VASCONCELOS, Éderson José de*
https://orcid.org/0000-0002-7960-3060
LANZIERI JÚNIOR, Carlile.
Cavaleiro de Cola, Papel e Plástico
: sobre os usos do passado
medieval na contemporaneidade. Campinas: D7, 2021.
Recebido em: 03/06/2022
Aprovado em: 25/08/2022
Segundo Febvre, a “história era filha de seu tempo”, o que demostrava a
intenção do grupo de problematizar o próprio “fazer histórico” e sua capacidade
de observar. Cada época elenca novos temas, no fundo, falam mais de suas
próprias inquietações e convicções do que de tempo memoráveis, cuja lógica
pode ser descoberta (BLOCH, 2020, p. 7).
Carlile Lanzieri Júnior é professor do departamento de História e da pós-graduação
em História na Universidade Federal de Mato Grosso desde 2013. O historiador é graduado
pela Universidade de Cataguases, possui mestrado em História pela Universidade Federal
do Espírito Santo (2007) e realizou o seu doutorado pela Universidade Federal Fluminense
(2013). Lanzieri Júnior é membro do Vivarium, Laboratório de Estudos da Antiguidade e do
Medievo, e também é coordenador dos grupos “Sociedade, Educação e Filosofia na Idade
Média” e “Redes de mestres e discípulos no renascimento do longo e amplo século XII”.
Seu atual projeto de pesquisa, “Os usos do passado e o papel do medievalista diante de
* Mestre em História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG) e atualmente é doutorando
em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail de contato:
ederson_vasconcelos@hotmail.com
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seus novos públicos”, busca o diálogo entre a história pública, a história global e o ensino
de história da Idade Média.
1
A obra que optamos por resenhar foi publicada em 2021, no entanto, a sua
elaboração começou em meados de 2018, tendo como contexto histórico o avanço da
direita no mundo. Esse desenvolvimento se torna evidente nos Estados Unidos após o
segundo ano de mandato de Donald Trump e, no Brasil, com a eleição do ex-militar e
defensor da ditadura militar Jair Messias Bolsonaro. Nessa conjuntura, podemos pensar o
grande aumento do uso da internet por grupos políticos, principalmente por aqueles
ligados à extrema direita, os quais apresentaram uma narrativa diatópica acerca do
período medieval para construir uma história que visa a confirmar os anseios direitistas
por uma sociedade branca, armamentista, masculina etc.
Em
Cavaleiro de Cola, Papel e Plástico: sobre os usos do passado medieval na
contemporaneidade
, Lanzieri Júnior dispõe os temas estudados da seguinte forma:
Introdução; Capítulo I - A alcateia negacionista e a mitologização do passado medieval:
palavras de medo e esperança; Capítulo II - Cavaleiros de cola, papel e plástico: histórias
conectadas de diferentes usos do passado medieval na contemporaneidade dentro e fora
do Brasil e seus possíveis impactos na formação do conhecimento histórico escolar;
Capítulo III - Ontem e hoje, o porta estandarte: reflexões finais sobre os usos do passado
medieval, a estética bolsonarista e os discursos recentes da direita brasileira; e, por último,
as Considerações Finais.
Na Introdução, o historiador expõe como o contexto histórico influenciou e
motivou o estudo sobre o uso da Idade Média por grupos da extrema direita brasileira e
mundial. Adentrando a pesquisa, no primeiro capítulo, Lanzieri Júnior nos mostra a
abordagem da Idade Média por esses grupos, utilizando de fontes como fotografias, vídeos
e apresentações do YouTube, além de trechos de outras redes sociais, como Twitter,
Facebook e Instagram, para comprovar como o período medieval passou a ser totalmente
descontextualizado por esse espectro político. Nesse sentido, percebemos uma
valorização do medievo pela direita, destacando-se um passado europeu e bélico.
No segundo capítulo, “Cavaleiros de cola, papel e plástico: histórias conectadas de
diferentes usos do passado medieval na contemporaneidade dentro e fora do Brasil e seus
possíveis impactos na formação do conhecimento histórico escolar”, talvez o de maior
relevância para a obra, o pesquisador nos apresenta alguns importantes conceitos e
interpretações históricas, como história pública, medievalismo (ALBUQUERQUE, 2019,
1
Informações retiradas de http://lattes.cnpq.br/4540469424960429. Acesso em: 29 jun. 2021.
p.37-38)
2
, neomedievalismo (MORAIS, 2021, p.210)
3
e “história global”. No entanto, o que
chama a atenção nessa segunda unidade são justamente os problemas de uma
representação da história sem um critério científico e metodológico, fazendo com que os
historiadores possam refletir sobre a sua função de pensar a história na
contemporaneidade.
No último capítulo, o historiador nos aponta como a história medieval também foi
utilizada pela direita em outros contextos históricos, ao comparar o estilo das narrativas
medievais adotadas pela extrema direita nos regimes autoritários europeus da década de
1930, como, por exemplo, o regime nazista. Nesse sentido, Lanzieri Júnior chama a atenção
para os problemas que essa construção da Idade Média pode gerar para o mundo
contemporâneo. Dessa forma, o objetivo da obra, segundo o autor:
Por rompantes de razão delirante e ética seletiva, como estudiosos da Idade
Média, percebemos uma crescente retomada do uso do passado medieval por
aqueles que adoram torturar e sacrificar a História nos recém-construídos
altares da pós-verdade, da direita à esquerda do campo político. Como sabemos,
desde pelo menos o século XV, os usos referenciais do medievo em contextos a
ele posteriores são conhecidos e praticados. Contudo, na atualidade, em função
do distanciamento temporal e do desconhecimento acerca das inúmeras
pesquisas especializadas sobre o período histórico em questão por parte do
grande público, esses usos (e múltiplos abusos, evidentemente) ganharam novas
gradações e possibilidades quase que infindáveis de disseminação. E estas
servem para fomentar toda sorte de preconceitos e insanidade e encontraram na
organicidade invisível dos mencionados algoritmos a segurança para trafegar
em qualquer direção sem barreiras. Ninguém está livre desta ameaça. Ao que
parece, estamos apenas no começo dessa nova-velha história (LANZIERI JÚNIOR,
2021, p. 27).
O livro faz uma reflexão teórica e metodológica acerca de algumas compreensões
que vêm sendo debatidas e avaliadas na atualidade pela historiografia, como, por exemplo,
o medievalismo, o neomedievalismo e também a história global. Valendo-se de todas essas
perspectivas metodológicas, Lanzieri Júnior questiona em seu trabalho como a direita na
contemporaneidade utiliza do período medieval para constituir seu discurso, ou seja, o
historiador “busca analisar diferentes narrativas (escritas e visuais) que fizeram (ou ainda
fazem) uso do passado medieval para legitimar ideologias na modernidade e na
contemporaneidade”
(LANZIERI JÚNIOR, 2021, p. 28).
Assim, a obra
Cavaleiro de Cola,
2
O medievalismo seria ‘o contínuo processo de criar a Idade Média acarretando no estudo da Idade Média
não em si mesma, mas dos estudiosos, artistas e escritores que construíram a ideia de Idade Média que
herdamos’ [...] Medievalismo tornara-se, então, sinônimo de reutilização de motivos, temas, gêneros e topos
medievais na cultura pós-medieval, expressos na arquitetura, na arte, na teoria social e política, nos
romances, na poesia, no cinema, e nas expressões folclóricas. Mais tarde, a área se expandiria, abrangendo
jogos eletrônicos, mídias e outras formas de cultura pop(ular).
3
Insere-se no setor da indústria cultural de massas e entra de vez na lógica de consumo-produção pautada
pela relação mercadológica que é o próprio ao sistema capitalista. [...] o neomedievalismo o é, portanto,
um sonho da Idade Média, mas o sonho do medievalismo de outra pessoa. É o medievalismo dobrado sobre
si mesmo.
Papel e plástico
aborda a forma como o passado medieval é utilizado pela direita nos
Estados Unidos e no Brasil.
Para o desenvolvimento do estudo, o historiador utiliza fontes ligadas à internet,
como, por exemplo, canais de YouTube, páginas de Facebook e também grupos de
WhatsApp e Twitter. Todas as redes sociais estudadas por Lanzieri Júnior se relacionam
com o pensamento da direita cristã, nacionalista, defensora dos bons costumes,
armamentista e contrária às minorias. Assim sendo, por meio da análise do discurso
apresentado por esses grupos na internet, foi possível a concepção da obra pelo
historiador.
O alicerce metodológico do livro de Lanzieri Júnior é o “medievalismo”, que pode
ser compreendido como um campo de estudo que se concentra na recepção das
representações medievais, ou seja, é um processo contínuo para recriar, lembrar ou
reapropriar o passado medieval. Nesse sentido, podemos compreender que o conceito está
conectado com o uso da Idade Média em distintos aspectos midiáticos, como, por exemplo,
obras literárias, jogos de videogames, bandas de heavy metal, memes, seriados de
televisão, filmes e até mesmo produção de estudos sobre história. Outro aparato teórico
que embasa o estudo é a história global, no qual se estrutura a prerrogativa dos “4Cs”:
conectar, comparar, conceituar e contextualizar, que são perspectivas defendidas,
pensadas e organizadas pelo historiador Diego Olstein (2015, p. 51-58). Com elas, Lanzieri
Júnior busca entender o uso e a construção de novas narrativas acerca do período
medieval pela extrema direita.
O autor debate com uma historiografia que aborda o medievalismo e compreende
essas releituras na contemporaneidade. Ainda pouco debatidos no Brasil, esses estudos
vêm ganhando forma e impulso com as contribuições de Lanzieri Júnior para a
historiografia brasileira, uma vez que o autor apresenta temas e autores pouco estudados,
como Guillermo Altares, Juan Arias, Candace Barrington, Sebastian Conrad, Andrew B. R.
Elliott, Tommaso di Carpegno Falconieri, Ralph Keyes, Andrew Lych, Richard Utz, entre
outros autores e obras mais recentes. Sendo assim, trata-se de uma contribuição
importante para a compreensão das narrativas contemporâneas sobre o medievo, uma vez
que essa é a primeira obra que apresenta a perspectiva de uma história global, vinculada
às propostas do medievalismo e neomedievalismo.
Compreendemos que o trabalho de Carlile Lanzieri Júnior é uma grande
contribuição para a historiografia referente ao medievo no Brasil, pois o autor é pioneiro
em investigar a reelaboração do período medieval pela direita. O historiador apresenta
uma vasta historiografia que visa a abordar categorias referentes à história pública, ao
medievalismo e ao neomedievalismo. Ou seja, através dessa obra, podemos pensar
categorias históricas que ainda estão sendo debatidas e refletidas ao redor do mundo, de
modo que Lanzieri nior busca inserir a produção historiográfica brasileira nessa
discussão. Outro ponto que também destacamos é que esse estudo foi o primeiro em língua
portuguesa a debater essas categorias, abrindo, com isso, um leque de possibilidades
futuras para pesquisas interessadas nessas novas abordagens. Dessa forma,
Cavaleiro de
Cola, Papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade
torna-
se uma obra basilar para entender como a história da Idade Média vem sendo recontada,
reinterpretada e reescrita pelos espectros da direita na contemporaneidade.
Referências:
ALBUQUERQUE, Mauricio da Cunha.
Por Trás da Capa e a Espada
: O Neomedievalismo
em “Príncipe Valente” de Hal Foster (1939-1940). Dissertação (Mestrado em História) -
Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
BLOCH, Marc.
Apologia da História
: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar,
2020.
LANZIERI JÚNIOR, Carlile.
Cavaleiro de Cola, Papel e plástico
: sobre os usos do passado
medieval na contemporaneidade. Campinas: D7, 2021.
MORAIS, Luan L. O “mito” fundador luso-brasileiro: apropriações do passado medieval
europeu na construção de uma identidade nacional em “Brasil”, a última cruzada.
In
:
GATT, Pablo; CARNIEL, J.S.(Org.)
Estudos em Medievalismo
: sociedade, poder e cultura.
2ed. Vitória/ Vila Velha: LETAMIS (Laboratório de Estudos Tardo-Antigos e Medievais
Ibéricos e Safaradis), 2021, v.2, p.203-232.
OLSTEIN, Diego.
Thinking History Globally
. Londres: Palgreve Macmillan, 2015.