GUEDES, Heverton *
https://orcid.org/0000-0002-6107-1772
RESUMO: O presente artigo pretende
problematizar a forma como a incipiente
indústria cinematográfica paulista, que
tomou corpo na década de 1950,
representou o sertão nordestino a partir de
estereótipos recorrentes no imaginário
brasileiro, reiterando-os e alargando-os. A
paisagem fixa pavimentada aqui e, mais
tarde, continuada por diversos filmes e
autores fez-se ecoar até hoje, o que
justifica, portanto, a importância da
desmistificação a que se propõe este
estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Sertão;
Representação.
ABSTRACT: This paper intends to
problematize the way in which the incipient
São Paulo film industry, which took shape
in the 1950s, represented the northeastern
backcountry stem from stereotypes in the
Brazilian imagination, reiterating and
expanding them. The fixed landscape paved
here and, later, continued by several films
and authors, was echoed until today, which
justifies, therefore, the importance of the
demystification that this research
proposes.
KEYWORDS: Cinema; Sertão;
Representation.
Recebido em: 22/07/2022
Aprovado em: 02/08/2022
*Graduado em História pela UFPE, Recife-PE, Lattes ID: 1490941376976192, e-mail:
heverton.sguedes@ufpe.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
No cinema nacional, o sertão nordestino foi assim apresentado ao grande público:
“volte e diga para o seu Governo que fique governando em suas governanças e não se
meta no sertão, onde mando eu”. Essa frase é dita a um funcionário público pelo Capitão
Galdino (Milton Ribeiro), na sequência de abertura do primeiro grande” filme instalado
nos sertões,
O Cangaceiro
(1953), dirigido por Lima Barreto e produzido pela
Companhia
Cinematográfica Vera Cruz
(1949-1954), ambos de origem paulista. Escolho-a como ponto
de partida porque, a meu ver, ela sintetiza não só a obra em si como também grande parte
do
nordestern
, subgênero abrasileirado do
western
americano no qual foram moldadas as
primeiras representações sertanejas, calcadas, principalmente, em uma clara intenção de
marginalização: a terra demarcada aqui não pertence, pois, aos mesmos domínios da nação
brasileira, pelo contrário, o exótico é o principal contorno de seu território, que encontra
na “incivilização” o único chão.
Esse subgênero, por isso, mostra-se de imenso valor para analisar a narrativa
única, fundada na estética da miséria, que o cinema nacional ergueu sobre os interiores
sertanejos e os seus sujeitos ao longo da história, afinal de contas, parte de um mote
bastante interessante: barbárie
versus
civilidade. Esse mote, por sua vez, molda-se nas
mãos de
Hollywood
a fim de encenar o processo histórico de expansão das fronteiras para
o Oeste, ocorrido no século XIX nos EUA, a partir da tensão entre os dois pólos da
sociedade estadunidense àquela altura, a realidade urbana-industrial da costa leste e a
realidade bucólica-agrária da costa oposta (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 268); sendo
adaptado ao Brasil pela
Vera Cruz
por meio de
O Cangaceiro
para marcar um afastamento
entre o mundo citadino, especialmente, o paulista, que na década de 1950 centrou a
indústria cinematográfica no país, e o mundo rural, em especial, o sertanejo, que pelo
menos desde os remotos tempos coloniais era visto enquanto imagem de margem. Como
tal mentalidade estava enraizada no imaginário coletivo, o faroeste
precisou tecer
alguns meros ajustes, por conseguinte, os
cowboys
foram substituídos por cangaceiros e
o
monument valley
, pela mata branca. E como tal adaptação acabou por alargar, em escalas
jamais vistas até aquele momento, os estereótipos sobre o sertão, é que parece pertinente,
então, o exercício de desmistificação a que se destina este estudo.
Dito isso, cabe elucidar que o presente artigo tem como intuito, antes de tudo,
problematizar a forma como o cinema paulista agenciou as imagens do sertão nordestino
nos primeiros anos da década de 1950; para isso, tomo como foco a experiência da
Vera
Cruz
e, como estudo de caso, aquele que é, quiçá, o seu mais famoso título,
O Cangaceiro
.
Logo de cara, vale sublinhar que ao introduzir os sertões nordestinos por meio de uma
estética declaradamente
hollywoodiana
, decorrente das demandas de industrialização e
construção de uma linguagem nacional que enfrentava o cinema brasileiro (TOLENTINO,
2001, p. 17), a empresa de São Bernardo do Campo inaugurou em nosso circuito comercial
um sertão mítico, marginal e miserável.
Nesse sentido, pode-se afirmar ainda que as imagens difundidas pela empreitada
paulista versam sobre o sertão e sua gente a partir de uma paisagem fixa, onde os alicerces
advêm de estereótipos que, como de costume, distorcem a realidade: ao redor dessa terra,
sempre orbitam os mesmos velhos signos [...] da violência, da carência, da penúria...
constituindo uma verdadeira “estética da boniteza da dor” (SILVA, 2017, p. 68), como se
seu povo tivesse sempre de enfrentar as chagas geográficas para, a partir delas, poder se
impor. Há também outro importante agravante aqui, uma vez que toda essa miséria
estética foi intencionalmente filtrada pelas lentes da exoticidade: para não confundir
aqueles que narram com o seu objeto, escolheu-se demarcá-lo enquanto algo distante,
remoto e bárbaro.
Mas afinal, por que o exótico se tornou território? De onde vem, a quem atende, e
qual o seu propósito? Este trabalho toma como intenção, no mais, indagar por que os
sertões são tantas e tantas vezes enviesados por uma mesma narrativa midiática, e como
ela se faz presente e pode ser sondada através dessa safra específica da produção paulista.
Interessa-me aqui, por fim, investigar os signos tão comumente, e exaustivamente,
associados aos interiores sertanejos, a fim de compreender suas raízes, sua repercussão
e se ainda fazem sentido algum na atualidade.
Paisagem fixa
Como equipamentos privilegiados de cultura no século XX, a literatura, o cinema,
e a dia de massas construíram uma representação sertaneja que atendeu à
curiosidade nacional em torno desse “outro” Brasil, místico, berço da brasilidade
original e repleto de personagens exóticos, e reforçaram a construção de um
imaginário em que a seca se constituiu como o elemento fundador das precárias
condições de vida do sertanejo e alimentou a esperança da fuga dessa realidade
imóvel para “a cidade grande” (MOREIRA, 2018, p. 76).
Primeiramente, na busca de uma raiz histórica, podemos perceber que o universo
sertanejo, em especial, na sua dimensão rural, estava presente em nosso cinema, pelo
menos, desde a década de vinte do século passado, sob o efeito, primordialmente, do apelo
popular desencadeado pelo cangaço, o que deu origem a filmes como
Filhos sem Mãe
(1925), dirigido por Tancredo Seabra, e
Sangue de irmão
(1926), dirigido por Jota Soares,
numa época em que Virgulino Ferreira da Silva e seu bando ainda bandeavam pela mata
branca, causando alegado alvoroço por onde passavam (VARJÃO, 2018, p. 519). Para se ter
uma ideia, de 1927 a 1969 foram realizadas 25 obras sob o signo do cangaço (TOLENTINO,
2001, p. 69). com grande sucesso de público, principalmente a partir da década de 1950,
época que marca o surgimento do
nordestern
.
A figura de Lampião está enraizada dentro da memória e cultura popular da região
Nordeste, tornando-se uma espécie de objeto-fantástico mesmo depois de sua
morte, sua vida e saga são imortalizadas na música, na dança (xaxado), nos
cordéis, nos contos populares e, também, no cinema. É verdade afirmar, dessa
forma, que a imagem de Lampião se enraizou dentro do imaginário da população
ao ponto do fetichismo movido pela veneração à imagem que representa,
construído através do modelo de vingador e defensor da justiça, contra a
opressão do Estado (VARJÃO, 2018, p. 519).
Por mais que a realidade rural fosse uma questão para os cineastas brasileiros
desde a década de 1920, foi apenas na década de 1950 que ela encontrou sua viabilidade
prática, em decorrência de uma série de significativas mudanças econômicas e sociais
desencadeadas, sobretudo, pelos processos de urbanização e industrialização pelos quais
passava o país. Tais mudanças impactaram decisivamente a produção e a recepção dos
filmes nacionais: primeiro, em um nível estrutural, já que se tornando o Brasil um país de
maioria urbana, aumentava-se consequentemente o mercado consumidor; e segundo, em
um nível simbólico, que o cinema era percebido pela burguesia, que tomava a dianteira
da empreitada cinematográfica, como um signo precioso de progresso e de modernização;
mais do que isso, um poderoso instrumento de propaganda desenvolvimentista.
Podemos entender, nesse sentido, que o Brasil precisou se urbanizar para só então
se voltar para o mundo rural em seu cinema, o que pode parecer uma contradição em uma
leitura mais ligeira, quando não o é, pelo contrário: para que o campestre fizesse cinema,
era preciso que, antes, se fizesse ficção. Esclarecendo: a imagem de um Brasil agrário era
associada por essa burguesia citadina ao atraso, ao subdesenvolvimento, à decadência, à
pobreza… o exato oposto do que se pretendia veicular nos filmes e se mostrar ao mundo;
por isso, foi preciso se afastar dele para poder digeri-lo. Um afastamento espacial na
realidade e discursivo na arte.
Como argumenta Celia Aparecida Tolentino, “as produções nacionais precisaram
se industrializar, leia-se: imitar
Hollywood
, para poder enfim levar a temática bucólica ao
grande público” (TOLENTINO, 2001, p. 12). Isso porque tal imagética causava certo
desconforto nas plateias, acostumadas com o entretenimento em molde estadunidense;
para se impor, de fato, ela precisou passar por um tratamento cosmético, a exemplo do
que faziam os norte-americanos especialmente nos seus
westerns
. Uma crítica
terrivelmente racista, veiculada pela revista carioca
Cinearte
no ano de 1926
nos uma
ideia de como alguns críticos se posicionavam a esse respeito:
Quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros, bichos e
outras ‘avis-rara’ desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematográfico?
Vamos que por um acaso um destes filmes vá parar no estrangeiro? Além de não
ter arte, não haver técnica nele, deixará o estrangeiro mais convencido do que
ele pensa que nós somos: uma terra igual ou pior a Angola, ao Congo. Ora vejam
se até não tem graça deixarem de filmar as ruas asfaltadas, os jardins, as praças,
as obras de arte, etc. Para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de
cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa em um purungo, acolá um bando
de negrotes se banhando num rio, e coisas desse jaez (TOLENTINO, 2001, p. 22).
Industrializar-se foi, desde o início, mais precisamente, desde a década de 1920, em
seu rompante modernista nas artes e na cultura, o grande objetivo para o cinema nacional;
meta esta retomada pela década de 1950, uma vez que, como já pudemos perceber, essa
última em muito se espelha na primeira. Por mais destrambelhadas que tenham sido as
tentativas brasileiras nesse sentido, diga-se de passagem, podemos entender que, de
forma geral, a industrialização cinematográfica tem a ver com uma estruturação de toda a
cadeia produtiva, desde a pré-produção dos filmes até a sua recepção final, o que denota,
em especial, o desenvolvimento dos chamados “filmes de gênero”, cujo principal aspecto
é o de sintetizar um conjunto de características específicas, de conteúdo e de estética, que
podem ser facilmente apreendidas pelo público e, claro, replicadas pela indústria,
derivando exatamente daí o seu caráter fabril.
Um dos mais emblemáticos casos de tentativa de industrialização cinematográfica
no Brasil ocorreu exatamente neste período de 1950: o da
Companhia Cinematográfica
Vera Cruz
. Fundada em 1949, através de capital privado, mais especificamente, através da
iniciativa dos imigrantes italianos Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho, a
empresa teve uma atuação curta, fechando suas portas apenas cinco anos depois da
abertura, mas um legado bastante considerável, já que é comumente reconhecida por ter
alavancado o nível da produção dos filmes brasileiros ao incorporar em nosso país técnicas
made
in U.S.A
.
Nascida na mesma leva que deu origem ao MASP (Museu de Arte de São Paulo) em
1947, ao TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e ao MAM (Museu de Arte Moderna) em 1948,
a Filmoteca do Museu de Arte de São Paulo (depois, Cinemateca Brasileira) em 1949, e a
Bienal de Artes de São Paulo, em 1951, a
Vera Cruz Estúdios
compartilhava com essas
empreitadas o mesmo norte: o desenvolvimento urbano e cosmopolita da cidade de São
Paulo, que se colocara como baluarte econômico e cultural do Brasil. Os seus
idealizadores sonhavam, na verdade, em colocar o cinema no mesmo nível do grande
teatro e dos grandes museus, como afirma Maria Rita Galvão, em seu conhecido estudo
sobre a Companhia (GALVÃO, 1981, p. 18).
Para a burguesia paulista, um país modernizado carecia de um cinema sofisticado,
capaz de divulgar os avanços e de educar as “massas”. Para isso, era necessário partir do
zero, visto que, aos olhos burgueses, não se podia considerar nada feito no Brasil até
aquele momento como “verdadeiro cinema”. A
Vera Cruz Estúdios
assume, então, como
sua principal estratégia, a produção de “filmes nacionais de padrões internacionais”, razão
pela qual investiu altos recursos na contratação de equipes americanas e na construção
de grandes estúdios, tudo isso para fazer de São Bernardo do Campo, nada mais, nada
menos, do que a própria
Hollywood
brasileira.
Com isso, foi importada toda sorte de profissionais que era necessária à
implantação do
know-how
na empresa, como também foi estabelecido um alto e rigoroso
padrão de qualidade. Pretendia-se, assim, renovar a linguagem e a estrutura brasileira de
cinema, pretendia-se, enfim, colocar o Brasil no mapa do circuito global. No mais, a
burguesia paulista aspirava, além de promover sua marca, é claro, fazer oposição à
iniciativa carioca, cuja produção no momento era marcada pelas chanchadas e tinha na
produtora
Atlântida
sua principal representante.
A fim de não estender esse ponto, mas ao mesmo tempo, querendo melhor explicar,
cabe colocar que o termo chanchada” significa “porcaria” em espanhol, onde se origina,
tendo sido cunhado pela crítica em função das produções ditas “baixas”, “malfeitas”, e por
vezes, “ridículas”; por mais que fossem sucesso de público por toda a década de 1950,
principalmente, em decorrência de seu tom leve, despreocupado e debochado, que
encontrava no carnaval e na paródia alguns de seus principais traços. Importante pontuar,
além disso, que essa perspectiva pejorativa foi muito revista e superada. Estudos
históricos (OLIVEIRA DIAS, 1993) e sociológicos, com frequência, defendem a importância
inigualável desse gênero, por assim dizer, para o desenvolvimento do nosso cinema,
destacando, justamente, o seu alcance popular, capaz de sensibilizar, como poucos outros,
as plateias brasileiras através de filmes brasileiros.
O saldo das bilheterias da
Vera Cruz
, por outro lado, raramente costumava
compensar os altos custos das produções e, apesar do sucesso de obras como
O
cangaceiro
, dificilmente cobriam o orçamento original dos filmes. Ainda assim, ao longo
de seus cinco anos, a produtora paulista deu luz a 18 longas-metragens, sendo alguns deles
bem ilustres, entre os quais podemos sublinhar
Tico-Tico no Fubá
(1952), de Adolfo Celi,
e
Sinhá Moça
(1953), de Tom Payne. Essas obras acabaram por lançar as bases de uma
indústria de cinema no Brasil com o surgimento, logo em sequência, de companhias como
a
Maristela
,
Multifilmes
e
Kino Filmes,
que tentaram, claramente, surfar na onda da
Vera
Cruz
.
Num curto espaço de tempo, entre 1949 a 1954, suas produções dinamizaram a
arte, assim como as tornaram imprescindíveis para suscitar outros desafios. [...]
A suntuosidade com que a História da Companhia foi construída nos revelam uma
série de temas presentes naquela conjuntura, assim como expôs os aspectos
dissonantes, distópicos e, concomitantemente, importantes, uma vez que seu
legado nuança e sedimenta de maneira substanciosa um capítulo de nossa
história cultural (SILVA, 2020, p. 105).
Encaminhando-me para a conclusão, gostaria de reiterar que, como o universo
sertanejo foi inserido na indústria cinematográfica através da iniciativa paulista, acabei me
deparando, não raras vezes, com uma clara intenção de marginalização do sertão.
Retomando Celia Aparecida Tolentino, entendo que a escolha da burguesia paulista por
representar o semiárido nordestino como seu avesso não se deu apenas por motivos
geográficos, mas também, estético-ideológicos: para veicular a imagem de um “Brasil
profundo” sem trazer danos à imagem de um Brasil moderno, como tanto se desejava ser,
era necessário marcar o primeiro como marginal, “como outro” (MORAES, 2011, p. 03)
temporal e espacialmente, e, portanto, distinto do segundo, que narrava. É justamente
nesse intuito que o narrador de
O cangaceiro
faz questão de anunciar que a história que
conta aconteceu em uma “época imprecisa, quando ainda havia cangaceiros”,
demarcando, com isso, seu senso de afastamento. E é exatamente por esclarecer esse e
outros importantes pontos da visão de mundo da
Vera Cruz
, que proponho a seguir, um
estudo mais atento sobre o filme.
[...] Em
O cangaceiro
, o sertão é o mundo fora da história, depósito de uma
rusticidade quase selvagem que o progresso, vindo exclusivamente de fora, tende
a eliminar. Nesse mundo imobilizado, onde terra e homem se fundem num todo
regulado segundo leis da natureza, o cangaceiro é um dado, não é revolta. Como
dado, é indiscutível, o que resta é transformar as peculiaridades de seu
comportamento em espetáculo. Dele distante, o narrador procura marcar o
abismo que os separa, pois faz questão de se instalar do lado de cá, no terreno da
história, num presente que é civilizado por oposição a esse passado pitoresco,
mas definitivamente extinto (XAVIER, 1983, p. 124-125).
Pois bem, visto por cerca de 10 milhões de brasileiros no ano em que foi lançado, o
que o faz dele ainda hoje uma das bilheterias mais expressivas do cinema nacional
(PEREIRA, 2016, p. 289), distribuído internacionalmente pela
Columbia Pictures
,
alcançando uma média de 80 países (PEREIRA, 2016, p. 291), aclamado pela crítica
especializada da época, em veículos como
O Globo
e
Manchete
(PEREIRA, 2016, p. 290),
e
laureado pelo júri do VI Festival de
Cannes
com uma premiação criada especialmente em
sua menção, o Prêmio Internacional de Filme de Aventuras,
O cangaceiro
ostenta, como
poucos, um lugar de marco na história do cinema brasileiro.
Assim sendo, essa obra icônica, na medida em que acabou por moldar todo um
subgênero, foi responsável por influenciar diversos títulos e autores que o sucederam,
fosse no eixo paulista no qual se insere, com obras como
Da terra nasce o ódio
(1954), de
Antoninho Hossri, e
Dioguinho
(1957), de Carlos Coimbra, fosse no chamado ciclo dos
nordesterns
de êxitos” da década seguinte, através de títulos como
A morte comanda o
cangaço
(1960),
e
Lampião, rei do cangaço
(1963), também de Coimbra, ou fosse mais de
vinte anos depois, já no
“western
feijoada” de obras como
A filha do padre
(1975), de Tony
Vieira, e
Menino da Porteira
(1977), de Jeremias Moreira Filho, apenas para citar alguns
(PEREIRA, 2016, p. 290).
Feitas as apresentações, vamos então a algumas considerações. Para início de
conversa, é imperativo reiterar que a obra parte de um mote evidente: barbárie
versus
civilidade. Evidente porque essa dicotomia está presente o tempo todo, desde o
argumento do roteiro até a caracterização das personagens; assim, damos de cara com ela
logo na primeira sequência quando, após assistirmos no primeiro plano um bando de
cangaceiros recortados em sombra marchar sobre cavalos, como mandam os
cowboys
americanos, somos apresentados ao protagonista do filme e chefe do grupo Galdino
(Milton Ribeiro), através daquela célebre frase que fizemos questão de evocar logo no
começo do texto. Portanto, importante retomar, esse sertão que se anuncia aqui não
pertence aos domínios do Estado brasileiro, longe disso, parece entregue a sua própria
sorte.
E não para por aí, tal dicotomia ganha forma na medida em que se desenrola o
conflito base do roteiro que, mais uma vez, como manda
Hollywood
, estrutura-se em uma
narrativa perfeitamente dividida em três atos: após invadirem uma pacata vila, com
bestialidade e habilidade assustadoras, os cangaceiros acabam por raptar uma professora,
Olívia (Marisa Prado), que, enquanto signo da educação, torna-se motivo de disputa e
motor da trama, daí em diante. Temos, então, o primeiro ponto de virada: o sequestro
acaba por desencadear consequências irreversíveis para o bando, uma vez que um dos
subalternos, Teodoro (Alberto Ruschel), revolta-se contra o chefe a favor da boa moça.
Estamos em frente de uma oposição, marcada e aparentemente incontornável,
entre o indelicado líder e o seu simpático subordinado que, apesar de embrutecido pela
caracterização, parece suavizar-se pela delicadeza da professora, chegando ao ponto,
inclusive, de se apaixonar por ela, como manda o melodrama. de se atentar aqui ao
valor simbólico dessa tensão, que parece ter sido mais uma maneira que o roteiro
encontrou para dramatizar, adivinhem, aquela mesma velha dicotomia: ao se envolver com
a professora, Teodoro demonstra alguma sensibilidade à civilidade que ela encerra em si,
enquanto que Galdino, ao desprezá-la, apenas reitera sua rusticidade.
Tudo isso culmina, como não poderia deixar de ser, em um duelo final, um típico, e
um tanto quanto batido, confronto entre “bem e mal”. Após uma perseguição, bastante
desritmada, os dois cangaceiros digladiam entre si, com direito a uma boa “saraivada de
balas”, um verdadeiro bangue-bangue, como mandam os
westerns
; até que, não para nossa
surpresa, o chefe leva a melhor, mas não por mérito, pelo contrário, ele mata seu
adversário pelas costas, num gesto sádico, escancarando sua completa ausência de
caráter.
Mas não se assustem, se a incivilidade reina e ri por último é porque assim quis a
aventura a que se propõe a história. No mais, se o conteúdo é de violência, a plástica é de
cinema,
hollywoodiano
, polido e romântico, seja na música do dinamarquês Eric
Rasmussen, na fotografia do inglês Chick Fowle, ou na montagem do iugoslavo Oswald
Hafenrichter, o que causa, inevitavelmente, um estranhamento. Não se pretende
desenvolver aqui, quaisquer debates sociais (SILVA, 2020, p. 43), nem mesmo sobre o
cangaço que, apesar da aparente importância, anunciada desde o título, é utilizado pelo
diretor como um mero adereço em meio a paisagem fixa, como um pano de fundo, como
uma forma fácil, para não dizer óbvia, de se adaptar os
cowboys
ao Brasil.
Sem ter entendido o romance do cangaço e sem ter interpretado o sentido dos
romances populares nordestinos, Lima Barreto criou um drama de aventuras
convencional e psicologicamente primário, ilustrado pelas místicas figuras de
chapéus de couro, estrelas de prata e crueldade cômicas. O cangaço, como
fenômeno de rebeldia místico-anárquica surgido do sistema latifundiário
nordestino, agravado pelas secas, não era situado. Uma estória do tempo que
havia cangaceiros, uma fábula romântica de exaltação à terra (ROCHA, 1963, p.
91).
O interesse dos realizadores parece se limitar, portanto, a encenar os sertões
através dos moldes do faroeste, como se isso fosse o suficiente. O que explica, quiçá, por
que o filme, apesar de ter influenciado inúmeros outros, como fizemos questão de
sublinhar acima, venha envelhecendo tão mal. A representação do sertão e dos sertanejos
é assustadoramente problemática (PEREIRA, 2016, p. 289) aqui porque prioriza a fórmula
diante da qual se ajoelha em detrimento da realidade sobre a qual se debruça.
Conclusão
A década de 1950 o inaugurou a produção cinematográfica de caráter
industrial no Brasil como introduziu o sertão nordestino ao cinema comercial. Nesse
contexto, sobressai-se a experiência da
Vera Cruz
e a realização de
O cangaceiro
,
projeto
que deu origem a um subgênero abrasileirado do
western
norte-americano, mais tarde
chamado pela crítica de
nordestern
. Em conjunção com o modelo importado dos EUA, a
representação sertaneja desse momento também foi bastante influenciada pela literatura
de cordel e pelo fenômeno do cangaço, o que acabou pintando um Nordeste encantado,
onde cavaleiros românticos, às vezes bandidos, às vezes heróis, mas geralmente
bestializados, bandeiam por terras exuberantes repletas de aventuras e de mazelas.
Isto posto, podemos concluir que a
Vera Cruz
pavimentou uma paisagem sertaneja
imóvel que tem como chão a “incivilização”, um mal perverso que brutaliza os que ali
vivem, como única forma de sobrevivência. Essa imagem dos interiores sertanejos e de
seus sujeitos, apesar de não ter sido fecundada, foi difundida pela empreitada paulista em
escalas jamais vistas até então, para, daí em diante, seja através do revisionismo do cinema
novo, seja através do saudosismo de parte do cinema contemporâneo, voltar à tona para
atormentar a nossa dignidade, destarte, é necessário confrontá-la.
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