MENDONÇA, Tânia Gomes.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p. 141-160, jun.-dez., 2015.
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homem de amanhã “se reencontrar, se reconhecer”, ter consciência de si mesmo. Assim,
se o homem primitivo, apesar de não se conhecer, pôde fazer mitos “maravilhosos”, o
que se dirá do homem de amanhã, com mais consciência de sua natureza e com maior
domínio sobre o mundo?
Apesar de todos os pontos comuns de contato entre o pensamento de Artaud e de
Péret a respeito dos povos primitivos, o segundo possuía uma consciência mais histórica
do que o primeiro: referia-se às sociedades pré-colombianas como algo pertencente
ao passado, e não como aquilo que poderia ser ressuscitado no presente de forma
semelhante ao que costumava ser, tal como era defendido por Artaud. Isso porque,
de forma surpreendente, numa carta antes de sua ida ao México, Artaud afirmou que
tomara conhecimento de um movimento no México “a favor de um regresso à civilização
anterior a Cortez” (ARTAUD, 1975, p. 235, tradução nossa), isto é, de um movimento que
preconizava uma civilização de base metafísica.
Péret tinha consciência do sincretismo entre a religião dos negros no Brasil com
o Cristianismo, por exemplo. Ele também retomou a história de Quetzalcóatl4 como
algo que fazia parte de um passado histórico. Nesse sentido, Péret não evidenciou a
cultura pré-cortesiana com a universalidade atemporal da magia e do mito tal como
fazia Artaud, mas, sim, com a temporalidade dos fatos ocorridos num dado momento
histórico. Segundo Claude Courtot, Péret não adotou uma “etnografia simplória”,
designada como “uma idealização ridícula do primitivo e uma não menos vã condenação
do civilizado necessariamente apodrecido e exterminador” (apud PONGE, 1999, p. 151).
A concepção de Artaud de uma cultura única para todos os povos indígenas
seria anistórica, já que, para o artista, a mesma cultura encontrada antes da chegada
de Cortez poderia ser ressuscitada no século XX. Assim, a concepção histórica e não
histórica convivem no pensamento de Artaud, uma vez que ele mencionou a história da
própria miscigenação indígena em sua correspondência e, ao mesmo tempo, posicionou
a cultura destes povos num pedestal atemporal.
Por meio do texto de Péret (1992, p. 165-179, tradução nossa), contido em “Livre
de Chilám Balám de Chumayel”, é possível perceber que o autor teve discernimento da
mestiçagem contida nos documentos antigos, uma vez que, após a conquista espanhola,
em sua leitura, os escritos maias foram perdendo cada vez mais o seu conteúdo original:
Com o tempo e a desintegração das crenças e costumes maias sob a influência
espanhola, as diferenças não poderiam deixar de se acentuar entre as novas
cópias, ao passo que multiplicariam as interpolações de inspiração europeia.
Nesse meio tempo, cada qual já havia acrescentado algo de si a essas cópias:
um formulário de medicina indígena, um tratado de astrologia, uma crônica
local, fórmulas simbólicas de iniciação religiosa etc. Enfim, o cristianismo
4
Segundo Román Piña Chan, Quetzalcoátl foi um deus que se originou numa “velha divindade da água (a
serpente-nuvem de chuva), decididamente associada ao raio-trovão-relâmpago-fogo [...]; sua criação e
culto realizou-se em Xochicalco (ou Tamoanchán) por volta do fim do Horizonte Clássico da Mesoaméri-
ca [...]; seus sacerdotes levavam seus atributos e seu nome; [...] um deles chamado Ce Ácatl Topiltzin foi
quem levou o culto da divindade a Tula, Hidalgo, como outros com o mesmo nome, mas traduzido a diver-
sas línguas o levaram por outros lados; [...] o Quetzalcoátl dos toltecas foi diferente daquele dos mexicas,
já que se transformou em deus do ar (Ehécatl); [...] [e] desde período próximo à conquista espanhola já
existia certa confusão com relação ao deus e aos sacerdotes de seu culto, aspecto que se intensificou
com os cronistas e estudiosos posteriores”. (CHAN, 1977, p. 7, tradução nossa).