécia clássica. A cópia era,
portanto, um repositório da própria tradição.
Pensando pela chave interpretativa de Schwarz, é possível detectar com precisão
o momento em que a cópia deixou de ser valorada de forma positiva e passou a ser
vista de maneira pejorativa. A independência – no caso, a brasileira – marcou essa
passagem ao opor as formas modernas vindas do mundo civilizado à realidade colonial,
arcaica e atrasada. Daí derivar-se aquele sentimento, já aludido, de que as ideias que
aqui vigoravam seriam postiças, emprestadas, pois as ideias europeias passavam a ser
operadas em uma outra realidade, com outras especificidades.
Com base nessa percepção, durante a transição política da monarquia para a
república, abriu-se espaço para se discutir a relação entre esse moderno e a herança
colonial. As opiniões ficaram divididas, então, entre dois polos: os que acreditavam que
o colonial desapareceria diante do progresso e os que defendiam a herança colonial
como um ingrediente autêntico a ser protegido das imitações.
O balanço final proposto por Schwarz é definido por uma intensa crítica à própria
crítica nacional do final do XIX e começo do XX. Pensar em uma cópia é pressupor um
original, do qual aquela é um reflexo inferior. Essa postura demonstraria a situação da
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autoconsciência dos pensadores da América Latina: original/cópia possuiria a mesma
relação dos termos países adiantados/países atrasados (SCHWARZ, 1987, pp. 39-48).
Pode-se concluir, portanto, que essa oposição é irreal, superficial e não dá conta
das concretas transposições, mutabilidades, filtragens, rearticulações, apropriações
que, como resultado, enriquecem uma nova cultura nacional, nem “autêntica”, muito
menos “cópia.
Seria pertinente, nesse momento, que nos lembrássemos das colocações de Homi
Bhabha, de Benedict Anderson, de Hugh Trevor-Roper, de Carlo Ginzburg, de Michel
de Certeau e de Natalie Zemon Davis sobre a fabricação das identidades. Afinal, se a
cultura popular é definida a partir de cima, dos que participam dos círculos eruditos,
cujo acesso aos meios de produção e divulgação é rápido e fácil, nada mais pertinente
do que se proceder a uma análise um pouco mais detalhada desse processo, limitando-o
a sua imbricação com a busca das nacionalidades para, em seguida, partir-se para uma
análise específica do caso latino-americano.
Ginzburg já nos lembrou dos perigos de se promover um corte rígido entre cultura
popular e erudita. Os circuitos de divulgação, as apropriações e as reinterpretações são
fundamentais para a estruturação cultural, venha ela “de baixo” ou “de cima”. A forma
como Menocchio absorveu e compreendeu suas leituras cultas foi certamente mediada
por seus desejos e pelas tradições muito fincadas em um substrato popular e campesino
que remonta a um passado muito distante (GINZBURG, 2006, p. 23).
Os camponeses franceses do século XVI articulavam suas leituras da mesma
forma. O uso da palavra impressa foi canalizado pelos valores e estruturas sociais,
mediados pela tradição, esta reafirmada constantemente pela transmissão oral e pela
relação com grupos que não fossem camponeses. Somando-se a isso, a dificuldade do
controle sobre as leituras e interpretações, por causa da ampla difusão alimentada pelos
desenvolvimentos técnicos de impressão e a incipiente, porém crescente, urbanização
que estimulava a livre troca de ideias sobre o que acabava de ser lido e ouvido, tornou
essas permutas entre o popular e o erudito inevitáveis. Os leitores eram usuários e
intérpretes ativos dos livros, pois “a cultura oral e a organização social popular eram
suficientemente fortes para resistir à mera correção e uniformização vindas de cima”
(DAVIS, 1990, p. 157-185).
Bhabha, por sua vez, atenta para a simplificação da ideia de nação como
autogeradora “em si mesma” diante das nações externas. O verdadeiro problema que
a criação da ideia de nação precisa enfrentar, segundo ele, é a sua constituição interna
e a articulação de sua heterogeneidade. Apoiando essa opinião, Béatrice Tatard, que
estudou a arte fotográfica produzida por Juan Rulfo, afirma que o popular seria um
traço essencial de uma cultura nacional heterogênea, mas na qual a maior parte dos
mexicanos poderia se reconhecer (TATARD, 1994, p. 24). Eu diria, sustentado por
Bhabha, que justamente por ser heterogênea é que a maior parte dos mexicanos se
reconheceria nela.
Entre esses discursos heterogêneos presentes no México pós-Revolução,
podemos incluir a construção das diferentes temporalidades que, nesse país, tangem
os diferentes povos que não sejam somente os descendentes dos criollos. Em larga
medida, podemos citar as populações indígenas e camponesas, essas últimas foco da
atenção de Rulfo.
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No campo literário rulfiano, por exemplo, pode-se citar o conto “Luvina, de Chão
em chamas, que constrói em registro ficcional, do ponto de vista das diferenças das
temporalidades, as tentativas modernizadoras do Estado que buscava levar aos pueblos
perdidos no interior a dita educação civilizada. O projeto fracassou por vários motivos.
Aqui, o que importa salientar é justamente o descolamento entre esse tempo moderno,
do Estado, oficial, e o tempo dos camponeses, arcaico e das tarefas cotidianas, baseado
no ritmo da natureza. Esses camponeses, além de não compreenderem a proposta
apresentada pelos professores, negam-se a abandonar seu lugar de nascimento,
porque querem permanecer próximos a seus mortos (passado). Atitude impensável
para qualquer cidadão moderno, urbano, letrado na mentalidade europeia “avançada e
civilizada”.
Portanto, as reivindicações hegemônicas ou nacionalistas de tom cultural
(homogêneas) seriam, para Bhabha, insustentáveis. Com termos um tanto quanto
abstratos, o autor se refere a Julia Kristeva e sua concepção da construção temporal
da nação, que estaria dividida em dois tempos: o pedagógico e o performativo. Ou
seja, respectivamente, a sedimentação histórica e a perda da identidade no processo
de significação da identificação cultural. Essa narrativa continuísta, hegemônica, não
impede, contudo, a emergência da instabilidade cultural na qual vive, de fato, o povo.
É justamente por meio dessa fluidez de significações culturais que surgem as diversas
temporalidades – moderna, colonial, pós-colonial, nativa, entre outras (BHABHA, 1998,
p. 209-216).
Colocando a questão da nacionalidade em termos políticos, Michel de Certeau
fala sobre crença, mas não como dogma ou programa, e sim como “subject’s investment
in a proposition, the act of saying it and considering it as true. A crença, portanto, seria
o suporte para a autoridade política que, em seu desejo de fazer as pessoas acreditar
nas instituições, forneceria uma contrapartida: a busca por identidade. Dessa maneira,
a crença teria vindo da esfera do sagrado, do religioso, e o Estado, com base em Thomas
Hobbes, teria se apossado desse sentimento. Assim, ela teria passado primeiro pela
Igreja, depois para a monarquia, até alcançar as instituições republicanas – percurso
idêntico ao estabelecido por Anderson (ANDERSON, 2007, p. 32-39). E tudo aquilo
que não pudesse ser transportado ao longo desse percurso seria classificado como
superstição. Ao fim e ao cabo, esse movimento foi profundamente intenso e muito bem
sucedido.
Trazendo essa discussão para um plano mais concreto e cotidiano, podemos
afirmar, tendo em vista o caso do samba, ou, mais exatamente, das canções de Ary
Barroso, que, mesmo que o conteúdo seja desprovido de qualquer significado,
coerência ou profundidade – talvez justamente por isso –, a mobilização nacional
em torno da definição e aceitação de que nessa musicalidade residiria um símbolo
nacional foi extremamente eficaz. É precisamente esse caráter artificial que Certeau
destaca, quando analisou a produção atual da crença, tanto em termos políticos quanto
comerciais (CERTEAU, 1988, p. 178-179).
Assim sendo, transportando esses conceitos para o caso latino-americano,
podemos afirmar que pensar no indígena como símbolo máximo da expressão de uma
cultura popular é, no mínimo, temerário, porque ele não pode ser tomado como único
elemento nacional. Há diversos outros povos que residem no continente clamando
por representatividade, como, até mesmo, os estrangeiros que para cá vieram e que
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mesclaram suas tradições com as dos novos países, ajudando a configurar as respectivas
identidades nacionais.
Como resultado do cotejamento das análises mencionadas, seria possível pensar
no camponês latino-americano como elemento destituído de uma identidade regional,
pois ele seria uma designação de classe, e não de pertença local. E o que vemos na obra
de Rulfo é justamente o camponês
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, aquele indivíduo desprovido de tudo, material e
espiritualmente.
Porém, o foco de atenção de Rulfo no campesinato mexicano do século XX
não me parece estar na discussão sobre seu caráter formativo indígena, o nativo do
continente despojado de suas tradições, ou os chingados, filhos de Malinche, mas, antes,
no camponês como uma representação simbólica de indivíduos que perderam suas
ligações com suas crenças, tradições e costumes, diante de projetos de modernização
fomentados pelo Estado nacional mexicano.
Corroborando essa argumentação, ressalto o comentário feito pelo cineasta
e fotógrafo Walter Reuter sobre uma viagem que ele e Rulfo haviam realizado para
Zacatepec: eles haviam empreendido tal viagem motivados pelo interesse em conhecer
uma dança indígena específica do local (JIMÉNEZ; DEMPSEY, 2009, p. 40). Rulfo não só
desempenhou atividades profissionais no Instituto Indigenista, como foi o autor de uma
larga produção científica presente na monumental obra coordenada por Claude Fell,
Juan Rulfo. Toda la obra, integrante da coleção Archivos. Destarte, o relato de Reuter
nos faz pensar na influência do real sobre a ficção. De fato, é inegável o interesse de
Rulfo pelos indígenas de seu país. Mas, se ele se limitasse a narrar a condição indígena
dessas populações, não existiriam condições para que houvesse uma diversificação
tão ampla em sua fortuna crítica que aborda suas narrações pelo caráter universal e
simbólico da condição humana.
Como já foi postulado, o interesse literário de Rulfo pelos indígenas se dá muito
menos pela condição deles de descendentes das populações indígenas ancestrais, e
mais pelo o que, por meio deles, Rulfo pôde extrair e, assim, refletir sobre o universal
da condição humana.
Em entrevista concedida a Francisco Antolín, em 1973, Rulfo confirmou que
não tratou dos índios, somente do mestiço e do
criollo
(ANTOLÍN, 1991, p. 14). No ano
seguinte, em outra entrevista, ele explicou que acreditava que a mentalidade indígena
era muito difícil de ser penetrada (FELL, 1996, p. XXII). Rulfo ainda ressaltou, naquela
mesma entrevista a Antolín em 1973, o caráter refratário do camponês mexicano: “
A
veces regreso a mi pueblo, Sayula, en Jalisco, y en cuanto me acerco a un grupo, cambian
de conversación
” (ANTOLÍN, 1991, p. 16).
Se o camponês de Rulfo se ativesse, de fato, a uma identidade puramente
regional, a obra do escritor mexicano não teria sido alçada ao nível universal, não teria
transcendido a realidade imediata da qual emergiu para ter se convertido na narração
da própria condição humana. Porém, a ideia de universalização da obra literária precisa
ser abordada com muito cuidado, pois ela pode, no limite, pressupor até mesmo a
anulação da história, já que esta é feita justamente pelas especificidades de cada povo
em determinado momento.
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Nesse ponto, vale uma ressalva explicativa: está claro que ao se falar em camponês, no México, está-se
falando do indígena.
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A universalização literária não pode ser pensada em função da história como
sucessão de acontecimentos, mas precisa ser pensada na condição do leitor que, por
sua vez, possui seu próprio entendimento da historicidade dos acontecimentos que
o cercam. Ao se considerar algo universal, é preciso levar essas particularidades em
conta. A literatura ganha vida não na sua gênese, mas a partir do momento em que é
feita, lida e interpretada.
[...] all the peoples of the world face death without being fully able to explain
it, all people have dreams which disturb and inspire them, and a universal
folklore helps to explain nature in all cultures (DETJENS, 1993, p. 127).
Nomes, lugares, eventos, pessoas e sistemas de crenças, se associados a
experiências pessoais, amplificam seu poder de significação. E se esses elementos
carregam o germe de experiências de uma maior parcela da humanidade, eles podem
formar a base de um universo no qual essas pessoas podem identificar mais claramente
as verdades e os problemas de sua existência cotidiana (DETJENS, 1993, p. 131).
Concluindo, o atributo universal de Rulfo é corporificado na imagem que ele
criou para seu camponês, símbolo de classe, não na definição marxista do termo, mas
como representação de um grupo social presente nos mais diversos países e épocas
históricas.
Ressalva feita sobre a relação de Rulfo com o elemento indígena e as considerações
sobre o caráter universal de sua obra, pode-se retomar a discussão sobre o processo
de forja da nação estabelecido pelo Estado mexicano, em especial ao longo de toda a
primeira metade do século XX. Schelling lembra muito bem a contradição inerente a tal
processo, no qual a cultura popular é transformada e até mesmo eliminada ao longo da
modernização e da construção nacional (SCHELLING, 2004, p. 177). É certo que houve
uma significativa mudança nos rumos da crítica cultural do continente, desde a época
das independências até meados do século XX.
Enquanto o século XIX, de maneira geral, mirava a Europa, em especial França e
Inglaterra, como modelo civilizatório a ser seguido, o século XX inverteu essa tendência
e passou a valorizar a cultura autóctone como sendo a única forma de se construir as
identidades nacionais, movimento baseado na crença da unicidade e das características
originais. Dessa forma, a valorização do popular era inevitável, pois nele residiria a
própria unicidade latino-americana. No México, essa mudança começou a ocorrer no
despertar da Revolução Mexicana.
Com relação à construção da identidade nacional mexicana, se forem levadas
em consideração as opiniões de María Guadalupe García-Barragán, será possível
perceber, ainda, que a gestação dessa identidade mexicana, propriamente dita, vem
sendo realizada desde os primeiros séculos de colonização:
Si el hijo de españoles nacido en la Nueva España no se siente español, sino
hijo de México, y ya se le llama mexicano en el siglo XVI, indicio es esto de
que la identidad mexicana ya se encuentra en incipiente o en plena gestación,
lo que podrá siempre cuestionarse respecto a su intensidad o a su etapa de
desarrollo, pero que – como lo prueban los testimonios históricos y literarios
– es un hecho o un fenómeno (GARCÍA-BARRAGÁN, 1986, p. 172).
Uma representação literária da construção da identidade nacional no México: o caso de Juan Rulfo
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Refletindo sobre os esforços da construção de identidades nacionais na América
Latina, Sarah Radcliffe e Sallie Westwood atentam para o processo de longo prazo que
se fez necessário para incorporar o popular e definir a cultura em torno das ideias de
pueblo e, assim, formar-se uma comunidade nacional imaginada. Nesse longo processo,
o populismo, para elas, foi o elemento que coordenou tal desenvolvimento.
Assim sendo, podemos considerar que a cultura popular desempenhou uma
função política, muito mais do que serviu como reparação ou como valorização do
indígena, do negro ou do gaucho como formas válidas e reconhecidas pelas classes
dirigentes como essenciais para a construção de seus respectivos países.
Mesmo sendo o populismo um traço político já determinado e consolidado ao
longo do século XX, ele não implica o pressuposto de que a construção da identidade
nacional estivesse isenta de conflitos, na medida em que, para se construir essa imagem,
seria preciso criar uma homogeneidade dentro da nação. Dessa forma, as políticas do
Estado distinguiam aquilo que vinha de fora, atuação fomentada pelo imperialismo, que
dissolveu os tradicionalismos em busca dessa homogeneização balizada pelos valores
europeus (SEVCENKO, 2003, p. 66).
Essa política de homogeneização é essencial para a construção da comunidade
imaginada, se considerarmos que ela abarca indivíduos que nunca se conhecerão,
mas que têm, ao mesmo tempo, muito em comum e – o que foi perspicazmente
percebido por Renan, citado por Anderson – muito a ser esquecido. Claro está que
esse “esquecimento” reforçaria o nacionalismo composto pelas relações horizontais,
de camaradagem, na qual as explorações dentro das nações cederiam espaço para a
comunhão dessa comunidade imaginada (ANDERSON, 2007, pp. 32-34).
Radcliffe e Westwood corroboram a ideia de Anderson sobre o desenvolvimento
do capitalismo editorial, transpondo-a para a realidade do continente latino-americano,
já que o próprio Anderson está se referindo ao desenvolvimento do capitalismo e do
mercado editorial na Europa ocidental no século XV. De qualquer forma, sua matriz
teórica foi utilizada por elas. Matriz teórica que foi, por sua vez, criticada por Rowe e
Schelling, ao apontarem para a omissão de Anderson do papel da cultura popular em
suas reflexões (RADCLIFFE; WESTWOOD, 1996, pp. 10-12).
Pode ser que essa crítica não seja suficiente para invalidar o posicionamento de
Anderson, na medida em que a exclusão do popular não contradiria o que ele se propôs
a analisar, que é o ato de partilhar determinado ritual entre pessoas que, mesmo não se
conhecendo, mantêm ligações por meio de vínculos imaginados, como, de acordo com
o exemplo dado pelo próprio Anderson, os companheiros de leitura, indivíduos unidos
pelo momento da leitura individual/coletiva dos jornais diários.
Uma observação extremamente pertinente feita por Rowe e Schelling, porém,
refere-se ao papel histórico desempenhado pela literatura ficcional latino-americana,
que teria tido, no período pós-independência, uma função de criar ligações imaginárias
em torno das linhas étnica, econômica e regional, preenchendo, dessa forma, “vazios”
nas histórias nacionais.
Essas criações deveriam ser sentidas e experimentadas como um “senso-
comum”, ganhando uma hegemonia, tão necessária aos discursos nacionalistas. E
as elites políticas, as responsáveis por esses discursos, ao ocuparem uma posição
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intermediária entre a colônia e a metrópole, acabaram por reproduzir as ideias sobre
identidade nacional vindas dos colonizadores. Esse movimento possuía uma direção
muito clara, formada pela tentativa de dirigir as formas culturais de maneira a consolidar
seu próprio poder.
Dessa forma, o ponto central da argumentação delas não passa pela dicotomia
superficial composta, de um lado, de uma construção nacional dirigida pelo Estado ou
pelos grupos que detinham o poder político, e, de outro, da consideração da cultura
popular como sendo a salvação para o discurso identitário nacional. Mas sim, que essa
articulação ideológica na definição da nação e da identidade nasce dos confrontos
entre instituições e classes, constituindo, portanto, a própria natureza da comunidade
imaginada nacional.
Além desse aspecto institucional, há um outro nível essencial no processo de
consolidação de uma identidade imaginada: o subjetivo. As autoras utilizam uma citação
de Anthony Cohen muito incisiva sobre o assunto. Diz ela:
[…] these state ceremonies suffered the fate of imposed ritual anywhere: that
however well contrived their forms, they could not control the meanings read
into them by their audiences (COHEN, apud RADCLIFFE; WESTWOOD, 1996,
p. 15).
A cultura popular não é pura, intocada pelas formas culturais globais ou pela
apropriação estatal. Ela não está associada a nenhuma classe específica, seja dos
camponeses, das classes-médias ou dos grupos mandatários. Essa segmentação cede
espaço para a concepção de que seu uso foi rearticulado por tentativas políticas de
se criar uma autêntica expressão do povo. Assim mesmo, apesar de toda violência e
transformações, a cultura popular serviu de base para a construção da nação e da
comunidade (RADCLIFFE; WESTWOOD, 1996, pp. 18-19). Apoiando-se na proposta de
Antonio Gramsci, de que a hegemonia ideológica é poderosa porque é instável, pois
junta o dominante e o subordinado, as autoras afirmam que parte do poder do discurso
oficial se sustenta justamente porque a história nacional abarca elementos populares
(RADCLIFFE; WESTWOOD, 1996, p. 81).
Momentos de cultura popular são momentos de pertencimento. E o pertencimento
é a base que dá sustentação ao edifício do nacionalismo e da identidade. No momento
em que os mexicanos cantam em uníssono Cielito lindo, eles partilham de uma mesma
crença, de algo que lhes concretize esse sentimento que pode ser abstrato se permanecer
na esfera discursiva intelectual, mas que se torna concreto no momento dessa partilha
popular.
As ideias que são dadas a priori, como pressupostas e evidentes por si próprias,
são as que possuem maior força, não importa o significado e a profundidade da
mensagem. Afinal, quem vai discordar do amor autêntico da morena de Cielito lindo! Ou
que o mulato é inzoneiro!! Ou que o coqueiro dá coco!!!
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