BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo
https://orcid.org/0000-0002-7652-1959
RESUMO: Oferecemos um panorama geral dos
primeiros anos da ocupação do território das
minas do Serro do Frio (Vila do Príncipe,
Serro/MG), núcleo populacional que em 1720
formou a capital da Comarca do Serro do Frio.
O estudo narra a presença de dois grupos nas
minas serranas: o primeiro, formado pelos
arrematadores de braças de terras de lavras de
ouro nos ribeiros e, o segundo, formado pelos
emigrantes portugueses. A metodologia de
pesquisa fundamenta-se em pesquisa
bibliográfica com construção de
tabelas/quadros quantitativos e analíticos e
usa dois conceitos importantes, o de dinâmicas
de mestiçagens para dar conta do fenômeno
das sociabilidades no território das minas de
ouro e o de jeito barroso serrano de ser, para
dar conta dos encontros culturais formadores
da civilização serrana do século XVIII. O
resultado apresenta-se
pari passu
à narrativa
e culmina com a noção de dinâmicas de
mestiçagens e jeito barroco serrano de ser.
PALAVRAS-CHAVE: Brasil Colônia; História
cultural; minas do Serro do Frio; emigração
portuguesa.
ABSTRACT: We offer an overview of the first
years of the occupation of the territory of the
Serro do Frio mines (Vila do Príncipe,
Serro/MG), the population that formed the
capital of the Serro do Frio District in 1720. The
study narrates the presence of two groups in
the mountainous mines: the first, formed by
the bidders of gold mining lands in the streams
and the second formed by Portuguese
emigrants. The research methodology is based
on bibliographic research with the
construction of quantitative and analytical
tables /charts and uses two important
concepts, the dynamics of miscegenations to
account for the phenomenon of sociability in
the territory of the gold mines and
mountainous baroque way of being, to account
for the cultural encounters that formed the
18th century mountainous civilization. The
result is presented
pari passu
to the narrative
and culminates with the notion of
miscegenations dynamics and jeito barroco
serrano” of being.
KEYWORDS: Brazil Colony; Cultural history;
mines of Serro do Frio; Portuguese emigration.
Recebido em:12/05/2022
Aprovado em:17/06/2022
Doutor em Educação. Belo Horizonte/MG. Professor do IFMG
campus
Santa Luzia. E-mail:
doserro@hotmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
1
Os costumes minerais descritos e consagrados no
Regimento dos
Superintendentes, Guarda-mores e Deputados
de 1702 (CÓDICE COSTA MATOSO, 1999,
p. 313-324) criaram nas minas do Serro do Frio uma regulação de registros e processos
para consultar escritos com as sagradas letras dos escrivães em livros que deviam ser
mostrados como provas dos recolhimentos de quintos, de dízimos, das arrematações.
Quantos livros circularam nas minas do Serro do Frio de 1702 até 1714?
É difícil precisar, pois os cargos militares de ordenanças exigiam livros próprios
para atos oficiais, para suas diligências; o encontramos em arquivos públicos a
movimentação dos processos da cadeia o que parece ter sido um rancho provisório até
1714 com alvarás de prisão e de soltura ou mesmo envio de presos para São Paulo, se é
que houve, de fato. Em 1713, por exemplo, com a criação da paróquia de Nossa Senhora da
Conceição, mais livros serão escritos pelos padres e seus assistentes de batismo, de
casamentos e de óbitos.
Temos poucos livros em arquivos públicos para remontar o cenário da extensa rede
burocrática portuguesa que foi se instalando na pousada sabarense ou minas serranas. As
cartas circulavam com provisões, reclamações, ordens régias, decretos, normatizações de
toda sorte. Levavam dias para chegar até as mãos dos descobridores e para se tornarem
realidade levava meses, considerando as distâncias entre os primeiros arraiais que
surgiam ditados pelas pintas de ouro no território, às margens dos ribeiros e sempre com
disputas pelo primado dos descobertos. Descobrir novas lavras segundo o
Regimento
de
1702 era ter a oportunidade de conquistar privilégios concretos de exploração e de galgar
cargos públicos na lógica da administração portuguesa das minas de ouro.
Podemos dividir, grosso modo, os oficiais da Coroa portuguesa e os aventureiros
do ouro advindos de várias partes do Brasil e de Portugal. O primeiro grupo era formado
pelos descobridores que tiveram a primazia das lavras de ouro: Antônio Soares Ferreira,
João Soares Ferreira. Manuel Corrêa Arzão, o procurador da Fazenda Real Baltazar de
Lemos de Morais Navarro e seu escrivão Lourenço Carlos Mascarenhas de Araújo. Nosso
estudo trata do segundo grupo, os aventureiros do ouro, chegados às minas serranas para
arrematarem lavras e explorarem o ouro nos ribeiros, com seus escravos, na maioria da
“qualidade” mina, ou seja, especializados em mineração.
A fim de traçar um perfil desse grupo, investigamos os documentos da época, em
especial os livros de registros oficiais que davam conta ao Governo-geral da Bahia das
1
Artigo de pesquisa relacionado ao estágio pós-doutoral pelo Departamento de Pós-Graduação em
História da UFMG (2022-2023).
movimentações de compra e venda e rendimentos dos quintos nas minas serranas.
Descrevemos este universo cultural fundamentando nossa discussão em torno das
relações de poder com o primeiro grupo de bandeirantes paulistas e guiados pela
interpretação do
Regimento
de 1702. Além disso, propomos analisar a presença dos
portugueses em emigração para o Brasil e que se estabeleceram nas minas de ouro
serranas.
Para tal estudo, fundamentamos nossa análise no conceito de dinâmicas de
mestiçagens” (PAIVA, 2015, p. 41-42) para explicar os trânsitos culturais e as novas
sociabilidades que se formaram em torno das lavras de ouro; e utilizamos também a noção
de formação da civilização serrana
2
em torno da noção de jeito barroco serrano de ser,
3
baseada em comportamentos e relações sociais, políticas e religiosas típicas dessa
população que se estabeleceu em torno das minas de ouro no território do que veio a ser
a Vila do Príncipe em 1714 e a capital da Comarca do Serro do Frio em 1720.
Os arrematadores de braças de terras
Os homens mais opulentados leia-se com muitos escravos e oitavas de ouro para
negociação chegavam às minas do Serro do Frio e arrematavam braças de terras. Tudo
era calculado por cabeça de escravo, que de certa forma determinava a capacidade de
exploração da lavra ou data, bem como os rendimentos para a Fazenda Real.
Assim, o maior arrematador de braças de terras dos primeiros anos das minas
serranas foi Manuel do Vale Neves, testamenteiro de um certo Araújo Costa, no Ribeirão
de Santo Antônio, que por 30 braças pagou 350 oitavas de ouro. Provavelmente, suas
lavras tenham sido as maiores das minas do Serro do Frio nesse período, pois contrasta e
muito com a média dos outros arrematadores (Quadro 1). Todos esses homens assinaram
2
Trata-se de identificar no culo XVIII estruturas ontológicas expressas nas relações de poder (o
funcionamento do sistema das mercês ou do dom), no conjunto de aspectos peculiares das formas de ver o
mundo (cosmologia centrada na divisão social de cunho racial baseada na compreensão do “sangue infecto”),
de interpretar e vivenciar as sociabilidades inerentes à religiosidade (teologia tridentina de caráter popular
centrada na figura do padre e do padroado), enfim, a diferenciação da colonização serrana em contraste com
outras áreas de Minas Gerais e do Brasil, em que foi possível a partir do descobrimento estabelecer relações
entre a comunidade e o meio, espalhadas pela região serrana, o Norte de Minas Gerais, ou mesmo o termo
da Vila do Príncipe ou a Comarca do Serro do Frio. Ver: SILVA; SILVA (2009, p. 59-62).
3
Segundo Briskievicz (2022, p. 80), trata-se de se perguntar “qual é a arquitetura do jeito barroco serrano
de ser que se expressa em seus edifícios construídos desde o século XVIII? Qual a relação entre o jeito
barroco serrano de ser e a maneira de construir a sua habitabilidade? Quais os conflitos do jeito barroco
serrano de ser, sejam eles raciais, econômicos, religiosos, existenciais, expressam-se na forma de urbanizar
as encostas do morro ensolarado, enfileirando suas ruas e becos para o alto e para frente? Essas são as
questões fundamentais para esboçar uma história serrana que tenha por suporte o jeito barroco serrano de
ser no tempo e no espaço, a fim de discutir a constituição ontológica do homem serrano em seu ajustamento
ao seu habitat. Buscamos escrever uma história que evidencie minimamente as interações entre o ser em
travessia pelo habitável e pelo habitado cujo produto transitório posto que a obra humana é sempre finita
e sujeita ao perecimento é a cidade do Serro”.
o próprio nome, mostrando que sabiam ler e escrever. Eram alfabetizados, dominavam as
primeiras letras num contexto em que essa instrução talvez não fizesse diferença para
esses aventureiros do ouro.
Antônio da Silva Carneiro arrematou 30 braças de terras no Ribeirão de Nossa
Senhora da Conceição por 60 oitavas de ouro. Também arrematou os dízimos
4
agrários
por 350 oitavas. Foi quintado em 25 oitavas, de um total de 120 oitavas que havia retirado
de suas lavras em 1705; em 1706 foi quintado em suas 40 oitavas de ouro, pagando 8 à
Fazenda Real. Nos anos de 1705 e 1706 a vida financeira deste mineiro estava a todo vapor,
investindo em arrematações, lavrando ouro, comercializando escravos. Silva (1928, p. 11-
12, grifos do autor) registrou sua permanência nas minas do Serro do Frio por toda sua
vida, como ele mesmo sugere:
Numa vereação de 1738 o procurador requereu fossem notificados todos os
moradores da Vila,
desde a ponte do arraial de Baixo, casas de Antônio da Silva
Carneiro
... afim de fazerem suas testadas. Ora, esta ponte do arraial de Baixo,
esta casa de Antônio da Silva Carneiro, estão próximas de poucos metros do
córrego da Conceição onde Carneiro minerava em data sua.
Carneiro permaneceu na Vila do Príncipe por mais de trinta anos.
Domingos Pereira de Barros
5
arrematou 15 braças de terras no Ribeiro do Bom
Jesus de Iguapé em 1704, por um valor relativamente alto de 40 oitavas.
Hilário Pinto de Almeida
6
compartilhou as margens do Ribeiro de Nossa Senhora da
Conceição com Antônio da Silva Carneiro, arrematando 30 braças de terras por 22 oitavas.
Segundo Franco (1989, p. 26), “bandeirante baiano que andou no Serro-Frio, no primeiro
quartel do século XVIII em busca de ouro”.
José Borges Pinto arrematou 30 braças de terras por 35 oitavas de ouro para
minerar lavras no Ribeiro de Bom Jesus de Taubaté.
4
Segundo Carrara e Santiró (2013, p. 171-172), “no que respeita aos dízimos do Brasil, deve-se fazer uma
distinção fundamental: até o descobrimento do ouro nos anos finais do século XVII, os dízimos
correspondiam fundamentalmente à produção dos gêneros agrícolas destinados à exportação (açúcar e
tabaco, principalmente). [...] Se no início os dízimos eram arrendados pelo valor estimado do conjunto da
produção agrícola brasileira, a partir de 1628 o arrendamento ajustou-se à produção agropecuária de cada
capitania. O sistema de cobrança e pagamento era simples: uma vez celebrado o contrato dos dízimos, o
arrendatário estava obrigado a pagar trimestralmente nas provedorias o valor correspondente até alcançar
o montante total contratado. [...] Em Minas Gerais, por seu turno, a Real Fazenda só recebia o pagamento na
moeda usual da capitania: ouro em pó. Em geral, um problema rondava permanentemente a prática dos
contratos: as fraudes nas arrecadações das rendas reais. Não é exagerado afirmar que estas práticas eram
inerentes ao sistema de cobrança de tributos. Contudo, o maior dos problemas enfrentados pela Real
Fazenda, e não só em relação aos dízimos, foi a isenção fiscal pretendida pelas ordens religiosas. Os jesuítas
eram litigantes tradicionais, e em 1676 também requereram isenção os religiosos do Carmo da cidade da
Bahia, alegando ser mendicantes. Estes problemas foram enfrentados pela Real Fazenda até o século XVIII”.
5
Ver: LEME.
Genealogia Paulistana
, “Pereira de Barros”, v. 3º, p. 275.
6
Ver: LEME.
Genealogia Paulistana
, “Pinto de Almeida”, v. 3º, p. 451.
Manuel do Vale Neves, como dito logo acima, foi o maior arrematador de lavras
registrado em livro oficial da Fazenda Real. Ele pagou 350 oitavas por 30 braças de terras
no Ribeirão Santo Antônio para os filhos de um certo Araújo Costa, do qual foi
testamenteiro, não nas minas do Serro do Frio, mas do arraial ou vila de seu testador.
Manuel Antunes de Almeida, por seu procurador Antônio da Costa do Amaral,
arrematou 30 braças de terras por 128 oitavas de ouro para lavrar ouro no Ribeiro da
Purificação de Nossa Senhora.
O capitão Sebastião Leme Bahim era camarada ou sócio de Francisco Romeiro
Guellas, pois foi seu fiador e principal pagador de sua arrematação de 128 oitavas de ouro
por 30 braças de terras no Ribeiro da Purificação de Nossa Senhora. No mesmo ano de
1705 arrematou 30 braças de terras no Ribeiro de Nossa Senhora da Graça, por um valor
bem menor, de 32 oitavas.
Tabela 1 Receita da Fazenda Real Minas do Serro do Frio e Tucambira Arrematação
de braças de terras e dízimos 1702-1712
Data
Arrematante
Escreve e
Braças/Lugar
1
16/05/1704
Domingos Pereira de Barros
Sim
15
Ribeiro do Bom Jesus de Igua
2
3
05/08/1704
Manuel Antunes de Almeida
por seu procurador Antônio
da Costa do Amaral
Sim
Sim
30
Ribeiro da Purificação de Nossa
Senhora
4
05/08/1704
Hilário Pinto de Almeida
Sim
30
Córrego Nossa Senhora da
Conceição
5
6
27/10/1707
Manuel do Vale Neves
testamenteiro do defunto ...
de Araújo Costa
Sim
Sim
30
Ribeirão de Santo Antônio
7
8
22/03/1705
Capitão Sebastião Leme
Bahim fiador e principal
pagador de Francisco
Romeiro Guellas
Sim
Sim
30
Ribeiro de São Bento
9
15/07/1705
José Borges Pinto
Sim
30
Ribeiro do Bom Jesus de Taubaté
10
10/09/1705
Capitão Sebastião Leme
Bahim
Sim
30
Ribeiro de Nossa Senhora da
Graça
11
09/10/1705
Antônio da Silva Carneiro
Sim
Dízimos do ano [vencido em
agosto]
../11/1705
Antônio da Silva Carneiro
30
Ribeiro de Nossa Senhora da
Conceição
Total
100%
0%
225 braças
Fonte: Livro da Fazenda Real destas Minas do Serro do Frio e Tucambira, 1702 (PINTO, 1902, p. 939-962).
Do grupo dos arrematadores de braças de terras de lavras de ouro a maioria era
paulista do Vale do Paraíba, que atualmente engloba as cidades de São José dos Campos,
Taubaté, Jacareí, Pindamonhangaba, Caçapava, Lorena, Ubatuba, São Sebastião, Cruzeiro,
Guaratinguetá, Caraguatatuba, Campos do Jordão, Tremembé e Aparecida. Contudo, as
minas do Serro do Frio foram conquistadas em 1702 por bandeirantes paulistas de Taubaté
que fizeram antes sua pousada no Rio das Velhas, em Sabará ao final do século XVII.
Assim, em torno de Taubaté vários aventureiros do ouro acostumados aos sertões
e apresamento de gentios ou indígenas acabaram por tentar sua vida nas minas de ouro.
A história do Vale do Paraíba e de Taubaté ajuda a explicar as relações de poder que vão
se deslocar para as minas do Serro do Frio. Antes dos portugueses, a primeira geração de
desbravadores dos sertões das minas gerais foram os paulistas de Taubaté. Mas porque
essa centralidade dos paulistas de Taubaté no descobrimento do ouro nas minas do Serro
do Frio? Durante o reinado de D. Pedro II (1668-1706), cinco programas de estímulo ao
desenvolvimento da colônia brasileira foram estabelecidos a fim de aumentar os
rendimentos da Coroa portuguesa:
1. novo programa de incentivo à caça ao ouro; 2. criação da Colônia do
Sacramento, visando a atrair o comércio da prata peruana; 3. encorajamento ao
cultivo de sementeiras transportadas do Extremo Oriente para as capitanias do
norte do Brasil, tentando desenvolver o cultivo de especiarias na América
Portuguesa; 4. instituição da Junta do Tabaco, no esforço de explorar um melhor
produto que pudesse ajudar a preencher a lacuna deixada pela economia do
açúcar, em franco declínio; 5. tentativa de recuperar o contrato do monopólio de
fornecimento de escravos africanos. [...] décadas vinha se processando a
procura da riqueza mineral no Brasil, ocorrendo descobertas de metais e pedras
preciosas nas imediações de São Paulo, de Santana de Parnaíba, do vale do Ribeira
e da baía de Paranaguá, mantendo vivo o sonho da existência de mais riquezas
nas longínquas terras do interior. [...] Os colonos foram incessantemente
estimulados à descoberta de riqueza mineral. Ofertas de títulos de nobreza e
outras formas de recompensa atuaram como incentivo para os sertanistas que,
finalmente, puseram a descoberto os grandes tesouros das minas de Cataguazes
em 1693/1695.Taubaté, elevada à condição de vila desde 1645, foi um dos polos
de irradiação, bem como São Paulo e São Vicente e, posteriormente, Itu e
Sorocaba. Coube aos taubateanos as primeiras descobertas das minas de
Cataguases. Expedições atravessaram a serra da Mantiqueira pelas gargantas do
Sapucaí ou do Embaú. Do vale do Paraíba partiram centenas de “entradas” e
“bandeiras”, dirigindo-se às minas. [...] De Guaratinguetá, partiram expedições às
minas, bem como da nascente povoação de Pindamonhangaba. O chamado
Caminho Velho para as minas de Cataguases, apresentava o seguinte roteiro: de
Taubaté ia-se até a freguesia de Piedade (atual Lorena) e dali cruzava-se a
Mantiqueira em direção ao sertão das minas. Não havia um caminho direto entre
as minas e o Rio de Janeiro, o que obrigava o trajeto inverso: Minas / Piedade
(Lorena) / Taubaté / Facão (Cunha) / Parati / Rio de Janeiro (BUENO, 2009, p.
266-267).
Os paulistas de Taubaté dominaram as minas de ouro das minas gerais e fizeram o
mesmo nas minas do Serro do Frio. Estavam acostumados às lavras, a inspeção das pintas
de ouro nos leitos dos rios. Foram eles que, com o passar dos anos ao final do século XVII,
demandaram escravos africanos para o aprimoramento das técnicas de exploração,
substituindo progressivamente a escravidão dos indígenas pela escravidão
intercontinental ou transatlântica. O modelo de ocupação das minas de ouro usado nas
minas gerais e minas do Serro do Frio foram experimentadas primeiramente em território
paulista. Por isso:
A Casa dos Quintos (1695) foi destinada a Taubaté, ponto obrigatório de
passagem, e, a seguir, a Casa de Fundição (1697). O objetivo era combater a
sonegação, legalizando o metal e cobrando a conhecida quinta parte destinada à
Coroa. Durante os fins do século XVII, Taubaté funcionou como o ponto oficial
de manipulação e encaminhamento do metal ao reino. Tudo quanto se dirigisse
às Minas passava por Taubaté, inclusive os próprios baianos que, nos primórdios
da mineração, tendo passe livre no território aurífero, voltavam para sua terra
entrando pelo rio São Francisco através de Taubaté. O mesmo acontecia com os
gêneros alimentícios, roupas, animais e escravos, destinados ao longínquo sertão
das Gerais. Foram os taubateanos os verdadeiros abastecedores das minas, e a
rota do vale do Paraíba a mais importante em fins do século XVII e nas três
primeiras décadas do século XVIII. Embora severamente vigiado, sonegava-se o
ouro; e tornou-se ineficiente o procedimento utilizado na Casa de Fundição
taubateana, que cunhava as barretas a martelo, viabilizando a fabricação de
cunhos falsos. Portugal determinou, em 1702, que Taubaté fosse aparelhada com
uma máquina de cunhar. Mas as dificuldades do trajeto (via Parati), dado as
péssimas condições do Caminho do Facão, impossibilitaram o transporte do
engenho cunhador para Taubaté. A permanência da máquina em Parati levou o
capitão-mor a transferir a Casa dos Quintos e a de Fundição para o litoral [em
1704]. Na primeira década do século XVIII, os conflitos nos territórios auríferos
entre paulistas, reinóis e baianos são indícios do fim do monopólio dos
primeiros na região descoberta. A pequena sociedade urbana do vale do Paraíba,
que durante décadas fervilhara com o comércio, iniciou seu período de declínio
(BUENO, 2009, p. 267-268).
Portanto, as minas do Serro do Frio tiveram seu território ocupado por paulistas
que se deslocaram pelos sertões, expulsando e aprisionando indígenas. Parece que esta
ocupação sugere um modelo de funcionamento: os bandeirantes provisionados pela Coroa
portuguesa recebiam a autorização para os descobrimentos do território dos sertões,
organizavam suas expedições militares com armas, escravos indígenas e africanos,
ajudantes, oficiais da Fazenda Real ou seus procuradores, estabeleciam a primeira
benfeitoria uma pousada, pouso ou rancho na beira dos rios que apresentavam grande
pinta de ouro.
No caso das minas do Serro do Frio, a partir do
Regimento
de 1702, eram divididas
as braças de terras de acordo com os seus artigos primado para os descobridores,
seguido de sorteio das lavras para os proprietários com mais de 12 escravos e depois o que
restava para os demais mineiros. Com essa estrutura básica de funcionamento inicial das
minas de ouro surgiu o território das minas do Serro do Frio e seu distrito.
A expansão acontecia no impulso de primar, ou seja, descobrir novos ribeiros com
pintas de ouro e fazer fortuna. Seguia-se, depois, a organização eclesiástica em torno de
padres seculares e freis religiosos avulsos nas minas, que acabavam realizando missas,
batizados, casamentos e missas de corpo presente nas ermidas e capelas de telhado de
palha. Contudo, esses padres seculares e de ordens religiosas foram expulsos do território
mineiro por carta régia publicada em 9 de junho de 1711. A partir desse momento, somente
padres seculares com paróquia podiam permanecer nas minas.
Por isso, a paróquia das minas do Serro do Frio começou oficialmente em 1713, com
o seu primeiro vigário encomendado. O que seguia é o que conhecemos: a elevação das
minas e de sua paróquia a vila. Os bandeirantes paulistas entregavam a administração do
território para os oficiais do Senado da Câmara, mantendo seu prestígio e privilégios de
militares e em alguns raros casos, também eram eleitos como oficiais por fazerem parte
do grupo dos “homens bons” da vila.
Parece que havia uma intenção nesse funcionamento de se processar uma
passagem gradual, contínua e inevitável da barbárie à civilização, do caos à ordem, do
sertão para a colônia, das minas para a vila, da ermida para a capela, da capela para a
matriz, dos bandeirantes para os oficiais da câmara, do improviso para o ordenamento, da
beira rio para o alto das montanhas, do centro dos descobrimentos para a periferia do
distrito. Nas minas do Serro do Frio esse processo levou apenas 12 anos, de 1702 a 1714.
Todo ele foi centrado nas decisões dos paulistas em ordenar o território e o espaço das
minas de ouro, negociando diretamente com a Coroa portuguesa o seu ordenamento
jurídico e a ampliação dos lucros através do uso crescente da escravidão africana (LEME,
1954; 2004; MAZZUIA, 1976; MONTEIRO, 1994; NEME, 1943; PUPO, 1969; QUADRO, 1995).
A organização do quinto do ouro e as emigrações
O trânsito de aventureiros do ouro nas minas do Serro foi registrado no
Livro da
Fazenda Real
pelo escrivão Lourenço Carlos Mascarenhas de Araújo. O procurador da
Fazenda Real, representante do governo-geral do Brasil instalado em Salvador, na Bahia,
era Baltasar de Lemos de Morais Navarro. Os descobridores oficiais e guarda-mor Antônio
Soares Ferreira, seu filho João Soares Ferreira e o capitão Manuel Corrêa Arzão
prosseguiram na guardamoria das minas e de seu distrito. O registro do quinto do ouro
revela a presença de aventureiros do ouro de todos os estamentos sociais dos primeiros
anos do século XVIII. Podemos ensaiar, lembrando sempre que as minas de ouro recebiam
gente de todo tipo e de todos os lugares, formando vários estratos dentro dos estamentos
sociais.
Grosso modo, em termos de privilégio, poder e autoridade estavam os
descobridores e os oficiais provisionados pela Coroa portuguesa; abaixo, os seus
ajudantes, a milícia armada composta por homens de confiança do guarda-mor e depois
do superintendente-mor das minas. Este era o estamento alto, pois aos rendimentos das
minas se somavam as remunerações da Coroa portuguesa. A princípio os oficiais não
deviam minerar, apenas administrar, mas isso não foi regra seguida pelos descobridores e
seus ajudantes nas minas serranas. Essa era a elite das minas serranas, até 1714.
Depois, o estamento médio, composto por paulistas que investiram sua fortuna nas
lavras, seja por sorteio ou por arrematação, processo mais usual com o passar dos anos.
Este grupo possuía vários estratos: havia letrados que podiam disputar entre si cargos de
escrivão e tentar uma remuneração fixa do governo e os analfabetos; havia os padres
seculares ordenados sacerdotes em dioceses e os padres religiosos ordenados sacerdotes
em ordens religiosas; havia homens casados com família e propriedades no Vale do Paraíba
e homens solteiros enviados por seus pais para conseguirem alguma fortuna nas minas;
havia mulheres proprietárias de escravos em busca de pintas de ouro.
O estamento baixo era composto por trabalhadores manuais livres das minas,
componentes essenciais da empreitada do ouro, pois eles recebiam os equipamentos
comprados pelos proprietários das lavras e comandavam a administração das lavras,
fiscalizando os serviços. Por outro lado, havia os trabalhadores manuais cativos das minas,
os escravos, que tinham algum direito: alimentação e vestuário, moradia e proteção militar.
E, por fim, os “desclassificados do ouro”, os marginalizados das minas do Serro do
Frio, a ralé. Segundo Souza (1986, p. 14), “o desclassificado social é um homem livre pobre
frequentemente miserável , o que, numa sociedade escravista, não chega a apresentar
grandes vantagens com relação ao escravo”. Eles ocupavam o imenso vácuo entre “os
extremos da escala social, [...] caracterizada pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho
esporádico, incerto e aleatório”. Dessa forma, este desclassificado do ouro ocupou as
funções que o escravo não podia desempenhar, ou por antieconômico desviar mão-de-
obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil” (SOUZA, 1986, p. 63).
Durante o século XVIII, os estamentos sociais sofreram mais estratificações em
seus agrupamentos, com a distribuição de novos privilégios com novos cargos na vila,
aumentando a fiscalização através das ordenanças e as milícias da Casa de Fundição; entre
os desclassificados do ouro a miséria aumentou, prejudicando ainda mais o acesso a
trabalhos esporádicos, disputados cada vez mais por um número enorme de desocupados.
Retomemos o quadro geral dos pagadores do quinto do ouro. Eles faziam parte do
estamento alto e médio das minas do Serro do Frio. No total, 48 nomes diferentes foram
assentados no livro da Fazenda Real nas folhas que restaram do documento transcrito
pelo alferes Luiz Antônio Pinto entre 1702 (2), 1703 (0), 1704 (8), 1705 (14), 1706 (19), 1707
(4), 1709 (1).
A partir das assinaturas nos assentos relativas aos seus declarantes, pudemos
colher a informação sobre a alfabetização dos mineiros. Assim, dos 48 nomes: 46 homens,
sendo 4 analfabetos, totalizando 9% entre eles; 2 mulheres, sendo 2 analfabetas,
totalizando 100% entre elas e 4% do total. A taxa total de analfabetismo entre homens e
mulheres era de 14%. O analfabetismo diz respeito nesse contexto a não conseguir assinar
o próprio nome no registro oficial, solicitando a assinatura por um terceiro, “a rogo” ou
fazendo um sinal de cruz entre a assinatura do escrivão, confirmando sua autenticidade.
No grupo dos padres seculares e religiosos frei Columbano de Santa Escolástica,
frei João Batista, Inocêncio de Carvalho e Sebastião Rodrigues Benavides todos
obrigatoriamente eram alfabetizados, sabendo ler e escrever o português, além de dominar
o latim, língua oficial da igreja em seus ofícios divinos.
Outro dado importante é relativo ao destino do ouro que estava sendo quintado e
levado em pó pelos declarantes. Trata-se de 54 registros de arrecadação no total do livro.
A maioria, 22 (41%), afirmou levar o ouro em pó para a cidade da Bahia, ou seja, Salvador;
11 (20%) afirmaram que partiam para os currais da cidade da Bahia, ou seja, arredores de
Salvador; 9 (17%) afirmaram que partiam para os Currais da Bahia; 7 (13%) registraram no
livro a expressão “que leva” consigo; 5 (9%) afirmaram simplesmente “vai destas minas”;
2 (4%) partiram para Pernambuco.
Chama a atenção que, sendo a maioria dos mineiros paulistas do Vale do Paraíba a
tirarem ouro nas minas do Serro do Frio, fosse informado que estão de partida ou vão
enviar o ouro pelos caminhos da Bahia. duas hipóteses para essa afirmação majoritária:
a primeira é que o ouro passaria por Sabará (Rio das Velhas), no caminho da Bahia, de
indo até o Vale do Paraíba, onde os mineiros eram reconhecidos pelas autoridades locais
7
;
a segunda é que se tratava de uma informação genérica de autorização prévia para a
circulação do ouro, fora da região das minas do Serro do Frio, uma espécie de salvo
conduto dos portadores que levavam consigo a guia de recolhimento do quinto.
Por isso, o deslocamento de pessoas para as minas serranas foi majoritariamente
nos seus primeiros anos de paulistas, com apenas dois registros para Pernambuco, sendo
um padre secular, o reverendo Inocêncio de Carvalho (que levava uma fortuna em ouro
em pó, cerca de 600 oitavas, ou cerca de 2,1 kg) e Domingos Lopes.
Outro grupo de declarações deixa subentendido que se tratava de pessoas que
usariam o ouro quintado, ou seja, legalizado, para u-lo nas minas do Serro do Frio. Entre
7
A informação é referendada por Santos (2013, p. 64) sobre este caminho: “era um emaranhado de estradas,
atalhos e picadas, que convergiam em direção ao rio São Francisco, tanto na sua parte baiana, quanto na
mineira”; na p. 73 afirma que “até meados do século XVIII, a Vila Real de Nossa Senhora do Sabará era um
ponto obrigatório para quem seguia rumo a Bahia”.
os assentos, 13% declararam “que leva” o ouro, ou seja, carrega consigo para destino não
esclarecido. Se juntarmos o outro grupo dos 9% que afirmavam “vai destas minas” temos
19% de pessoas que parecem querer indicar aos oficiais da Fazenda Real sua circulação no
distrito serrano das minas. Por isso, esses mineiros não temem a imprecisão da
informação, uma vez que não serão revistados em “registros” por algum caminho pelo
Brasil. Uma declaração falsa poderia gerar constrangimentos e prisões por ser
considerado descaminho alfandegário do ouro.
Assim, se considerarmos o fluxo de pessoas pelas minas do Serro do Frio, 20% dos
mineiros parecem indicar que o ouro seria usado para gastos pessoais na localidade: na
construção ou melhoria de suas casas, na compra ou negociação de escravos, para a
compra de alimentos, roupas, sapatos, utensílios para as lavras e hortas domésticas, para
o pagamento aos padres pelos ofícios divinos e ministração dos sacramentos eclesiásticos
como o batismo e o matrimônio e as missas de corpo presente para os recém-falecidos,
para os mortos da família, para esmolas para os santos das ermidas e capelas. Por isso,
não é de se estranhar que em torno das minas de ouro as vendas se fizessem presentes.
Em 1718, havia pelo menos 30 vendas nas minas do Serro do Frio (ARQUIVO PESSOAL
MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 70, n.p.; LIBBY, 2018, p. 316), das quais podemos
concluir que ofertavam pequenos serviços de sapataria, alfaiataria, chapelaria, bem como
material para aviamentos, produtos secos e molhados, além de bebida alcoólica.
Segundo Boxer (1963, p. 64), a corrida do ouro em Minas Gerais promoveu uma
fuga dos oficiais mecânicos das maiores vilas e das cidades para as minas: “artesãos e
técnicos iam aos bandos para as minas, procurando empregos melhor remunerados, e isso,
por sua vez, aumentava o custo dos serviços essenciais no resto do Brasil”. As minas do
Serro do Frio atraiam pessoas dispostas ao trabalho pago em ouro.
Tabela 2 Receita da Fazenda Real Minas do Serro do Frio e Tucambira Arrecadação
dos quintos do ouro, alfabetização e destino 1702-1712
N.
Data
Nome
Lê e
escreve?
Total
Oit.
Quinto
Oit.
Destino
1
2
18/09/1702
Antônio Camello
Domingos de Brito da
Costa
Sim
Sim
140
28
C
3
09/10/1704
Francisco Barbosa
Sim
108
60 [?]
C
4
09/10/1704
Pedro Vaz
Não
72
40 [?]
C
5
6
10/10/1704
Hilário Pinto de Almeida
por Jacinto Gonçalves
Sim
Sim
117
65 [?]
C
7
10/10/1704
Martinho de Almeida
Não
45
25 [?]
S
8
10/10/1704
Tomás Luiz Moreira
Sim
72
40 [?]
S
9
01/12/1704
Gonçalo Viegas
Sim
650
130
B
10
01/12/1704
Gonçalo Viegas por
João Lopes Soeiro
Sim
500
100
11
23/02/1705
Paulo Pires de Miranda
Sim
110
22
B
12
28/03/1705
Francisco Teixeira de
Abreu
Sim
100
20
B
13
27/05/1705
Manuel Francisco dos
Santos
Sim
200
40
B
14
08/07/1705
Francisco Mendes Barros
Sim
400
80
B
15
11/08/1705
Manuel Luiz
Sim
400
80
V
16
11/08/1705
Manuel Soares
Sim
400
80
V
17
05/09/1705
Sebastião Ribeiro
Sim
20
4
V
18
11/09/1705
Antônio Soares Ferreira
Sim
380
64
S
19
07/10/1705
Padre Inocêncio de
Carvalho
Sim
600
120
P
2
0
07/10/1705
Domingos Lopes
Não
100
20
P
21
07/10/1705
Antônio da Rocha Branco
Sim
1920
380
S
22
08/10/1705
Padre frei Columbano de
Santa Escolástica
Sim
100
20
Q
23
09/10/1705
Domingos do Vale Padilha
por Antônio da Rocha
Branco
Sim
80
16
S
24
04/11/1705
Manuel Pereira
Sim
300
60
V
04/11/1705
Manuel Pereira
40
8
V
10/01/1706
Tomás Luiz Moreira
por João Martins Gomes
Sim
115
23
Q
25
08/01/1706
Antônio Gomes de Estrada
Sim
40
8
B
22/01/1706
Sebastião Ribeiro
Sim
50
10
B
26
27
04/03/1706
João Francisco Leite por
José Borges Pinto
Sim
Sim
200
40
Q
28
13/03/1706
Gonçalo Ferreira de Sousa
Sim
50
10
B
29
13/03/1706
Mateus Afonso
Sim
100
20
B
3
0
15/03/1706
Antônio da Silva Carneiro
Sim
120
25
C
31
15/03/1706
Antônio de Sá da Fonseca
por Antônio Rozado
Sim
Sim
30
6
B
32
18/03/1706
Mécia Preta por
Izabel Maria da Cruz
Não
Não
120
24
Q
33
18/03/1706
Mécia Preta pelo
padre frei João Batista
Sim
60
12
Q
34
23/03/1706
Antônio Alves
Sim
100
20
B
35
19/03/1706
Padre Sebastião Rodrigues
Benavides
Sim
56
11
S
29/03/1706
Antônio da Rocha Branco
Sim
50
10
S
30/03/1706
Antônio Soares Ferreira
180
30
S
36
12/04/1706
Tomas Luiz Moreira
Sim
80
16
S
12/07/1706
Martinho de Almeida
160
32
S
13/07/1706
Martinho de Almeida
15
3
S
13/07/1706
Francisco Teixeira
Sim
1005
201
S
13/07/1706
Antônio da Silva Carneiro
Sim
40
8
S
37
13/07/1706
Padre Sebastião Rodrigues
Benavides
Sim
130
26
S
38
30/07/1706
Manuel Fernandez
Não
500
100
Q
39
30/07/1706
João Francisco Feitel
Sim
50
10
S
30/07/1706
Manuel Fernandez
64
12
S
4
0
41
30/07/1706
Capitão Lucas de Freitas de
Azevedo por Simão da Silva
Sim
Sim
64
12 ½
S
42
15/09/1706
Damásio de Souza Barros
Sim
566
111
Q
43
07/01/1707
Alexandre de Paiva
Sim
500
100
S
44
07/01/1707
Alexandre de Paiva por
Faustino da Silva
Sim
170
32
S
45
07/02/1707
Alexandre de Paiva por
Domingos Teixeira
Sim
40
8
S
46
12/02/1707
Manuel Luis da Silva
Sim
200
40
C
13/02/1707
Manuel Luis da Silva
189
31
C
19/07/1707
Francisco Teixeira de
Abreu
380
76
S
47
29/07/1709
Antônio Pinheiro
Guimarães
Sim
230
46
S
42
6
12508
(a)
2615 ½
(b)
9
22
11
2
5
7
87%
13%
15233 ½ oitavas
(a+b)
17
%
41
%
20
%
4
%
9
%
13
%
Fonte: Livro da Fazenda Real destas Minas do Serro do Frio e Tucambira, 1702 (PINTO, 1902, p. 939-962).
[?] Não há explicação para que este valor seja acima de 20%, ou seja, 1/5 do total apresentado. Legendas:
[C] Currais da Bahia; [S] Cidade da Bahia Salvador; [B] Currais da Cidade da Bahia arredores de
Salvador; [P] Pernambuco; [V] Vai destas minas; [Q] Que leva.
Remontar a biografia de todos os aventureiros do ouro das minas do Serro do Frio
registrados no
Livro da Fazenda Real destas minas do Serro e Tucambira
é praticamente
impossível. Não há, infelizmente, um livro de controle da chegada desses homens e
mulheres nas minas, antes, chegavam na base do improviso, despertados pela corrida do
ouro. Já vimos que os arrematantes de braças de terras eram, em sua maioria, paulistas do
Vale do Paraíba.
Nos primeiros anos das minas do Serro do Frio, o fluxo de paulistas foi constante,
com idas e vindas parte pelo caminho velho que dava depois na parte mineira dos caminhos
da Bahia (Quadro 2). A fim de mapear minimamente a origem dos primeiros mineiros
usamos como método de verificação sete fontes de pesquisa: o livro
Memória sobre o
Serro antigo
(SILVA, 1928), os 220 cadernos do Arquivo Pessoal Maria Eremita de Souza,
o Caderno 3 do Arquivo Pessoal Maria Eremita de Souza com relação de portugueses com
testamentos na Vila do Príncipe feita pelo alferes Luiz Antônio Pinto, o
Livro da Fazenda
Real das Minas do Serro do Frio e Tucambira
(PINTO, 1902), a
Genealogia Paulistana
(LEME, 1905), a
Nobiliarquia Paulistana
(LEME, 1980), o
Dicionário de Bandeirantes e
Sertanistas do Brasil
(FRANCO, 1989) e o livro
A arte da crônica e suas anotações
(BRISKIEVICZ, 2017).
Assim, dos 47 registros de quinto do ouro do Livro da Fazenda Real das Minas do
Serro do Frio (Quadro 3), considerando a relação de nomes foram identificadas as
seguintes localidades de origem: 17 (1-17) não identificados; 9 (18-36) provenientes da Bahia
dos currais da Bahia, dos currais da cidade da Bahia e da cidade da Bahia (Salvador); 2
(27-28) provenientes da Capitania de Pernambuco; 3 (29-31) de Portugal, sem a
possibilidade de determinar qual a vila ou cidade; 16 (32-47) provenientes de São Paulo,
em sua maioria do Vale do Paraíba.
Tabela 3 Arrecadação dos quintos do ouro Local de Origem e Permanência na Vila do
Príncipe
Nome
Origem
Morador
Informação/fonte
1.
Antônio de Sá da Fonseca
N.I.
N.I.
N.I.
2.
Antônio Pinheiro Guimarães
N.I.
N.I.
N.I.
3.
Damásio de Souza Barros
N.I.
N.I.
N.I.
4.
Faustino da Silva
N.I.
N.I.
N.I.
5.
Francisco Barbosa
N.I.
N.I.
N.I.
6.
Francisco Mendes Barros
N.I.
N.I.
N.I.
7.
Francisco Teixeira de Abreu
N.I.
N.I.
N.I.
8.
Gonçalo Ferreira de Sousa
N.I.
N.I.
N.I.
9.
Jacinto Gonçalves
N.I.
N.I.
N.I.
10.
João Francisco Leite
N.I.
N.I.
N.I.
11.
Manuel Francisco dos Santos
N.I.
N.I.
N.I.
12.
Manuel Luis da Silva
N.I.
N.I.
N.I.
13.
Manuel Soares Lopes
N.I.
N.I.
N.I.
14.
Martinho de Almeida Barbosa
N.I.
N.I.
N.I.
15.
Sebastião Ribeiro
N.I.
N.I.
N.I.
16.
Simão da Silva
N.I.
N.I.
N.I.
17.
Tomás Luiz Moreira
N.I.
N.I.
N.I.
18.
Manuel Pereira
Bahia
Não
“Militar da Bahia que seguiu como imediato do
capitão-mor das entradas Francisco Veloso da
Silva, juntamente com os militares João da
Rocha e Manuel Rodrigues, numa grande
arrancada feita em 1720, contra os índios bravos
e mocambos desde Jaguaripe, Jequitinhonha, rio
Pardo, rio das Contas, Cairu, Conquista a
Araçuaí e na qual tomaram parte, como chefes,
João Ribeiro Dias, Francisco da Silva Sampaio,
Manuel Mendes Maria, José da Mota Verde, João
de Sousa Ferreira, Nicolau de Sousa e Silva,
Francisco Lopes Villas-Boas e João de Couros
Carneiro” (FRANCO, 199, p. 298) [?].
19.
Gonçalo Viegas
Bahia
Não
Comerciantes de gados dos arredores da cidade
da Bahia, Salvador (PINTO, 1902)
20.
Hilário Pinto de Almeida
Bahia
Não
Franco (1989, p. 26), “bandeirante baiano que
andou no Serro-Frio, no primeiro quartel do
século XVIII em busca de ouro”. Ver: LEME.
Genealogia Paulistana
, “Pinto de Almeida”, v. 3,
p. 451.
21.
Izabel Maria da Cruz
Bahia
Não
PINTO, 1902.
22.
João Francisco Feitel
Bahia
Sim
Levava ouro para Salvador (PINTO, 1902).
23.
Mécia Preta
Bahia
Não
PINTO, 1902.
24.
Padre frei Columbano de Santa
Escolástica
Bahia
Não
PINTO, 1902.
25.
Padre frei João Batista
Bahia
Não
PINTO, 1902.
26.
Padre Sebastião Rodrigues Benavides
Bahia
Não
PINTO, 1902.
27.
Domingos de Brito da Costa
Pernambuc
o
Não
PINTO, 1902.
28.
Padre Inocêncio de Carvalho
Pernambuc
o
Não
PINTO, 1902.
29.
Antônio Rozado
Portugal
Sim
Testamento em 1756; “portugueses que para
aqui vieram, se estabeleceram, se casaram ou
não se casaram, mas formaram famílias, e cuja
descendência é hoje assombrosa” (ARQUIVO
PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Cad. 3,
n.p.)
30.
Mateus Afonso
Portugal
Sim
Sebastião Lopes Afonso, sem testamento
(ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE
SOUZA,, Cad. 3, n.p.)
31.
João Lopes Soeiro
São Paulo
Sim
Manuel Jacome Soeiro serviu como vereador em
1764 e 1769 (SILVA, 1928)
32.
Alexandre de Paiva
São Paulo
Não
LEME.
Genealogia Paulistana
, “Faria Paiva”, v.
7, p. 519.
33.
Antônio Alves [Muniz ou da Silva?]
São Paulo
Sim
No ano seguinte [1726], o Senado comprou uma
casa a Manuel de Moura Bexiga, a qual fora de
Antônio Alves Muniz, paga a compra com 300
oitavas de ouro e mais uma casinha
anteriormente adquirida a Luís da Costa, no
valor de 150 oitavas (SILVA, 1928, p. 89).
Antônio Alves Silva foi vereador em 1721, 1728 e
1735 (SILVA, 1928).
34.
Antônio Camello [Alcanforado]
São Paulo
Sim
Vereador em 1738 e 1755 (SILVA, 1928); “1740
03 de outubro requerimento de Antônio
Camelo Alcanforado, escrivão de Órfãos
solicitando prorrogação, por mais um ano, de
seu exercício” (BRISKIEVICZ, 2017); testamento
em 1757 (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA
DE SOUZA, Cad. 3, n.p.).
35.
Antônio da Rocha Branco
São Paulo
Não
FRANCO, 1989.
36.
Antônio da Silva Carneiro
São Paulo
Sim
“Numa vereação de 1738 o procurador requereu
fossem notificados todos os moradores da Vila,
desde a ponte do arraial de Baixo, casas de
Antônio da Silva Carneiro
... a fim de fazerem
suas testadas. Ora, esta ponte do arraial de
Baixo, esta casa de Antônio da Silva Carneiro,
estão próximas de poucos metros do córrego da
Conceição onde Carneiro minerava em data
sua” (SILVA, 1928, p. 11-12).
37.
Antônio Gomes de Estrada
São Paulo
Não
FRANCO, 1989, p. 148.
38.
Antônio Soares Ferreira
São Paulo
Sim
Descobridor e guarda-mor das minas do Serro
do Frio (PINTO, 1902).
39.
Domingos do Vale Padilha
São Paulo
Sim
Nessa mesma pousada, em 1705 foi
quintado
Domingos do Valle Padilha, posteriormente
senador na Vila do Príncipe. Nela deixou
numerosa prole, até hoje extensamente
ramificada, e cujo nome se acha perpetuado em
o nosso arrabalde o belo
Pasto do Padilha
(SILVA, p. 11).
40.
Domingos Lopes [de Moura]
São Paulo
Sim
Procurador do Senado da Câmara em 1726
(SILVA, 1928).
41.
Domingos Teixeira [Pinheiro]
São Paulo
Sim
Vereador do Senado da Câmara em 1728 (SILVA,
1928).
42.
João Martins Gomes
São Paulo
Sim
Patente de capitão Antônio Martins Gomes do
Tijuco [irmão?] (ARQUIVO PESSOAL MARIA
EREMITA DE SOUZA, Cad. 56, n.p.).
43.
José Borges Pinto
São Paulo
Sim
Tesoureiro da Fazenda Real entre 01/12/1704 e
1709 (PINTO, 1902).
44.
Lucas de Freitas Azevedo
São Paulo
Sim
FRANCO, 1989, p. 52-53.
45.
Manuel Fernandes [Ribeiro]
São Paulo
Sim
Juiz ordinário no Senado da Câmara em 1766 e
1773.
46.
Paulo Pires de Miranda
São Paulo
Sim
Procurador do ano do Senado da Câmara em
1717 (SILVA, 1928).
47.
Pedro Vaz
São Paulo
Não
Irmão de Antônio Vaz [?]: “sertanista de São
Paulo [...] e que agiu no território de Minas
Gerais” (FRANCO, 1989, p. 424).
Fonte: Livro da Fazenda Real destas Minas do Serro do Frio e Tucambira, 1702 (PINTO, 1902, p. 939-962).
Os portugueses nas minas do Serro do Frio
Os dados relativos aos portugueses que atravessaram o Atlântico e passaram pelas
minas do Serro do Frio e sua Vila do Príncipe no período colonial foram compilados pelo
alferes Luiz Antônio Pinto. Ele intitulou sua relação de “Portugueses que para aqui vieram,
se estabeleceram, se casaram ou não se casaram, mas formaram famílias, e cuja
descendência é hoje assombrosa” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA,
Caderno 3, n.p.). Ele dividiu os reinóis em dois grupos: os que deixaram testamento
(Quadro 4), por isso, opulentados em bens, propriedades e escravos; e que não deixaram
testamentos (Quadro 5), por isso, possivelmente, pouco opulentados.
Tabela 4 Portugueses falecidos com testamento 1744-1798
1.
Pedro Homem Leonardo
1744
2.
Capitão José de Souza Ribeiro
1744
3.
Antônio Mendes Razo
1744
4.
Fructuoso Francisco Guimarães
1747
5.
Capitão Manuel de Almeida Cabral
1751
6.
Antônio Francisco de Carvalho
1755
7.
João Moreira da Silva
1755
8.
Tenente Amaro dos Santos de Oliveira
1756
9.
Antônio Rozado
1756
10.
Guarda-mor Antônio Camelo Alcanforado
1757
11.
Capitão-mor Luiz Vaz de Siqueira Monções
1756
12.
Manuel João Alvarenga
1757
13.
João Leite Pinto
1758
14.
Capitão Antônio Gonçalves Chaves
1758
15.
Manuel Mendes Raso
1758
16.
Antônio Gonçalves Chaves
1758
17.
Tenente-mor Victoriano da Rocha de Oliveira
1759
18.
Capitão-mor Bernardo da Fonseca Lobo
1761
19.
Manuel Teixeira Leão
1761
20.
Manuel Rodrigues de Meireles
1762
21.
Bento Antônio Coelho
1762
22.
Manuel Rodrigues Alvarenga
1765
23.
Antônio Durães
1766
24.
Capitão Antônio Bernardo de Sobral e Almeida
1767
25.
Onofre da Costa Pinheiro
1767
26.
Francisco Martins Ferreira
1768
27.
Antônio de Souza de Araújo
1768
28.
Miguel Rodrigues de Miranda
1772
29.
Sargento-mor Vicente Pereira de Morais e
Castro
1774
30.
José Carvalho da Fonseca
1776
31.
Thomé Fernandes Guimarães
1777
32.
André Francisco de Carvalho
1777
33.
Domingos da Costa Villa Real
1778
34.
Capitão João da Costa Coelho
1780
35.
Amaro Machado Balieiro
1781
36.
Luiz de Oliveira Anjinho
1782
37.
Sargento-mor Félix Marinho de Moura
1782
38.
Sargento-mor Francisco Pereira Maciel
1783
39.
Alferes José Ribeiro Sampaio
1783
40.
Manuel Vieira Couto
1785
41.
João Simões Barrocos
1785
42.
Manuel Godinho de Jesus
1785
43.
Capitão João Pinto Coelho
1786
44.
Sargento-mor João Batista Farnesi
1786
45.
Valério de Brito e Souza
1786
46.
Capitão João Ribeiro Pinto
1786
47.
Antônio Durães e Castro
1786
48.
Capitão Js. de Moura e Oliveira
1787
49.
Manuel Antunes dos Reis
1788
50.
Sargento-mor Js. Barata de Lima
1788
51.
Diogo da Silva Guimarães
1789
52.
T. Francisco de Carvalho
1789
53.
Francisco Leite da Mota
1790
54.
Custódio Vieira Costa
1790
55.
Antônio Pires de Moura
1790
56.
Custódio Alves Sampaio
1793
57.
Manuel Durães de Castro
1793
58.
Manuel Gonçalves Nunes
1793
59.
Miguel Gonçalves Vieira
1794
60.
José Batista Rolim
1794
61.
Capitão Bernardo dos Santos Carvalhaes
1794
62.
Antônio José Alves
1794
63.
Silvestre Alves Pereira
1795
64.
Bernardo José Pinto
1795
65.
José de Castro Guimarães
1795
Fonte: APMES, Cad. 3, n.p.
Tabela 5 Portugueses falecidos sem testamento 1722-1801
1.
Alferes Manuel de Moura Bexiga
1722
2.
Gaspar Gonçalves da Cunha
1722
3.
Licenciado Daniel Pinto da Silva
1723
4.
Sebastião Lopes Affonso
1748
5.
Manuel Antônio de Souza
1757
6.
Capitão Custódio de Araújo Guimarães
1763
7.
José Moreira Pinto
1783
8.
José Dias da Costa
1789
9.
Jerônimo de Almeida Brito
1797
10.
Domingos Dias Chaves
1799
11.
Manuel José Caldas
1801
12.
Capitão Marcos da Costa Ribeiro
s.d.
13.
Alferes Manuel Ribeiro Costa
s.d.
14.
Manuel Mendes Raso
s.d.
Fonte: ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Cad. 3, n.p.
No total, a relação do alferes Luiz Pinto nomeou 84 portugueses. O maior número
de opulentados, o menor número de portugueses que não quiseram gastar seu dinheiro
com um testamenteiro. Na lista não aparece qualquer nome de mulher. A princípio, isso
poderia indicar uma sociedade serrana formada por famílias tradicionais nos primeiros
anos composta basicamente por relações patriarcais, patronais e masculinas, em que os
homens teriam absoluta projeção social. Contudo, isso não condiz com os estudos atuais
das famílias portuguesas emigrantes para as minas do Serro do Frio.
De acordo com novos estudos, “nas últimas décadas, a história da vida familiar
colonial conheceu novas interpretações” (RAMOS, 2008, p. 134) uma vez que “caiu por
terra a visão tradicional restrita à análise da família extensa e patriarcal; a instituição
deixou de ser descrita de forma monolítica, passando a englobar uma variedade de tipos
diferentes” (RAMOS, 2008, p. 134) e um deles é o da família encabeçada pela mulher, que
surge no Brasil como um tipo importante, principalmente no final do período colonial e no
período pós-Independência” (RAMOS, 2008, p. 134); dessa forma “tornou-se claro que os
domicílios eram menores do que se supunha, revelou-se, também, que o casamento, pelo
menos aquele definido como sacramentado pela Igreja, era a escolha de apenas uma
pequena parcela da população adulta livre” (RAMOS, 2008, p. 134), apesar do “esforço e a
pressão em contrário exercidos pela Coroa portuguesa e pela Igreja Católica” (RAMOS,
2008, p. 134); assim, “para a grande maioria da população livre, o que se observa é a
66.
Mateus Luiz Porto
1796
67.
Manuel Nogueira de Araújo
1797
68.
Paulo de Almeida Saraiva
1798
69.
Capitão Antônio Rodrigues da Ca.
1799
70.
João de Castro Porto
1798
predominância de uniões consensuais, seja com coabitação ou não” (RAMOS, 2008, p.
134).
Os estudos sugerem que a lista do alferes é um recorte dos documentos oficiais
cartoriais que colidem com novas avaliações. A primeira é que “a família portuguesa não
era uniforme, sendo marcada por variações regionais distintas” (RAMOS, 2008, p. 134); a
segunda é que “os imigrantes que vieram para Minas Gerais eram oriundos,
principalmente, do norte de Portugal, uma região socialmente distinta” (RAMOS, 2008, p.
134); e terceiro que “a natureza e estrutura da família do norte de Portugal eram bastante
similares às encontradas em Minas Gerais durante o século XVIII e início de século XIX;
[...] tais similaridades podem ser explicadas por meio da predominância da imigração
norte-portuguesa para a região aurífera de Minas Gerais, a qual tinha, num sentido amplo,
características econômicas semelhantes às do norte de Portugal” (RAMOS, 2008, p. 134).
Esta é uma questão importante para os primeiros anos de formação da civilização
serrana: qual a origem dos portugueses que chegaram às minas de ouro, quais os seus
valores e formas de organização familiar? Será que era tão diferente das formas indígenas
e africanas ou havia similaridades? A resposta é que para além de um vago sentido do
termo “herança cultural” é necessário buscar os fundamentos políticos em que o trânsito
“entre o norte de Portugal e Minas Gerais nasceu da convergência de valores e instituições
sociais” (RAMOS, 2008, p. 134), no trânsito entre Brasil e Portugal e, por conta disso, “no
final do século XVIII, a configuração sociodemográfica da família de Minas Gerais era
muito semelhante à daquela região portuguesa” (RAMOS, 2008, p. 134).
Os portugueses que chegaram às minas do Serro do Frio nos seus primeiros anos
saíram majoritariamente do norte de Portugal, das províncias do Minho, Douro e Trás-os-
Montes. De fato, a forma de organização política e jurídica dessas províncias e comarcas
portuguesas será espelhada nas minas do Serro do Frio. A nação portuguesa é uma das
mais antigas da Europa, tanto na sua configuração territorial quanto na divisão dos
serviços políticos e jurídicos.
A partir do século XV, Portugal era dividido em grandes unidades administrativas
chamadas comarcas, cada uma delas chefiada por um magistrado com poderes
administrativo e judicial, representando o poder real na sua jurisdição. Eram “homens
bons” chamados tenentes, depois meirinhos-mores e por fim corregedores. No século
XVIII, a província e a comarca se separam em suas funções. A comarca ou correição
tornou-se uma subdivisão da província, sob a jurisdição do corregedor. A província era
comandada por um governador das armas (1641-1836).
Até 1751, havia seis governadores das armas, com seis províncias: Entre-Douro-e-
Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve. Em 1790, todas as
ouvidorias foram transformadas em comarcas, com corregedor nomeado diretamente pela
Coroa. Em 1801, Portugal era dividido em seis províncias: Província de Entre-Douro-e-
Minho (comarcas de Valença, Viana, Braga, Barcelos, Guimarães, Porto e Penafiel);
Província de Trás-os-Montes (comarcas de Bragança, Miranda, Moncorvo, Vila Real);
Província da Beira (comarcas da Feira, Aveiro, Lamego, Trancoso, Pinhel, Guarda,
Linhares, Viseu, Castelo Branco, Arganil e Coimbra); Província da Estremadura (comarcas
da Leiria, Ourém, Cinco Vilas (Chão de Couce), Tomar, Alcobaça, Santarém, Alenquer,
Torres Vedras, Ribatejo (Vila Franca de Xira), Lisboa, Setúbal); Província do Alentejo
(comarcas do Crato, Portalegre, Vila Viçosa, Avis, Elvas, Évora, Beja, Ourique) e Reino do
Algarve (comarca do Lagos, Faro e Tavira).
Segundo Boxer (1963, p. 74), a maioria dos imigrantes portugueses que chegaram
às minas gerais e por extensão às minas do Serro do Frio e sua Vila do Príncipe e seu termo
nos anos seguintes ao descobrimento do ouro e depois dos diamantes veio do norte, da
região do Minho.
Isso é confirmado por Ramos (2008, p. 134-135), que acredita no “protótipo
nortista” dominante nas minas de ouro, com as províncias do Entre-Douro-e-Minho e a
Província de Trás-os-Montes fornecendo um certo modelo de composição familiar. Assim:
Em linhas gerais, pode-se afirmar que no norte havia uma proporção maior de
mulheres na população, taxas mais altas de celibato (definida aqui como a
percentagem de mulheres que permaneceram solteiras), casamentos mais
tardios, altas taxas de ilegitimidade e de abandono de crianças, bem como uma
proporção menor de famílias nucleares e, por outro lado, maiores proporções de
famílias extensas (envolvendo colaterais, ascendentes e descendentes em um
mesmo domicílio) e múltiplas (envolvendo, num mesmo domicílio, unidades
familiares com ou sem vínculos de parentesco entre elas) do que em outras
regiões de Portugal. O contexto social do norte de Portugal era caracterizado por
uma tendência de migração dos homens, ficando as mulheres na chefia das
famílias. A partida desses homens significava uma perda de trabalhadores, que,
contudo, não eram mais necessários a propriedades rurais pequenas demais para
alimentarem famílias numerosas. O fenômeno, por outro lado, propiciava o
surgimento de fontes de renda complementares, a serem enviadas ao domicílio
português de origem. O grande número de homens que emigraram para o Brasil
e outras colônias portuguesas causou um forte impacto demográfico em
Portugal como um todo, e, notadamente, naquelas regiões onde a migração era
mais expressiva casos das províncias do norte e do centro-norte.
Não emigração sem a criação de novas dinâmicas de mestiçagens sejam elas
demográficas culturais, biológicas, alimentares, tecnológicas, mas acima de tudo com a
possibilidade de surgimento de novos gestos pedagógicos coloniais.
8
Emigrar é reaprender
a conviver e a sobreviver. Isso vale para todas as pessoas que chegaram às minas do Serro
do Frio: os novos desafios da gente serrana que se encontrou agrupada no território que
precisava ser dominado com suas técnicas e tecnologias, suas formas de vida e seus gestos
pedagógicos aprendidos em lugares distantes; com idiomas diferentes (muitas línguas
eram ouvidas nos primeiros anos vindas da África com sua imensa variedade cultural, de
Portugal com seus sotaques regionais, dos indígenas com suas sociedades nômades e
seminômades); com formas de organização familiar peculiares (matrifocal, patrifocal,
monogâmica ou poligâmica casamentos oficiais e concubinatos normalizados
socialmente); com crenças religiosas das mais variadas.
O que criou a coesão social necessária para permitir a convivência entre pessoas
tão diversas culturalmente?
As tentativas bem ou malsucedidas em torno da fortuna do ouro.
O ouro ofuscava o óbvio: a gente serrana não sabia que criava uma nova civilização
marcada pelo jeito barroco serrano de ser. Nessa mistura incontrolável de gestos
pedagógicos, criou-se a possibilidade de manifestações múltiplas de convivência, reunidas
na expressão de uma cultura outra, diferente de tudo o que havia nos lugares de origens
desses homens e mulheres.
Considerações finais
Em conclusão, parece que, de fato, nos últimos anos do século XVII e primeiras
décadas do século XVIII, exatamente no período em que os paulistas transitavam pelas
minas do Serro do Frio, as relações político-sociais estavam consolidadas em torno do
poder simbólico da Coroa portuguesa, em especial na figura ou representação dos
bandeirantes ou sertanistas, a versão militarizada colonial da metrópole e da presença
massiva da igreja em seus arremedos de salvação, dividindo o mundo entre a cidade dos
homens do qual ela participava recebendo côngruas e privilégios e a cidade de Deus
pelo qual ela referendou suas práticas e discursos sociais.
8
O gesto pedagógico colonial resultou das sociabilidades serranas. É que a educação formal (pode ser a
escolar ou algo que lhe seja semelhante) e não formal (ou não institucional) e a política oficial do estado e
sua relação com o povo constituindo um senso comum são gestos pedagógicos coloniais acionados
prioritariamente pelos portugueses em contato constante com múltiplas culturas, propiciando um vasto
processo de assimilações e aculturações únicos, conhecidos historicamente como a formação do povo
brasileiro, e por extensão do povo que se fez mineiro e do povo que se tornou serrano. A educação ou ser
civilizado num primeiro momento pode ser definida genericamente como capacidade de entender as
ordens alheias, os comandos de outra pessoa (autoridade oficial, familiar, religiosa etc.) e ajustá-las ao
cotidiano da própria existência, suprassumindo este ordenamento de fora para dentro, do mundo exterior
para a interioridade do sujeito (BRISKIEVICZ, 2021).
Isso é confirmado por Boxer (1963, p. 39), na sua ideia de “sangues mesclados”
variáveis nas múltiplas regiões brasileiras (talvez uma herança de Gilberto Freyre em sua
noção de cultura): do norte para o sul, no Maranhão predominavam os ameríndios, “vindo
os mamelucos e caboclos em segundo lugar, brancos e mulatos em terceiro, e negros por
último, representados por pequena cifra” (BOXER, 1963, p. 39); Recife, Salvador e Rio de
Janeiro e partes do Espírito Santo, “negros e mulatos predominavam, com brancos puros
em segundo lugar, e ameríndios e caboclos em terceiro” (BOXER, 1963, p. 39); São Paulo
teria um número maior de mamelucos e “pessoas com mistura de sangue negro, bem como
brancos puros, eram relativamente raras” (BOXER, 1963, p. 39); no vale do rio São
Francisco, as três raças mesclavam-se de tal maneira que qualquer afirmação nesse
terreno poderia passar de simples conjectura; é possível, entretanto, que as contribuições
do sangue negro e ameríndio predominassem nos vaqueiros” (BOXER, 1963, p. 39).
Importante, contudo, sua conclusão sobre a miscigenação racial brasileira como
estrutura social em que afirma criticamente:
Que seja como for, houve fortes correntes migratórias vindas de Portugal e das
ilhas do Atlântico, por um lado, e da África Ocidental por outro, enquanto os
ameríndios estavam sendo dizimados pelas doenças, pelos trabalhos pesados,
pelas rígidas aldeias jesuítas, e por outros fatores, formando, assim, uma
contribuição que ia diminuindo rapidamente (BOXER, 1963, p. 39).
Em oposição ao conceito de miscigenação de Boxer bastante limitador dos
encontros e trânsitos culturais, aplicamos em nossa análise as “dinâmicas de mestiçagens”
de Paiva (2015, p. 41-42), como representação importante para explicar as complexas e
singulares formações vigorosas e acrisoladas da cultura brasileira, em especial, da cultura
serrana. Esta cultura serrana estruturou-se em torno das minas do Serro do Frio e seus
processos de colonização, bem como daí surgiu uma coletividade humana capaz de
traduzir para as festas, para o cotidiano, para as formas de habitar e vivenciar suas
existências, para a construção dos templos religiosos, das suas irmandades leigas, de suas
ruas e espaços públicos uma forma de ser e estar no mundo (BRISKIEVICZ, 2022).
Nesse jeito barroco serrano de ser, nas minas do Serro do Frio formaram-se
“verdadeiras redes de contatos e de informações, que envolviam gente de ‘qualidades’ e
de condições’ diversas” o que gerou de forma inovadora “o surgimento de relações
afetivas, de famílias, amizades e negócios, assim como a circulação de ideias e informações
de todos os tipos, além de potencializar o vigor das misturas biológico-culturais”; não
houve, pois, uma “fusão entre ‘puros’ (agentes, culturas, ‘sangue’) e diferentes ou entre
‘puros’ e ‘impuros’, por vezes colocados em uma espécie de equação na qual a somatória
e a fusão das partes (isto é, das ‘raças’) resultavam em um produto misto” em busca de
uma tal “civilização”. Para Paiva (2015), importa a “diversidade de um conjunto e não a sua
unicidade”; as dinâmicas de mestiçagens seriam, então, “as práticas históricas que
moldaram o cotidiano das relações sociais na Ibero-América, forjando sociedades
profunda e indelevelmente mestiçadas”.
Assim, o jeito barroco serrano de ser a civilização serrana surgida a partir de 1702
não é apenas uma junção de matrizes raciais o branco, o negro, o índio antes, é um
jeito barroco mestiçado de ser, seguindo a conceituação de Eduardo França Paiva (2015).
As soluções cotidianas para manter e sobrevivência e a convivência entre visões de mundo
tão diversos criaram uma forma não melhorada, especial ou fora do normal, antes uma
cultura possível. Isto se deve aos ajustes multiculturais que operaram no interior de um
contínuo movimento de ensino e aprendizagem e constantemente afetado pelos
nascimentos e mudanças de relações na microfísica do poder (FOUCAULT, 2017) no
território das antigas minas do Serro do Frio até os dias atuais.
A cultura é constante recriação por oposição ou afirmação suprassumida dos
gestos pedagógicos, ou seja, de como as pessoas numa determinada região geográfica
vivenciaram as relações de poder, de mando e obediência, de autoridade e de autorizações,
de tradição e de contradição das condutas ético-morais criadas e recriadas através do
ensino e aprendizagem dos valores e representações sociais.
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