Entre a arte e a ciência: as visões sobre a cartografia medieval
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº2, p. 100-115, jun.-dez., 2015.
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Durante a Idade Média estes termos se multiplicariam. Em finais do século VIII
o monge Beato de Liébana faz uso da expressão formula picturarum para se referir ao
grande mapa-múndi traçado em fólio duplo que acompanhava a primeira edição pictórica
de seu Commentarium in Apocalipsin
14
. Em outros casos, como no Polychonicon de
Ranulf Higden, datado de meados do século XIV, o termo mappamundi é utilizado para
designar não o mapa em si, mas sim a descrição verbal do mundo que acompanha o
manuscrito.
Em outros manuscritos expressões sinonímicas como imagines mundi, tabula,
pictura e descriptio são comumente utilizadas para fazer referência a representações
semelhantes, senão com sentidos idênticos. Entretanto, ainda que estes conceitos fossem
conhecidos e amplamente utilizados no mundo antigo e medieval, é particularmente
evidente que seus sentidos e significados primários passaram a ser progressivamente
alterados ao longo dos tempos.
Para as realidades que particularmente nos interessam aqui, talvez tenha sido Du
Cange, em seu Glossarium mediæ et infimæ latinitatis, de 1678, o que mais se aproximou
definições que este vocábulo primordialmente evocava em meio à sociedade medieval,
descrevendo-o como um “papel ou pano, de forma explicada, em que a descrição do
mundo está contida”
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. Segundo este, um mapa poderia ser visto, assim, como uma
espécie de sudário que, lançado sobre o mundo, revelaria sua “face”. A referência, neste
caso, com o santo sudário de Cristo é evidente e indica como, em pleno século XVII,
ainda se conservava, em meio a uma memória coletiva, os expressivos simbolismos
religiosos que emanavam das formas de percepção e representação do espaço no
Ocidente medieval.
De caráter semiológico, a linguagem cartográfica se estabelece a partir de
parâmetros próprios que influenciam e são influenciados pelas características e
comportamentos de cada sociedade ao longo dos tempos. Nesse sentido é imprescindível
considerarmos não somente a permanência destas palavras, no eixo sincrônico, mas
igualmente a progressiva alteração de seus sentidos e significados no eixo diacrônico.
Seria, pois, completamente inverossímil acreditar que um mappamundi evoca,
para os homens de outrora, exatamente os mesmos sentidos, funções e significados que
os nossos mapas-múndi evocam para os nossos contemporâneos. No caso específico da
sociedade medieval, que particularmente nos interessa aqui, a representação do mundo
não se encerrava na simples contemplação de sua geografia física, mas, transcendendo
estes limites, evocava, em seus diferentes espaços e contextos, toda a história desde
os primórdios da humanidade, elemento que, para Naomi Kline (2005, p. 222), reforça
o esforço consciente de muitos autores para tornar o mundo material um espelho da
história bíblica uma vez que, ao traçarem as representações de suas imagines mundi,
estes monges e iluminadores não estavam propriamente preocupados com “a dimensão
geográfica que os cercava, mas sim, com a própria salvação de suas almas” (RIBEIRO,
2003, p. 26).
14
Acerca dos processos de reconhecimento, datação e sistematização da vasta tradição legada pelas
cópias ilustradas do Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana, cf. KLEIN, Peter. “La tradición pictó-
rica de los
Beatos
”. In:
Actas del Simpósio para el Estudio de los Códices del “Comentário al Apocalipsis”
de Beato de Liébana,
vol. 2. Madrid: Joyas Bibliográficas, 1980, pp. 83-106.
15
“
Charta vel mappa explicata, in quaorbis seu mundi descriptio continetur
”. DU CANGE, et al.,
Glossa-
rium mediæ et infimæ latinitatis,
ed. augm. Niort: L. Favre, 1883-1887, tomo 5, col. 255b.