"O universo não parece ser nem benevolente nem hostil, apenas
indiferente."
(Carl SAGAN em Cosmos, 1990)
“O fato de ser uma minoria, mesmo uma minoria de um, não
significava que você fosse louco. Havia verdade e havia inverdade,
e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro o
contradissesse, não estaria louco.”
(George ORWELL em 1984,
2009)
"O ódio é um peso. A vida é curta demais pra se sentir raiva o
tempo todo. Não vale a pena. Não somos inimigos, mas amigos,
não devemos ser inimigos. Ainda que a paixão nos obrigue, não
devemos romper os vínculos afetivos. As cordas místicas da
memória reviveram ao serem tocadas novamente, tão certa como
serão tocadas pelos melhores anjos desta natureza!"
(Do filme: A
Outra História Americana)
Como se combate o fascismo? A interrogação poderia bem abrir um texto em uma
revista de curiosidades, um jornal, ou qualquer outro texto, porque décadas não é
uma temática exclusiva das ciências humanas, mas uma meta para toda a sociedade. A
história, entretanto, tem seu papel efetivo nesta luta, fundamentado na, talvez, sua mais
importante função: lembrar, ou até, não deixar esquecer. Hobsbawm (1995, p. 13), ao
refletir sobre o século XX, ponderou que seria difícil analisá-lo sem fazer julgamentos
aos horrores assistidos nos tempos das guerras, mas ainda assim nos alertou sobre a
importância de compreender esse passado não tão distante.
É interessante considerarmos que, mais recentemente, o mundo vive uma onda
conservadora global, liderada por uma “Nova Direita” que se utiliza dos avanços
científico tecnológicos para criar e divulgar narrativas negacionistas e produzir
conteúdos paralelos baseados em seus próprios conceitos, ideias e práticas. Nesta
conjuntura os mesmos instrumentos inauguradas pelas terceira e quarta revolução
industrial, que viabilizaram a troca de informações em massa para a humanidade e
conectaram profissionais do mundo todo a uma velocidade inédita, permitindo a
organização de movimentos progressistas e aparelhando a luta de minorias por
visibilidade e democracia, trouxeram o efeito colateral de empoderar e fermentar grupos
neofascistas, terraplanistas, anti-vacinas, entre outros ligados à “pós-verdade”.
A jornalista Patrícia Campos Mello (2019, p.40) em “A Máquina do Ódio” alertou
para como as redes viralizaram este tipo discurso anti-pluralista e intervieram nas
eleições presidenciais brasileiras de 2018 e organizaram ataques virtuais massivos a
profissionais de diversas áreas - em especial ela própria - porque estes publicaram
matérias ou livros que desagradaram conjuntos específicos. Mesmo assim, a autora
defendeu o trabalho da imprensa, como o contraponto aos conteúdos falsos publicados
sem nenhum tipo de controle por auto-declaradas autoridades.
Com a mesma coragem e pensamento jovens e experientes historiadores refletem
sobre a história do nazi-fascimo e é com grande satisfação e orgulho que a equipe
editorial da Faces da História publica nesta edição de dezembro de 2022 àqueles que
escolheram nosso periódico, bem apresentado e comentado pelos coordenadores do
dossiê que segue, a quem nós prontamente e antecipadamente agradecemos pelo
trabalho, a parceria e a dedicação. Estendemos nosso muito obrigado a todo conselho
editorial da Revista, aos revisores de língua gramatical e estrangeira e ao capista Ricardo
Bagge por mais uma belíssima arte.
A seção de Artigos Livre é um importante instrumento de divulgação de variadas
temáticas e produções acadêmicas e tem como finalidade divulgar pesquisas que
resultaram em trabalhos acadêmicos a todos os interessados. Desse modo, percebe-se a
importância na difusão do conhecimento e incentivo a leituras de temas preciosos. Todo
esse trabalho é resultado do esforço de um corpo editorial discente, composto
especificamente por mestrandos e doutorandos do curso de História da Unesp. Além
disso, o trabalho dos pareceristas foi de suma importância para a qualidade da revista e o
diálogo, neste caso às cegas, que tem como finalidade aprofundamento e enriquecimento
dos debates historiográficos apresentados. Nesta edição, sete artigos compõem a seleção
de discussões valiosas e serão brevemente apresentados.
O tema História do Cinema, abre a sessão de Artigos Livres com o trabalho Uma
alegoria do sistema capitalista: representações da sociedade cacaueira no filme Os
deuses e os mortos (1970), de Ruy Guerra, dos autores Michel Silva Roseno e Laila
Bricth. O artigo tem a proposta de analisar as relações entre história e cinema buscando
compreender aspectos políticos e estéticos escolhidos pelo cineasta Ruy Guerra,
representante do Cinema Novo, por meio da obra
Os deuses e os mortos
de 1970. Em
discussão com um importante referencial teórico sobre a temática, os autores se
debruçam na questão cacaueira apresentada no filme e a crítica contida nele que se volta
a monocultura do cacau nos anos vinte do século XIX, além de analisar a precariedade
vivida por homens atuantes nas lavouras de cacau e as variadas formas de violência no
processo da ocupação das terras. Por fim, a problemática cacau se expande para a
compreensão de uma macroestrutura econômica que alinha ao nível global.
Ademais, Roseno e Brictha trazem como contribuição importante a questão do
Cinema Novo, ao qual o cineasta analisado fazia parte, que tinha como enfoque
abordagens regionalistas do Brasil, principalmente no que tange às regiões de grande
seca. Os autores enfatizam a questão de tratar-se de obras e críticas “aos olhos dos
cineastas produtores”, que buscavam uma “conscientização” da realidade através das
informações dos filmes. Portanto, reforça-se a ideia de autor/cineasta fruto de seu
tempo. Por fim, fica bem demonstrado na argumentação do artigo as inspirações de Ruy
Guerra à Jorge Amado e o debate das independências das colônias africanas, em especial
Moçambique, terra natal do diretor que se reflete na película.
Seguindo a temática cinematográfica, o artigo O filme histórico e a construção da
nacionalidade estadunidense em O Álamo (1960), de John Wayne
,
de autoria de Breno
Girotto Campos volta-se ao Estados Unidos por meio da obra O Álamo do diretor John
Wayne, cujo gênero principal era western. Lançado em 1960, a obra volta-se às questões
de conflito pelas disputas de terras entre México e Estados Unidos que resultaram ainda
no Texas independente. O autor analisa por meio do cinema a busca pela construção de
um discurso identitário-nacional uma vez que o evento histórico em questão foi
fundamental para a construção da nacionalidade dos estadunidenses.
Campos traz como importante contribuição o apontamento que O Álamo é, na
realidade, um conflito entre texanos e mexicanos que foi apropriado pelos
estadunidenses e alcançado à categoria de mito nacional. Além disso, o autor enfatiza
também a importância de pensar e analisar a obra como um produto de sua época e a
relação que Wayne faz do mito do Álamo com a sociedade estadunidense do pós-
Segunda Guerra Mundial. Desse modo, a obra é composta de elementos como a
apresentação maniqueísta que busca apresentar os Estados Unidos como virtuosos
enquanto cabia ao México corrupção e tirania. Outro elemento é o mito do
autossacrifício, onde homens entregavam sua vida a um bem maior, no caso, a pátria.
Em sequência, o próximo artigo também é voltado para a arte pelo viés do estudo
da biografia da pianista Tânia Maria, autoexilada do Brasil durante os anos de chumbo da
Ditadura Brasileira. Em busca da liberdade criativa associada ao insucesso de sua música
no Brasil, a artista voltou-se ao cenário global de jazz, desse modo, reinventou sua
identidade com uma especificidade de brasilidade musical. Entrementes, diferente do
resultado do trabalho no próprio país, no cenário internacional Tânia Mara conquistou
uma posição de prestígio, se tornando influente no que tange ao jazz contemporâneo.
Intitulado
Os sons que vêm do exílio: diáspora, identidade e transgressões na
trajetória de Tânia Maria de autoria de Antônio Carlos Araújo Ribeiro nior e Renan
Branco Ruiz, este artigo é inovador por trazer em cena uma artista que, embora se
destaque no cenário mundial do jazz, no próprio país ela é pouco reconhecida, “abatendo
sobre a sua imagem uma espécie de desbotamento memorialístico”, tanto que o nome da
artista nem consta nos dicionários e enciclopédias da música popular brasileira.
Portanto, ao analisar a vida e obra de Tânia Maria, os autores discutem, por conseguinte,
a relevância social, cultural e política desses instrumentistas para a história nacional.
O quarto artigo da sessão, Entre fueros e crônicas: uma aproximação à
construção ideológica da imagem de Fernando III, el santo (1217-1252), de autoria de
Saymon da Silva Siqueira aborda a imagem de Fernando III, el santo, no processo de
conquista e reorganização de Andaluzia, região sul da Península Ibérica. Além disso, o
autor utiliza relatos contidos na Chronica regum Castellae e o conjunto normativo Fuero
de Córdoba que circunscrevem o momento de coroação do dito rei. Trata-se de um
trabalho relevante por abordar a questão dos mecanismos ideológicos ligados ao poder
central e sua propagação através das leis e do relato histórico.
Além disso, o artigo traz importantes debates para os estudos medievais como a
noção de “Reconquista” da Península Ibérica, bem como a ideologia por trás da imagem
do rei Fernando III.
Seguindo estudos ibéricos, entretanto sob a ótica portuguesa, o artigo
A dieta do
penitente: a prática do jejum penitencial no Portugal dos séculos XIV e XV de autoria de
Eduardo Lima de Souza, tem como objetivo analisar as prescrições e modelos de
comportamento por meio das práticas penitenciais a partir dos tratados pastorais, em
especial a do jejum, percebida como ação de reparação dos pecados carnais no ritual de
confissão auricular. Desse modo, trata-se de um trabalho relevante por abordar, por
meio de crenças, costumes e comportamentos à época com um viés interessante que
permeia todo o cotidiano dos sujeitos, a alimentação. É importante mencionar ainda que
a confissão e penitência, enquanto prática de reparação dos pecados, faziam parte da
vida religiosa dos indivíduos antes da instituição das reformas.
O artigo traz a problemática à época em que o indivíduo é um ser em contínuo
pecado e, portanto, a importância da penitência. Dessa maneira, acreditava-se que o fiel
submetia a carne à alma para em unidade encontrar Deus, pela salvação, era o desejo
profundo de imitar Cristo.
O sexto texto que compõe os Artigos Livres tem como temática os estudos do
Brasil colonial, mais especificamente as lavras de ouro no Serro Frio em Minas Gerais.
Intitulado Um panorama da arrematação de lavras de ouro nas Minas do Serro do Frio,
Minas Gerais, Brasil, 1702-1714, de autoria de Danilo Arnaldo Briskievicz, o trabalho
apresenta relevância por abordar a questão da ocupação do território das minas do
Serro Frio por meio da presença de dois grupos: o primeiro formado por arrematadores
de braças de terras de lavras de ouro e o segundo por emigrantes portugueses. Além do
diálogo bem realizado com a bibliografia, por meio de tabelas e quadros o autor realiza
uma análise quantitativa e qualitativa sobre a dinâmica da mestiçagem e os encontros
culturais formadores da civilização serrana e o jeito barroco de ser.
Fechando os Artigos Livres, segue-se a temática brasileira, porém, voltada à
questão das doenças no Brasil, dando enfoque à tuberculose. Dessa maneira, o artigo
intitulado O clima que cura, a cidade que acolhe: As transformações na paisagem urbana
de São José dos Campos entre 1900 1950, com autoria de Maiara Sanches Leite,
Robson Silva Oliveira e Valéria Regina Zanetti, aborda sob à luz do conceito de paisagem,
as transformações urbanas ocorridas na cidade de São José dos Campos -SP, que foi
elevada à Estância Climática e Hidromineral por conta da fama de curar os acometidos
pela tuberculose. Além disso, essa condição impulsionou mudanças no espaço urbano e
teve impacto direto nas relações sociais que refletem atualmente.
O artigo é de suma relevância e grande contribuição pois demonstra que a doença
não é apenas um substrato patológico e, sim, um fenômeno social que pode ter
implicações nas transformações urbanas.
Para finalizar, é com alegria que a sessão de Artigos Livres apresenta essa
diversidade temática que busca contribuir com o saber. Abordou-se nesta edição
variados assuntos e temáticas, como o cinema, a música, crônicas e tratados pastorais da
Península Ibérica. Além de estudos sobre a História do Brasil que abordaram questões
como a dinâmica da mestiçagem nas Minas Gerais colonial e como as doenças, no caso,
tuberculose geram impacto nas transformações urbanas. Portanto, a multiplicidade dos
assuntos enriquece a difusão do conhecimento possibilitando maior acesso aos
interessados.
Na seção resenha contamos com a colaboração de Éderson José de Vasconcelos
com o texto As prerrogativas do neomediavismo
: as fundamentações históricas da
direita na Terra de Santa Cruz
sobre a obra “Cavaleiro de Cola, Papel e Plástico” de
Carlile Lanzieri Júnior, cujo a temática pertence ao período medieval. Em seguida
publicamos a reflexão de Thayran José Ramos, intitulada O Presentismo e Suas
Representações na Teoria da História Contemporânea a partir da leitura do livro
“Rethinking Historical Time”, de Marek Tamm e Laurent Olivier. Encerrando a edição, e
retomando o assunto relacionado ao cinema, temos a Nota de pesquisa Sertão
Hollywoodiano, Cinema Paulista:
A Representação Sertaneja na Década de 1950
de
Heverton Guedes.
O ano de 2022 e as eleições brasileiras mostraram que a Caixa de Pandora dos
discursos de ódio na internet não foi completamente vedada, permitindo novamente a
repercussão assustadora de uma outra onda de discursos, notícias e até um candidato à
presidência falsos. Por isso agradecemos a todos aqueles que resistem nas universidades
e nas áreas da pesquisa e da educação, esperamos que as contribuições apontadas aqui
sirvam à história e à sua função social de lembrar, de mostrar que o fascismo não se
debate, se destrói!
Boa leitura e bom fim de ano!
Arthur Daltin Carrega
https://orcid.org/0000-0002-8366-9134
Tamires Sacardo Lico
https://orcid.org/0000-0002-8298-2647
Thaynara de Oliveira
https://orcid.org/0000-0001-6053-3747
Referências
A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA. Direção: Tony Kaye. Produção: David McKenna;
John Morrissey; Jon Hess. Local: New Line Cinema, EUA, 1999. DVD.
SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
COWAN, Benjamin Arthur. A hemispheric moral majority: Brazil and the transnational
construction of the New Right. Revista Brasileira de Política Internacional. 61(2): e004,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201800204
EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: Como as fake news, as teorias da
conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar
eleições. Tradução: Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2019.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução: Marcos
Santarrita. Revisão técnica: Maria Célia Paoli. São Paulo. Companhia das Letras, 1995.
MELLO, Patricia. A Máquina do ódio - Notas de uma repórter sobre fake news e violência
digital. São Paulo: Companhia das Letras. 2019.
ORWELL, George. 1984. Tradução: Alexandre Hubner; Heloísa Jahn. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009.