Recebido em: 08/03/2015
Aprovado em: 28/07/2015
Olhares sobre o México: a América Latina sob a
perspectiva surrealista¹
Different visions of México: Latin America in surre-
alist perspective
1
MENDONÇA,
Tânia Gomes
2
Resumo: Por meio de uma comparação entre textos dos surrealistas Benjamin
Péret, e André Breton, e daquele que se incorporou durante parte da década de 1920
ao Surrealismo – Antonin Artaud –, pretende-se analisar a América Latina, mais
propriamente o México, sob a perspectiva deste movimento artístico. O texto, baseado
em parte da dissertação de mestrado da autora, permite reconhecer a projeção que
estes artistas europeus criaram sobre o México – um país primitivista e revolucionário,
terra na qual as esperanças surrealistas poderiam ser pintadas em cores reais.
1
Este artigo apresenta parte da Dissertação de Mestrado A Montanha dos Signos: Antonin Artaud no
xico pós-revolucionário dos anos 1930, defendida em 2014 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sob a orientação da Professora Doutora Gabriela
Pellegrino Soares. A pesquisa obteve, para o seu desenvolvimento, o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2
Mestre – Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História Social – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – Universidade de São Paulo (USP) – Av. Prof. Luciano
Gualberto, 315, CEP: 05508-900, Cidade Universitária, São Paulo, SP – FAPESP - e-mail: tania.mengo-
mes@gmail.com.
Olhares sobre o México: a América Latina sob a perspectiva surrealista
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p. 141-160, jun.-dez., 2015.
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Palavras-chave: América Latina; México; Primitivismo; Surrealismo; Revolução
Mexicana.
Abstract: Comparing texts written by the surrealists Benjamin Péret, André Breton
and Antonin Artaud, an artist who integrated the Surrealism Movement in the
1920’s, we pretend to analyze Latin America, more properly México, in the surrealist
perspective. The text, based on master’s degree work written by the same authoress,
allows recognizing the projection that these European artists created about México
– a primitivist and revolutionary country, land where the surrealist’s hopes could be
painted in real colors.
Key-words: Latin America; México; Primitivism; Surrealism; Mexican Revolution.
André Breton, em um texto proferido na Universidade de Yale em 1942, afirmou
que o movimento surrealista ficaria muito satisfeito se, um dia, conseguisse superar
as oposições “erroneamente apresentadas como insuperáveis” pela cultura europeia
no início do século XX, tais como o dualismo entre a loucura e a razão, entre o sonho
e a ação, entre a representação mental e a percepção física. Todas essas oposições da
perspectiva iluminista de compreensão do mundo seriam, na verdade, uma faculdade
única, original, a qual “o primitivo e a criança guardam vestígios”. Esse reencontro entre
o mundo interior e o mundo exterior seria, para a humanidade, a salvação (apud PONGE,
1999, p. 43).
Antonin Artaud, artista moderno do teatro francês e parte do movimento
surrealista durante parte da década de 1920, compartilhava, com Breton, dessa mesma
concepção vinculada ao Surrealismo. Artaud viajou ao México, em fevereiro de 1936, em
busca da cultura indígena presente no país latino-americano. Esta viagem representava
uma busca pelo estranhamento de uma nova cultura, a qual Artaud esperava que não
fosse racional, tal como aquela que acreditava encontrar na Europa – daí, entre outras
possibilidades, seu desejo de conhecer a cultura indígena do México, vivenciando uma
experiência nos próprios pueblos, o que fez com que ele, após passar um tempo na
Cidade do México, fosse conhecer os índios tarahumaras no norte do país
3
.
Benjamin Péret, artista vinculado ao Surrealismo, chegou ao México, refugiado
da Europa, em companhia da pintora Remedios Varo, em setembro de 1941 e viveu
no país até o final de 1947. Peret é um exemplo contundente desse vivo interesse nas
culturas ditas “primitivas”. Outros artistas também chegaram ao México por motivos
relacionados à II Guerra Mundial, como o pintor Wolfgang Paalen e a artista Leonora
Carrington, que foi para o mesmo país posteriormente. No caso de Péret, sua ida ao
xico se deu como a única oportunidade de exílio de um antifranquista.
3
Os Tarahumaras são grupos indígenas localizados no estado de Chihuahua, norte do México. São os
mais conhecidos da região devido “à presença que cronistas, historiadores e antropólogos manifestaram
por esta etnia desde muito tempo” (GARCÍA; HERRERA, 2000, p. 13, tradução nossa). Segundo García
e Herrera, a história indígena desta região é dificilmente elaborada devido, também, ao fato de que “os
indígenas não escrevem a sua história, sendo a história oral reduzida “exclusivamente à recordação de
acontecimentos dispersos e muito recentes e a certos mitos fundadores” (idem, ibidem, tradução nossa).
No ano 2000, a população de indígenas desta etnia era de 121.835, sendo 61.994 homens e 59.841 mulhe-
res (CORTINA, 2004, p. 39).
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O pintor Esteban Francés também ficou instalado no México por alguns meses
nesse mesmo período. Residiu também no país, durante dez anos, o poeta peruano
César Moro. Nesse mesmo momento, também chegaram em terras mexicanas o pintor
inglês Gordon Onslow Ford, sua esposa Jacqueline Johnson e, anos mais tarde, Edward
James e Luis Buñuel. Esses artistas, embora não tenham feito um grupo tal como o
que existia em Paris ou em Nova York, em torno da figura de André Breton – que se
encontrava exilado nos Estados Unidos –, exerceram parte de seu trabalho no país
latino-americano.
Robert Ponge, no texto “Surrealismo e Viagens”, publicado em 1999, afirma que já
nos anos 1920, em um momento em que ainda não era moda a preocupação para com os
povos indígenas da América, os surrealistas já se preocupavam com o assunto.
Nessa década, eles demonstravam interesse nos trabalhos das populações
“primitivas”, entre essas, os povos indígenas da América, os quais serviriam de base
para a busca poética dos surrealistas, críticos do mundo moderno e de sua falta de
senso do maravilhoso. Seria a partir das concepções dessas culturas indígenas que o
dualismo entre razão e inconsciente teria fim no mundo ocidental.
O México seria, nesse momento histórico, uma grande fonte de inspiração
e de fundamentação para os ideais surrealistas, já que representava a esperança
de recuperação dos mitos e da magia que o movimento artístico europeu buscava
incansavelmente. Péret sempre procurou estar envolvido com a cultura local, em
conhecê-la com profundidade. Ele desgostava da forma como os turistas conheciam os
lugares. Daí talvez a sua minúcia, conforme veremos, nos textos cujo assunto eram as
culturas pré-hispânicas.
Para Lourdes Andrade (apud PONGE, 1999, p. 232), no texto “De amores e
desamores: relações do México com o surrealismo, 1999, tal fenômeno visto em terras
mexicanas estava relacionado a uma tendência surgida no século XVIII:
[A] paulatina recuperação de culturas e valores não-ocidentais, que se inicia
com o Iluminismo (pense-se em Rousseau e sua teoria do ‘bom selvagem’) e
com o romantismo e que, no início de nosso século, conhece um auge nas
artes plásticas, em suas tendências ‘primitivistas’ (Picasso e os fauves, com
relação às máscaras africanas; Henry Moore com relação à escultura pré-
colombiana, por exemplo).
Apesar de pensar que essa busca pela cultura “primitiva” deveria ser diferenciada
por meio das singularidades de cada artista que possuía esse afã, podemos considerar
que esse comentário geral seja válido a fim de que se possa refletir sobre a modernidade
e o primitivismo.
Dessa forma, muitos artistas foram ao México em busca de uma cultura arcaica,
mas cada um deles possuía uma ideia diferente do que seria esse universo no qual não
existiriam os dualismos tão criticados.
Os artistas modernos europeus já possuíam alguma noção da arte pré-hispânica
muito antes do surgimento do movimento surrealista, uma vez que, nas exposições
internacionais de Paris dos anos de 1889 e de 1900, encontravam-se objetos de tal arte
que poderiam ser vistos pelos visitantes. Também poderiam ver e se familiarizar com
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tal cultura por meio das exposições do Musée Du Trocadéro e, posteriormente, do
Musée de l’Homme, instituição francesa criada em 1938. Isso revela que os artistas,
ao visitarem o México em meados das décadas de 1930 e de 1940, já possuíam ideias a
respeito do que encontrariam em se tratando de cultura pré-hispânica.
O governo do presidente mexicano General Lázaro Cárdenas, entre os anos de
1934 e 1940, foi muito bem visto por diversos artistas contemporâneos a ele, uma vez
que era um oásis em meio aos prenúncios de guerra e à política fascista que se fortalecia
na Europa. Talvez, por esse viés, seja possível compreender os textos de Antonin Artaud
escritos durante a sua estadia no México, muitos dos quais ele comenta que a revolução
presente no país era uma esperança para os seus conterrâneos.
Apesar de essa esperança possuir justificativas distintas para Artaud – que
observava o México a partir de seu ponto de vista relacionado à crença de que ainda
era possível existir uma cultura indígena livre das influências europeias –, e os outros
surrealistas que foram ao México – os quais se apegavam não apenas ao primitivismo,
mas também à esperança trazida pelo governo cardenista –, todos eles observavam o
país como aquele que poderia trazer uma solução ao crítico período vivido na Europa.
Essa definição do governo mexicano da segunda metade da década de 1930 é
reforçada por Lourdes de Andrade (apud Ponge, 1999, p.236):
O governo do general Lázaro Cárdenas, “o único da América que continua
sem reconhecer Franco”, que recebe no México não só o revolucionário russo,
mas, posteriormente, os republicanos espanhóis, converte-se, muito além
da visão bretoniana – em certa literatura associada ao surrealismo –, num
símbolo de esperança para uma Europa ameaçada pela guerra e pelo triunfo
do fascismo, prenunciado pelos acontecimentos espanhóis.
Benjamin Péret e Remedios Varo receberam asilo político da administração
do presidente Gen. Lázaro Cárdenas. O Surrealismo mostrava a sua força no México
já desde 1940, um ano antes da chegada dos refugiados, quando houve a Exposição
Internacional do Surrealismo, na Galeria de Arte Mexicana, organizada por Wolfgang
Paalen, pelo poeta peruano César Moro e por André Breton.
Pierre Mabille, também surrealista, foi ao México em 1943, hospedando-se na
casa de Varo e Péret. Sua presença e atuação no país fortaleceram as investigações
sobre o misticismo realizadas naquele momento pelos exilados europeus. Com a visita
de Rodney Collin em 1948 e de Christopher Fremantle em 1951, foram criados grupos
nos quais se transmitia os ensinamentos místicos de Ivanovich Gurdjieff e Pyotr
Demianovich Ouspensky. Percebe-se que outros artistas, além de Antonin Artaud,
fizeram uma relação entre o México e o estudo de assuntos místicos.
Remedios Varo também estudou os ensinamentos de Gurdjieff, contudo, o fez
mais individual do que coletivamente. Dessa forma, ela nunca se uniu formalmente aos
grupos formados a partir da década de 1940. Como afirma Masayo Nonaka (2012, p.18,
tradução nossa): “Varo buscou a harmonia e tratou de sintetizar, ou de criar uma ponte
entre o misticismo ou a sabedoria antiga e a mente moderna. Em seu mundo imaginário,
o esoterismo alude a certos aspectos da ciência mais avançada [...]”.
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Portanto, assim como Artaud, Varo relacionava os assuntos místicos que tanto a
interessavam com aspectos da ciência – provavelmente um ponto em comum entre os
estudos a respeito das doutrinas místicas, tais como a Cabala e a Alquimia. Entretanto,
nos ateremos não a Varo, mas ao seu companheiro de elio que permaneceu no México
até o ano de 1947, Benjamin Péret, autor de alguns textos sobre a cultura pré-hispânica
e o México, que serão aqui analisados e comparados com o ponto de vista de Artaud
sobre os mesmos assuntos.
Segundo Lourdes Andrade (apud PONGE, 1999, p. 244), Péret volta a Paris no ano
de 1947 “talvez devido ao relativo isolamento em que se encontrava. Contudo, nunca
deixa de estudar o México, assim como Artaud nunca se esqueceu de suas vivências nas
mesmas terras.
Gostaríamos de esclarecer que serão utilizados para a análise textual, também os
escritos após seu retorno para a Europa. Foram selecionados aqueles cujos temas podem
lançar luz, quando comparados aos textos de Artaud, nas singularidades e nos aspectos
comuns de suas ideias a respeito do México. O mesmo será feito posteriormente com
os textos de André Breton, artista que foi ao mesmo país no ano de 1938.
Benjamin Péret, no texto introdutório da “Anthologie des mythes, légends et
contes populaires d’Amérique”, publicado em parte pela primeira vez em Nova York,
em 1943, apresentou suas ideias sobre as culturas ditas primitivas. Ele afirmou que
a percepção da natureza como hostil ou indiferente não esteve sempre presente na
experiência humana. Para os homens primitivos, “os animais, as plantas, os fenômenos
meteorológicos e os astros são os ancestrais prontos” a intervir na vida do povo (PÉRET,
1992, p. 16, tradução nossa). Essa relação estreita entre a natureza e os homens que
vivem nela foi também mencionada por Artaud nos textos sobre a sua viagem para as
terras dos índios tarahumaras. De forma mais aguda, esse autor afirmou que a natureza
parecia feita de antemão para os tarahumaras.
Nesse sentido, Artaud, ao contrário da ideia defendida por Péret, de que a
relação com a natureza é mais próxima entre esses homens devido à sua cultura ainda
permanecer “primitiva”, apresentava a hipótese de uma espécie de determinismo,
afirmando que naquelas terras esse povo deveria surgir, fortalecendo o aspecto mágico
e providencial que acreditava possuir a natureza da serra tarahumara.
Quando aparecem as mesmas formas patéticas e as conhecidas cabeças dos
deuses se mostram nas rochas e todo um país manifesta sobre a pedra uma
filosofia paralela à dessa raça, e sabe-se que os primeiros homens utilizaram
uma linguagem de signos que ainda se encontra formidavelmente estendida
sobre as rochas, então já não se pode pensar que isto era só um capricho e
que o acaso motive este capricho (ARTAUD, 1975, p. 273, tradução nossa).
É interessante notar, inicialmente, que Artaud quase não empregou a palavra
“primitivo” em seus textos. O artista se utilizou mais de termos como “antigas culturas”,
“tradições”, “cultura original”, chegando até a lançar mão do vocábulo “cultura eterna”,
o qual seria provavelmente uma avaliação atemporal.
É possível que essa interpretação se dê porque a ideia de Primitivismo pressupõe
um processo evolutivo até o presente “civilizado”, relação considerada falsa para
Artaud. Isso porque, para ele, não havia uma evolução, mas, sim, um retrocesso, pois a
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racionalidade europeia emergiu a partir do fim das culturas que realmente importavam:
“o que se chama de arte primitiva é sempre a manifestação sobrenatural de uma ciência
(ARTAUD, 1975, p. 150, tradução nossa).
Para o artista, seria necessário um resgate integral das culturas antigas a fim
de salvar a Europa moderna de sua decadência. Cabe recordar que Artaud geralmente
não reconhecia o tempo como elemento transformador das culturas em seus textos.
Nesse caso, o que seriam “culturas primitivas” para Benjamin Péret eram, para Artaud,
culturas que possuíam a magia ligada às antigas ciências como aspecto fundamental.
Essas culturas poderiam ser analisadas atemporalmente, já que não importavam
as mudanças históricas, sendo importante apenas a sua essência, que ainda se
encontrava latente no México. Esse aspecto essencialista pode justificar a adoção do
termo “espírito primitivo, o qual poderia ser visualizado ignorando-se a noção temporal.
Com efeito, a despeito da raridade dos termos “primitivo” e “primitivismo” nos
textos de Artaud, serão utilizados aqui os mesmos, a fim de identificar a presença desta
temática desenvolvida tanto por esse artista quanto por Benjamin Péret, o qual, ao
contrário do primeiro, emprega tais palavras frequentemente.
Havia uma diferença de como Péret via a relação entre natureza e povos
primitivos e como Artaud a enxergava. Apesar disso, ambos tinham a mesma convicção
de que essas sociedades possuíam um vigor e um frescor da imaginação. Dessa maneira,
Péret afirmou que o homem dos tempos mais antigos pensava de modo mais poético e
conseguia penetrar intuitivamente com maior profundidade em si mesmo e na natureza:
De fato, o homem de antigamente só sabe pensar de modo poético e, apesar
de sua ignorância, penetra talvez intuitivamente mais longe em si mesmo e
na natureza da qual ele pouco se diferencia que o pensador racionalista a
dissecando a partir de um conhecimento inteiramente livresco (PÉRET, 1992,
p. 18, tradução nossa).
Esse aspecto, tão vangloriado em relação aos povos não europeus, era muito
comum entre os artistas ligados de alguma forma ao Surrealismo. Contudo, enquanto
Artaud renegava e condenava veementemente o pensamento racionalista, Péret
argumentava que não se tratava de desprezar tal concepção, mas, sim, de perceber que
essa forma de pensar também nasceu a partir do inconsciente. Para ele, seria necessário
acabar com o dualismo entre pensamento racional e irracional, sendo que as gerações
futuras teriam que restabelecer a harmonia entre a ciência e a poesia, mostrando a sua
origem comum.
Esse tipo de comparação entre ciência e aspectos ligados ao inconsciente, como
a poesia, também foi feito por Artaud ao mencionar a relação estreita entre magia,
misticismo e ciência. Para este artista, a magia pressupunha uma ciência, e a religião
prejudicaria essa relação observada nos primórdios das culturas primitivas.
Ao contrário do que aparenta à primeira vista, Péret não possuía o mesmo desejo
de Artaud de fazer reviver as antigas culturas oprimidas e aparentemente destruídas pelo
pensamento racional ocidental, tal como elas existiam anteriormente. Seu pensamento
caminhava em outra direção: o homem primitivo ainda não se conheceria e, por isso,
ele estaria em uma jornada de procura; já “o homem atual” estaria perdido. Caberia ao
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homem de amanhã “se reencontrar, se reconhecer”, ter consciência de si mesmo. Assim,
se o homem primitivo, apesar de não se conhecer, pôde fazer mitos “maravilhosos”, o
que se dirá do homem de amanhã, com mais consciência de sua natureza e com maior
domínio sobre o mundo?
Apesar de todos os pontos comuns de contato entre o pensamento de Artaud e de
Péret a respeito dos povos primitivos, o segundo possuía uma consciência mais histórica
do que o primeiro: referia-se às sociedades pré-colombianas como algo pertencente
ao passado, e não como aquilo que poderia ser ressuscitado no presente de forma
semelhante ao que costumava ser, tal como era defendido por Artaud. Isso porque,
de forma surpreendente, numa carta antes de sua ida ao México, Artaud afirmou que
tomara conhecimento de um movimento no México “a favor de um regresso à civilização
anterior a Cortez” (ARTAUD, 1975, p. 235, tradução nossa), isto é, de um movimento que
preconizava uma civilização de base metafísica.
Péret tinha consciência do sincretismo entre a religião dos negros no Brasil com
o Cristianismo, por exemplo. Ele também retomou a história de Quetzalcóatl4 como
algo que fazia parte de um passado histórico. Nesse sentido, Péret não evidenciou a
cultura pré-cortesiana com a universalidade atemporal da magia e do mito tal como
fazia Artaud, mas, sim, com a temporalidade dos fatos ocorridos num dado momento
histórico. Segundo Claude Courtot, Péret não adotou uma “etnografia simplória,
designada como “uma idealização ridícula do primitivo e uma não menos vã condenação
do civilizado necessariamente apodrecido e exterminador” (apud PONGE, 1999, p. 151).
A concepção de Artaud de uma cultura única para todos os povos indígenas
seria anistórica, já que, para o artista, a mesma cultura encontrada antes da chegada
de Cortez poderia ser ressuscitada no século XX. Assim, a concepção histórica e não
histórica convivem no pensamento de Artaud, uma vez que ele mencionou a história da
própria miscigenação indígena em sua correspondência e, ao mesmo tempo, posicionou
a cultura destes povos num pedestal atemporal.
Por meio do texto de Péret (1992, p. 165-179, tradução nossa), contido em “Livre
de Chilám Balám de Chumayel”, é possível perceber que o autor teve discernimento da
mestiçagem contida nos documentos antigos, uma vez que, após a conquista espanhola,
em sua leitura, os escritos maias foram perdendo cada vez mais o seu conteúdo original:
Com o tempo e a desintegração das crenças e costumes maias sob a influência
espanhola, as diferenças não poderiam deixar de se acentuar entre as novas
cópias, ao passo que multiplicariam as interpolações de inspiração europeia.
Nesse meio tempo, cada qual já havia acrescentado algo de si a essas cópias:
um formulário de medicina indígena, um tratado de astrologia, uma crônica
local, fórmulas simbólicas de iniciação religiosa etc. Enfim, o cristianismo
4
Segundo Román Piña Chan, Quetzalcoátl foi um deus que se originou numa “velha divindade da água (a
serpente-nuvem de chuva), decididamente associada ao raio-trovão-relâmpago-fogo [...]; sua criação e
culto realizou-se em Xochicalco (ou Tamoanchán) por volta do fim do Horizonte Clássico da Mesoaméri-
ca [...]; seus sacerdotes levavam seus atributos e seu nome; [...] um deles chamado Ce Ácatl Topiltzin foi
quem levou o culto da divindade a Tula, Hidalgo, como outros com o mesmo nome, mas traduzido a diver-
sas línguas o levaram por outros lados; [...] o Quetzalcoátl dos toltecas foi diferente daquele dos mexicas,
já que se transformou em deus do ar (Ehécatl); [...] [e] desde período próximo à conquista espanhola já
existia certa confusão com relação ao deus e aos sacerdotes de seu culto, aspecto que se intensificou
com os cronistas e estudiosos posteriores”. (CHAN, 1977, p. 7, tradução nossa).
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penetrava igualmente em todas as entrelinhas, adulterando cada vez mais o
documento original (PÉRET, 1992, p. 165-166, tradução nossa).
Para o escritor, a cultura maia foi a que possuiu o grau mais elevado de
desenvolvimento entre as culturas do México, afirmando ainda que os maias continuavam
supersticiosos ao extremo. Suas crenças atuais representavam, em uma boa parte,
os resíduos da religião de seus ancestrais. A partir disso, podemos afirmar que Péret
admitia o impacto da dominação espanhola sobre os índios, mas não explicitava o desejo
de que essa cultura retornasse, até porque ele possuía consciência da miscigenação.
Podemos perceber, desse modo, como o escritor discutiu com afinco os acontecimentos
históricos e as transformações da cultura maia.
Posteriormente, no mesmo texto, Péret apresentou com minúcia uma visita ao
sítio arqueológico de Chichén Itzá, descreveu um modo de vida que já não existia – o
jogo de pelota, os sacrifícios, como exemplo. Assim, visualizamos também que ele tinha
um conhecimento mais pormenorizado a respeito das antigas culturas, e não construiu
possíveis generalizações como Artaud realizou em seus textos, nos quais mencionava
as culturas pré-colombianas.
No texto “Les sacrifices humains dans l’ancien Mexique, de 1950, Péret faz uma
descrição minuciosa, dessa vez a respeito da variedade de cerimônias de sacrifício dos
astecas. Apesar de o autor não reverenciar os sacrifícios, em sua leitura, com a chegada
de Cortez, o Cristianismo foi imposto, e eliminou a cultura asteca. Os deuses já não
recebiam os sacrifícios de coração, mas os indígenas continuaram sendo sacrificados,
agora nas fogueiras da Inquisição. Nesse sentido, Péret criticou igualmente os sacrifícios
dos astecas e do Cristianismo. Há, portanto, uma crítica geral às religiões.
Assim, tal como Artaud, Péret criticou duramente a religião. No artigo sobre
os tarahumaras, “El país de los ‘Reyes Magos”, Artaud teceu a seguinte crítica: “Se a
religião se apoderou destes princípios e se os povos se desviaram deles para adorar a
religião, tanto pior para estes fanatizados, mas não para os princípios” (ARTAUD, 1975,
p. 277, tradução nossa).
Também como Artaud, Péret comentou a respeito da universalidade dos mitos,
mencionando a corrente defensora da ideia de que eles eram semelhantes e comparáveis
em todas as culturas primordiais. No texto “Notes sur l´art pré-colombien”, Péret
comentou o pensamento de que, em um mesmo momento, os mesmos mitos chegaram
a toda a humanidade:
A luta da águia e da serpente, que se encontra nos brasões do México
contemporâneo, é reencontrada nas velhas inscrições sumérias de milhares
de anos antes de nossa era. O mito da virgem mãe, que os conquistadores
espanhóis trouxeram à América com todos os flagelos da Europa, já prosperava
no mundo religioso do México antigo sob o nome de Coatlicue e de Chimalma,
mães imaculadas [...]; e há poucos personagens da mitologia greco-latina cujo
equivalente não possa ser reencontrado no Olimpo mexicano ou maia (PÉRET,
1992, p. 187, tradução nossa).
Também Artaud, ao viajar para a terra dos tarahumaras, comparou certos
rituais encontrados com outras cerimônias presentes em outros povos e em outros
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períodos históricos. Para ele, havia um segredo primordial que fazia com que os rituais
de várias sociedades de tempos diferentes fossem comparáveis. Ao discorrer sobre os
tarahumaras, Artaud afirmou:
Que se pense o que quiser da similitude que tento. Em todo caso, como
Platão nunca veio ao México e os índios tarahumaras jamais o viram, precisa-
se aceitar que a ideia deste rito sagrado chegou para eles da mesma fonte
fabulosa e pré-histórica (ARTAUD, 1975, p. 285, tradução nossa).
É interessante notar que algumas das ideias do psicanalista Carl Gustav Jung
(1875-1961) se aproximam também dessa concepção, que relaciona misticismo e ciência.
Jung afirmou que o denominado “inconsciente coletivo” constitui “um substrato
psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo”. Os
conteúdos desse inconsciente coletivo são chamados de arquétipos. Esses padrões, por
sua vez, são “tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que
existiram desde os tempos mais remotos”. A partir disso,
os ensinamentos tribais primitivos tratam de arquétipos de um modo
peculiar. Na realidade, eles não são mais conteúdos do inconsciente, pois já
se transformaram em fórmulas conscientes, transmitidas segundo a tradição,
geralmente sob forma de ensinamentos esotéricos. Estes são uma expressão
típica para a transmissão de conteúdos coletivos, originariamente provindos
do inconsciente (JUNG, 2012, p. 12-13).
Essa preocupação com mitos originários foi algo que, de acordo com a análise em
curso, se manifestou também entre Péret e Artaud. Para o primeiro, seria impressionante
o “fato banal” de que “em todos os lugares do mundo”, o homem “atravessou as mesmas
etapas e dotou as mesmas forças naturais de um poder divino”, antes que idolatrasse
sua “submissão a essas mesmas forças”. Péret ainda afirmou que a imaginação surgida
do inconsciente profundo comum a todos os homens e aos primitivos, atualmente não
nos permitiria alcançar apenas a percepção do que fomos antigamente, mas mostraria
que não somos muito mais conscientes de nossa própria natureza do que éramos
anteriormente. Nesse sentido, o autor também compartilhou da ideia de Artaud, de que
o homem moderno não é consciente de si mesmo como ambos os escritores desejavam
que fosse.
Seria interessante notar também outro ponto em comum entre ambos, no que diz
respeito à arte. Para Péret, assim como para Artaud, a arte nasceu de um desejo de “dar
formas às divindades” que o homem inventou, justificando a importância dada à magia,
aos ritos, às culturas primitivas. Enquanto um escultor grego, por exemplo, atendia à
razão com sua arte, os índios do México pré-colombiano falavam à imaginação na sua
própria linguagem.
Ao final do texto, surge, novamente, o raciocínio evolucionista de Péret, construído
a partir da seguinte indagação: poderiam as culturas pré-colombianas progredir até o
nível da Europa, privadas que estavam dos meios materiais? De toda forma, o ritmo de
sua evolução teria permanecido muito lento, mas essa não seria uma justificativa válida
para destruí-las. Nota-se que, apesar de considerar as culturas pré-colombianas não
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tão evoluídas como a europeia, Péret não se deixou levar pelo elogio da colonização e
do fim daquelas culturas.
Já em outro texto, Péret faz um pequeno comentário a respeito do fato, comungado
com Artaud, de que as lendas exprimem aspectos comuns a todos os homens. Já as suas
particularidades revelariam características da história e do povo que as criou:
Se a lenda exprime aspirações comuns a todos os homens, o aspecto particular
que ela reveste aqui ou ali não revela com menos precisão sobre as condições
de existência dos povos que a criaram e sobre as singularidades históricas
desses povos. Por sua vez, estas são dadas pela natureza do país em questão,
sua geografia, mesmo sua topografia, assim como sua fauna e sua flora. Trata-
se aqui do elemento permanente que constitui a base material submetida à
interpretação do poeta moderno, bem como dos antigos criadores de mitos
(PÉRET, 1992, p. 197, tradução nossa).
No texto “Souvenir du futur”, publicado em 1952, Péret teceu um comentário
muito interessante, no qual alegava que, nos tempos atuais, com “a fusão acelerada dos
povos e das culturas” e com a multiplicação das trocas intelectuais, uma arte nacional
não teria sentido.
Entretanto, não seria possível negar que existia uma arte mexicana, a qual não
fora criada pelos artistas em voga daquele tempo, mas, sim, pelo povo. Ou, melhor do
que isso, essa arte mexicana sobreviveu e se desenvolveu “entre as pessoas esmagadas
por séculos de colonização feroz e de opressão religiosa. Essa arte, que estava longe
de sair do nada, seria “a prova da rica cultura das sociedades pré-colombianas e da
vitalidade” do povo mexicano. “Os grandes artistas de outros tempos que decoraram os
numerosos templos” sobreviveram nos “ex-voto” e nas pinturas murais das “pulquerías”.
Segundo Péret, nesses lugares que seria possível encontrar a arte mexicana em
um “estado embrionário, e não nos grandes painéis do famoso muralista Diego Rivera.
Em suma, seria possível afirmar que, a arte, em um estado profissional, foi criada pelos
“menos” artistas.
Essa arte popular transpareceria em todos os lugares, e mesmo as casas mais
pobres das periferias seriam decoradas com “flores, como no tempo da conquista,
quando a arte ainda estava sob a proteção de diversos deuses”.
Por fim, Péret afirmou que, no México, a arte, mesmo não se apresentando
mais como manifestação coletiva do povo, ainda permanecia sendo importante como
expressão popular, de forma dispersa e anônima. O autor ainda citou o exemplo das
pinturas presentes nas “pulquerías” “comoventes e belas”, uma vez que, de uma forma
“perfeita e autêntica, representariam a “aspiração universal em direção à beleza, livre
de toda utilidade”.
Seria interessante neste momento fazer um contraponto com Artaud sobre
o que deveria ser uma arte mexicana. Para o autor, a arte do México seria somente
aquela provinda do inconsciente relacionado ao período pré-colombiano, sem nenhuma
interferência europeia. Nesse sentido, Artaud não conseguiu encontrar na arte moderna
mexicana nada que o satisfizesse plenamente nesses termos identitários, uma vez que
os artistas contemporâneos a ele tinham uma influência europeia notável em seus
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trabalhos. Portanto, ele buscava no México moderno algo praticamente impossível: um
artista que trabalhasse unicamente com referências indígenas.
No texto “La pintura de María Izquierdo”, Artaud afirmou que preferia as obras
desta artista mexicana, nas quais, em seu entendimento, não haveria influência da arte
moderna europeia. Ao final, apontou que
inquestionavelmente, María Izquierdo está em comunicação com as
verdadeiras forças da alma índia. Leva seu drama dentro de si mesma, e
consiste em desconhecer suas fontes. Deve, para guardar sua personalidade,
fazer um grande esforço em favor da pureza, e este esforço terá imediatamente
sua recompensa (ARTAUD, 1975, p. 205, tradução nossa).
Péret, por sua vez, assumiu o fato de que seria improvável encontrar uma arte
nacional em meio a um período no qual a fusão entre as culturas era evidente. No entanto,
conforme afirmado anteriormente, Péret percebe, na arte popular, uma manifestação
artística que seria verdadeiramente mexicana, com claras influências pré-colombianas.
O desejo de Péret de encontrar uma arte realmente mexicana nos parece, em
parte, muito semelhante ao anseio de Artaud. Como resultado dessa procura, ambos
excluíram a arte moderna mexicana como possível exemplo dessa arte nacional
e teceram críticas a Diego Rivera, sob a afirmação de Artaud de que as influências
europeias do famoso pintor muralista eram condenáveis. Entretanto, Péret encontrou
na arte popular contemporânea, o seu exemplo de arte nacional mexicana, enquanto
Artaud foi buscar em meio aos índios tarahumaras, aquelas manifestações primordiais
que o comoveriam e que o inspirariam, tanto em sua vida pessoal como em sua vida
artística.
Por meio do texto
“Les trésors Du Musée National de México: la sculpture aztèque”,
de 1943, é possível perceber mais claramente a noção de progresso que possuía Péret.
Para ele, o grau de desenvolvimento não se media apenas pelo progresso material, mas,
sim, também pela arte. Nesse sentido, Péret sugeriu que os astecas tiveram um grau de
desenvolvimento que apenas os maias ultrapassaram.
A partir desse raciocínio, ele comparou, por nível de desenvolvimento, a arte
maia com a arte grega e a arte asteca com a arte egípcia (PÉRET, 1992, p. 306, tradução
nossa). A arte asteca, tal como a dos egípcios, teria em sua substância a influência da
magia e dos mitos que a alimentaram e sacralizaram. Desse modo, Péret considerou que
astecas e egípcios materializaram, por meio de suas artes, os tipos de divindades quase
imutáveis.
No texto “L’exposition d’art mexicain”, de 1952, defendeu que o México seria o
país que conservou a tradição artística mais rica de toda a América. Entretanto, esse
mito não seria uma linha reta, uma vez que o México antigo era um campo de batalhas
quase incessante. Tal sociedade, com toda a sua complexidade, foi derrotada pelos
espanhóis. Com isso, “se a arte propriamente indígena” se debilitou muito rápido por
causa da opressão dos invasores, os quais impuseram a sua cultura e a sua religião,
desaparecendo, rapidamente, a necessidade que fez tal arte aparecer permaneceu ainda
viva no coração desse “povo trágico” (PÉRET, 1992, p. 325, tradução nossa).
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Péret também comentou que a arte após a chegada de Cortez passou por
grande mudança, já que passaria a pertencer à Igreja. No entanto, essas manifestações
continuaram tendo uma existência clandestina nas camadas profundas da população.
Assim, no México, ainda em seu período contemporâneo, todo homem, por mais humilde
que fosse sua condição, portaria em si mesmo uma acepção artística que esperaria
somente as condições favoráveis para se desenvolver.
Portanto, a verdadeira arte mexicana de seu tempo seria a arte popular no pleno
sentido do termo. Tudo o que o artesão desse país fabricasse tornar-se-ia “uma obra
de arte em suas mãos”. Péret ainda afirmou que os artistas profissionais estariam, na
maior parte do tempo, muito longe de alcançar a pureza e a ingenuidade dos artesãos
mexicanos.
Tal como Artaud, Péret estava decepcionado com a arte profissional mexicana.
Para ambos, ela não refletia o espírito do México e é provável que tal opinião
provenha
da expectativa de que encontrariam no país trabalhos artísticos exóticos, feitos com as
pinceladas do primitivismo mais “original” e “puro”. Para ambos, deveria transparecer, no
xico, o seu passado indígena pré-colombiano, o qual estava imerso numa atmosfera
contemporânea que possuía traços marcantes da cultura moderna europeia.
Apesar de Artaud não tratar essa tradição antiga com o rigor da História, como o
fez Péret, ambos procuravam com ardor esse passado “primitivo” que tanto intrigava e
inspirava os artistas modernos europeus. Havia uma ideia de México – um mexicanismo
– que não se separava do passado glorioso que havia antes da chegada de Cortez.
A grande diferença da percepção de Artaud em comparação a de Péret estaria no
fato de que o segundo sabia que a cultura pré-colombiana não renasceria de suas cinzas
de forma semelhante a que havia sido em seu auge, enquanto Artaud assim esperava
que ocorresse nesse conturbado período histórico vivido pelo México. Com isso,
Péret, mais consolado com o fato de que essas culturas faziam parte de um passado já
intocável, buscava os seus vestígios na arte popular contemporânea, encontrando algo
que o deixaria menos inquieto. Tal inquietude era devido à destruição daquela arte do
passado, a qual era guiada pelo inconsciente – aspecto louvado pelos surrealistas em
geral
5
.
Finalmente, podemos concluir que Artaud possuía um vínculo mais pessoal com
a magia e o misticismo, possivelmente devido à sua busca estar vinculada à experiência
teatral. Ele pretendia vivenciar a experiência de participar do modo de vida dos povos
indígenas, daí a sua viagem à terra dos tarahumaras. Já Péret estava mais interessado
no senso de poesia e de maravilhoso nas culturas estudadas. Talvez por isso, Artaud
comentava a respeito de um renascimento da arte pré-colombiana – pelo seu desejo de
vê-la pulsando novamente, de sentir sua energia, pretendendo que ela influenciasse o
teatro de seu tempo. Enquanto isso, Péret possuía uma relação mais distanciada com
relação ao tema, o que possibilitava um tratamento menos pessoal. Arte e vida, para
Artaud, estavam realmente imbricados em sua experiência com os povos indígenas.
5
Benjamin Péret alimenta esse ambiente místico ligado ao México em seu poema “Air Mexicain, de 1952,
demonstrando o quanto ficou atraído pela “atmosfera mexicana” (PÉRET, Benjamin, op. cit, Tomo II, p.
213-232). Segundo Claude Courtot, Péret, neste poema, “não dá a palavra à cultura nahua, ele é a pala-
vra viva, o poeta do povo nahua. Existe um valioso estudo que mostra como as imagens utilizadas neste
poema são a tradução de imagens e expressões da língua falada pelos astecas. Esse poema é um soberbo
grito de revolta: é a revanche poética de um povo condenado pela História” (PONGE, 1999, p. 154).
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André Breton, o grande representante do Surrealismo, também alimentou
as suas esperanças em terras mexicanas ao passar quatro meses no país no ano de
1938. Breton havia planejado bem a sua viagem: estabelecera contato com intelectuais
e artistas que poderiam ajudá-lo durante o período. Já em 1936, quando começava a
planejar a aventura, passou a comunicar-se, em busca de um panorama sobre as artes
no México, com o intelectual Luis Cardoza y Aragón, o qual foi também um dos que mais
se aproximaram de Artaud em sua estadia na Cidade do México.
Outros artistas que Breton contatou foram Rodolfo Usigli, Jorge Cuesta, Carlos
Pellicer e Xavier Villaurutia. No México, Breton também obteve o importante apoio do
artista peruano César Moro.
Contudo, os primeiros acontecimentos não ocorreram conforme o planejado por
Breton. Em período anterior à sua chegada, foram trocadas correspondências a fim de
maldizer o artista e sua viagem ao México. Uma campanha contra sua presença no país
foi armada por “escritores e jornalistas influenciados pelo catolicismo ou pelo Partido
Comunista Mexicano” (PONGE, 1999, p. 217). Breton, conhecido por suas denúncias
contra o stalinismo, teve a ida ao México mal vista pelas organizações simpatizantes
ao Partido Comunista devido à sua posição política. Apesar disso, Breton conseguiu
realizar cinco conferências na Cidade do México, todas elas na Universidade Nacional
Autônoma do México (UNAM), sendo a primeira proferida no dia 13 de maio do mesmo
ano.
A repercussão da viagem de Breton foi, ao contrário daquela feita por Artaud,
grande e polêmica. Aqui já podemos notar que, se o foco de Artaud era encontrar a
cultura indígena intacta do México, os objetivos de Breton estavam mais ligados à
política pós-revolucionária que trazia ares esperançosos às concepções marxistas de
luta na Europa. Assim, Breton não relacionava, como Artaud, a Revolução Mexicana com
projetos de um retorno ao primitivismo pré-hispânico. Nesse ponto, Breton possuía
muito mais informações sobre os acontecimentos no México, estando ele também mais
informado, antes mesmo de chegar ao país, a respeito das reais disputas políticas – que
Artaud, em grande parte do tempo, procurou ignorar.
Artaud, ao se pronunciar a respeito do Surrealismo, deixara clara a sua opinião
negativa em relação ao Marxismo, além de apresentar o seu sonho, quase um delírio, a
respeito do que deveria ser a Revolução Mexicana.
No texto
“Primer contacto con la Revolución Mexicana”,
de 1936, ele afirmou
que havia, na Europa, uma espécie de “alucinação coletiva” a respeito do processo
revolucionário no México. Isso devido ao fato de existir a crença na existência de um
movimento anti-europeu bem definido, e também na ideia de que haveria um desejo
do povo mexicano de voltar às raízes pré-cortesianas6. “Numa palavra, crê-se que a
Revolução do xico é uma revolução da alma indígena, uma revolução para conquistar
a alma indígena tal como existia antes de Cortés” (ARTAUD, 1975, p. 142, tradução nossa).
Artaud estava, de certa forma, desgarrado em relação aos debates culturais e
políticos presentes no meio no qual circulava e se pronunciava. Já Breton se encontrava
no “olho do furacão, uma vez que suas opiniões e suas companhias durante a sua viagem
6
Segundo Florence de Mèredieu, Artaud teve grandes influências dos meios ocultistas que frequentou.
Dois exemplos são o orientalista e espiritualista René Guénon e o filósofo católico Jacques Maritain. Am-
bos declaram-se “antimodernos” e “preconizam de fato um retorno à civilização medieval”. Artaud, de
certa forma, alimentou-se por essas ideias em seus textos escritos no México (MÈREDIEU, 2011, p. 603).
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estavam completamente integradas aos debates mais atuais a respeito da política e da
cultura no México e na Europa.
Breton não buscava contrapor a realidade mexicana àquela encontrada na Europa,
sonhando com uma insurreição contra os valores ocidentais e a favor das sociedades
pré-colombianas, que deveriam reflorescer conforme eram em seu estado primitivo, tal
como devaneava Artaud. Breton pretendia incluir o México no debate artístico e político
mais atual da Europa. Somado a esse intento, este artista também tinha como objetivo
central em sua viagem encontrar-se com uma das personagens da esquerda marxista de
maior destaque mundial do momento – Leon Trotski.
Podemos concluir, a partir do que foi argumentado, que o principal desejo de
Breton era distinto das pretensões de Artaud – que, como vimos, buscava apenas se
aproximar de uma cultura indígena que tornava o México absolutamente original e
singular. Andre Breton, por sua vez, enxergava o México dentro dos debates europeus
– artísticos e políticos – mais modernos, criando, juntamente com Leon Trotski e Diego
Rivera, o manifesto “Por uma arte revolucionária independente”.
De acordo com Gérard Roche (apud PONGE, 1999, p. 220),
[...] Enquanto Artaud parte em busca de uma civilização indígena, que
opõe aos valores culturais da Europa e que finalmente encontrará na Serra
Tarahumara, Breton procura “o lugar e a fórmula”, isto é, o ponto de fusão em
que se encontram conciliados o passado pré-colombiano do México e as mais
altas conquistas da cultura europeia.
Da mesma forma que Péret, Breton não desprezava os aspectos racionais, a
herança europeia, tal como fazia Artaud, mas acreditava no fim dos dualismos entre o
inconsciente e a razão, conforme já foi comentado anteriormente, sendo o México um
lugar ideal para conseguir essa união.
Breton, Rivera e Trotski acreditavam que deveria haver, na obra de arte, a
“sinceridade e a autenticidade, isto é, a fidelidade do artista a si próprio, à sua emoção e
ao seu eu interior” (BRETON, 1985, p. 19). Nesse sentido, seria possível uma harmonização
dos aspectos individuais e sociais na criação artística, sendo que a singularidade não
significava, tal como para Artaud, alcançar o inconsciente exclusivamente indígena
presente nos artistas e intelectuais mexicanos.
Semelhante a Artaud, Breton também teceu uma crítica ao trabalho de Diego
Rivera:
Diego Rivera é autor de uma “obra épica, sem nenhum equivalente na
Europa, que retrata a luta ininterrupta do México, já há 100 anos, pela sua
independência e através dela a aspiração incessante do homem por mais
consciência e liberdade, que se liga, além da época da conquista espanhola,
com o que constitui o mais precioso saldo das civilizações indígenas
desaparecidas, que antecipa também sobre o que deve ser a verdade humana
do amanhã (BRETON, 1985, p. 58).
Podemos perceber que, enquanto para Artaud o trabalho de Rivera apresentava
uma “opacidade interior das formas” devido à falta do “sentimento de uma força
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transcendente”, para Breton, a obra do pintor muralista não possuía nenhum equivalente
na Europa, retratando a luta no México que se relacionava à “aspiração incessante do
homem por mais consciência e liberdade”. Para Artaud, o fato de Rivera ser materialista
o diminuía em sua criação e, para Breton, essa característica do artista mexicano
poderia tornar-se um ganho para a sua obra.
Breton, um artista em dia com os debates políticos de sua época, foi também
autor de alguns textos a respeito do México que trazem marcas do primitivismo presente
nas ideias sobre o país naquele período. Para esse artista, o México seria um país
surrealista e revolucionário por natureza. É possível perceber isso na maneira como
Breton descreveu a atmosfera da natureza e do povo mexicano nos textos “Souvenir du
Mexique, e “Frida Kahlo de Rivera, ambos de 1938.
Souvenir Du Mexique”, apresentado na publicação Minotaure, em 1939,
repleto de imagens, já se inicia com uma descrição do México que pode ser
relacionada às características de um país especial, mágico, aspectos também
presentes nas descrições de Artaud.
No primeiro parágrafo do trabalho, Breton menciona um lugar de terra vermelha,
terra na qual a vida do homem não tem preço. Esse lugar, onde os ventos libertadores
não acabaram como em outros lugares, é o México, país no qual o espírito de 1810 e
de 1910 – datas da Independência e da Revolução Mexicana, respectivamente – ainda
continuaria vivo, pronto a aparecer novamente.
O artista descreveu uma imagem romântica de um cacto tendo por trás um homem
com um fuzil. E, para ele, a força latente dessa imagem pode se elevar subitamente da
inconsciência e da desgraça:
Terra vermelha, terra virgem impregnada do mais generoso sangue, terra
onde a vida do homem não tem preço, sempre pronta como o agave a perder
de vista, que o exprime a se consumir em uma flor de desejo e de perigo! Pelo
menos resta ao mundo um país onde o vento da libertação não morreu. Esse
vento, em 1810, em 1910, irresistivelmente ressoou da voz de todos os órgãos
verdes que ali se lançam sob o céu da tempestade: um dos primeiros fantasmas
do México é feito de um desses cactos gigantes do tipo candelabro de trás do
qual surge, os olhos em fogo, um homem segurando um fuzil. Não há o que
discutir sobre essa imagem romântica: séculos de opressão e de louca miséria
em dois momentos lhe conferiram uma realidade radiante e, esta realidade,
nada pode fazer que ela não permaneça latente, que não persista a cobri-la o
aparente sono das extensões desérticas. O homem armado está sempre ali, em
seus esplêndidos farrapos, como ele pode sozinho se levantar repentinamente
da inconsciência e da tristeza (BRETON, 1979a, p. 35, tradução nossa).
Assim, o México arderia com todas as esperanças que foram depositadas em
outros países, tais como a União Soviética, a Alemanha, a China e a Espanha, e que
se viram “dramaticamente frustradas”. No entanto, para Breton, existia a consciência
de que essas expectativas venceriam aqueles que as haviam destruído, pois seriam
inseparáveis do que existia de “mais vivo”, de “mais misterioso” no homem, sendo que
está em sua natureza o voltar sempre a “florescer”.
O México era, portanto, o país no qual os europeus, desiludidos com os rumos que
o seu continente trilhou, poderiam renovar as suas forças e colocar as suas esperanças.
Olhares sobre o México: a América Latina sob a perspectiva surrealista
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Havia ainda no mundo um lugar onde as artes e a política poderiam se desenvolver,
apesar de todos os empecilhos que impediam os artistas e intelectuais de acreditarem
em um mundo novo, revolucionário, com o olhar voltado somente para a Europa.
Nesse sentido, é possível afirmar que Breton não se distanciou muito dos
comentários empreendidos por Artaud sobre o México. Artaud, assim como Breton,
fora ao país asteca em busca de um lugar onde ainda haveria esperança para as
transformações sociais, que estavam fora da perspectiva europeia naquele momento
histórico.
Entretanto, para Artaud, essas esperanças eram depositadas em um espírito
primitivista, que pretenderia reavivar as culturas pré-hispânicas de forma semelhante ao
que eram antes da chegada dos espanhóis. Essa concepção de revolução era o alvo que
a luta dos mexicanos deveria atingir. Apesar disso, Artaud percebeu, posteriormente,
que não se tratava de uma luta indigenista, tal como pensava que fosse:
A política do Governo não é indigenista, quero dizer, não é de espírito Índio.
Não é tampouco Pró-Índia como os periódicos pretendem. O México não
busca se converter em Índio. Simplesmente o Governo do México protege os
índios enquanto homens, não enquanto Índios.
Depois da Revolução o Índio deixou de ser o pária do México, mas é tudo. Não
se deu a ele um lugar à parte. Eu diria mais: não se protegem seus ritos, se
contentam em respeitar seus costumes. [...] Se considera à massa Índia como
inculta e o movimento que domina o México é “elevar os Índios incultos a
uma noção ocidental da cultura, em direção aos benefícios (SINISTROS) da
civilização”.
maestros de escolas, que aqui se chamam Los Rurales, que vão às massas
indígenas para predicar o evangelho de Karl Marx (ARTAUD, 1975, p. 261-262,
tradução nossa).
Já para Breton, a concepção de revolução era aquela ligada às datas emblemáticas
de 1810 e de 1910, o que o colocaria lado a lado do grupo de intelectuais e artistas
mexicanos que comemoravam e simpatizavam com o governo do Gen. Cárdenas e suas
medidas políticas populares. No texto “
Visita a Leon Trotski
, Breton comentou que o
governo mexicano deveria ser homenageado por sua política de proteção aos ideais
revolucionários:
Os membros desse governo, tendo alguns deles desempenhado os mais
importantes papéis da Revolução de 1910, tendo combatido sob as ordens
de Zapata ou tendo sido formados na sua escola, admiram sem restrição um
homem da têmpera de Trotski (BRETON, 1985, p. 61).
Entre os assuntos abordados no texto, o autor também teceu comentários
a respeito da expropriação do petróleo realizada pelo mesmo governo cardenista,
ao afirmar que ela não era uma medida comunista ou socialista, mas, sim, uma ação
“profundamente progressiva de autodefesa nacional”. Essa opinião demonstra como
Breton estava inserido na política do país, chegando até a participar do debate promovido
no espaço público mexicano.
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Mesmo com o grande conhecimento que Breton possuía sobre as lutas recentes
no México, ele se deixa levar no texto “
Souvenir du Mexique
” pelas ideias primitivistas
tão caras à sua geração. Isso se torna mais evidente em sua afirmação de que o México,
mal havia se despertado do seu passado mitológico, continuava “evoluindo sob a
proteção de Xochipilli, deus das flores e da poesia lírica, e de Cuatlicue, deusa da terra e
da morte violenta” (BRETON, 1979a, p. 37, tradução nossa). Com isso, o artista destacou
a sua ideia de que o México poderia superar a oposição de vida e morte, o que fazia o
tornava um país surrealista por natureza.
Desse modo, podemos concluir que o teor político presente nos textos de Breton
sobre o México não excluía considerações a respeito de certa influência primitivista
nas suas avaliações sobre o mesmo. Sendo assim, para o artista, o principal atrativo de
que dispunha o México era o poder de conciliação de vida e morte que o país possuía.
Novamente as terras astecas, colocadas sob o ponto de vista de uma atmosfera sensível,
foram visualizadas como o lugar propício para o fim das antinomias.
Enquanto Artaud lutou por estabelecer uma ideia de que o México era
essencialmente indígena em suas entranhas, apesar dos obstáculos trazidos pelos
europeus que trataram de destruir essa cultura ainda latente, Breton clamou por um
país onde as duas temporalidades – pré-revolucionária e pós-revolucionária – se
fizessem presentes ao mesmo tempo.
Assim, para Artaud, o México se dividiu e foi prejudicado devido à chegada dos
europeus. Já para Breton, os acontecimentos de maior destaque na história do país eram
as lutas revolucionárias, as quais criavam uma atmosfera única para o México, atraindo
aqueles que ainda buscavam por uma faísca de esperança apesar dos acontecimentos
recentes na Europa.
É possível afirmar que, nos textos de Breton, o espírito revolucionário é ainda
mais amplo do que as lutas datadas na história mexicana, uma vez que ele estava sempre
presente, não se limitando dentro de um momento histórico específico.
A ideia de um país mágico, capaz de unir a vida e a morte, também está presente
no texto “
Frida Kahlo de Rivera
, o único artigo a respeito da artista publicado no livro
de autoria de Breton, “
Le Surréalism et la peinture
, publicado em 1965. Logo em seu
início, o texto referenciou o ponto de vista de Breton acerca da atmosfera mexicana:
Há um país onde o coração do mundo se abre, aliviado do sentimento opressivo
de que a natureza por toda parte é monótona e não empreendedora... [um
país que é separado] das leis econômicas da sociedade moderna que a tudo
envolvem (apud BATCHELOR; FER; WOOD, 1998, p. 240).
É possível perceber, por meio dos textos analisados, que Breton, apesar de estar
muito presente nos debates políticos de sua época, não ignorava a imagem do México
como um país essencialmente mágico, dono de um primitivismo reverenciado pelos
artistas europeus que eram seus contemporâneos.
Ao mesmo tempo, podemos afirmar que os artistas provindos da Europa para o
xico também contribuíram na construção desse mexicanismo do qual se alimentavam
antes da viagem, e propagaram a ideia com as publicações de suas impressões sobre o
país asteca.
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O mexicanismo do início do século XX foi, portanto, construído antes e depois
das viagens responsáveis pela atração dos surrealistas europeus para o México.
Antonin Artaud, Benjamin Péret, André Breton – artistas ao mesmo tempo apreciadores
das ideias sobre o México e responsáveis também em veicular essa imagem positiva
primitiva que foi ao longo do tempo sendo construída a respeito do país mexicano em
terras europeias.
No texto sobre Frida Kahlo, Breton também teceu um comentário sobre Diego
Rivera. Para o autor, o pintor muralista encarnava, “aos olhos de todo um continente”, a
luta contra “todos os poderes de escravização. Com isso, Breton unia mais uma vez os
seus comentários relacionados à política e à poesia, os quais deveriam estar imbricados
em sua concepção de arte, que teria que ser ao mesmo tempo subjetiva e social.
Já para Artaud, a arte deveria estar sempre próxima do reconhecimento de
sociedades que ainda viviam em seu cotidiano práticas ligadas a antigas ciências tão
almejadas pelo artista. A arte deveria caminhar sempre com os mistérios ligados à
magia ainda presente, por exemplo, nos rituais tarahumaras. O inconsciente deveria ter
destaque nos processos de criação, uma vez que ali se encontravam as imagens dessas
práticas mágicas antigas.
Aquele ideal de Breton de uma arte ao mesmo tempo individual e coletiva foi
encontrado por ele no trabalho de Frida Kahlo, o qual estava, segundo o artista, situado
no “ponto de intersecção da linha política (filosófica) e da linha artística” – unificação
desejada para que se formasse uma “mesma consciência revolucionária”.
Para o autor, Kahlo, sem conhecer o grupo de Breton, desabrochava em pleno
Surrealismo. Nesse sentido, para Breton, a política e o âmbito subjetivo deveriam, nesse
movimento artístico, andar juntos para criar algo revolucionário, enquanto que, para
Artaud, já naquele período, somente o inconsciente e os rituais tradicionais realmente
interessavam para a sua forma ideal de teatro.
Para Breton, à arte de Frida Kahlo não faltava nem sequer a “crueldade e o humor
único capaz de unir os raros poderes afetivos que entram em composição para formar
o filtro do qual o México possui o segredo” (BRETON, 1979b, p. 144, tradução nossa).
O país asteca seria, mais uma vez, visto como aquele capaz de unir antagonismos –
experiência, essa, tão cara ao movimento surrealista representado por Breton.
Por fim, Breton também apresentou neste texto a ideia que possuía sobre a arte
mexicana: para ele, essa era, desde o século XIX, a que melhor se defendeu “de toda
influência estrangeira”, a “mais profundamente apaixonada por seus recursos próprios”.
Essa percepção vai de encontro com o olhar de Artaud para a arte da mesma
nação, no qual, de acordo com as análises já apresentadas, não havia uma arte
realmente mexicana, pois os artistas deste país se apoiavam nas concepções artísticas
modernas europeias – o que era, para Artaud, um equívoco, uma vez que o ideal seria
que eles recorressem somente ao seu inconsciente indígena a fim de produzir uma arte
genuinamente mexicana. Essa ideia de Breton também se contrapõe com a percepção
de Péret, que acreditava no poder e na força genuína da arte popular.
Em Paris, no ano de 1939, Breton encontrou-se ligado a uma exposição sobre
o México na galeria
Renou e Colle
, cujo título era
Mexique
(PONGE, 1999, p. 226). Os
MENDONÇA, Tânia Gomes.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p. 141-160, jun.-dez., 2015.
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textos do catálogo, escrito pelo surrealista, mais uma vez dão mostras das ideias que o
autor possuía sobre o país visitado.
Já no prefácio, Breton comentou que o relevo, o clima, a flora, o espírito do
xico rompiam com todas as leis às quais os europeus estavam submetidos em seu
próprio continente (BRETON, 1992, p. 1233). Novamente, o México era colocado numa
categoria especial, revolucionária.
O artista também explicou no prefácio que a exposição apresentada abarcaria
desde as origens do México até os tempos atuais. Isso significa que, implicitamente,
estava ali presente uma linha de continuidade dos povos indígenas até o período da
Revolução Mexicana, tal como os muralistas mexicanos explicitaram em suas obras
públicas.
Breton comentou, em seguida, sobre os objetos populares encontrados na
exposição. Para o artista, esses deveriam ser considerados por eles mesmos, isto é,
independentes do enfadonho ponto de vista pedagógico que se vinculava ao folclore.
Nesse sentido, todos os objetos, por menores que fossem, deveriam ter
resguardados seus aspectos individuais, artísticos. Tais objetos atestariam “sua
necessidade imperiosa após um longo tempo reprimidos pela economia dos países
‘avançados”. Breton destacou a relevância desses objetos tal como Péret, mas de uma
forma mais branda, já que o segundo deu a esses um papel principal dentre as formas
artísticas genuínas no México.
Por fim, Breton apresentou um texto sobre a arte pré-colombiana, também na
exposição
Mexique
. Segundo o autor, o passado do México era mais conhecido do que o
presente. A arte mexicana de antes da conquista era uma das que mais influenciava os
artistas de seus tempos atuais. Dessa forma, evocar o México somente seria possível se
fosse dedicada uma parte larga a essas primeiras manifestações de seu gênio (BRETON,
1992, p. 1236).
A partir da análise de todos estes textos e artigos de Benjamin Péret, Antonin
Artaud e André Breton, podemos perceber a força que a imagem de um México
primitivista e revolucionário possuía entre os artistas europeus surrealistas. O México
era, antes de tudo, uma projeção elaborada por estes europeus – um país idílico que
provaria que suas esperanças de transformações sociais e superação do dualismo do
pensamento moderno europeu não teriam sido em vão.
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Olhares sobre o México: a América Latina sob a perspectiva surrealista
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