pelas críticas evidentes, direcionadas ao comunismo soviético (socialismo real), mas
também pela apropriação e instrumentalização de seus textos durante a Guerra Fria (1947-
1991), fato que obscureceu, sob certa medida, suas críticas ao capitalismo, ao colonialismo
britânico, e seu entendimento de que o fascismo é um desdobramento desses fenômenos.
Se os comunistas ortodoxos sempre o viram com desconfiança e mesmo antipatia
por suas críticas ao stalinismo, de forma escrachada na alegórica novela
A
revolução dos bichos
e, em clave mais circunspecta, no distópico
1984
, os
conservadores frequentemente o usaram
pro domo
sua, menosprezando os
elementos que na composição daquelas duas obras eram frutos da convivência
do autor com o colonialismo britânico na Índia e o
modus operandi
do serviço
secreto inglês na Ásia e África. No auge da Guerra Fria (de resto, uma expressão
atribuída a Orwell), os reaças mais inescrupulosos do lado americano lhe
ergueram um pedestal.
O primeiro abuso da direita foi a compra secreta dos direitos de
A revolução dos
bichos
pelo agente da CIA Howard Hunt para produção de um filme de animação,
pouco depois da morte de Orwell. Hunt, que duas décadas depois seria uma
figura-chave no escândalo Watergate, adulterou o final da história,
acrescentando-lhe um apócrifo
happy end
e reduzindo a novela a uma peça de
propaganda anticomunista, que rodou o mundo sob os auspícios do
Departamento de Estado americano. (AUGUSTO, 2017, p. 11/12).
Vários dos artigos jornalísticos de Orwell tratam do fascismo, nazismo, comunismo,
autoritarismo e do imperialismo, abordando a questão do poder e do exercício político da
autoridade, daí sua denúncia da hipocrisia das nações que se opunham ao fascismo, ao
mesmo tempo que oprimiam e exploravam as populações na Ásia e na África, rotuladas
como raças submissas. A experiência como agente policial do Império Britânico na
Birmânia – cargo que renunciou para ser escritor – permite que Orwell conheça de perto
a opressão do imperialismo:
Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja
capaz de expressar. Em um emprego como aquele vê-se de perto o
trabalho sujo do império. Os infelizes que se comprimiam nas fétidas celas
das prisões, os rotos pardos e assustados condenados a longo prazo, os
traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambu –
tudo isso me oprimia com uma sensação de culpa insuportável. (ORWELL,
2005, p. 61).
Com efeito, como aponta Domenico Losurdo (2015), o pensamento liberal excluía
das suas prerrogativas a maior parcela da humanidade: os escravos, os povos coloniais, e
os proletários (
working slave people
), as massas de desvalidos sobre as quais Orwell tanto
escreveu. Nesse sentido, o liberalismo clássico não apenas legitimou o imperialismo nas
colônias, mas, também, a partir de critérios raciais e civilizacionais, justificava a
exploração econômica, necessariamente vinculada ao
status
jurídico formal dos homens
livres (proprietários):
Locke não tem dificuldades em reconhecer que “a maior parte da humanidade” é
“escravizada” (
enslaved
) por suas condições materiais de vida; por sua vez,
Mandeville define “a parte mais fraca e pobre da nação”
the working slave people
,
destinado sempre a um “trabalho imundo e similar àquele do escravo” (
dirty
slaving
): obviamente, não faz sentido conceder a esses escravos ou semiescravos
não só direitos políticos, mas tampouco a instrução. (LOSURDO, 2015, p. 48).