REGIANI, Álvaro Ribeiro*
https://orcid.org/0000-0003-0685-435X
RESUMO: O presente ensaio interpreta a
crítica feita ao imperialismo por Hannah
Arendt em
Origens do totalitarismo
. Nesta
análise histórica, fortemente influenciada
pela filosofia de Walter Benjamin, o
imperialismo foi descrito por Arendt por
meio dos pontos de ruptura que
desencadeou a despolitização dos Estados-
nações pela superfluidade do capital e dos
homens, sendo, novamente, utilizado pelo
movimento totalitário. Deste modo, foi
intuito deste trabalho desvelar o diálogo
que Arendt fez com Benjamin sobre a
fragmentação da tradição política e
interpretar as leituras que ambos fizeram
dos livros e dos contos de Franz Kafka que
serviram para os dois intelectuais como
metáfora para compreenderem a
intensificação do capitalismo em sua fase
imperialista e a ascensão totalitária.
PALAVRAS-CHAVE: Hannah Arendt;
Walter Benjamin; Imperialismo;
Capitalismo; Totalitarismo.
ABSTRACT: This essay interprets Hannah
Arendt’s criticism of imperialism in Origins
of Totalitarianism. Influenced by the
philosophy of Walter Benjamin, this
historical analysis of imperialism was in
Arendt’s work described through the
breaking points that triggered the
depoliticization of nation-states by the
superfluity of capital and men, being, again,
used by the totalitarian movement. The aim
of this work was to reveal the dialogue that
Arendt had with Benjamin about the
fragmentation of the political tradition and
to interpret the readings that both made of
both authors’ readings on Franz Kafka's
books and short stories that served for to
the two intellectuals as a metaphor to
understand the intensification of the
capitalism in its imperialist phase and the
totalitarian rise.
KEYWORDS: Hannah Arendt; Walter
Benjamin; Imperialism; Capitalism;
Totalitarianism.
Recebido em: 14/05/2022
Aprovado em: 11/10/2022
* Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO. Docente de História das Américas na
Universidade Estadual de Goiás - Campus Nordeste. E-mail: alvaro.regiani@ueg.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Quando Hannah Arendt chegou aos Estados Unidos, trouxe poucos pertences:
tinha vinte cinco dólares, algumas roupas e as “Teses sobre a filosofia de História”, na
época sem título, escrita pelo filósofo Walter Benjamin.
1
Os dois se conheceram em Paris
nos anos 30 e, logo, tornaram-se amigos por intermédio do primeiro marido de Arendt,
Günter Anders, que era primo de Benjamin. Arendt, Anders e Benjamin eram judeus
alemães e se somaram a outros trinta e sete mil refugiados na França. Embora não fosse
uma comunidade, todos os três viveram esse intenso cenário intelectual, conforme
descrito pela biógrafa Laure Adler:
Günther escreve muito. Hannah também. Qualquer outra atividade lhes é
recusada (...). Frequentam os romancistas Arnold Zweig e Alfred Döblin, e Walter
Benjamin é claro. Hannah revê Raymond Aron, assiste aos seminários de
Alexandre Kojève sobre Hegel, onde cruza com Sartre, tem longas conversas com
Jean Wahl, que introduziu o pensamento de Karl Jaspers na França, e com
Alexandre Koyré, que colabora com a revista
Recherches philosophiques
. Relê
Kant, anota Hegel, frequenta a Sorbonne (ADLER, 2014, p. 140).
Hannah Arendt “lê as páginas que Benjamin lhe dá, fragmentos do futuro
Passagens
e divide com ele vários interesses em comum em suas conversas (ADLER,
2014, p. 140). Na Alemanha, Walter Benjamin era ligado ao Instituto de Pesquisa Social que
anos mais tarde seria conhecido como a Escola de Frankfurt, composta pelos filósofos
Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Max Horkheimer. No exílio francês, Benjamin recebia
do Instituto para escrever artigos acadêmicos; esse dinheiro ajudava-o a se sustentar.
Frequentemente, Hannah Arendt se encontrava com Walter Benjamin no fim da
tarde na Biblioteca Nacional de Paris para discutir filosofia, literatura e, em particular, a
obra do escritor judeu-tcheco Franz Kafka (COELHO, 2020, p. 827). Kafka era para Arendt
o modelo de reflexão intelectual sobre o significado da origem” (ADLER, 2014, p. 137).
Enquanto que, para Benjamin, Kafka era um enigma que dispunha de uma capacidade rara
para criar parábolas. Mas ele não se esgota jamais naquilo que é interpretável, muito pelo
contrário, ele toma todas as precauções possíveis para dificultar a interpretação de seus
textos” (BENJAMIN, 2012, p. 161).
1
Em 1968, Hannah Arendt intitulou esse manuscrito de “Teses sobre a filosofia da História” (
Theses on the
philosophy of history
) de acordo com o texto recebido por Walter Benjamin. No Brasil, foi popularizado o
título Sobre o conceito de história”, dado por Theodor Adorno, que também recebeu de Benjamin uma
versão desse texto. no mínimo quatro versões das teses. Benjamin tinha o hábito de compartilhar seus
escritos com ligeiras diferenças entre seus amigos íntimos até ele definir a última. Mas não diferenças
substanciais no sentido textual pretendido por Benjamin. Para mais detalhes, ver: COELHO, Maria Francisca
Pinheiro. Hannah Arendt e Walter Benjamin: Eros da amizade e afinidades eletivas em tempos sombrios.
Revista Sociedade e Estado
. Volume 35, Número 3, setembro/dezembro 2020.
Entretanto, no dia três de setembro de 1939, a França e a Inglaterra declararam
guerra à Alemanha nazista e todos os refugiados alemães residentes em Paris tornaram-
se inimigos. Membros do governo francês afixaram vários avisos alertando os alemães que
deveriam ir para o Estádio Olímpico, localizado ao norte de Paris. Conforme narra Jeanne
Marie Gagnebin,
2
Walter Benjamin soube da destituição de sua cidadania alemã quando
não conseguiu se naturalizar francês. Ele e outros 4 mil homens foram ao Estádio e
ficaram confinados por duas semanas até serem encaminhados para outros campos
(GAGNEBIN, 1999, p. 205).
Walter Benjamin foi remanejado para o campo de trabalhadores voluntários em
Vernuche, perto de Nevers, com outros trezentos homens. Após dois meses preso, em
novembro, ele conseguiu a liberdade, muito por conta da ação de seus amigos franceses.
“Em 30 de novembro de 1939”, narra Jeanne Marie Gagnebin, “Benjamin escreve a
Horkheimer: “A Bibliothèque Nationale foi reaberta e conto retomar meus trabalhos depois
de ter me restabelecido minimamente e arrumando meus papéis” (GAGNEBIN, 1999, p.
206). Contudo, a estranha normalidade anterior ao três de setembro de 1939 não voltaria.
Em maio de 1940, tropas nazistas invadiram a França e Walter Benjamin fugiu de
Paris para Lourdes e, logo depois, chegou em Marselha. Com ajuda do filósofo Max
Horkheimer, que estava em Nova Iorque, Benjamin obteve um visto de trânsito através da
Espanha e de Portugal para embarcar rumo aos Estados Unidos, mas não conseguiu
prosseguir, ele não tinha “um documento essencial: um visto francês de saída da França”
(GAGNEBIN, 1999, p. 207). Sem muitas opções, Benjamin decidiu fugir pela fronteira
espanhola ao chegar em Port Bou e se juntar a um pequeno grupo de refugiados que
seguem a pé, mas ele não conseguiu ir até o final. Como Hannah Arendt narra décadas
depois:
O pequeno grupo de refugiados a que ele se juntara alcançou a cidade da
fronteira, para ali saber que a Espanha fechara suas fronteiras naquele mesmo
dia e que os oficiais não aceitavam vistos expedidos em Marselha. Supostamente
os refugiados teriam de voltar à França no dia seguinte, pelo mesmo caminho.
Durante a noite, Benjamin se matou, com o que os oficiais da fronteira,
impressionados com o suicídio, permitiram que seus companheiros seguissem até
Portugal. Poucas semanas depois, suspendeu-se novamente o embargo dos
vistos. Um dia antes, Benjamin teria passado sem nenhum problema; um dia
depois, as pessoas em Marselha saberiam que, de momento, era impossível
passar pela Espanha. Apenas naquele dia particular foi possível a catástrofe
(ARENDT, 2008a, p. 185).
2
O artigo de Jeanne Marie Gagnebin, “Anexo: Walter Benjamin, um “estrangeiro de nacionalidade
indeterminada, mas de origem alemã” foi publicado no suplemento Cultura do O Estado de São Paulo em 28
de fevereiro de 1999, utilizo aqui a versão ampliada do livro de SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.).
Leituras
de Walter Benjamin
. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999.
Alguns meses depois do suicídio de Walter Benjamin, Hannah Arendt também em
fuga, passou em Port Bou, para localizar o túmulo de Benjamin. Mas, em vão. Como dito,
ela carregou as “Teses sobre a filosofia da história” dadas por ele em setembro de 1940,
em Marselha, para ser entregue ao filósofo Theodor Adorno nos Estados Unidos, caso não
conseguisse fugir. Dias depois, após sua chegada em Nova Iorque, Arendt entregou os
manuscritos com suas anotações de punho para Adorno (COELHO, 2020, p. 819).
Tal qual o pedido de Kafka para o seu amigo Max Brod de queimar seus contos,
3
Walter Benjamin tinha o desejo “que o ensaio não fosse publicado, mas, ao receber o
manuscrito, Adorno decidiu que era importante demais para permanecer em mãos
privadas” (LILLA, 2017, p. 98). Duas décadas depois, Hannah Arendt colaborou com a
edição norte-americana do livro
Illuminations
de Walter Benjamin, no qual as teses e
outros artigos foram revistos por ela. Arendt elaborou a introdução, “Walter Benjamin:
1892-1940”,
4
um relato biográfico:
Walter Benjamin, um escritor judaico-alemão que era conhecido, mas não
famoso, como colaborador de revistas e seções literárias de jornais, durante
menos de dez anos antes da tomada de poder por Hitler e sua própria emigração.
Eram poucos os que ainda conheciam seu nome quando optou pela morte
naqueles primeiros dias do outono de 1940 que, para muitos de sua origem e
geração, marcaram o momento mais negro da guerra - a queda da França, a
ameaça à Inglaterra, o ainda intacto pacto Hitler-Stalin, cuja consequência mais
temida naquele momento era a íntima cooperação entre as duas forças policiais
secretas mais poderosas da Europa (ARENDT, 2008a, p. 165).
Neste sentido, pretende-se descrever a amizade entre Hannah Arendt e Walter
Benjamin, de modo a demonstrar o cotidiano dos apátridas em tempos sombrios, bem
como a elaboração da crítica da autora ao capitalismo. Ao centrar uma reflexão sobre o
totalitarismo, Arendt esmiuçou fenômenos anteriores, como o imperialismo e o racismo,
que guardam uma correspondência com a catástrofe do século XX.
3
No artigo “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte” (1934), Walter Benjamim
interpreta dois motivos para o pedido de Kafka a Max Brod; no segundo argumento, ele coloca que: “Esse
testamento, que nenhum estudo sobre Kafka pode ignorar, mostra que o autor não estava satisfeito com sua
obra; que ele considerava seus esforços malogrados; que ele se incluía a si próprio entre os que estavam
condenados ao fracasso. Fracassada foi sua grandiosa tentativa de transformar a literatura em doutrina,
devolvendo-lhe, sob a forma de parábolas, a consistência e a austeridade, as únicas que lhe convinham, à luz
da razão. Nenhum escritor seguiu tão rigorosamente o preceito de “não construir imagens”” (BENJAMIN,
2012, p. 167).
4
A introdução, “Walter Benjamin (1892-1940)”, também foi publicada na coletânea
Homens em tempos
sombrios
, emprego neste artigo esta última versão.
As parábolas de Kafka: Na colônia penal
Conforme descreveu Hannah Arendt, Walter Benjamin trabalhou para o Instituto
de Pesquisa Social para custear o seu sustento, mas “foi o marxista mais singular
produzido por esse movimento que, sabe Deus, teve seu quinhão completo de
excentricidades” (ARENDT, 2008a, p. 176). As
Teses
, em parte, refletiam a visão
catastrófica de Benjamin e a sua desilusão com o socialismo, com a crescente
burocratização da vida e, sobretudo, pela ascensão violenta de forças militares e policiais.
As
Teses
são, sobretudo, uma forma de resistência ao Estado de exceção:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção”
(“
Ausnahmezustand
”) em que vivemos é a regra. Precisamos construir um
conceito de história que corresponda a esse ensinamento. Perceberemos, assim,
que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; e com isso nossa
posição ficará melhor na luta contra o fascismo. Este se beneficia da
circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso,
considerado como uma norma histórica. - O assombro com o fato de que os
episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis,
não é um assombro
filosófico
. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que
a concepção de história em que se origina é insustentável (BENJAMIN, 2012, p.
254.
Tese 8
).
Contra essa ausência de conhecimento, Walter Benjamin pensou em um novo
gênero filosófico narrativo inspirado, como recorda Hannah Arendt, em Kafka. Mas, como
escreve Arendt, suas “inumeráveis tentativas de escrever
à la
Kafka” foram “melancólicos
fracassos” (ARENDT, 2008a, p. 167). Porém, o fato dele ter fracassado em sua
mimesis
não
limitou suas outras qualidades, como a de crítico literário inclassificável:
Benjamin tinha em mente o “campo de ruínas e a área de desastres” de sua
própria obra, ao escrever que “um entendimento da produção [de Kafka] envolve,
entre outras coisas, o simples reconhecimento de que ele foi um fracasso. O que
Benjamin disse de Kafka com talento tão único aplica-se igualmente a ele: “As
circunstâncias do seu fracasso não multifacetadas. Fica-se tentado a dizer: uma
vez certo do fracasso final, tudo se resolvia para ele
en route
como num sonho”
(ARENDT, 2008a, p. 183).
Ironicamente, Walter Benjamin atribui os motivos do fracasso a uma personagem
de um conto de fadas alemão, de
Des Knaben Wunderhorn
, o “Corcundinha”. Ele “fazia
com que os objetos pregassem suas peças travessas às crianças”, conforme a transcrição
feita por Hannah Arendt do livro de Benjamin,
Uma infância berlinense em torno de 1900
,
para explicar os efeitos causados pela personagem. “Foi ele que lhe passou uma rasteira
quando você caiu, e tirou o objeto de sua mão quando se quebrou” e, novamente citava,
que “depois a criança se tornou adulto que sabia o que a criança ainda ignorava, isto é,
que não foi ele que provocou “o homenzinho” ao olhá-lo” (ARENDT, 2008a, p. 171).
A caracterização do Corcundinha feita por Walter Benjamin seguia os passos
deixados pelo escritor tcheco, ao invés, dos temas recorrentes nos contos infantis, no qual
os poderes dos adultos são superados pela esperteza das crianças.
5
No artigo “Franz
Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte” (1934), Benjamin observa que a
maioria dos “trejeitos descritos” nos livros e contos kafkianos é a do homem cuja cabeça
se inclina profundamente sobre seu peito”. A gestualidade mínima e as marcas visam,
sobretudo, domesticar o corpo das personagens, como exemplificado no conto “Na colônia
penal”:
Na
Strafkolonie
(Colônia penal), os poderosos se servem de uma antiga máquina
que grava letras floreadas nas costas do culpado, aumentada as incisões, acumula
os ornamentos, até que suas costas se tornem clarividentes, possam elas próprias
decifrar as inscrições, de cujas letras ele deve deduzir o nome de sua culpa
desconhecida. São, portanto, as costas que importam. São elas que importam
para Kafka, desde muito tempo (BENJAMIN, 2011, p. 172).
Walter Benjamin cita um trecho do diário de Kafka, “para ficar tão pesado quando
possível, o que eu considero bom para o sono” para explicar que a postura caída tem uma
relação com o esquecer em sua dimensão política, tanto para a retórica da dominação
quanto para a resistência do oprimido. Após interpretar as parábolas de Kafka, Benjamin
volta ao conto popular do Corcundinha para explicar novamente a força do messiânico:
“Esse homenzinho é o habitante da vida desfigurada; desaparecerá quando chegar o
Messias, de quem um grande rabino disse que ele não quer mudar o mundo pela força, mas
apenas retificá-lo um pouco” (BENJAMIN, 2012, p. 172).
“É um aparelho singular”, escreve Kafka no primeiro parágrafo do conto “Na
colônia penal”, escrito em 1914 e publicado em 1919. Essa estória, com outras duas, “O
veredicto” e a “A metamorfose”, compunham a trilogia da punição. ‘Na colônia penal’, o
narrador detalha a visita de um Explorador a uma ilha-prisão, situada nos trópicos,
convidado para presenciar a execução de um Condenado por uma máquina: É uma
invenção do nosso antigo comandante”, disse o Oficial, outro personagem do conto,
“colaborei desde as primeiras experiências e participei de todos os trabalhos até a
5
Bruno Bettelheim, explica que: “Esse é o valor de vencer um gênio ou um gigante pela esperteza, enquanto
oposto a fazer o mesmo com um adulto. Se se diz à criança que ela pode levar a melhor sobre alguém como
seus pais, isto lhe parece realmente um pensamento agradável, mas ao mesmo tempo cria ansiedade porque,
se isto é possível, então a criança pode não estar adequadamente protegida por pessoas tão ingênuas”
(BETTELHEIM, 1992, p. 41).
conclusão”. No entanto, o mérito da invenção pertence totalmente a ele” (KAFKA, 2011, p.
29; pp. 31-32).
Nas falas do Oficial, o espectro fantasmagórico do Comandante sempre esteve
presente, sendo o inventor e o construtor do artefato de punição. Na precisa descrição do
funcionamento e da punição maquinal, o Oficial explica que um condenado é inserido
deitado e de bruços na máquina. O sistema aciona as engrenagens e uma peça-rastelo
composta por várias agulhas gravam nas costas do condenado a sentença. Como dito,
Walter Benjamin observa nesses detalhes elementos de uma trama maior nos contos de
Kafka.
Nas explicações dadas ao Explorador, a execução mecânica aconteceria por conta
da desobediência e insubordinação; no caso dessa punição, o Condenado havia dormido
em serviço: “Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater
continência diante da porta do capitão”, diz o Oficial e complementando, “dever sem
dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como
para servir (KAFKA, 2011, p. 38). Parte da punição, deveria ser gravada no corpo do
condenado com as palavras: “Honra teu superior” (KAFKA, 2011, p. 36).
No diálogo entre o Oficial e o Explorador, o primeiro revela a outra parte da
punição, o espetáculo público que durante o tempo do Comandante atraía multidões. Ele
também se orgulhava de ser o único defensor e herdeiro desses tempos e esclareceu o
desfecho punitivo na colônia penal, após o condenado sentir na própria carne as linhas
labirínticas da máquina, ele era ejetado para um fosso e logo “nós, eu e o soldado, o
enterramos” (KAFKA, 2011, p. 45).
Quem deliberava sobre os procedimentos judiciais era o Oficial; antes dele era o
Comandante. Apesar de reconhecer ter pouco conhecimento legal, ele detinha todo poder
jurídico, à exceção da sentença dada pela máquina. No processo descrito, não havia
intimação ou interrogatório do condenado porque isso segundo o Oficial “só teria surgido
confusão. Ele teria mentido, e se eu tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras
por outras e assim por diante” (KAFKA, 2011, p. 38).
No desenrolar do conto, o Oficial diz que não informa a sentença porque “seria
inútil anunciá-la. Ele deve experimentá-la na própria carne” (KAFKA, 2011, p. 36). O dever
e a punição seriam correspondentes tal qual a inumanidade do processo e da máquina que,
ambos, retiravam dos condenados tudo o que poderia pertencer a esfera dos negócios
humanos:
As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal.
Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado
com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio
segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais
podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além
disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos
não acontecia com o antigo comandante. O novo entretanto já mostrou vontade
de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo e vou
continuar conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão
simples como todos os outros (KAFKA, 2011, pp. 37-38).
No clímax da trama, o Oficial diz que o novo Comandante está opondo o seu poder
judicial e pede ajuda ao Explorador para interceder a outros oficiais em favor do
“maquinismo”. O Explorador recusa o pedido e, em resposta, o Oficial sorri”, falando:
“Então o procedimento não o convenceu” (KAFKA, 2011, p. 60). Ele liberta o Condenado e,
logo depois, mostra os desenhos esquemáticos do funcionamento do aparelho ao
Explorador e pede que ele leia sendo “justo”; afinal, a máquina e o processo funcionam
completamente sozinhos. Mas, quando o Explorador não é convencido por não entender
o sentido contido naquelas páginas, o Oficial retira o seu uniforme militar e entra na
máquina.
Convencido do processo judicial, o Oficial agiu segundo suas convicções, descreve
o narrador. Porém, em pleno funcionamento do artefato, o Explorador “havia fixado o
olhar durante algum tempo quando se lembrou de que uma engrenagem no desenhador
deveria ranger; mas estava tudo silencioso, não se ouvia o nimo zumbido”. Em pouco
tempo, “já não era mais uma tortura, como pretendia o oficial, e sim assassinato direto”, e
quando o Explorador e o Soldado foram averiguar o cadáver viram, o rosto do Oficial
atravessado por um grande estilete de ferro:
Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida
redenção; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não
encontrou; os lábios se comprimiam com força, os olhos abertos tinham uma
expressão de vida, o olhar era calmo e convicto, pela testa passava atravessada a
ponta do grande estilete de ferro (KAFKA, 2011, pp. 67-68).
Antes de embarcar e deixar a colônia-penal, o Explorador vai ao encontro da
sepultura do Oficial em uma Casa de chá, onde havia vários apoiadores do antigo
Comandante. E lá, em uma lápide, sob mesas e cadeiras, estava escrito:
“Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome,
cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual
o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará
seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai!” (KAFKA, 2011,
p. 69).
As alegorias contidas em Kafka e analisadas por Walter Benjamin sobre a culpa, a
punição, o progresso, as máquinas e a catástrofe, foram interpretadas por Hannah Arendt
como a “arte de tomar literalmente a linguagem proverbial e idiomática” que “fornecem a
chave de muitos “enigmas escrever uma prosa com uma proximidade tão singularmente
encantadora e encantada da realidade”. Mas, “para qualquer ponto da vida de Benjamin
que se olhe, encontrar-se-á o corcundinha” (ARENDT, 2008a, p. 182). Os sentidos que a
catástrofe toma em Kafka e em Benjamin são distintos, mas conectados ao que Arendt
percebeu da consciência histórica” do século XX, que “seus piores crimes” foram
causados pela “onda do futuro”:
Saiba que um homem apanhado na máquina burocrática já está condenado; e que
ninguém pode esperar justiça a partir dos procedimentos jurídicos em que a
interpretação da lei está vinculada à administração da ilegalidade, e em que a
inação crônica dos juristas é compensada por uma máquina burocrática cujo
automatismo insensato tem o privilégio da decisão final (ARENDT, 2008 p. 98).
O trecho acima foi extraído do artigo “Franz Kafka: uma reavaliação” (1944), o
primeiro artigo publicado na revista literária nova iorquina
Partisan Review
por Hannah
Arendt. Embora ela não tivesse analisado o conto “Na colônia penal” e, sim, os livros
O
processo
e
O Castelo
”, sua crítica também se estendia aos aspectos da punição
burocrática ou ao “motor da máquina em que estão presos os heróis kafkianos, insensível
e destrutiva, mas que funciona sem atrito” (ARENDT, 2008a, p. 103).
As personagens de Kafka, o metamorfoseado, o estrangeiro e o condenado
representam a estranheza cotidiana desses mundos literários, onde a punição é um
mecanismo funcional da sociedade que, segundo Hannah Arendt, veio a existir: “[e]
representa adequadamente a natureza verdadeira dessa coisa chamada burocracia a
substituição dos governos pela administração e das leis por decretos arbitrários”
(ARENDT, 2008a, p. 101).
Hannah Arendt afirma que Kafka quis destruir esse “mundo expondo sua estrutura
medonha e oculta, contrapondo realidade e simulação” (ARENDT, 2008a, p. 99). Mas “na
medida em que a vida é um declínio que leva à morte, ela pode ser prevista. Numa
sociedade em dissolução, que acompanha cegamente o curso natural da ruína, é possível
prever a catástrofe”. Essa interpretação, não do pesadelo kafkiano, mas também do
terror totalitário, serviu a Arendt para contrapor a ideia de progresso como uma lei
inevitável pela tese do “Anjo da História” de Walter Benjamin,
6
pelo qual “o homem se
torna um agente da lei natural da ruína” (ARENDT, 2008a, p. 101):
um quadro de Klee que se chama
Angelus Novus
. Nele está desenhado um
anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo de que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltado para o
passado. Onde
nós
vemos uma cadeia de acontecimentos,
ele
vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que o
anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas diante dele
cresce até o céu. É a essa tempestade que chamamos progresso (BENJAMIN,
2012, p. 245-246,
Tese 9
)
7
.
Walter Benjamin compreendia o progresso como catástrofe e contrapunha a ideia
de um contínuo histórico pela noção de rupturas. Essas reflexões influenciaram Hannah
Arendt em sua compreensão da fragmentação, tanto do tempo quanto da tradição. Mas o
uso da tese do “Anjo da história” no artigo, “Franz Kafka: uma reavaliação”, ainda servia
para ela explicar como Kafka contrapôs os sentidos desejados pelos românticos de “guiar
o mundo com leis humanas” em “tranquilidade e segurança” (ARENDT, 2008, p. 106).
Kafka, aos olhos de Hannah Arendt, tinha seus próprios objetivos,; um desses seria
construir um “mundo de acordo com as necessidades e dignidades humanas, um mundo
onde as ações do homem são determinadas por ele mesmo, guiado por leis humanas e não
por forças misteriosas que emanam do alto e das profundezas” (ARENDT, 2008, p. 107).
Tomando a interpretação que Jeanne Marie Gagnebin fez de Walter Benjamin, é seguro
afirmar que Arendt guardou muitas similaridades com a interpretação de Benjamin:
Já em 1931, depois em 1934, com seu grande ensaio sobre Kafka, Benjamin insistia
no fato de que essa “doença da tradição” era o cerne dessa obra. Uma tradição
não simplesmente ausente (o que poderia permitir sua substituição por outra),
mas, ao mesmo tempo, agonizante e todo-poderosa (GAGNEBIN, 1994, p. 77).
6
Hannah Arendt cita a tese do “Anjo da história” pelo menos três vezes: a primeira no artigo “Franz Kafka:
uma reavaliação”, em
Origens do totalitarismo
, e na introdução “Walter Benjamin (1892-1940)”, feita para o
livro
Iluminuras
, que também foi republicado em
Homens em tempos sombrios
. Nesta última interlocução
com Benjamin, ela explica que “O ‘anjo da história’, que não olha senão para o futuro pela tempestade do
progresso. Parece absurdo que tal pensamento algum dia tenha se preocupado com um processo coerente,
dialeticamente sensato, racionalmente explicável” (ARENDT, 2008a, p. 178).
7
Utilizo aqui a versão do livro
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura
para manter na íntegra a tese de Walter Benjamin, ligeiramente suprimida por Hannah Arendt no artigo
“Franz Kafka: Uma reavaliação”.
Para Jeanne Marie Gagnebin, a leitura de Walter Benjamin indica “o fim da tradição”
na obra de Kafka, mas “não afirma a necessidade de reencontrar qualquer ancoragem na
tranquilidade de um porto” (GAGNEBIN, 1994, p. 76). Hannah Arendt, em seu artigo,
afirma: “apenas o leitor que considera a vida, o mundo e o homem tão complicados” e
“deseja descobrir alguma verdade a respeito deles” recorre a “Kafka e a seus projetos, que
de vez em quando, numa página ou numa simples frase, expõe a estrutura desnudada dos
acontecimentos” (ARENDT, 2008, p. 104).
Neste sentido, a fragmentação que Walter Benjamin e Hannah Arendt observaram
na prosa de Kafka, representava o “desnudamento” dos acontecimentos e dos eventos
históricos. Tanto em Benjamin quanto em Arendt, a fragmentação é uma chave para
compreender a crítica à filosofia da História; em particular, ao
continuum
histórico
exemplificado na crença burguesa no progresso. Mas, embora próximas, as críticas ao
progresso na História são distintas: Benjamin entendia a fragmentação pelo prisma da
“constelação” e Arendt pelos “pontos de ruptura”:
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não
é transição, mas no qual o tempo para e se imobiliza. Porque esse conceito define
exatamente
aquele
presente em que ele escreve a história para sua própria
pessoa. O historicismo apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista
histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de
se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele
permanece senhor das suas forças, suficientemente viril para mandar pelos ares
o
continuum
da história (BENJAMIN, 2012, p. 250,
Tese 16
).
A análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo
indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o
ponto de ruptura. Mesmo quando aparentemente melhor preservada, o que
ocorre em certas partes do mundo, essa estrutura não autoriza antever a futura
evolução do que resta do século XX, nem fornece explicações adequadas aos seus
horrores (ARENDT, 2009b, p. 11).
A ideia de uma interrupção no tempo permitiria a emergência de outras histórias,
que o
continuum
histórico fundamenta uma forma de opressão em que o “inimigo não
tem cessado de vencer”. Para Walter Benjamin, a interrupção oscilava entre a
epistemologia e a ação política, de forma que “apropria-se de uma recordação, como ela
relampeja no momento de um perigo” para, assim, “arrancar da tradição” o “dom de
despertar no passado as centelhas da esperança” (BENJAMIN, 2012, p. 243-244,
Tese 6
).
De acordo com Jeanne Marie Gagnebin, Benjamin sugere que estes pontos isolados, os
fenômenos históricos, serão verdadeiramente salvos quando formarem uma
constelação, tais estrelas, perdidas na imensidão do céu, recebem um nome quando um
traçado comum as reúne” (GAGNEBIN, 1994, p. 18). Ou, conforme descrito em outra tese:
O historicismo contenta-se em estabelecer um nexo causal entre vários
momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso
um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador
consciente disso renuncia a desafiar entre os seus dedos os acontecimentos,
como as contas de um rosário. Ele capta a constelação em que sua própria época
entrou em contato como uma época anterior, perfeitamente determinada. Com
isso, ele funda um conceito de presente como um “tempo de agora” no qual se
infiltram estilhaços do messiânico (BENJAMIN, 2012, p. 252,
Apêndice A
).
Embora fundamentada na crítica de Walter Benjamin sobre o historicismo, a análise
ex post facto
de Hannah Arendt sobre um evento histórico compreende “os pontos de
rupturas” como um fenômeno político novo e não estilhaços do messiânico”. Em
Origens
do totalitarismo
, essas rupturas no
continuum
histórico e os “elementos” que emergiram
do subterrâneo na “cristalização” totalitária “não tem precedentes históricos”, e por isso
não poderiam ser interpretados por categorias históricas existentes. Para Arendt, assim
como para Benjamin, o fenômeno totalitário “destruiu a própria alternativa sobre a qual
se baseiam, na filosofia política, todas as definições da essência dos governos, isto é, a
alternativa entre o governo legal e o ilegal, entre o poder arbitrário e o poder legítimo”
(ARENDT, 2009b, p. 512).
Exemplificadas em Auschwitz e Treblinka, a ruptura irreconciliável deixada pelos
campos de concentração e pelas fábricas de morte levou Hannah Arendt a formular a tese
sobre a “novidade totalitária”. Alinhada a Walter Benjamin, Arendt contrapôs,
epistemologicamente, o nexo causal pela falsa sensação de segurança e de poder que
impedia a compreensão do mal totalitário como uma corrente subterrânea que usurpou a
dignidade da política.
“Uma sociedade muito parecida com a das formigas e das abelhas”
Durante a redação de
Origens do totalitarismo
, Hannah Arendt trabalhava em
vários empregos: além de jornalista, ela também era membro e pesquisadora da Comissão
para a Reconstrução Cultural Judaico Europeia. Arendt listava, junto a seus colaboradores,
catálogos de bibliotecas, escolas e museus por meio de entrevistas com sobreviventes e
com recém-chegados para “determinar como os tesouros espirituais dos judeus europeus
poderiam ser recuperados e receber novos lares”. Em uma de suas constatações,
coincidentemente, “os itens mais valiosos foram enviados a Berlim, para um departamento
especial da Gestapo sob a direção de Adolf Eichmann” (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 183).
Os relatos de sobreviventes e de recém-chegados se somaram às histórias perdidas
que Hannah Arendt presenciou na Europa. Mas essas histórias não narraram apenas a
catástrofe individual, e sim como um povo foi alvo de uma ação genocida que pretendia
retirá-los da História por meio de poços de esquecimento em deportações e fábricas de
morte. Mesmo nos Estados Unidos, poucos estavam dispostos a ouvir o que os refugiados
e os sobreviventes tinham a dizer sobre a situação europeia e preferiam desacreditar as
vítimas. Na análise do historiador Gérard Vincent:
Ao mencionar os campos de concentração, o que ocorre à mente é a palavra
“desumano”. No entanto, eles foram concebidos e realizados por homens. Outros
homens - uma pequena minoria de presos - conseguiram sobreviver e dar seu
testemunho. Os nazistas tinham evitado qualquer denominação precisa,
contentando-se com o termo vago de “solução final”, fundando um sistema
concentracionário sobre o segredo e fazendo de tudo para eliminar quaisquer
traços e vestígios, mas, por outro lado, impossibilitando a conspiração do
esquecimento. Desde muito tempo sabia-se que o inferno estava na terra.
Substituindo-se Deus, o Grande Inquisidor, antecipando o Juízo Final, condenava
o herege e o enviava ao carniceiro. Auschwitz, o Gulag, os “desaparecidos” da
América Latina são os últimos avatares de uma história de atrocidades que
prossegue em seu caminho trágico. Mas a ideocracia totalitária - para falar como
Martin Malia - parece-nos trazer algo de novo para a história da desumanização
que visa a despojar o homem daquilo que o constitui: sua identidade (VINCENT,
2009, p. 196).
A dificuldade de compreensão das mortes em fábricas que não concediam o “direito
à lembrança”, ratifica “o fato de que o indivíduo jamais existiu”, pois “os campos de
concentração, tomando a própria morte anônima” despojam o seu significado “uma vida
consumada” (ARENDT
apud
. VINCENT, 2009, p. 205). Por meio dessas constatações,
Hannah Arendt tentava demonstrar o ineditismo do Sistema Totalitário e distingui-lo de
outros fenômenos políticos e, assim, evitar a naturalização de um regime
concentracionário fundado na ausência de memória. Mas percebia que certos elementos,
as estruturas internas e ocultas, aproximavam-se do imperialismo europeu dos séculos
XIX e XX: “Ao final de uma ‘era imperialista’, estaríamos num estágio em que os nazistas
iriam parecer os toscos precursores de futuros métodos políticos” (ARENDT, 2008, p.
160).
O totalitarismo destroçou a ideia de humanidade, substituindo-a pelo racismo e
pelo amor à expansão, argumenta Hannah Arendt; assim, uma “raça superior” deveria
exterminar raças inferiores indignas” para que os mais aptos pudessem sobreviver. Ao
colocar essa interpretação no centro de
Origens do totalitarismo
, Arendt
faz uma análise
histórica do imperialismo e do racismo até chegar aos elementos cristalizados que
constituem a base da ideologia totalitária: os “massacres administrativos”, a
“desintegração do Estado-nação”, a aliança entre a “ralé e o capital”, a acumulação do
capital”, e, por fim, a “ideologia do progresso”.
Em diálogo com J. A. Hobson, Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin e Karl Marx,
Hannah Arendt faz uma interpretação histórica sobre como o imperialismo foi uma
contraposição aos guias seguros da tradição e do pensamento político, o que causou uma
primeira “ruptura” no “fluxo da história”:
É o período do Imperialismo, da quietude estagnante na Europa e dos
acontecimentos empolgantes na Ásia e na África. Certos aspectos fundamentais
dessa época assemelham-se tanto aos fenômenos totalitários do século XX que
se poderia considerar esse período como estágio preparatório para as catástrofes
vindouras. Por outro lado, sua calmaria faz com que pareça ainda parte integrante
do século XIX. Não podemos deixar de ver esse passado tão próximo e,
contudo, tão remoto com os olhos demasiado bem informados de quem
conhece o fim da estória e sabe que ele levou a uma interrupção quase completa
do fluxo da história, pelo menos no que diz respeito ao Ocidente, como a
conhecíamos havia mais de 2 mil anos (ARENDT, 2009b, p. 153).
Deflagrado por uma crise econômica de “superprodução de capital” que
acompanhou o “surgimento do dinheiro supérfluo”, Hannah Arendt entende que a força “é
a essência de toda a estrutura política” do imperialismo. Pelo qual, “o dinheiro podia,
finalmente, gerar dinheiro porque a força, em completo desrespeito às leis econômicas
e éticas , podia apoderar-se de riquezas”. Assim, ela conclui que a primeira consequência
da exportação do poder foi a estruturação dos instrumentos de violência do Estado, a
polícia e o Exército, pois os imperialistas desejavam apenas “a expansão do poder sem a
criação de um corpo político” (ARENDT, 2009b, pp. 166-167).
Essa despolitização era um elemento constitutivo da expansão ilimitada do capital
supérfluo, o que contrastava com qualquer estrutura, objetivo ou pensamento político
tradicional. O desenvolvimento de “forças estabilizadoras”, como as leis, direitos
individuais e coletivos, assim como, corpos políticos e sociais, não era uma meta no
imperialismo. Hannah Arendt ressalta que a destruição do espaço político se iniciou
quando os administradores do poder” nem ao menos “tentaram incorporar os territórios”
e os seus “sucessores totalitários”, “dissolveram e destruíram todas as estruturas
politicamente estabilizadas”, esvaziando qualquer traço da política, tornando-a supérflua
(ARENDT, 2009b, p. 167).
Além de definir a força como um elemento central na dominação imperialista,
Hannah Arendt explicava que por ter sido desencadeada por um “fator econômico”, o
imperialismo duraria porque foi o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não
o último estágio do capitalismo”. Ainda sobre este tópico, ela desvela que a essência da
administração burguesa foi a “expansão ilimitada” cuja consequência lógica é a destruição
de todas as comunidades socialmente dinâmicas, tanto dos povos conquistados quanto do
próprio conquistador” (ARENDT, 2009b, p. 167-168).
Na trajetória que faz do imperialismo, a soma dos estágios leva à emancipação
política da burguesia. Em um primeiro momento, através da aliança de burgueses com o
Estado para “confiar a proteção de sua propriedade”. No segundo, durante a era
imperialista, ela observa que alguns homens dessa classe não se importavam mais se
seriam “súditos numa monarquia ou cidadãos numa república”, pois “eram essencialmente
pessoas privadas” frente à política de Estado (ARENDT, 2009b, p. 168). Por fim, ela ainda
ressalta um terceiro momento decisivo, quando ocorre a aliança do grande capital com os
homens supérfluos, que, juntos, implodiram o Estado-nação:
O fato novo da era imperialista foi que essas duas forças supérfluas o capital
supérfluo e a mão-de-obra supérflua uniram-se e, juntos, abandonaram seus
países. O conceito de expansão, a exportação da força do governo e a anexação
de todo território em que cidadãos tivessem investido a sua riqueza ou seu
trabalho, parecia a única alternativa para as crescentes perdas econômicas e
demográficas. O imperialismo e a sua ideia de expansão ilimitada pareciam
oferecer um remédio permanente para um mal permanente (ARENDT, 2009b, p.
180).
Apesar de construir essa análise histórica e se cercar de grandes teóricos do
imperialismo, Hannah Arendt explica o amor à expansão por meio da filosofia moral de
Thomas Hobbes.
8
Para ela, Hobbes foi o “único grande filósofo de que a burguesia pode,
com direito e exclusividade, se orgulhar, embora os seus princípios não fossem
reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo”. Ainda segundo suas palavras,
ele pensou o homem burguês, “de início isolado” e de “acordo com a lei da oferta e da
procura”, para garantir, assim, o “controle que permite estabelecer os preços e regular a
oferta e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder” e “é esse
desejo e poder que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras
ambições, porquanto a riqueza, o conhecimento e a fama são as suas consequências”
(ARENDT, 2009b, p. 168-169).
Embora matize os aspectos da luta pelo poder da burguesia por meio de sua leitura
de Hobbes, Hannah Arendt insiste que o interesse central do filósofo foi o de “proteger os
interesses privados”. Entretanto, deve-se salientar na interpretação de Arendt que Hobbes
não era um imperialista ou defendia a suposta abolição das contradições entre os
interesses públicos e privados propagados pelo movimento totalitário. Feito essa ressalva,
ela percebe na filosofia moral de Hobbes, a desintegração dos interesses comuns por conta
8
Não é escopo deste trabalho analisar os acertos ou os erros na compreensão de Hannah Arendt sobre
Thomas Hobbes. Para uma análise mais detida sobre Hobbes, ver: KOSELLECK, Reinhart.
Crítica e Crise
:
Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de
Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.
da supervalorização do aspecto privado na política comunitária. Na luta pelo poder “todos
os homens são iguais” e cada um “tem suficiente potencialidade para matar um outro”,
mas a “igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança” e “daí a necessidade do
Estado” (ARENDT, 2009b, p. 169).
Tradicionalmente, se interpretam os temas políticos encontrados em Hobbes, como
a divisão social, a liberdade e a segurança no vínculo entre o indivíduo e o Estado, na
função soberana do Leviatã para regular os homens e na política como um exercício do
poder para, assim, manter uma ordem pública. Mas, aos olhos de Hannah Arendt, a
hipótese hobbesiana de apaziguamento dos conflitos civis pelo Estado não se concretiza,
pois o “interesse privado e o interesse público são a mesma coisa”. A filosofia hobbesiana
elevou a privatização do espaço público e o único resultado seria a “instabilidade da
comunidade”, ou seja, quando o homem não deve lealdade ao seu país se este for
derrotado, e é desculpado de qualquer traição caso venha a ser feito prisioneiro”
(ARENDT, 2009b, p. 169-170).
O conflito constante entre os indivíduos e a comunidade, mesmo pactuados em um
público com o mesmo “interesse comum”, teria sempre como resultado a “instabilidade”
por conta da “sede de poder”. A “segurança”, observa Hannah Arendt, é proporcionada
pela lei, que emana diretamente do monopólio da força do Estado” e a ordem instaurada
não é uma desinência política, mas sim um “cego conformismo” que “passa a representar
a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela” (ARENDT, 2009b, p. 170).
Deste modo, ficam claros os elementos que compõem a filosofia hobbesiana: a força como
substituto para a política, a obediência individual como representação da ordem e o pacto
social de privatização. Todos estes, somados, fortalecem a soberania Estatal e os
interesses burgueses:
Despojado de direitos políticos, o indivíduo, para quem a vida pública e oficial se
manifesta sob o disfarce da necessidade, adquire o novo e maior interesse por
sua vida privada e seu destino pessoal. Excluído da participação na gerência dos
negócios públicos que envolvem todos os cidadãos, o indivíduo perde tanto o
lugar a que tem direito na sociedade quanto a conexão natural com os seus
semelhantes. Agora, pode julgar sua vida privada individual comparando-a com
a dos outros, e suas relações com os companheiros dentro da sociedade tomam
a forma de concorrência. Numa sociedade de indivíduos, todos dotados pela
natureza de igual capacidade de força e igualmente protegidos uns dos outros
pelo Estado, que regula os negócios públicos e os problemas de convívio sob o
disfarce da necessidade, somente o acaso pode decidir quem vencerá (ARENDT,
2009b, p. 170-171).
Nesta interpretação, em um nível atomizado, a filosofia moral da futura sociedade
burguesa segue a lógica da competição com o claro objetivo de sucesso individual. Mas,
no nível geral, o acúmulo da propriedade e do capital gera um processo contínuo de
expansão, sendo necessária uma estrutura de “poder tão ilimitado” para a contínua
proteção da propriedade e do capital. Contudo, esta aparente contradição foi suavizada
pela feição ideológica do progresso, entendido por Hannah Arendt como o “único modo
de garantir a estabilidade das chamadas leis econômicas” e do “acúmulo de poder”
(ARENDT, 2009b, p. 172-173).
A noção de progresso no entendimento de Hannah Arendt funcionava tanto como
uma justificação quanto como uma legitimação do poder da burguesia e do imperialismo.
Como justificação, “culminava com a emancipação do homem”, mas, como legitimação de
classe para a manutenção do poder, “estava pronta a sacrificar tudo e todos a leis
históricas supostamente supra-humanas”. Em sua crítica à ideologia do progresso, Arendt
recorre, novamente, à alegoria do Anjo da História, de Walter Benjamin, tendo
acrescentado um ligeiro parágrafo de refutação ao marxismo:
“O que chamamos de progresso é [o] vento (...) [que] impele [o anjo da história]
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas enquanto o monte de
ruínas diante de si ergue-se até os céus”. Somente no sonho de Marx de uma
sociedade sem classes, que, nas palavras de Joyce, faria a humanidade despertar
do pesadelo da história, é que surge um vestígio último, embora utópico, do
conceito do século XVIII (ARENDT, 2009b, p. 173).
O que Hannah Arendt criticava era o “verdadeiro moto perpétuo” da ideologia do
progresso, entranhada no negociante de “mentalidade imperialista”. Ele, segundo Arendt,
“sabia que o poder organizado como finalidade em si geraria mais poder” e “quando o
acúmulo de poder atingiu seus naturais limites nacionais, a burguesia percebeu que
somente como uma ideologia de expansão e somente com um processo econômico que
refletisse o do acúmulo de poder seria possível colocar novamente o motor em
funcionamento”. Assim, a filosofia do poder se tornou a filosofia da elite, uma vez “que a
sede de poder só podia ser saciada pela destruição”. Mas não mais a nível nacional, e sim
em escala global:
[…] a condição humana e os limites do globo eram um sério obstáculo a um
processo que, de um lado, não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro
lado, podia provocar uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse
esses limites (ARENDT, 2009b, p. 173).
A noção de progresso na “História”, representada como um motor contínuo de
acumulação, não era entendida pela burguesia como catástrofe, mas como um processo
natural. Isto, aos olhos da autora, impedia a percepção dos pontos de ruptura gestados,
primeiramente, durante o imperialismo e, posteriormente, durante o totalitarismo. O viés
de Hannah Arendt sobre Hobbes também identifica um “rompimento” de sua filosofia com
a tradição do pensamento político ocidental quando ele defendeu a legitimidade da tirania:
Todo homem e todo pensamento que não é útil, e não se conforma ao objetivo final de
uma máquina cujo único fim é a geração e o acúmulo de poder, é um estorvo perigoso”
(ARENDT, 2009b, p. 174).
A qualificação de Hobbes como o filósofo moral da burguesia e da tirania como
fundamento político abria caminho para Hannah Arendt destacar os pontos de ruptura
instrumentalizados por essa classe. Por meio da análise de seus aspectos anti-
tradicionalistas, da ligação com a propriedade privada e dos efeitos da acumulação, ela
classificava as principais características da burguesia:
[...] a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que
concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza e
considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado
como simples instrumento de consumo. Contudo, a propriedade em si é sujeita
ao uso e ao consumo e, portanto, diminui constantemente. A forma mais radical
e a única segura de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e
com certeza aquilo que destruímos (ARENDT, 2009b, p. 174).
Em nível individual, o único limite para a burguesia seria a “morte”, pois, segundo
Hannah Arendt, “é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem
tornar-se um princípio político verdadeiramente válido”. De igual modo, no nível social, “a
propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade”
(ARENDT, 2009b, p. 175). Por essa perspectiva crítica, ela concluía que a finitude e os
limites do globo são os únicos obstáculos à expansão imperialista da burguesia. Mas
Arendt ainda pondera sobre outro elemento danoso da privatização política, ou seja, com
o caminhar do tempo, a expansão sem limites gera a superfluidade dos homens:
Os interesses privados, que, por sua própria natureza, são temporários, limitados
pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos
negócios públicos e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à
acumulação contínua. Isso parece criar uma sociedade muito parecida com a das
formigas e das abelhas, onde “o bem comum não difere do bem privado; e
naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram
o benefício comum” (ARENDT, 2009b, p. 175).
Mesmo não tendo retirado das fábulas de Kafka, “a sociedade muito parecida com
a das formigas e das abelhas” servia para Hannah Arendt explicar o modelo político-social
da burguesia em ascensão. A animalização ou desumanização geradas pela expansão
capitalista incide na indiferenciação das esferas privada e pública, o que, para Arendt,
tornaria a vida política enganosa. Mas, como:
[…] os homens não são formigas nem abelhas, tudo não passa de uma ilusão. A
vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a
totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma
qualidade nova pelo simples fato de serem somados” (ARENDT, 2009b, p. 175).
A suspeita de Hannah Arendt em relação à filosofia política da burguesia em
especial, o pensamento liberal , decorre da sua percepção que a política ocorre entre
indivíduos e em lugares onde um mundo comum pode ser construído. Desse modo, reduzir
os indivíduos a uma inserção no mercado consumidor ou compreendê-lo como um ente
obediente a um Estado impedem a compreensão da ação política feita pela ação humana:
Todos os chamados conceitos liberais de política (isto é, todas as noções políticas
pré-imperialistas da burguesia) como a concorrência sem limites, regulada por
um secreto equilíbrio que provém, de modo misterioso, da soma total das
atividades concorrentes; a busca de um “esclarecido interesse próprio” como
virtude política; o progresso limitado baseado na simples sucessão dos
acontecimentos m isto em comum: simplesmente adicionam vidas privadas
e padrões de conduta pessoais e apresentam o resultado como leis de história, de
economia ou de política. Mas os conceitos liberais, embora expressem a instintiva
suspeita da burguesia e a sua inata hostilidade com relação aos negócios públicos,
são apenas uma acomodação temporária entre os velhos padrões de cultura
ocidental e a crença da nova classe na propriedade como princípio dinâmico e
automotivo. Os velhos padrões cedem à medida que a riqueza, crescendo
automaticamente, passa realmente a substituir a ação política (ARENDT, 2009b,
p. 175).
Conclusão
Nessas passagens de
Origens do totalitarismo
, as análises de Hannah Arendt sobre
a destruição do Estado-nação pela expansão imperialista por meio da interpretação da
filosofia moral hobbesiana demonstram o surgimento de um “novo tipo de homemem um
“processo sem fim de “acumulação”. De fato, a interposição liberal como uma ação
política, aos olhos da autora, não impediria o processo contínuo de geração de poder”.
Bem como a aceitação da “tirania” como “estrutura política” burguesa não impediu o
imperialismo e o surgimento desse novo homem. De forma assertiva, ela defendia que:
[Hobbes] Previu como necessária a idolatria do poder que caracteriza esse novo
tipo humano, e pressentiu que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado de animal
sedento de poder, embora na verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas
as suas forças naturais, suas virtudes e vícios, e fizesse dele o pobre sujeitinho
manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que, longe de
lutar pelo poder, submete-se a qualquer governo existente e não mexe um dedo
nem mesmo quando o seu melhor amigo cai vítima de uma
raison d’état
incompreensível (ARENDT, 2009b, p. 175-176).
E concluía:
Assim, um
Commonwealth
baseado no poder acumulado e monopolizado de
todos os seus membros individuais torna a todos necessariamente impotentes,
privados de suas capacidades naturais e humanas. Degrada o indivíduo à
condição de peça insignificante na máquina de acumular poder, livre para
consolar-se, se quiser, com pensamentos sublimes a respeito do destino final
dessa máquina, construída de forma a ser capaz de devorar o mundo, se
simplesmente seguir a lei que lhe é inerente (ARENDT, 2009b, p. 176).
Posto desta forma, a análise sobre a “máquina de acumular poder” permite
compreender as várias camadas que levam à superfluidade dos homens e os pontos de
ruptura que possibilitaram sua ascensão: no progresso na história, na filosofia moral de
Hobbes, no labirinto burocrático, na expansão ilimitada do imperialismo, na
impossibilidade liberal de conter a desintegração da política, e, por fim, na usurpação da
ralé totalitária da dignidade do espaço comum. Todos esses elementos, explicam a
catástrofe no século XX que condenou milhões ao desterramento e outros milhões à
morte. Infelizmente, estes elementos ainda continuam presentes nas sociedades pós-
totalitárias e alguns continuam obscurecidos em nome do progresso.
Tal qual Walter Benjamin, Hannah Arendt reconhecia a importância da história, mas
como uma narração do passado e uma recordação para a conciliação e o perdão. O que
contrastava com visões vazias e homogêneas do progresso que, facilmente, poderiam ser
encontradas nas parábolas de Kafka. Para seu falecido amigo, Arendt deixou algumas
palavras no poema intitulado “W. B.”, escrito em 1943, não se sabe o dia nem o mês, mas
cujo significado realizou-se tantas vezes em sua escrita:
O crepúsculo voltará algum dia.
A noite descerá das estrelas.
Repousaremos nossos braços estendidos
Nas proximidades, nas distâncias.
Da escuridão soam suavemente
Pequenas melodias arcaicas. Ouvindo,
Vamos desapegar-nos,
Vamos finalmente romper as fileiras.
Vozes distantes, tristezas próximas.
Essas são as vozes e esses os mortos
A quem enviamos como mensageiros
Na frente, para levar-nos a sonolência
9
9
Utilizo a tradução do poema do livro de Laurie Adler,
Nos passos de Hannah Arendt
.
Referências
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Nos passos de Hannah Arendt
. Tradução Tatiana Salem Levy e Marcelo
Jacques. Rio de Janeiro: Record, 2014.
ARENDT, Hannah.
Compreender
: Formação, exílio e totalitarismo (ensaios). Tradução
Denise Bottman; Organização, introdução e notas Jerome Kohn. São Paulo: Companhia
das letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ARENDT, Hannah.
Homens em tempos sombrio
s. Tradução de Denise Bottann. São
Paulo: Companhia das letras, 2008a.
ARENDT, Hannah.
Origens do totalitarismo
. Tradução Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das letras, 2009b.
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Magia e técnica, arte e política
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cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin - 8ª Ed. revista.
São Paulo: Brasiliense, 2012 (Obras Escolhidas v.1).
BETTELHEIM, Bruno.
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Revista Sociedade e Estado
Volume 35,
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Anexo: Walter Benjamin, um “estrangeiro de nacionalidade
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(orgs.).
História da vida privada 5
: Da primeira Guerra a nossos dias. Tradução Denise
Bottmann; Dorothée de Bruchard, pósfacio. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth.
Por amor ao mundo
: A vida e a obra de Hannah Arendt.
Tradução Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.