SOUZA, Douglas Henrique de
https://orcid.org/0000-0002-9685-470X
EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação
paranoica. São Paulo: Planeta do Brasil, 2022. 272 p.
Recebido em: 20/11/2022
Aprovado em: 28/02/2023
A presente obra estimula e reatualiza a reflexão acerca dos usos políticos tanto do
passado quanto de eventos contemporâneos, questão candente na atual conjuntura,
marcada pela presença, especialmente, das redes sociais que potencializaram, em escala
até então inédita, a difusão de toda sorte de boatos, notícias falsas e manipulações.
Entretanto, o problema está longe de ser recente, como evidencia o renomado
historiador britânico, Richard J. Evans, considerado um dos maiores especialistas na
história da Alemanha nos séculos XIX e XX. Nascido em 1947 e atualmente reitor do
Gresham College em Londres, Evans foi professor de História na Universidade de
Cambridge. Dentre sua extensa produção, destaca-se a trilogia acerca do Terceiro Reich,
já traduzida para o português (EVANS, 2010; 2012; 2013).
Avesso às influências das concepções da s-modernidade e das tendências
revisionistas na disciplina histórica, principalmente no que se refere ao apagamento das
memórias traumáticas relativas à Segunda Guerra Mundial, Evans, durante as décadas de
Licenciado, mestre e doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Assis-SP. Bolsista FAPESP, processo 2020/12734-2.
E-mail: doughenris@gmail.com.
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1980 e 1990, criticou veementemente as teses negacionistas do Holocausto (LOUREIRO;
FONTE, 2010). Em 1997 publicou In defence of History (EVANS), no qual discorre sobre a
importância da difusão, para um público mais amplo, dos procedimentos acerca da
produção do conhecimento histórico, isso frente ao ceticismo exacerbado na chamada
Era da pós-verdade.
o seu novo livro, Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação
paranoica, originalmente publicado na Inglaterra em 2020, insere-se na sua longa
trajetória de pesquisa sobre a temática. Desta feita, o autor analisa as teorias da
conspiração que alimentaram a ideologia nazista, desde suas origens até a derrota de
1945, valendo-se de ampla documentação e referências bibliográficas, como indicam as
muitas notas que acompanham cada capítulo. Difundidas pelo aparato de propaganda,
cuja vasta historiografia atesta a efetividade do meio na formação do imaginário que
mobilizava as ações do nacional-socialismo, as teorias da conspiração compreendem
histórias que simplificam a realidade, à margem das explicações oficiais dos círculos
acadêmicos, e que aguçam a curiosidade do senso comum em projetar nelas a dualidade
entre o bem e o mal. Evans, por seu turno, articula-as de modo a identificar e comparar
os elementos narrativos que as fizeram ganhar notoriedade para além do arco temporal
de imediato aos acontecimentos em questão.
A obra divide-se em cinco capítulos, cujos títulos são apresentados sob a forma
de perguntas. No primeiro, Os protocolos foram uma autorização oficial para o
genocídio?”, retraça a origem do escrito Os protocolos dos Sábios de Sião, e chama a
atenção para o fato de, nas décadas de 1920 e 1930, não restar dúvidas de que a
conspiração judaica mundial alegada no texto se tratava de uma farsa, o que nem de
longe impediu sua utilização como justificativa para a perseguição dos judeus pelos
nazistas. A ideia, por mais que não encontrasse correspondência na realidade, foi um
componente para fundamentar as propagandas que se seguiram à chegada de Hitler ao
poder. Evans insiste na apropriação do texto manifestamente falso para alicerçar ideais
políticos. Entretanto, respondendo à questão colocada, o autor não considera que os
protocolos tiveram relação direta com a política de extermínio dos judeus. A circulação
das teorias raciais provenientes do século XIX, antecediam a popularização da produção
antissemita e se incorporavam nas pautas idealizadas pelos segmentos conservadores
da época (EVANS, 2022, p. 52).
No segundo capítulo, “O exército alemão foi apunhalado pelas costas em 1918?”,
Evans explora o mito da traição das fileiras do exército alemão durante a Primeira
Guerra Mundial. A derrota fora atribuída ora aos socialistas, ora ao povo judeu, versão,
esta última, que ganhou força com a chegada de Hitler ao poder. Cabe lembrar, ainda, a
constante associação entre socialistas e judeus e a condenação à República de Weimar. A
questão da traição voltou ao cenário durante a Segunda Guerra Mundial e, após o
atentado cometido contra Hitler em 1944, passou-se a considerar inimigos do Reich
qualquer indivíduo que se colocasse contra o esforço alemão para vencer a batalha. O
autor destaca como, ao longo do tempo, as teorias da conspiração foram manipuladas no
sentido de fabricar respostas favoráveis às novas demandas da conjuntura política.
O incêndio de 1933 é o tema do capítulo 3, Quem incendiou o Reichstag?”. Nele,
discute-se, em minúcias, o incêndio do Reichstag e deixa patente como o evento foi
utilizado pelos ocupantes do poder. Na prática, afinal, a ocorrência, cuja acusação levou
à condenação apenas um único indivíduo, Marinus van der Lubbe, tornou-se pretexto
para o Estado nazista aumentar a vigilância sobre as atividades da oposição e sancionar
a ditadura com o esmagamento das liberdades individuais. Contudo, o historiador
britânico não se limita a dar conta das versões que circularam contemporaneamente,
também estende a análise para a produção historiográfica e evidencia como a mesma
pode ser remetida ao contexto de polarização que marcou a Guerra Fria na segunda
metade do século XX. As interpretações produzidas diferiam segundo as lentes dos
espectros ideológicos em disputa. Evans aproveita o ensejo para lembrar que o trabalho
do historiador demanda o confronto de diferentes fontes e vale-se dos rastros deixados,
ainda que atravessados por discursos conspiratórios de diferentes matizes.
O capítulo 4, Por que Rudolf Hess voou para a Grã-Bretanha?”, aborda a viagem
de Rudolf Hess, realizada em meio à guerra. Tido como braço direito de Hitler,
principalmente durante a fase de ascensão do NSDAP, ele foi antigo vice-líder do partido.
Em 1941, quando havia perdido o prestígio de outrora, desde o início do conflito em 1939,
Rudolf Hess decidiu partir rumo ao território inimigo com o objetivo de selar acordo de
paz com Winston Churchill. O plano, entretanto, fracassou completamente e foi ainda
motivo de ridicularização para os críticos do governo alemão. Personagem controverso,
quem afirme que ele estava a mando de Hitler, hipótese rejeitada por Evans, a partir
de vasta revisão bibliográfica e documental. O acontecimento deu margem às teorias
segundo as quais Hitler tentou esconder sua participação na empreitada. A proliferação
de explicações imaginosas é sustentada graças a impossibilidade de acesso aos arquivos
confidenciais. Como no caso do incêndio do Reichstag, interesse em sugerir que
personagens como Van der Lubbe e Rudolf Hess não agiram sozinhos, mas estiveram a
serviço de desígnios maiores.
No último capítulo, Hitler escapou do Bunker?”, Evans apresenta um quadro das
teorias a respeito da suposta sobrevivência de Hitler. O suicídio do ditador remeteria à
covardia, pois ele teria fugido às punições, tal como afirmaram os russos, preocupados
em torná-lo símbolo da ruína da extrema direita. os teóricos da conspiração
postulavam que sua morte não foi mais do que uma encenação para ludibriar os inimigos,
prova de sua genialidade, pois fora capaz de fugir em segurança, segundo alguns, para a
Argentina. O autor lembra que, a partir de 2009, foram produzidos documentários com
grandes orçamentos, difundidos por redes de televisão, tendo por tema a possível
sobrevivência do líder alemão, a exemplo da série Caçando Hitler, no History Channel.
Evans ressalta que conjecturar acerca da suposta sobrevivência de Hitler fortalece o
mito do retorno, se não do líder em si, dos ideais e do mundo com o qual ele sonhou.
Adverte, ainda, que não se pode ignorar a influência desses relatos e produções, a
despeito de ficcionais, no imaginário social.
Entre os desafios impostos à História no século XXI, está o crescimento de
movimentos negacionistas, que se apropriam de leituras do passado, fomentam
fanatismos políticos e sonhos autoritários para alimentar projetos ideológicos. Cabe aos
historiadores não perderem de vista seus compromissos éticos e seguirem firmes no
combate às explicações simplificadoras e reducionistas, destituídas de rigor científico,
como exemplifica a obra de Evans.
A reprodução do índice remissivo deve ser saudada, tendo em vista a profusão de
nomes citados. No final do livro, constam cinco imagens, relativas a cada um dos
capítulos da obra, sem maiores aprofundamentos analíticos, o que as torna meras
ilustrações. Talvez fosse mais eficaz reproduzi-las na abertura ou no fechamento dos
capítulos a que se referem. A tradução do título é bastante problemática. O leitor é
levado a crer que se trata de conspirações contra Hitler, tônica reforçada pela imagem
estampada na capa da obra em que o rosto de Hitler aparece desfocado sob uma mira,
quando, de fato, a temática do autor é bem diversa. Parece que seria mais adequado
respeitar o sentido original da primeira parte do título em inglês, Hitler conspiracies, ou
seja, as conspirações hitlerianas. Na edição alemã, por sua vez, publicada em 2021, o
extenso título traduzido para O Terceiro Reich e suas teorias da conspiração: quem as
colocou no mundo e quem as utilizou - Dos Protocolos dos sábios de Sião até a fuga de
Hitler do bunker (EVANS), não recai na figura do führer propriamente dita, mas no
período do Terceiro Reich, suas fontes e formas de investigação. Em que pese os
problemas apontados na edição, a obra convida a questionar a “imaginação paranoica”,
confrontada com o uso cuidadoso das fontes e o olhar crítico, seja no passado ou em um
presente tão suscetível às manipulações difundidas pelas redes sociais.
Referências
CAÇANDO Hitler. Direção de Jeffrey R. Daniels e Clint Lealos. Nova Iorque: History
Channel, 2015-2018.
EVANS, Richard J. . In defence of History. Cambridge: Granta Books, 1997.
EVANS, Richard J. . A chegada do Terceiro Reich. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
EVANS, Richard J. . O Terceiro Reich no poder. São Paulo: Planeta do Brasil, 2012.
EVANS, Richard J. . O Terceiro Reich em guerra. São Paulo: Planeta do Brasil, 2013.
EVANS, Richard J. . The Hitler conspiracies: the Third Reich and the paranoid
imagination. London: Allen Lane, 2020.
EVANS, Richard J. . Das Dritte Reich und seine Verschwörungstheorien: Wer sie in die
Welt gesetzt hat und wem sie nutzen Von den “Protokollen der Weisen von Zion” bis
zu Hitlers Flucht aus dem Bunker. Deustche Verlags-Anstalt, 2021.
LOUREIRO, Robson; FONTE, Sandra Soares Della. Revisionismo histórico e o Pós-
moderno: indícios de um encontro inusitado. Impulso, 20(49), Piracicaba, 2010.