RIBEIRO JÚNIOR, Antônio Carlos Araújo
https://orcid.org/0000-0002-0971-4339
RUIZ, Renan Branco
https://orcid.org/0000-0002-0778-8895
RESUMO: No auge dos Anos de Chumbo (1968-
1974), como ocorreu a tantos músicos, a
pianista Tânia Maria precisou deixar o Brasil.
Orientados por Rollemberg (1999) e Muller
(2014), entre outros autores, analisamos a
experiência de autoexílio da artista,
procurando perceber o impacto do degredo em
sua carreira. Examinamos que vários fatores
inviabilizaram a vida musical de Tânia no país,
e a ditadura apenas acirrou estes problemas.
Diante da obstrução da liberdade criativa e do
insucesso de seu trabalho no Brasil, a pianista
resolveu buscar sua realização na cena global
de jazz. Nesse processo de desinstalação
considerando sua relação por vezes fraturada
e flutuante com a cultura brasileira , Tânia
reinventou sua identidade, proliferando
através de sua obra uma forma específica de
brasilidade musical.
PALAVRAS-CHAVE: Tânia Maria; jazz
brasileiro; exílio; ditadura militar
ABSTRACT: At the height of the
Anos de
Chumbo
(1968-1974), like so many musicians,
the pianist Tânia Maria had to leave Brazil.
Guided by Rollemberg (1999) and Muller
(2014), among other authors, we analyze the
artist’s experience of self-exile, seeking to
understand the impact of exile on her career.
We examined that several factors made Tania’s
musical life in the country unfeasible, and the
dictatorship only exacerbated these problems.
Faced with the obstruction of creative freedom
and the failure of her work in Brazil, the pianist
decided to seek her fulfillment in the global
jazz scene. In this process of uninstallation
considering her sometimes fractured and
fluctuating relationship with Brazilian culture
, Tânia reinvented her identity, proliferating
through her work a specific form of musical
Brazilianness.
KEYWORDS: Tânia Maria; Brazilian jazz; exile;
military dictatorship
Recebido em: 03/05/2022
Aprovado em: 01/08/2022
Doutorando em História e Conexões Atlânticas e Mestre em Cultura e Sociedade pela UFMA, São Luís-MA.
Graduado em História pela UEMA, São Luís-MA. Especialista em História e Cultura Afro-brasileira pela FA-
CUMINAS, Montes Claros-MG. Integrante do GEJAZZBR (Grupo de Estudos do Jazz no Brasil) e do GPMUSI
(Grupo de Estudos em Práticas Musicais no Maranhão). E-mail: antonio_arjr@hotmail.com.
 Doutorando e mestre em História e Cultura Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
UNESP/Franca, Franca-SP. Membro do GECU (Grupo de Estudos Culturais da UNESP) e do GEJAZZBR
(Grupo de Estudos Jazz no Brasil). E-mail: renan.ruiz@unesp.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Mapa introdutório: sobre os trajetos e destinos da viagem
E depois de partir, poder voltar e dizer: este aqui é o meu lugar
(MORAES; TOQUINHO, 1971).
Foi em 12 de dezembro de 1972, de volta ao Brasil depois de longa temporada nos
Estados Unidos, que o músico João Donato resolveu mergulhar de cabeça no mundo da
canção. Anos antes, ele lançara o experimental
A Bad Donato
(Blue Thumb, 1970), registro
que, a exemplo da faixa inicial “The Frog”, passeia pelo fusion, funk e jazz afro-cubano.
Donato provavelmente teria repetido o feito, não fosse a intervenção do cantor Agostinho
dos Santos: “Eu ia gravar instrumental dentro de alguns dias. E o Agostinho dos Santos
falou: Vai gravar tocando piano de novo? Todo mundo ouviu isso! Se fosse você, eu
gravaria cantando’” (MAIA, 2021, s/p). Daí em diante, o pianista transformaria vários de
seus temas em canções, inclusive “The Frog”, que virou “A Rã” na voz de Caetano Veloso.
Enquanto João Donato voltava ao Brasil e encontrava uma forma de valorização de
seu trabalho através da canção popular, outros instrumentistas, percebendo o progressivo
ofuscamento do instrumental, optaram por migrar para o exterior, resultando numa
verdadeira fuga de cérebros musicais. Entre esses nomes estão: Airto Moreira, Dom
Salvador, Edison Machado, Sérgio Mendes, Eumir Deodato, Moacir Santos, Raul de Souza,
Naná Vasconcelos, Flora Purim e Tânia Maria, pianista, cantora e compositora
maranhense cujo relato sublinha o clima autoritário da ditadura civil-militar.
Com vasto trabalho fonográfico, Tânia Maria conquistou posição de prestígio no
cenário internacional, se tornando influente na cena do jazz contemporâneo. Afora os
prêmios internacionais
1
, seu nome é mencionado em importantes obras que tratam de
jazz
2
. Contudo, a produção acadêmica acerca da obra de Tânia ainda é inexpressiva
3
. Aliás,
embora se destaque no cenário jazzístico mundial, ela é pouco conhecida no Brasil,
abatendo-se sobre sua imagem uma espécie de desbotamento memorialístico
4
. A opinião
1
Destacamos a indicação de “Melhor Álbum de Jazz Latino” no XIII Grammy Latino (2012) pelo álbum
Tempo
(Naïve, 2011).
2
Madame Jazz Contemporary: women instrumentalists
(1995) e
Louis’ Children: American Jazz Singers
(1984)
de Leslie Gourse, crítica do
JazzTime
s; em
Blue Notes: profiles of jazz personalities
(2011) de Robert Kapelle,
professor da Washington & Jefferson College; no
Elas também tocam jazz
(1989) do crítico de jazz Luiz
Orlando Carneiro, além de ser mencionada brevemente no livro
Solistas dissonantes: história (oral) de
cantoras negras
(2009), do historiador Ricardo Santhiago.
3
Alguns aspectos da produção fonográfica e da musicalidade de Tânia Maria foram apreciados por Silva
(2021) em artigo. O autor também tem desenvolvido uma tese intitulada “Tania Maria - Trajetória Artística e
Identidade Musical” junto ao Programa de Pós-graduação em Música (UDESC). Gostaríamos de contribuir
com este debate, lançando um olhar historiográfico sobre o percurso da pianista, no sentido de
problematizar o fenômeno do autoexílio dos músicos brasileiros a partir de sua experiência histórica.
4
Visando contrapor tal situação, tem havido iniciativas em prol da valorização e rememoração do trabalho
da artista, tais como o Projeto “Mulheres do Brasil” do Sesc Pompeia, que a homenageou em 2005; o Projeto
Tânia Maria, formado por Anette Camargo (voz e piano), Lael Medina (bateria), Libero Dietrich (baixo) e
Danilo Moura (percussão), que lhe rendeu tributo no festival Sesc Jazz, lançando o disco
Parabéns, Tânia!
(Selo Sesc, 2021).
de que, “[no Brasil], o nome de Tânia Maria nem consta dos dicionários e enciclopédias de
música popular. Encontrar uma discografia básica, nem pensar” (AGÊNCIA ESTADO,
2007, s/p), é bastante recorrente em vários veículos e círculos.
Diante desse apagamento, objetivamos revisitar a trajetória da artista e analisar
suas produções, sobretudo as realizadas fora do Brasil, como forma também de discutir o
tema do exílio voluntário dos músicos brasileiros, motivo pelo qual seguiremos inspirados
em Johnson (2020), autor alinhado à abordagem do
Transnational Studies in Jazz
. Essa
escolha se deve ao intuito de mirar na diáspora internacional do jazz brasileiro e formular,
por conseguinte, uma contranarrativa que conteste certa historiografia, um tanto
reticente quando se trata do papel dos instrumentistas nos movimentos e
movimentações
5
musicais do país.
Ademais, percebendo que as produções historiográficas sobre o jazz ainda estão
centralizadas no eixo Europa-EUA, entendemos que um horizonte de fato disruptivo com
a lógica canônica da história do jazz deve, além de partir de autores não-
estadunidenses/europeus, construir ferramentas teóricas e metodológicas próprias, bem
como se difundir por meios de publicação locais/nacionais. Ou seja, compreendemos que
o ideal de descentralização, de superação do monopólio do “jazz” pelos americanos e
europeus, de genuína concepção dessa sonoridade como fenômeno transatlântico, é
coerente se alinhado a uma postura descolonizada, de autonomia e insistência em criar o
ambiente de valorização dessa proposta de estudos em países como o Brasil, por exemplo.
Para isso, urge despertar o interesse público e acadêmico pelas trajetórias, rostos e sons
ligados ao jazz brasileiro, destacando as especificidades locais como aspectos essenciais
para a composição, e, sobretudo, demarcação das tensões políticas e simbólicas dentro da
abordagem multicultural de estudos do jazz. Por isso, para além do exame da recepção do
jazz no Brasil, ou do olhar musicológico sobre as produções de brasileiros ligados ao jazz,
queremos discutir a relevância (social, cultural e política) desses instrumentistas para a
história nacional.
Movidos por essa necessidade, optamos, dessa vez, por examinar a condição da
música instrumental, em meio à ditadura militar, através das experiências de Tânia Maria,
dispondo, assim, do método biográfico para lidar com as seguintes questões: forneceria a
5
Articulando as ideias de Favaretto (1996) e Naves (2001), Fenerick (2007, p. 92-93) sugere que a utilização
generalizada do termo “movimento” em diferentes períodos históricos pode simplificar as contradições do
núcleo musical analisado. Isso acontece porque o termo enquanto categoria sociológica é inter-
relacionado a projetos coletivos organizados deliberadamente, com manifesto(s) e/ou coisas do gênero.
Inspirado em Wandi Doratiotto, Fenerick propõe, então, a noção de “movimentação (musical)” como forma
de analisar núcleos geracionais que se formaram no devir das transformações históricas, com soluções de
carreira e trajetórias organizadas individualmente pelos seus integrantes, mesmo fazendo parte de um
mesmo contexto de produção e distribuição, como, por exemplo, a Vanguarda Paulista.
experiência de exílio da pianista rastros sobre o processo de reinvenção do jazz brasileiro
durante e depois do período ditatorial? Teriam as saídas quase forçadas dos músicos
constituído elemento fundamental na redefinição de suas carreiras, sonoridades e
identidades? Seria possível perceber indícios dessa mudança nos discos e depoimentos de
Tânia Maria? O que isso nos diria sobre o tratamento do jazz e dos músicos na sociedade
brasileira da época?
Pelas questões supracitadas, três palavras-chave darão sustentáculo teórico para
a nossa análise: a saber, as categorias “exílio”, “identidade” e “metamorfose”, que por sua
íntima (embora conflitante) relação, surgirão diluídas no texto. Cabe, à priori, apenas
pontuar que ao ativar o conceito de “exílio” neste estudo, tal como a discussão sobre
diáspora, levamos em consideração como Said (2003, p. 46) a historicidade desse
movimento migratório e o seu aspecto ultraviolento, evitando, assim, romantizar tal
processo de desterritorialização em nome de um suposto culto acrítico à chamada
transnacionalidade. Justamente por esse aspecto secular e histórico da experiência exílica
cujo perfil contemporâneo, vale lembrar, emergiu no primeiro pós-guerra, com a crise
dos Estados nacionais europeus (JENSEN; PARADA, 2019) , é que tentaremos, porém,
não encarar Tânia Maria como uma personagem passiva diante da brutalidade do desterro,
procurando perceber de que forma e em que medida a artista criou, entre a antipatia e a
empatia para com o Brasil, seus próprios dispositivos de resistência; sua própria
hermenêutica da distância (TRAVERSO, 2012
apud
JENSEN; PARADA, 2019, p. 407),
reinventando-se e produzindo novos sentidos no caminhar autoexílico. Não que o pendor
metamórfico seja exclusivo da experiência pessoal da artista, é claro. Por vezes
recorrentes nessa situação, a transformação, para o bem ou para o mal, impôs-se como
horizonte inevitável na história de vários brasileiros expatriados (ROLLEMBERG, 1999).
Aliás, considerando que entre os anos de 1960 e 1980 inúmeros brasileiros escolheram
Paris para fugir da ditadura (ROLLEMBERG, 1999), não seria exagerado supor que essas
pessoas compuseram parte significativa do público de Tânia Maria em terras estrangeiras,
podendo-se tomar a pianista como parte de uma comunidade heterogênea de exilados
cada qual com seus motivos, anseios e vivências, mas partilhando experiências comuns, a
exemplo da tentativa de adaptação na nova realidade.
Por isso, no plano histórico, não se trata simplesmente de decantar uma pretensa
singularidade da pessoa, Tânia Maria; mas também não se intenta diminuir o grau político
e simbólico de sua trajetória. Antes, queremos entender através de suas atitudes e
estratégias de emancipação como a experiência de degredo se refletiu em sua arte, de
modo a fomentar uma reflexão crítica sobre o autoexílio dos instrumentistas brasileiros:
peça importante na discussão acerca das consequências do esfacelamento cultural
fomentado pela ditadura.
Devido ao exposto, adicionamos que a orientação biográfica deste trabalho,
escolhida para tratar de uma figura parcamente citada na historiografia, seguirá pouco
compromissada com a noção de “história de vida”, valorizando, isso sim, a ideia de
“trajetória”, que como aponta Bourdieu (2006, p. 189), deve levar em conta as várias
posições dos sujeitos “em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações
incessantes”. Nessa lógica, mesmo com os possíveis acenos à excepcionalidade de Tânia
Maria, entendemos a partir de Levi (2006) que as contingências contextuais isto é, os
valores culturais e o sistema social de normas do período escolhido são imprescindíveis
para a qualidade de nossa análise, assim como, no outro lado da balança, o uso de
trajetórias como as de Tânia pode ser extremamente significativo para o exame do
momento histórico em foco. Intentamos, portanto, conjugar análise fonográfica e
biográfica, sem esquecer dos limites e agenciamentos conjunturais.
Tânia Maria,
made in Brazil
: entre danças, contratempos e improvisos
Filha do metalúrgico e músico amador Joaquim Costa Reis (1924-1990) e de Maria
da Conceição Corrêa Reis (1927-2020)
6
, Tânia Maria Corrêa Reis nasceu em 09 de maio
de 1948, em São Luís (MA). Por volta dos dois/três anos de idade devido à necessidade
do pai em se empregar na Companhia Siderúrgica Nacional, em busca de melhores
condições de vida transfere-se para Volta Redonda (RJ). Na nova cidade, ingressou no
Conservatório de Música, vindo a liderar, com apenas 13 anos de idade, sua própria banda,
que tocava, sob os auspícios empresariais de seu pai, nas festas do Clube Náutico
7
, uma
“grande escola na música popular” para Tânia, pois lá precisava tocar “bolero, samba, fox,
fox-trot (sic), marcha, carnaval, e fazer o povo dançar” (GUIMARÃES, 1980, p. 47). O
resultado foi de impacto positivo na cena cultural local
8
. Concomitantemente, Tânia Maria
6
Vânia Maria, irmã de Tânia, nos informou que sua mãe, Maria da Conceição, era formada em Contabilidade
e chegou a trabalhar na extinta empresa de publicidade e propaganda Sidney Ross Co. Em São Luís, Maria
da Conceição morava na rua Isaac Martins, 110, atual centro histórico da cidade. Casou-se e se mudou com
Joaquim Costa para Mirador, conhecida como Velho Mirador, cidade do interior do Estado onde Joaquim
exercia a função pública de Coletor Federal.
7
As festas no Clube Náutico eram destinadas aos trabalhadores menos qualificados, nos dando uma ideia da
origem social do público do conjunto. O espaço fazia parte de uma espécie de parque recreativo da
Companhia Siderúrgica Nacional, com direito a teatros, cinemas, clubes esportivos para os trabalhadores,
com o propósito de aplacar as possíveis tensões entre empregadores e funcionários (ARAÚJO, 2015). A
separação física dos espaços indicava a distinção entre as classes e categorias de empregados, algo que
Tânia possivelmente observou, cedo se deparando com as assimetrias sociais em terras cariocas.
8
“A Cidade do Aço, pelo seu desenvolvimento social, e como produto disso, possui quatro grandes
conjuntos musicais [...]. E isto, sem se falar na Tânia Maria e seu Conjunto, que vêm alcançando sucesso em
suas apresentações no Canal 09” (CURTINHAS, 1963, p. 09).
participava de vários concursos de música, nos quais se evidenciava. A propósito, antes
de montar seu conjunto, em 1960, venceu o Grande Torneio Semestral do programa
“Calouros do Ary”, apresentado por Ary Barroso e patrocinado pela Rádio Nacional feito
determinante em sua carreira musical. Com a popularidade em alta, a convite da Colúmbia,
lançou seu primeiro LP, o
Para Dançar Vol. 2
(Entré-CBS, 1963), com apenas 14 anos. Nesse
disco (continuidade de uma série do catálogo da gravadora), Tânia ainda não cantava, e,
embora predomine o instrumental, não podemos deixar de notar a completa ausência de
informações sobre os músicos acompanhantes na ficha técnica do LP.
Especificamente sobre a sonoridade,
Para dançar
passeia pelas levadas de jazz,
bolero, cha-cha-chá e partido-alto
9
, flertando, assim, com o Sambalanço
10
, estilo dançante
de samba criado nas boates cariocas por nomes como Ed Lincoln e Djalma Ferreira. O
estilo “surgiu com uma espécie de contraponto ao samba de concerto’ apenas para
ouvir, sentado, e em silêncio, proposto pela bossa nova; e caracterizou-se principalmente
pela incorporação do órgão Hammond ao conjunto dos instrumentos (LOPES; SIMAS,
2017, p. 269).
Aliás, no ambiente das boates se encontravam as principais influências de Tânia
Maria: Johnny Alf, o trio do pianista Luiz Eça, Tom Jobim, João Gilberto, e ainda os pais do
sambalanço: Durval e Djalma Ferreira, Ed Lincoln e Márcio Montarroyos. Vale adicionar
que o sambalanço “não se tratou de movimento normatizado”, não sendo “sequer
discutido na imprensa no período”, mas que apesar disso, espalhou-se “livremente (e até
de forma aleatória) pela obra de vários autores e na atitude vocal/performática de
intérprete diversos” (SOUZA, 2016, p. 22), o que inclui Eumir Deodato, outro influente
nome para Tânia Maria.
9
Tipo de samba carioca cuja alcunha se remete a uma expressão baiana que sugeria algo de excelência,
distinção, qualidade. Por definição, “o samba de partido-alto ou simplesmente partido-alto era uma espécie
de samba instrumental e ocasionalmente vocal (feito para dançar e cantar), constante de uma parte solada
chamada ‘chula’ (em virtude da qual era também denominado samba-chulado ou chula-raiada) e de um refrão
(que o diferenciava do samba-corrido). Modernamente, o nome designa uma forma de samba cantado em
desafio por dois ou mais contendores e que se compõe de uma parte coral (refrão ou ‘primeira’) e de uma
parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao
assunto do refrão [...]” (LOPES, SIMAS, 2017, p. 211). o cha-cha-chá e o bolero são ritmos cubanos, a
princípio relacionados. Diferenciando-se do cha-cha-chá, porém, o bolero passou a ser caracterizado pelas
letras românticas e andamento mais arrastado. Espalhou-se por outros países latinos, até chegar ao Brasil,
influenciando artistas como Francisco Alves e cantores de samba-canção, nos anos de 1950.
10
Para dançar
, aliás,
é um título que dialoga com outros registros do gênero sambalanço, como
Parada de
dançar nº 1
(Djalma Ferreira e seus Milionários do Ritmo - Musidisc, 1953);
Certinho para dançar
(Paulinho e
seus Night Boys, RCA, 1961);
Feito para dançar
(Waldir Calmon, dio, 1954) e o instrumental
Lição de
balanço
(RGE, 1964). As faixas “É Luxo Só” (Ary Barroso/Luiz Peixoto), “Choro Sim” (Djalma Ferreira/Iza
Ferreira), “Come September” (Bobby Darin), “Chá-chá-chá da Moça” (Haroldo Barbosa/Luiz Reis), “Marise”
(Carlos Amorim/Miguel Miranda), “Rosário” (Joaquim C. Reis) e “Nunca Mais” (Ed Lincoln/Silvio César)
comprovam essa influência.
Influenciada também pela bossa e pelo sambajazz
11
, é possível notar que a banda de
Tânia faz comentários instrumentais em referência a esses estilos. Mas ainda que o
conjunto mesclasse os ritmos de sucesso do momento, e que a produção apelasse para o
ineditismo da garota prodígio
12
, as vendas não foram boas. Mesmo assim, Tânia Maria não
desistiu da música e continuou se apresentando, naquela temporada, em bares cariocas e
paulistas, dessa vez no formato de trio (piano-baixo-bateria), popularizado pelos
conjuntos de sambajazz.
Já, em 1965, Tânia participa do espetáculo “A Voz do Povo”, no Teatro Jovem, zona
sul do Rio de Janeiro, ao lado de João do Vale, Nelson Cavaquinho e Moreira da Silva,
quando começa a dar aulas de música e inicia seus estudos em Direito
13
. Recebe, então,
convite da Continental para gravar seu segundo LP:
Apresentamos Tânia Maria
.
Em
matéria para a
Revista do Rádio
, a pianista fez questão de frisar a experiência inédita de
cantar e tocar no disco, numa tentativa de chamar atenção do mercado musical:
O lançamento de um LP será um teste para mim. Creio, todavia, que serei bem-
sucedida e, daí diante (sic), terei apenas de lutar para ocupar na música brasileira,
um lugar que tanto anseio. Gostaria de salientar que nesse disco eu canto
acompanhando-me ao piano. Tudo na base do moderno (REVISTA DO DIO,
1966, s/n).
Produzido pelo compositor Romeo Nunes,
Apresentamos
foi lançado,
estrategicamente, na boate Rui Bar Bossa, ponto de encontro dos que militavam pelas
sonoridades “modernas”: público-alvo de Tânia. Aliás, a aproximação de Tânia com o
sambajazz, em mais uma tentativa de se legitimar no meio musical, fica evidente no
cast
de músicos contratados pela artista, e destacados na nota:
11
Recorrendo a Lopes e Simas (2017, p. 268), o sambajazz foi uma “vertente eminentemente instrumental do
samba, consolidada no ambiente da bossa nova”, e que firmou “aproximação do samba com o bebop, que já
era experimentado no ambiente das gafieiras, revelando ou consolidando o prestígio de inúmeros
instrumentistas brasileiros”. Em termos de sonoridade, os pioneiros desse idioma teriam sido o saxofonista
Juarez Araújo, no disco
Bossa Nova nos “States”
(Masterplay, 1962) e o conjunto Os Ipanemas num disco
homônimo lançado pela CBS, em 1964 (LOPES; SIMAS, 2017, p. 268).
12
O texto de contracapa, de Clovis Mello, procurava explorar este excepcionalismo: Quatorze anos de
idade? Sim, meu amigo, essa é a idade de Tânia Maria. Mas, nessa idade, as meninas ainda brincam com
bonecas e, quando muito, estão começando os estudos de música… É verdade. Porém, Tânia Maria não é
somente uma menina que é exímia pianista: é também arranjadora e chefe do conjunto que você está
ouvindo. Se eu não estivesse vendo e ouvindo, não estaria acreditando. Essa mocinha é realmente
fenomenal!”.
13
Sobre a formação superior incompleta da artista, embora a
Revista do Rádio
(1966) informe que Tânia
cursou a PUC, sua irmã, Vânia Maria, nos relatou que, na verdade, a pianista frequentou a UCAM-RJ
(Universidade Cândido Mendes).
Este é o primeiro disco de Tânia Maria, pianista e cantora. Acompanham a artista
em seu disco de estreia, Neco ao violão, Luiz Marinho ao contrabaixo, Edson
Machado à bateria, e ainda Maurício Einhorn à gaita. nia Maria canta músicas
modernas do nosso populário, com interpretações “à la” Ellis Regina (sic).
Entretanto, sendo uma estreante, é possível que descubra seu caminho próprio.
Tem qualidades e toca bem piano. Conta o LP com “De manhã”, “Agora”, “Paz de
Espírito”, “O verão vem aí” e um “pout-pourri” de músicas de Noel Rosa (NOVOS
DISCOS, 1966, p. 42).
Esse segundo trabalho fonográfico marca o início de Tânia como compositora,
ainda que bastante timidamente
14
. Enquanto cantora, é notável que estava tentando criar
sua assinatura própria, usando a interpretação livre em diálogo com o instrumental.
Esteticamente, podemos dizer que um clima melancólico e por vezes
engajado/catártico no disco, algo perceptível nas letras, arranjos, forma de cantar e tocar
de Tânia, o que pode ter relação com o momento de desilusão no campo da cultura e das
artes opostas ao regime, que, entre 1964 e 1968, observavam a repressão violenta que caía
sobre os movimentos sociais e culturais, e que, por sua vez, visava sabotar o elo entre
artistas e coletivos opostos à ditadura. Incapaz de se mobilizar, restava ao artista cantar
suas angústias e indignações (NAPOLITANO, 2018, p. 97). Como filha de operário, classe
bastante reprimida à época, esse misto de tristeza e insatisfação respinga no LP de Tânia
Maria, algo que, como analisaremos, trará drásticas consequências em sua experiência
musical no Brasil.
Não obstante o desesperançoso clima político, a Continental parecia bastante
confiante no sucesso do
Apresentamos
e no potencial de Tânia, que segundo um de seus
representantes, possuía uma “maturidade artística assombrosa”, pois não somente
cantava, como “acompanha-se ao piano (e que piano!), e fez onze dos 12 arranjos do disco,
mostrando-nos que é uma das mais impressionantes artistas da nova geração na música
moderna brasileira” (NUNES, 1966, s/p). Diz-se que nesse período “Tânia começou a lutar’
pela música instrumental que, segundo ela, não ‘acontece’ no Brasil, ao contrário da
música cantada…” (GUIMARÃES, 1980, p. 47). Mas, mesmo motivada a defender o
instrumental, em sintonia com as tendências da época e com o apoio da nova gravadora,
Apresentamos Tânia Maria
não obteve sucesso saldo negativo que nos faz refletir sobre
a dinâmica do mercado musical da época, sobretudo no que diz respeito à cena
instrumental, com a mudança no interesse por estilos identificados com o
sambajazz/bossa, a partir de 1966, isto é, quando se inicia a era dos festivais com o I FIC
(CASTRO, 2007, 2017; OLIVEIRA, 1997; OLIVEIRA, 2007; RIBEIRO JÚNIOR; RUIZ, 2021).
14
Das 12 gravações do disco, Tânia Maria é coautora de apenas uma composição (faixa 6, “Divisão”).
Vale lembrar, no entanto, que mesmo inserido na onda da chamada MPM (Música Popular
Moderna)
15
, seu LP de 1963, também não emplacou.
Prestes a completar 18 anos, por pressão familiar, Tânia resolveu se casar e
interromper a carreira artística. O matrimônio durou mais ou menos cinco anos. Nesse
meio tempo, cursou e abandonou a faculdade de Direito. Em seguida, resolveu se divorciar,
a fim de seguir definitivamente a carreira musical. Nesse período, em plena ditadura civil-
militar, fica mais evidente nos relatos e memórias da artista a opressão de uma sociedade
machista que subestimava sua capacidade como música, desacreditava no seu sucesso
fora de um matrimônio e ironizava seu potencial enquanto líder de conjunto aspectos
que convergiam contra a possibilidade de livre expressão instrumental.
Citando Tânia entre as instrumentistas brasileiras que lutavam por espaço, Raffaelli
(1988, p. 03) provocava em uma matéria n’
O Globo
: “com exceção das cantoras,
geralmente em planos de destaque, as
jazzwomen
nem sempre receberam a devida
atenção. Discriminação da imprensa? Ou dos músicos?”. Pela trajetória de Tânia, a
resposta era: ambos. Aliás, machismo, sexismo e racismo se encontravam na pecha de
“negra atrevida”
16
e nas falas de que Tânia “tocava igual homem”, difundidas pela imprensa
e pelo meio musical
17
. Não bastassem as dificuldades profissionais que atingiam a classe
musical, havia mais esses problemas que iam de encontro às expectativas de Tânia. Como
relataria ao
New York Times
:
Eu o estava feliz com minha vida até os 22 anos e decidi, ok, eu vou ser uma
musicista [...]. Mas tem sido muito difícil. No Brasil, eu poderia sobreviver como
15
Ribeiro Júnior (2018, p. 100-114) indica que a MPM foi um acrônimo usado no início dos anos de 1960 para
identificar os artistas alinhados às sonoridades do sambajazz e do sambalanço; nomes que, por um lado,
almejavam compartilhar com a bossa nova o lugar de música brasileira moderna” da época, e, que por outro,
tentavam resistir comercialmente com a proliferação do rock n’ roll no Brasil. Discos como
Flora é M.P.M
(RCA/BMG, 1964), de Flora Purim;
É Tempo de Música Popular Moderna
(Phillips, 1964), coletânea cujo
repertório inclui os conjuntos Copa Trio e Tamba Trio;
A Hora e a Vez da MPM
(Phillips, 1966), do Rio 65
Trio, são alguns exemplos. Tal tendência musical, vale observar, pode ser localizada desde meados de 1950,
nos discos
Turma da Gafieira
(Musidisc, 1957) e
Braziliance
(Laurindo de Almeida e Bud Shank, Pacific Jazz,
1953). Para mais informações, além da referência já citada, cf. Saraiva (2007).
16
O racismo e o sexismo se explicitavam em comentários tais como este: “Tânia é uma escurinha que não é
bonita. Ao contrário (Piaff também não era bonita). E ainda por cima usa óculos, com lentes bem grossas”
(SUED, 1971, p. 03). A propósito, em entrevistas mais recentes, percebemos que Tânia se portava de maneira
crítica contra os preconceitos de cor e de nero, citando uma de suas grandes influências, o pianista Johnny
Alf, “um dos grandes injustiçados da história de nossa música” (DE SOUTEIRO, 1990, p. 02), comentando
ainda no Canal Londres.TV que, por ser negro e homossexual, o músico teria encontrado barreiras no meio
musical.
17
Indagada pela revista
Latin-Mag
sobre isso, respondeu: “Quando comecei, não era apropriado para uma
mulher ser pianista profissional. Mesmo sendo música era tratada quase como uma prostituta. Ambos
trabalham à noite. Também não tive oportunidade de ter o feedback de outras pianistas. tocava com
homens. Quando era elogiada, diziam: você toca tão bem quanto um homem. Isso me chateava terrivelmente”
(LENHART, 2015, s/p, tradução nossa). [No original] Als ich anfing, hat es sich nicht für eine Frau geziemt,
professionelle Pianistin zu sein. Schon Musikerin zu sein war kurz davor, für eine Nutte gehalten zu werden.
Beide arbeiten eben nachts. Ich hatte außerdem keine Möglichkeit für Feedbacks durch andere Pianistinnen.
Ich spielte immer nur mit nnern” (LENHART, 2015, s/p).
música, mas não poderia ter uma vida. Não houve oportunidades reais. Não
apenas fui uma pioneira, mas também uma mulher em uma cultura machista. Uma
mulher deve servir a um homem, não tentar fazer algo que ele possa fazer
(HOLDEN, 1983, s/p, tradução nossa)
18
.
Era o início dos anos 1970, época de endurecimento da repressão, de um lado, e de
promessas de experiências libertárias, do outro. No pacote de mudanças
comportamentais, incluía-se a independência feminina, pois é quando “se superam os dois
tabus que eram os pilares [da submissão da mulher] ao homem, e parte do sistema
patriarcal: a liberação da sexualidade fora do casamento”, e a possibilidade de se
sustentar sozinha, sem precisar do homem” (MURARO, 1999, p. 212
apud
DIAS, 2003, p.
55). Pela formação tradicional que teve e trabalhando em uma profissão vista como
rebelde, Tânia provavelmente vivenciou momentos de tensão por defender ideias anti-
machistas e se posicionar pela independência total da mulher
19
. Como veremos, esse será
mais um fator decisivo nos rumos da carreira da artista.
De antemão, vale destacar que foi nesse período conturbado, com promessas de
melhoria na qualidade de vida pelo “Milagre Econômico”, mas de impacto repressivo do
AI-5 e baixa no valor de trabalho do instrumentista, que Tânia lançou seu terceiro LP,
Olha
quem chega
(1971) pela Odeon, contendo ao todo onze faixas. Eram elas: “Bobeou Não Vai
Entender”; “Madalena”; “Olha Quem Chega”; “Mais Um Adeus”; “Ai Que Saudades da
Amélia”; “Garota da Minha Cidade”; “Ruas do Rio”; “Hey Você”; “Carinhoso”; “De Frente”
e Vireivolta”. Com produção de Milton Miranda (responsável por gravar artistas como
Elza Soares, Wilson Simonal, Tony Tornado, Milton Banana, e outros),
Olha quem chega
apresentava influências do
funk
,
soul
e do iê--
20
, com uso de elementos da bossa,
samba e de música cubana, aproximando-se da sonoridade de artistas como Erlon Chaves,
Tim Maia, Sérgio Mendes e Jorge Ben. Seguindo o padrão dessa MPB, mais presença do
órgão, do baixo elétrico e dos fraseados dos metais, além da orquestração conduzida pelo
maestro e violonista Geraldo Vespar, responsável pelos arranjos.
18
[Original] “‘I was not happy with my life until I was 22 and decided, O.K., I’m going to be a musician’, Miss
Maria said. ‘But it's been very difficult. In Brazil, I could survive as a musician, but I could not have a life.
There were no real opportunities. Not only was I a pioneer, but I was a woman in a macho culture. A woman
is supposed to serve a man, not try to do something he can do’” (HOLDEN, 1983, s/p).
19
Bahiana (2006, p. 92) e Dias (2003, p. 223) oferecem importante contextualização sobre os avanços do
feminismo nos anos 70, destacando a passeata feminista em Washington, a proliferação e disseminação de
publicações com temáticas feministas no Brasil, resultando em crescente oposição das mulheres ao
machismo em vários campos sociais. Tânia parece ter sido impactada direta ou indiretamente por essa nova
mentalidade que insurgia, tomando atitudes que se alinhavam a alguns dos preceitos desse movimento.
20
O iê--iê foi um rótulo criado nos anos de 1960 para se referir aos artistas influenciados pelos Beatles. A
Jovem Guarda um movimento estético-cultural da época tinha nesse estilo musical sua principal trilha
sonora.
O funk, por sua vez, é um estilo musical originalmente afro-americano de meados dos anos de 1960, nascido
a partir de misturas com o jazz, o rhythm & blues espécie de predecessor do rock n roll e com a soul
music (esta última, também de origem afro-americana, e com forte influência da gospel music).
Apesar das expectativas da pianista, dessa vez decidida a focar na carreira artística,
investindo em gravar, para tanto, sucessos da MPB,
O Globo
apontava que seria difícil seu
novo material ter algum impacto satisfatório no mercado, pois a Odeon não possuía
“estrutura promocional”, significando, para a gravadora, “[só] mais um disco, mais um LP,
mais um lançamento, dentro do seu esquema regular de trabalho” (BITTENCOURT, 1971,
p. 05).
De fato, em diversas matérias sobre a trajetória de nia se diz que seus discos
“não aconteceram” (DE SOUTEIRO, 1986, s/p), e que “apesar de trabalhar em várias boates
e ter gravado três discos, Tânia acumulava frustrações” (DE SOUTEIRO, 1989, p. 01).
Assim, embora se empenhasse, indo para São Paulo nos anos 1970, a fim de tocar “em
todas as casas de samba possíveis e imagináveis”
21
, como relatou ao
Estadão
, Tânia se viu
obrigada a trabalhar de maneira insatisfatória, sem ter chance de tocar o que queria,
“porque era começar a improvisar no piano e as pessoas começavam a ir embora, o
patrão dizia que ninguém entendia sua música” (GUIMARÃES, 1980, p. 47). Percebemos
ainda que boa parte dos problemas de Tânia começavam na fase da produção,
evidenciando a falta de autonomia e desvalorização do instrumental em certos meios.
Como relembra a pianista: “diziam que eu só sabia tocar jazz, e nas gravações acontecia o
mesmo problema. Quando eu chegava no estúdio, o produtor tinha escolhido todo o
repertório e os arranjos já estavam prontos. Isso me chateava bastante” (DE SOUTEIRO,
1985, p. 12). Notamos, assim, que apesar de inúmeras tentativas, Tânia encontrou muitas
dificuldades para desenvolver sua carreira musical no Brasil, chegando a excursionar pelas
maiores capitais do país, em busca de melhores condições profissionais. Mesmo que tenha
iniciado a carreira bem jovem, acumulando 3 discos e alta atividade musical, Tânia, até o
início de 1970, não conseguira registrar nenhuma composição própria talvez como
consequência de todos os empecilhos mencionados. Essa situação, porém, logo sofreria
uma reviravolta.
Exílio como rito de passagem:
la renaissance
de Tânia Maria
vou embora, mas sei que vou voltar/Amor, não chora, eu volto
um dia/O rei velho e cansado já morria/Perdido em seu reinado
sem Maria [...]
(AZEVEDO; VANDRÉ, 1985).
Buenos Aires, março de 1976. Dias antes do golpe que deporia Isabelita Perón,
alguns oficiais abordaram o pianista Tenório Jr. na rua e, desprezando sua carteira
21
Somado a essas atividades, a artista tentou difundir sua imagem pela televisão, tendo participado da série
“Música Popular Brasileira” produzida pela TV Cultura, onde se apresentou com um conjunto formado pela
conterrânea Alcione, e outros músicos, tocando composições de Francisco Alves, Roberto Carlos e Tom
Jobim (TÂNIA MARIA CANTA NA TV2 CULTURA.
O Estado de São Paulo
, 1970, p. 13).
profissional, o prenderam arbitrariedade que o levaria a ser torturado, e, por fim, morto,
tornando-se uma das primeiras vítimas da Operação Condor em solo argentino
22
.
Por situação um pouco semelhante passou Tânia Maria, no Rio de Janeiro, em 1974,
segundo seu relato ao jornalista Carlos Calado (2005, s/p):
Ela nunca mais se esqueceu daquela noite. No início dos anos 70, ao sair da boate
em que tocava para amamentar o filho, foi abordada por uma viatura da polícia.
Mostrar a carteira de músico profissional não adiantou. O policial rasgou o
documento, a xingou de prostituta e a obrigou a entrar no camburão. “Foi um
trauma muito grande, eu tinha 22 anos. Depois daquilo, o podia mais ficar aqui”,
recorda a cantora e pianista Tânia Maria, que não faz shows no Brasil desde 1974,
quando iniciou na França uma brilhante carreira internacional.
Para além do desrespeito e desvalorização, tal experiência obviamente
relacionada ao fato de Tânia ser uma mulher negra em um ofício estigmatizado , nos
remete a um dos principais motivos de a pianista ter saído do Brasil: o ambiente truculento
da ditadura, refletido na censura às artes e na relação violenta da polícia com a sociedade
civil, com ênfase nas minorias. A propósito, vale destacar a posição de Tânia, enquanto
artista e filha de operário, acerca da ditadura:
“Vi colegas de meu pai, que era metalúrgico, desaparecerem, assim como amigos
meus que eram contra aquela situação. Fui admoestada até por pessoas do meio
musical, por cantar músicas que falavam do nosso sufoco
23
. Quando saí do Brasil,
sabia que não ia voltar, ao menos enquanto durasse aquela situação”, relembra
Tânia. “Até hoje tenho medo de milico” (CALADO, 2005, s/p).
Outro episódio de truculência para com a classe instrumentista em tempos de
ditadura está no relato do baterista Robertinho Silva, colhido pelo guitarrista Fredera.
Robertinho conta que o baterista Edson Machado, que “não tinha qualquer formação
política, não sabia direito o que era direita e esquerda” (OLIVEIRA, 1997, p. 156), foi preso
e espancado por policiais por criticar o governo no meio de um show. Em outra ocasião, o
próprio Fredera confirma que “a polícia invadia as casas noturnas do Rio com lanternas
na cara dos músicos e dos fregueses” (COELHO, 2008, p. 307), demonstrando o
tratamento que era dispensado aos músicos classe que não havia muito ainda era
enquadrada na Lei de Vadiagem, e que não teve tempo de firmar seu valor social e cultural
22
Cf. RIBEIRO JÚNIOR; RUIZ, 2021.
23
Algumas dessas canções estão presentes no
Apresentamos Tânia Maria
(1966): “A Voz do Povo”; Terra
de Ninguém”; “A Paz”; “Viver Morrer”; “Nego São”, entre outras.
na sociedade brasileira, sendo tão logo surpreendida pela intervenção militar, que, aliás,
aparelhou a Ordem e o Sindicato dos Músicos, na tentativa de vigiar e disciplinar a
atividade musical, sob o pretexto de expurgo da influência comunista” (SOUZA NETO,
2014, s/p). À frente da OMB por decisão dos militares, o presidente Wilson Sandoli, por
exemplo, protagonizou um episódio de censura musical, quando juntamente do DOPS
intimou os músicos do conjunto Oliveira e Seus Black Boys a deporem em processo ético
profissional, acusados de, em uma de suas apresentações, terem deturpado o Hino
Nacional, inserindo na execução arranjos de
twist
(BARROS, 2012, p. 77-81). Tais exemplos
dão dimensão do ambiente de estrangulamento criativo na ditadura e permitem imaginar
que para musicistas como Tânia Maria, enquanto mulher negra, a situação podia ser bem
pior.
No mesmo ano em que foi maltratada pela polícia, Tânia foi agraciada com o título
de “A Rainha da Noite” por Plínio Marcos, importante teatrólogo que atuou principalmente
na época do regime militar. Nesse momento, por indicação do baterista José Boto (músico
reconhecido no campo da bossa e do sambajazz, inclusive internacionalmente), Tânia foi
contratada pelo empresário francês Guy de Castejá para tocar na inauguração da casa de
espetáculos Via Brasil, especializada em música brasileira, localizada no Centre
Commercial de la Tour Maine Montparnasse, Paris. Acerca disso, Tânia recorda: foi nesse
momento que senti haver chegado a hora de mudar. Dei, então, o primeiro passo para a
minha liberdade musical e pessoal quando aceitei o convite para cantar em Paris por três
meses, e lá fiquei sete anos…” (GAMAL, 1987, p. 03).
É bastante simbólico que a saída de Tânia do país tenha sido motivada por situações
opostas: uma decepção profunda e outra de grande satisfação. Analisamos que essa
experiência algo ambivalente ecoaria em alguns de seus posicionamentos sobre o Brasil
durante o exílio. Já morando nos Estados Unidos, em matéria do
NYT
, por exemplo, Tânia
demonstrou se opor “à cultura machista” do Brasil, “mas também ao seu regime político”,
além de falar “com desdém da ‘preguiça’ do povo” (HOLDEN, 1983, s/p, tradução nossa).
Porém, confessou que também “[esperava] um dia ser aceita [no Brasil] como uma artista”.
“As coisas estão mudando”, prossegue, “estou começando a receber ligações e convites
para voltar”. E por fim, insinua um possível retorno ao país: Quem sabe? Em dois anos
pode ser minha vez no Brasil” (HOLDEN, 1983, s/p, tradução nossa)
24
.
24
[No original] While Miss Maria still harbors a deep ambivalence about her native country - she opposes
not only its macho culture but also its political regime, and speaks disdainfully of the ‘laziness'’ of the people
- she also hopes one day to be accepted there as an artist. ‘Things are changing, and I’m beginning to receive
calls and invitations to go back’, she said. ‘Who knows? In two years it may be my time in Brazil’” (HOLDEN,
1983, s/p).
O reencontro físico com a terra natal, como veremos, demoraria mais do que o
esperado. Entretanto, desde os primeiros passos no exterior, Tânia se manteve conectada
à cultura brasileira através da música. Prova disso é o seu LP
Via Brasil
(Barclay, 1975),
contendo dez faixas que passeiam por clássicos da música brasileira, tais como: “Samba
de Orly”, “País Tropical”; “Abre Alas”, “Fio Maravilha”, entre outras. Contando com José
Boto na bateria e Hélio Quirino no contrabaixo, o LP foi um sucesso, levando o trio a lotar
o Via Brasil em seus shows. Demonstrando a grande aceitação do trio,
O Globo
(1975, p.
30) informava que Tânia e cia preparavam outro LP, recebendo ainda “convite para o
famoso Festival de Newport e o reconhecimento de músicos franceses, americanos e até
indianos…”. A partir daí, Tânia gravaria 5 discos em terras francesas e seria convidada para
importantes festivais de jazz, como o de Monterey e o de Santa Bárbara, na Califórnia, o
Playboy Jazz Festival, em Los Angeles, o Kool Jazz, em Nova Iorque, entre outros. Como
Rollemberg (1999, p. 33) esclarece: “se muitos sofrem com o desenraizamento, outros se
descobrem neste processo”. O caso de Tânia se encaixa nisso, mostrando que o exílio
também “oferece um outro lado: a oportunidade do recomeço e da transformação [...] é a
possibilidade de renascer levando a bagagem acumulada , de construir uma visão ampla
de mundo” (1999, p. 33).
Outros músicos brasileiros, como Sérgio Mendes e Airto Moreira, também
experimentaram o exílio e o renascimento artístico no exterior, sendo, porém,
experiências pouco trabalhadas pela produção historiográfica brasileira. Estimativas do
site Memorial da Democracia apontam que entre 5 e 10 mil pessoas deixaram o país
diáspora potencializada pelo recrudescimento do regime, que passava, então, a incluir
mais enfaticamente entre os seus alvos os artistas, classe que começou a optar pelo exílio,
temerosa por retaliações da repressão (PEZZONIA, 2019, p. 02). Mas os instrumentistas,
diferente de cantores exilados da MPB (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, por
exemplo), não estão entre os que geralmente são lembrados, desembocando sobre esses
autoexílios um obsequioso silêncio. Válido adicionar que a classe dos instrumentistas
brasileiros assistiu ainda a uma progressiva redução do campo de interesses da música
não cantada no período ditatorial, suscitada, entre outros fatores, pelas novas disposições
estéticas e revisão dos critérios mercadológicos ambos estimulados pelo convulsivo
contexto político. Não por acaso, no discurso dos músicos daquele período temos um saldo
que justapõe o sucesso estrondoso do formato canção (notadamente, a Canção de
Protesto), certo “patrulhamento” sobre simpatizantes do jazz e a perseguição política que
recaiu mais enfaticamente sobre os cantores/compositores, cujas carreiras serviam como
vias através das quais os músicos podiam trabalhar (RIBEIRO JR., 2018). Tal estado de
coisas, segundo Tinhorão (1991, p. 34):
[...] levou a maioria dos instrumentistas ligados às correntes “modernas” que
eram, na realidade, as herdeiras do estilo
jazz
, logo ajustadas ao som de massa
chamado “universal” – a situarem-se diante de poucas opções: ir para os Estados
Unidos, matriz de sua formação musical o que muitos fizeram a partir de fins
dos anos 60
, adotar a formação de conjuntos vocais ou de acompanhamento de cantores;
transformar-se em fornecedores de música para dançar ou, finalmente, partir
para a pesquisa de novos caminhos, individualmente ou em grupos situados fora
do sistema.
E completa:
Entre essas alternativas, a que certamente acabaria por caracterizar o panorama
da música instrumental popular brasileira das duas penúltimas décadas do século
XX, seria a da pesquisa, individual ou em grupo, de novas linguagens musicais e
novas sonoridades (TINHORÃO, 1991, p. 34).
Como temos discutido, Tânia Maria optou por sair do país, o que parece também
ter promovido sua pesquisa musical, pois estava inserida na lógica de permutas culturais
do circuito do jazz mundial. O acesso a esse circuito demarcou sua fase de renascimento
profissional e artístico, sendo aclamada em clubes e festivais de jazz da Europa, Estados
Unidos e Japão, tornando-se merecedora, mais tarde, do Golden Feather Award: prêmio
atribuído por um dos mais importantes críticos de jazz estadunidense, Leonard Feather,
que a elegeu “a mulher do ano” (NOLASCO-FERREIRA, 1985, s/p) e, ainda em 1985,
receberia uma indicação ao Grammy de “Melhor Performance Vocal Feminina”.
Se no início da carreira, ainda que premiada em vários concursos, a pianista não
conseguia alcançar popularidade no Brasil, agora, imersa em uma nova rede de relações
de troca, legitimada pelos palcos internacionais, enquanto zonas consagradoras, e com a
aprovação de nomes influentes do jornalismo musical estrangeiro, Tânia testemunhava
uma potencialização de seu capital social e simbólico, pois situada em um contexto que
atribuía significado e valor distintos à música improvisada
25
. Foi quando finalmente
começou a chamar mais a atenção da crítica brasileira, havendo os que lamentavam o fato
de ela ainda não ser lembrada/valorizada no Brasil
26
, por vezes criticando a não edição de
25
Tal guinada irrompe como momento de aceleração artística na carreira de Tânia, sendo exemplar do
“acontecimento biográfico” sobre o qual nos fala Bourdieu (2006, p. 190), que pode ser definido pelo
movimento de deslocamento e reposicionamento dos sujeitos no espaço social; fenômeno, por sua vez,
dependente da distribuição de capital pelas estruturas constituintes dos devidos campos (nesse caso, o
musical).
26
Exemplar dessas tensões foi o episódio protagonizado pelos produtores do Free Jazz Festival, em 1987,
que desinteressados em incluir a pianista no evento, impuseram condições que, segundo Tânia, a
seus discos no país; os que a acusavam de se “americanizar”, de performar uma brasilidade
“exótica” (caso de Tárik de Souza) e os que discordavam veementemente dessa opinião
(caso de Arnaldo de Souteiro). “Durona” e “desnacionalizada” para uns, “assertiva” e
“talentosa” para outros. A despeito dessa guerra estético-moral, Tânia prosseguiu lutando
por seu lugar nos espaços de poder musicais: acesso que a permitiu dar novos saltos
artísticos, no exílio, com o apoio de diversas gravadoras, conforme analisaremos adiante.
Em busca da pátria perdida: o chamado/resposta da brasilidade no jazz de Tânia Maria
Ah, dor que vacila entre ‘quem sou’ e ‘onde estou’/ Esvazio
minha mente e me transformo em um rio de saudade.../ e juntos,
vamos rir tanto, tanto, que vamos chorar de saudades de casa
com lágrimas, tão perdidas e solitárias/ Lágrimas que nos
lembram porque somos brasileiros sem Brasil
(CALDEIRA, 1996,
p. 07).
Em seu estudo sobre a renovação do jazz sul-africano, mais precisamente por meio
dos músicos que, para fugir da violência do Grande Apartheid (1960-1970), migraram para
a Europa e Estados Unidos, Muller (2014) percebeu que a opção de inserir certos
elementos musicais de sua cultura nas performances ao vivo simbolizava uma maneira
desses músicos rememorarem suas origens; era “uma forma de restaurar um sentimento
de ‘casa’ na música, como uma forma de educar seu blico a respeito de onde vieram, e
para autenticar sua participação em uma comunidade global de jazz” (2014, p. 646,
tradução nossa)
27
. Se, num primeiro momento, aqueles músicos focaram na improvisação
livre ofertada pelo bebop/free jazz, projetando nela sua liberdade política e criativa, em
outra fase de sua experiência de exílio/êxodo, eles sentiram necessidade de buscar “uma
sonoridade que os conectasse de volta à África do Sul e à ampla gama de linguagens e
práticas musicais relembradas de sua terra natal lugar para o qual não era tão fácil
prejudicavam economicamente, enquanto atração internacional (DE SOUTEIRO, 1989, p. 01). Observamos
que nessa disputa de poder, o músico brasileiro com carreira internacional que não se submete a certas
regras do mercado local (impostas como se fossem condição
sine qua non
para reatar seu vínculo com a
dinâmica do país), acaba sendo rotulado de “arrogante” por certos agentes culturais. Analisamos que são em
momentos conflitantes assim que o autoexilado, enquanto indivíduo atravessado por outras realidades
socioculturais, e que se como sujeito distinto, espécie de “estrangeiro familiar”, recorda de suas
desavenças com a terra natal e se depara, uma vez mais, com sua identidade flutuante. Ou seja, é quando a
diferença
, enquanto categoria relacional, aflora, despertando a atração e a repulsa do exilado pelo seu país
de origem. Manifesta-se, assim, “exatamente a experiência diaspórica”, nos diz Hall (2003, p. 415), quando
se está “longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender
o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada”.
27
[No original] “Inserting music from their past into the live music making in Europe and the United States
was a common strategy for these musicians as a way to restore a feeling of home in the music, as a way to
educate their audiences about where they had come from, and to authenticate their membership in a global
jazz community” (MULLER, 2014, p. 646).
voltar” (MULLER, 2014, p. 653, tradução nossa)
28
.
Similarmente, impactada por um contexto autoritário e em constante trânsito pelos
EUA e Europa, Tânia, diante da necessidade de reconexão histórica e cultural com o Brasil,
criou estratégias, visíveis em suas performances, composições e depoimentos, para
sustentar esse vínculo afetivo diante da distância de sua terra, de maneira a acessá-la
mesmo fora dela.
A começar por suas letras, destacamos um fragmento de “Pingas da Vida”, do disco
Tânia Maria Live
de 1979
29
, lançado pelo selo francês Accord. Em momento mais intimista
da canção, Tânia canta: “Eu vou voltar, descobrir o norte do país / O lugar onde eu nasci:
São Luís do Maranhão / Seus rios, seus mares / E o Velho Mirador, o Velho Mirador do
meu pai”. E contando mais sobre sua trajetória, solta a voz, fazendo o canto participar da
improvisação instrumental ao usar um verso da música “Cotidiano” de Chico Buarque:
“Pela 207, entrar em Volta Redonda a cidade do aço, faz aço todo ano / Todo ano ela faz
tudo sempre igual / Subir o morro do Bela / Escutar o apito da fábrica tantas vezes por
dia / Dizendo pro operário que era hora de trabalhar!”.
No decorrer de sua obra, o tema da saudade
converte-se em matéria-prima de suas
letras, conduzindo boa parte de sua trajetória no exílio, mesmo nos discos mais recentes.
Por exemplo, em “Canto”, do álbum
Intimidade
(2005, Blue Note)
30
, Tânia relata: “Deixei
minha cidade / Com força e coragem / Larguei minha terra / Segui minha estrada / Com
a mala dos sonhos / Pensei que tivesse tudo / Pra poder crescer”. E salientando as
contradições do sentimento de falta que faz sofrer e, ao mesmo tempo, intensifica a
relação com a música, entoa: “Medo de estar tão longe / Da família e amigos / Das falhas
de agora / Eu sei não é fácil / Esse na garganta/que às vezes impede a gente / De poder
cantar / Mas assim mesmo eu / Canto, canto, canto / Canto para ser feliz / Como é bom
lembrar do meu país!”.
Via Brazil
(vol. 2, 1975, Barclay) inicia com “No ano que vem”, cuja letra ressalta a
ideia de retorno (sem citar o Brasil), justamente no registro fora de sua terra natal: “No
ano que vem, eu chego até / Os meus bons amigos / Eu vou encontrar / No ano que
vem, eu chego até / Os meus bons amigos / Eu vou pra saudar / Salve a nossa terra /
Linda (...) ponta a ponta / Se veste de lua / Se cobre com sol / Se cobre com sol”.
28
[No original] “These musicians were self-consciously searching inside for a sound that connected them
back to South Africa and the wide range of musical languages and practices recalled from their homeland
a place that just wasn’t that easy to return to” (MULLER, 2014, p. 653).
29
Gravado ao vivo no Jazzhus Montmartre, em Copenhagen (Dinamarca), nos dias 1 e 2 de novembro de
1978, com Marc Berteaux (baixo) e André Ceccarelli (bateria).
30
Regravada com outro arranjo no último trabalho de estúdio de Tânia: o homônimo
Canto
(Naïve, 2012).
Tal fato nos leva às reflexões de Rollemberg (1999, p. 28), que esclarece: “[o
expatriado] tenta reproduzir, no exílio, o seu país natal, o seu mundo […], paisagens, povo,
comida”, ou seja, a idealização desponta como mecanismo de defesa para enfrentar as
novas contingências socioculturais e suportar a experiência de degredo. Assim, é possível
afirmar que as letras de Tânia podem ser compreendidas como uma das formas de a
musicista (re)construir seus vínculos com o Brasil na condição de degredada. Aliás, outro
aspecto essencial de sua
intenção de brasilidade
31
se ancora no fato de que, mesmo
gravando por empresas europeias e norte-americanas, mais focadas no mercado externo,
Tânia não renuncia ao seu idioma natal, registrando pelo menos uma faixa em português
em cada disco.
Musicalmente, além de, enfim, se lançar como compositora, os discos da “primeira
fase francesa”, entre 1975-1980
32
, são marcados pela inclusão mais nítida do
funky
e do
soul
nas obras de Tânia Maria, presentes desde o álbum anterior (articulados com o
sambajazz e com o sambalanço), mistura que passa a permear toda a carreira da musicista,
a partir deste período. ainda uma pequena incursão, especificamente nesta etapa de
sua trajetória, pelo
fusion jazz
(marcante no mercado transnacional de jazz da década de
1970), presente em músicas como “Para Chick”, “Ideias e Ideais”, e “Carona” (todas de
1979).
Nessa fase, marcada também por participações em festivais europeus, a maior
parte das composições de Tânia são cantadas em português, e ela volta a gravar
instrumentais em 1977, depois de 14 anos. Ademais, Tânia não apenas passa a atuar como
compositora, como suas próprias composições formam a maior parte das músicas
gravadas em discos, como se atesta em
Tânia Maria Liv
e (Accord, 1979).
nos EUA, a sonoridade de Tânia continuou em intensa mutabilidade e capacidade
de incorporação consequência da opção da artista por tocar com músicos de várias
nacionalidades (americanos, brasileiros e latinos), entre eles: Steve Gadd, Steve Thornton,
31
Segundo Ruiz (2021, p. 12): “a intenção de brasilidade, no universo do jazz brasileiro (...), representa o
objetivo claro e marcante de demarcar um espaço fundamental, reservado e permanente para elementos
que possam remeter diretamente à identidade brasileira”. A partir da articulação de diversas sonoridades no
decorrer de sua longa carreira, colocando sua voz como parte umbilicalmente conectada às formas de tocar
seu piano, podemos dizer que Tânia Maria realiza uma espécie de balanceamento entre instrumental e
canção. Ou seja, a pianista articula duas noções tratadas como cindidas e até antagônicas em certas análises
acadêmicas sobre música popular do Brasil: de um lado, a canção enquanto universo do lírico e do cantado
e, do outro, o viés instrumental. Vale destacar também que Tânia encara o piano como instrumento
percussivo, subvertendo a noção clássica/erudita sobre o instrumento, dando pistas de um dos recursos
estéticos utilizados para fabricar sua assinatura musical: o vocabulário tmico afro-brasileiro. Por todos
esses elementos musicais, entendemos que a
intenção de brasilidade
é imprescindível nesse debate, sendo
fenômeno ativado no processo de desterritorialização da musicista.
32
Via Brasil Volume I e II
(Barclay, 1975),
Brazil with my soul
(Polydor, 1977),
Tania Maria Live
(Accord, 1979)
Tania Maria Et Niels-Henning Orsted Pedersen
(Accord, 1979).
John Peña, Walfredo Reyes, Frank Colón, Eddie Gomez, Leonard Traversa, Paulinho da
Costa, Thelmo Martins Porto (Portinho), e outros. Nessa “primeira fase americana”, entre
os anos 1981-1990
33
, Tânia passa a cantar, também, em inglês, e suas composições
absorvem a influência do
pop jazz
que circulava no cenário norte-americano na época
34
.
É nesse ínterim que a musicista abusa dos
scattings
vocais, misturando-os (entre uma
faixa e outra, ou às vezes, na mesma composição) com o canto em português e,
principalmente, em inglês
35
. Aliás, com exceção do
Piquant
(Concord Records, 1981), nos
discos da “fase americana” predominam canções em inglês
36
, havendo apenas uma música
por disco em português
37
. Pode parecer pouco, mas denota a necessidade de marcar uma
ligação inviolável com o Brasil. Outra característica ligada à sua brasilidade sonora: a
utilização da percussão dessa vez como elemento primordial nas composições e
improvisações ao vivo
38
.
Adiante, os discos lançados na década de 1990
39
, na “segunda fase americana” da
artista, passam por outros rearranjos. As composições cantadas em inglês
40
não são
mais predominantes.
Bluesilian
(1996) é a exceção que confirma a regra, pelo fato de quase
todas as faixas serem fruto da parceria de Tânia com o produtor Eric Kressmann
41
. Nessa
fase, boa parte das composições seguem a linha instrumental, com muitos
scattings
onomatopaicos
42
, como se pode ouvir no álbum
No comment
(TKM, 1995).
A partir dos anos 2000, é nítida outra forte mudança na trajetória da musicista,
havendo um retorno simbólico ao Brasil. O próprio título do primeiro álbum reforça essa
ideia:
Viva Brazil
(Concord Records, 2000). Aliás, é justamente no título dos álbuns e
33
Piquant
(Concord Records, 1981),
Taurus
(Concord Records, 1982),
Come With Me
(Concord Records,
1983),
Love Explosion
(Concord Records, 1984),
Made In New York
(Emi-Odeon, 1985),
The Real Tania Maria:
Wild!
(Concord Records, 1986)
The Lady From Brazil
(Emi-Odeon, 1987),
Forbidden Colors
(Emi-Odeon, 1988)
e
Bela Vista
(World Pacific, 1990).
34
As faixas “Come With Me”, do disco homônimo e a canção “Don’t Go” exemplificam essa característica.
35
Por exemplo: “Yatra-ta”, “Lemon Cuíca”, “Tranquility”, “2 AM”, “Eruption”, “Sangria”, “Deep Cove View”,
“Made In New York”, “Tanoca Vignette”, “Chuleta”, “210 West”, entre outras.
36
Por exemplo: “It’s Not For Me to Say”, “Come With Me”, “Embraceable You”, “It’s All Over Now”, “It’s All
In My Hands”,
“Love Explosion”, “Don’t Go”, “My Space”, “I do I Love You”, “Together”, “The Lady From
Brazil”, “I Should Not Call You”, “It’s Only Love”,
“Please Don’t Stay”, entre outras.
37
São elas: “Bandeira do Lero”; “Euzinha”, “Funky Tamborim”, “Forock”, “Valeu”, “O Bom É”, “Encanto
Meu”.
38
Por exemplo: “Yatra-ta”, “Imagine”, “Sangria”, “Nega”, “It’s All Over Now”, “Funky Tamborim”, “Made In
New York”, “Don’t Go”, “Just Get Up”, “Chuleta”, “Satisfaction”.
39
Outrageous
(Concord Records, 1993),
Tania Maria’s Nouvelle Vague
(West Wind Latina, 1993),
No comment
(TKM Records, 1995),
Bluesilian
(TKM Record, 1996) e
Europe
(New Note Records, 1997).
40
She Outrageous
(1993),
Happiness
(1993) e
Bluesilian
(1996), entre outras presentes no disco de 1996.
41
Seis das dez músicas dessa parceria são cantadas em inglês. As outras quatro são instrumentais carregadas
de
scattings
. A única faixa deste álbum composta exclusivamente por Tânia Maria
“Oxalá” é, também, a
única do disco cantada em português.
42
Por exemplo: “Dear Dee Vee”,
“Happiness 2”
e “Granada”; “Pelham Melody”, “Liquid Groove”, “Keep in
Mind”,
“Desire”
,
“Who Knows?”,
“Jack Hammer” e
“Gotcha”; “ZaZa”
,
“Feeling The Air”
,
“Rebordosa”
(The
Day After), “From My Window” e “Senso Único”.
composições que reside outro alicerce da brasilidade construída por Tânia no exílio
43
.
Nesta última fase, as sonoridades em torno do samba retornam quase que de forma
imperativa
44
. As letras em português também reaparecem fortemente, correspondendo a
quase todas as faixas gravadas neste período.
No século XXI, depois de percorrer um longo percurso, os discos de Tânia
carregam uma carga de “diva brasileira do jazz” (rótulo conquistado, primeiramente, fora
do Brasil
45
), e muitas canções têm um andamento lento, com letras “sentimentais” sobre
amor e saudade. Porém, mesmo o conteúdo lírico de suas canções passa por uma
abordagem bastante distinta, por exemplo, da MPB, sendo este condicionado/guiado por
uma improvisação jazzística brasileira peculiar, que brinca com as entonações e
scattings
,
sempre em diálogo com a pulsação e com a dinâmica empregados no piano. Ou seja, Tânia
elege a improvisação como elemento frugal de sua musicalidade, pondo o canto a serviço
dos jogos e variações instrumentais, tensionando, assim, o padrão/significado de canção
popular erigido entre o ápice da bossa nova e a formação e consagração da MPB.
As diversas sonoridades exploradas por Tânia Maria durante mais de 40 anos de
carreira em circulação pelo universo transatlântico (Brasil Europa EUA), além das
muitas questões suscitadas a partir dessa extensa obra, não poderiam ser sintetizadas
neste artigo, e não são o nosso objetivo. Por outro lado, examinar os aspectos mais gerais
do desenvolvimento de suas propostas musicais (ocorrido em sintonia com a transição
entre as gravadoras e os continentes) nos fornecem os elementos básicos para uma
melhor compreensão da resposta artística de Tânia Maria à situação do exílio, por sua vez,
resultado de sua reação às condições impostas pelo mercado musical brasileiro, no início
da carreira.
Se o processo de metamorfose, como informa Ciampa (1998), envolve a luta por
autonomia, reconhecimento e realização de projetos, bem como a busca por singularidade
dentro dos marcos identitários de uma coletividade, fica claro que o autoexílio de Tânia se
revelou como processo emancipatório, dando vazão a uma musicalidade multifacetada,
por sua vez derivada da identidade móvel, fragmentada que ela desenvolveu no trânsito
atlântico.
43
Além do citado
Viva Brazil
(2000), podemos ressaltar:
Via Brasil
(1975),
Brazil With My Soul
(1977) e
The
Lady From Brazil
(1987). Há faixas que se remetem ao Brasil, direta ou indiretamente: “Lemon Cuica”, “Vem
pra Roda”, “Lost In Amazonia”, “Funky Tamborim”, “The Lady From Brazil”, Oxalá”, “Chorinho Brasileiro”
etc.
44
Por exemplo: “Florzinha” (Petite Fleur), “Tá tudo Certo” e “Mas Que Nada”, Encanto Meu”, Vem pra
Roda”, “It’s Only Love” e “Amei Demais”; “Intimidade”, “Chorinho Brasileiro”, “É Tão Gostoso seu Moço” e
“Ayé”; “Samba do Gato” e “Carlos Song”, entre outras.
45
Como indica Millarch (1984), nos anos 80, Tânia Maria foi agraciada com a alcunha de “Brazil’s Queen of
Jazz” pela
Newsweek
, influente revista editada pelo grupo The Washington Post.
Evidente que as identidades não são estáticas, mas dinâmicas e constituídas
historicamente; forjam-se na (des)contínua mudança das posições dos sujeitos, no seu
senso de pertencimento (Hall, 2015, p. 12), originando, assim, trajetórias metamórficas. Em
compensação, essa transmutação também produz crises, motivo pelo qual conclama-se a
memória para criar um vislumbre de estabilidade, de pertencimento: caso de Tânia, que
fez da saudade seu porto seguro, motor criativo e artefato nas trocas/disputas simbólicas
fora do país.
Enfatizamos, desse modo, que a grande capacidade de absorção e mutação das
sonoridades de Tânia Maria traz à tona diversos elementos essenciais para refletir e
acessar suas formas de conexão com o Brasil, a partir das diferenças e semelhanças
básicas entre a música produzida no início da carreira (contexto ditatorial brasileiro) e
aquela desenvolvida na Europa e nos EUA. Nesse movimento, Tânia reinventa progressiva
e continuamente seu próprio jazz no exílio, aproximando-se de sua terra natal pelo som,
criando, dessa forma, particularidades para o jazz brasileiro fora do Brasil. Ou seja, é na
experiência do exílio que a música de Tânia Maria não apenas “renasce”, como também
envereda por um fluxo constante de metamorfose(s). Mutação que não abandona a
brasilidade; antes, a usa como sustentáculo.
Isto posto, de acordo com o que analisamos, alguns aspectos são recorrentes para
afirmação do ímpeto musical-identitário à brasileira de Tânia Maria. No Brasil, na tentativa
de ser reconhecida como “representante legítima” da nossa música popular e inserida no
universo fonográfico carioca, ela gravava versões de nomes reconhecidos da música
nacional. No exílio, suas sonoridades percorreram um formato totalmente distinto.
Enquanto incorporava novas influências do jazz internacional, Tânia fez questão de não
deixar de gravar em todos os álbuns, independente da “fase”, canções em português. As
letras de várias sicas remetiam diretamente ao Brasil, à saudade, à terra natal (São Luís
ou Rio de Janeiro)
46
. Mais do que isso: como vimos, Tânia também utilizou os títulos dos
álbuns e das faixas para incorporar um Brasil distante, longe de seu lugar de produção e
gravação. Uma maior centralidade à presença do percussionista incorporado de forma
robusta e acentuada, principalmente nas performances ao vivo também passaria a
marcar uma diferenciação de sua sonoridade no Brasil e no exterior.
Concluímos que se por um lado essa
brasilidade musical emanente
tem uma face
comum/coletiva suscitada pelo contexto cultural do país, por outro, esta se desenrola na
linguagem artística com inflexões e modelações próprias. Uma Tânia Maria pode se afinar
na defesa da musicalidade brasileira tanto quanto um instrumentista do Grupo Um (RUIZ,
46
Por exemplo: “Pingas da vida”, “No ano que vem”,
“Canto”, “Euzinha”, entre outras.
2017) ou da Vanguarda Paulista Instrumental, por exemplo, mas a invenção sonora destes
(re)formula a brasilidade de maneiras distintas. Isso significa que, no conjunto, essas
propostas estéticas compõem distintas rmulas de sonoridades à brasileira. São, em
suma,
brasilidades alternativas
47
, com sentidos e ofertas de brasis que ora se encontram
ora se afastam, dependendo das possibilidades fonográficas e dos horizontes estéticos de
cada artista.
Aliás, válido pontuar que embora Tânia fosse contrária ao regime militar por
fatores sociais e culturais que expusemos ao longo do texto , sua identidade política não
se inseria necessariamente em uma perspectiva revolucionária, em
stricto sensu
, como
percebe Ridenti (2010) em alguns artistas da canção. Talvez, fosse mais coerente
vislumbrar nas suas atitudes e invenções musicais, uma brasilidade, isso sim, rebelde,
indisciplinada, atrevida, que procurou transgredir as imposições artísticas e frustrar toda
e qualquer forma de opressão.
On the road again with
Tania Maria: improvisações finais
Em estudo que toma o pianista Tenório Jr. como fio condutor, os autores Ribeiro
Júnior e Ruiz (2021) problematizam o fenômeno da clivagem entre canção e instrumental,
no intervalo de 1960 a 1970, discutindo a questão da invisibilização dos instrumentistas no
contexto da ditadura militar. Percebemos que a trajetória de Tânia também aponta para
esse problema. No entanto, comparativamente, embora Tenório e Tânia estivessem ambos
no campo instrumental/jazzístico e partilhassem da mesma conjuntura autoritária, a vida
da pianista maranhense conduz a outras indagações e discussões.
Primeiramente, uma vez que artistas como Tânia são vistos como parte de uma
comunidade global de jazz (a nível mundial), no plano nacional dificilmente podem ser
encaixados num movimento musical, sendo eles cada qual com suas próprias distinções
os próprios renovadores do jazz/instrumental brasileiro. No caso de Tânia Maria, com o
agravante do que Muller (2014) chama de “outness” (exterioridade); ou seja, de frequente
sensação de estrangeiridade, deslocamento e desenraizamento do exilado. Sensação
47
Diante da relação entre jazz, ditadura, brasilidade e modernidade na trajetória de Tânia Maria, nos
apropriamos do conceito de
modernidades alternativas
. Novamente, recorremos a Johnson (2017; 2020) que,
ao analisar o fenômeno do desenvolvimento do jazz em meio a regimes de exceção, percebe que jazz” e
“totalitarismo” simbolizavam distintas e, à priori, concorrentes ofertas de modernidade. Pela relação peculiar
que o regime militar brasileiro teve para com o jazz e a influente interferência das elites culturais sobre as
artes, lendo-as sob o viés modernista/nacionalista (elencando, aliás, a música como símbolo nacional por
excelência), lemos as diferentes formas de trabalhar o vocabulário musical brasileiro no instrumental como
brasilidades alternativas
. Essas brasilidades, em síntese, denotam projetos que ora negociam ora driblam as
regras artísticas impostas pelo Estado, classe intelectual e pelo mercado, por vezes confundindo,
reformulando e jogando com a noção de “modernidade brasileira”, caso em que se insere Tânia Maria.
aplacada muitas vezes pelo vínculo afetivo com a família e amigos personagens que
povoam a memória e as músicas de Tânia, constituindo fator fundamental na busca pela
brasilidade com e/ou sem Brasil presente em sua musicalidade. Essa especificidade nos
impele a interpretar a trajetória de Tânia Maria como uma experiência de “exílio
diaspórico”; isto é, uma condição muito particular, que borra os limites entre o isolamento
de um exilado e o movimento dinâmico dos sujeitos em diáspora. A vida de Tânia, portanto,
mistura esses fenômenos. Provavelmente, isto se porque, como relembra Monson
(2003, p. 01), diáspora é um termo guarda-chuva, que se interrelaciona intimamente às
noções de exílio, migração, dispersão, etnicidade, nacionalismo, transnacionalismo,
globalização, levando-nos a rediscutir as tensões culturais no seio da modernidade e dos
supostos processos de hibridização.
Desse modo, Tânia flexiona e tensiona o binômio “tradição/modernidade”, de
maneira a criar uma assinatura musical própria, estando em coerência com sua
experiência histórica de desterro prolongado e talvez, infindável , pois para além de
sua dispersão sica, um dissonoro movimento subjetivo da instrumentista frente à
comunidade
imaginada
chamada Brasil (ANDERSON, 2008).
Ressalvamos que o modus operandi autoritário do regime militar foi crucial para
motivar essa relação hesitante/ambígua com a identidade brasileira, servindo de estímulo
para que artistas como Tânia Maria buscassem subverter continuamente suas
identificações culturais, tornando-se, assim, sempre os diferentes, a outridade, os
brasileiros sem Brasil.
Desse modo, por causa do trauma fomentado pela ditadura (ponto alto de
estrangulamento da possibilidade de expandir horizontes culturais e estéticos na música
instrumental), mas também por opressões diárias sofridas por pessoas negras, Tânia
estrategicamente recria o Brasil no seu imaginário: pátria para a qual pode retornar
através da música e da memória inventada, enquanto segue seu caminho disperso e
mutante. Nacionalidade e transnacionalidade se relacionam muito distintamente quando a
terra natal simboliza rejeição aos olhos do
outsider
eterno estrangeiro em seu próprio
país , fazendo com que aproximação e repulsa coexistam no âmago dessa brasilidade.
Válido reiterar que o racismo e o machismo foram fundamentais para a construção
desse sentimento de pertencimento dúbio, pois fica evidente que mesmo em território
nacional, Tânia experimentava uma série de situações de exclusão, preconceito,
autoritarismo e incompreensão. Por isso, acreditamos que através de trajetórias como as
dela seja possível, aliás, reavaliar o impacto da ditadura nos vários setores sociais,
sobretudo minorias, muitas vezes excluídas dos lugares de decisão e sem acesso a bens
culturais. Ao nos depararmos com uma série de relatos da pianista sobre o tratamento que
lhe era dispensado pela imprensa, empresários e pela classe artística, além do
esquecimento da historiografia, que raramente a cita como figura de relevância na história
da MPM e da MPB, entendemos que o exílio de Tânia foi consequência não de um
período de exceção, mas também resposta a um ambiente cultural que, com ou sem
militares, inferiorizava mulheres.
Admitindo-se, em contrapartida, que a ditadura lesou o clima de democracia
musical preexistente (apesar da postura reativa de nacionalistas radicais ao jazz), e que os
instrumentistas também foram alvos da repressão, a vida de Tânia nos mostra uma
dimensão alternativa, ainda mais tensa nas margens das margens da história do jazz
brasileiro.
Por fim, encaramos a escolha de Tânia Maria pelo exílio, mesmo sem ter sido
forçada a isso, como atitude que ganha contornos políticos, de resistência cotidiana, uma
vez que em busca de valorização artística se opôs à ditadura e ao conservadorismo
brasileiro. Complementar a essa postura, sua identidade musical, ainda que não se encaixe
na noção de “brasilidade revolucionária” (RIDENTI, 2010), aponta para uma brasilidade
transgressora; por vezes, ambígua, mas também livre, mutante e transnacional.
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