Lygia Fagundes Telles: vida, obra e legado para a Literatura Brasileira
Maria Fernanda Silva Dias*
https://orcid.org/0000-0003-1390-0705
Quantas palavras cabem em uma vida? Quanta vida está contida em uma palavra?
Assim como afirma Candido (1995), ninguém é capaz de viver sem adentrar em um
universo fabulado e foi dessa maneira que Lygia Fagundes Telles viveu seus noventa e
oito anos: imersa nas palavras e no mundo da ficção. Nessas páginas, percorremos os
passos da autora, reunindo dados de sua vida e obra como forma de manter viva sua
memória.
Filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura,
Lygia Fagundes Telles nasceu no dia 19 de abril de 1923, em São Paulo. Sendo o pai
delegado e promotor público, Lygia viveu em diversas cidades no interior de São Paulo
como Sertãozinho, Apiaí, Descalvado, Areias e Itatinga. Em 1938, aos 15 anos, publicou
seu primeiro livro de contos intitulado
Porão e Sobrado
, considerado posteriormente
pela autora como uma obra ‘ginasial’.
Ao finalizar o curso fundamental, em 1939, ingressou na Escola Superior de
Educação Física, em 1940. No mesmo ano, preparou-se para entrar na Faculdade de
Direito do Largo do São Francisco, cujos estudos foram iniciados em 1941. Lygia era uma
entre as seis mulheres de sua turma de quase duzentos homens e o ambiente era
imbuído da velha mentalidade sobre o ‘lugar da mulher’. Segundo ela, perguntavam-lhe
*Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e mestranda na Universidade Estadual
de Maringá (UEM), na linha de pesquisa de Literatura e Construção de Identidades.
com tom irônico o que ela fazia naquele lugar, se iria se casar e ela, sempre bem-
humorada, respondia “Casar também, por que não?” (TELLES, 2008, online).
Nesse período, fez parte da Academia de Letras da Faculdade, colaborou com os
jornais
Arcádia
e
A balança
, trabalhou como assistente do Departamento Agrícola do
Estado de São Paulo e concluiu seu curso de Educação sica. Em 1944, lançou sua
segunda obra de contos
Praia viva
, que é igualmente considerada uma obra ‘ginasial’ pela
autora. Seu terceiro livro de contos foi publicado após cinco anos, em 1949, com o tulo
O cacto vermelho
. Em 1950, casou-se com Goffredo da Silva Telles Jr., com quem teve
seu único filho Goffredo da Silva Telles, nascido em 1954.
Apesar de sua formação acadêmica em Direito e Educação Física, Lygia Fagundes
Telles sempre guardou um espaço especial para o ofício da escrita. Sua imaginação para
criar histórias surgiu quando era criança, muito influenciada por suas cuidadoras que
contavam causos que depois eram replicados à sua maneira para os colegas da escola.
Seu primeiro romance
Ciranda de Pedra
, foi publicado em 1954 e considerado por
Antonio Candido a obra em que Lygia atinge seu amadurecimento literário. Em 1958,
publicou o livro de contos intitulado
Histórias do desencontro
, que ganhou o prêmio do
Instituto Nacional do Livro. Seu segundo romance
Verão no aquário
foi publicado em
1963 e ganhou o prêmio Jabuti. Nesse mesmo ano, passou a viver com seu segundo
esposo Paulo Emílio Salles Gomes. Conciliando sua produção literária, Lygia trabalhou
como Procuradora do Instituto da Previdência do Estado de São Paulo, de 1961 até 1991,
quando se aposentou.
Sua bibliografia é também composta por obras como
Histórias escolhidas
e
O
jardim selvagem
, publicadas em 1964;
Antes do baile verde
(1970);
As meninas
(1973), seu
terceiro romance que foi contemplado com os prêmios Coelho Neto, da Academia
Brasileira de Letras; Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e Ficção, da Associação
Paulista dos Críticos de Arte;
Seminário dos ratos
(1977), premiado na categoria
Pen Club
do Brasil;
Filhos pródigos
(1978), depois republicado com o nome
A estrutura da bolha de
sabão
;
A disciplina do amor
(1980), que recebeu o prêmio Jabuti e APCA;
Mistérios
(1981),
coletânea de contos fantásticos;
As horas nuas
(1989), seu último romance;
A noite
escura e mais eu
(1995), contemplado com o prêmio Jabuti;
Invenção da memória
(2000);
Durante aquele estranho chá
(2002);
Passaporte para a China
(2011);
Um coração
ardente
e
O segredo
(2012).
Sua produção de fôlego e seu posicionamento perante a sociedade contribuíram
para que ela se firmasse no cenário literário e fosse considerada, ainda em vida, como a
Dama da Literatura Brasileira. Em 1985, foi eleita para ocupar a 16º cadeira da Academia
Brasileira de Letras, tomando posse apenas em 1987. Além disso, sua consagração se
realizou com o Prêmio Camões, importante premiação para escritores e escritoras de
Língua Portuguesa, recebido em 2005 pelo conjunto de sua obra.
Seus textos têm grande destaque para os contos. Segundo a autora, esse gênero
“é uma forma arrebatadora de sedução. É como um condenado à morte, que precisa
aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo” (TELLES,
1998, p. 29). E não se pode homenagear Lygia Fagundes Telles sem adentrar, ainda que
de maneira pontual, em sua obra. Dessa forma, entre um vasto número de títulos em sua
bibliografia, destaco, sem nenhuma pretensão de esgotar as possibilidades de análise e
interpretações, mas como forma de apresentação, o conto
Antes do baile verde
, inserido
no livro homônimo.
A obra, que recebeu o Primeiro Prêmio no Concurso Internacional de Escritoras,
na França, é composta por um clima ambíguo uma vez que é carnaval e as duas
personagens Tatisa e Lu se preparam para a festa. Por outro lado, o pai de Tatisa se
encontra debilitado na cama e, segundo a empregada Lu, está morrendo. O clima de
tensão paira ao longo de toda narrativa visto que existe uma certa dúvida, que aparenta
ser mais moral do que pessoal, entorno da filha: ir ao baile ou ficar com o pai? Assim,
enquanto se arruma, ela tenta se conformar com a situação como forma de não carregar
essa responsabilidade.
Outro elemento importante dentro da narrativa e que corrobora a dualidade do
texto é o significado da cor verde. Tatisa se arruma para um baile verde e sua roupa, seu
cabelo, suas unhas e seus acessórios são da mesma cor. O verde es ligado, no
imaginário social, à esperança, à saúde e à vitalidade. Em contra partida, o próprio clima
da casa é sufocante, o homem do quarto ao lado pode estar morto, o calor é intenso e o
dilema se faz presente. O final, como característico da obra de Lygia Fagundes Telles,
não tem uma resolução, sendo uma incógnita a real condição do homem uma vez que as
duas mulheres saem da casa e não têm coragem de ir até o quarto. A autora afirma que
“nesse conto o desejo e a alegria são as perturbações que prevalecem quando ambas
fogem da morte para a festa lá fora” (2008, online).
O romance
As meninas
é outro texto de grande relevância na obra de Lygia
Fagundes Telles uma vez que possui um teor de denúncia social, além do trabalho
estrutural da narrativa. As jovens Lorena, Lia e Ana Clara vivem no pensionato Nossa
Senhora de Fátima, cada uma com uma forma de vida. O enredo se passa no ano de 1973,
auge da ditadura militar e pode-se visualizar a dualidade desse período, ou seja, o
opressor e o oprimido, por meio das personagens Lorena e Lia. A primeira é apática as
questões sociais e se interessa apenas por sua vida e seus desejos. Lia representa a
militância que buscava subverter a ordem daquele período.
Lygia ao compartilhar sua opinião em relação à essa obra afirma: E como eu
poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970? Somos testemunhas e
participantes deste tempo e desta sociedade com todos os seus vícios. E raras virtudes”
(TELLES, 2009, p. 298). Assim, é evidente que a autora se utiliza da voz das meninas
para denunciar as mazelas da sociedade da época, viabilizando uma relação direta entre
a ficção e o real.
Ao ser questionada se a literatura pode melhorar as pessoas, Lygia responde:
“Pode melhorar, sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura através
do sonho. [...] É uma forma de amor. Acho que é isso. No fundo a literatura é uma forma
de amor (TELLES, 1998, p. 43). Assim, Lygia pôde contribuir ao longo de sua vida para
que pessoas entrassem em contato com sua literatura e seu universo fabulado e
realizou seu ofício de forma singular. Retomando seu conto
Os objetos
, quando a
personagem afirma que Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que
começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O
cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe [...] (TELLES,
2018b, p. 18). Portanto, a palavra só tem sentido quando lida, a Literatura só é Literatura
quando sentida e, agora, Lygia vive porque sua obra vive e reverbera dentro de cada um
que se dispõe a mergulhar em seu universo.
Referências
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995.
TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Caderno de Literatura Brasileira, São
Paulo, v.5, p. 27- 43, março, 1998.
TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. In: Os Contos. São Paulo: Companhia da
Letras, 2018.
TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Telles: entrevista. Revista brasileira de
psicanálise. São Paulo, v. 42, n. 4, p. 17-20, dez. 2008. Disponível em: l1nq.com/qCahU.
Acessos em: 23 de maio 2022.
TELLES, Lygia Fagundes. Os Objetos. In: Os Contos. São Paulo: Companhia da Letras,
2018b.