SIQUEIRA, Saymon da Silva*
https://orcid.org/0000-0002-3557-0682
RESUMO: A intenção primeira neste artigo é
apresentar algumas reflexões preliminares
obtidas no desenvolvimento da pesquisa de
mestrado intitulada “Potencialidades do Ensino
de História Ibérica a partir do estudo da
conquista do reino de
Córdoba
por Fernando III
entre 1236–1241”. O recorte apresentado neste
artigo tem como objetivo indicar algumas
proposições para compreensão da construção
ideológica da imagem de
Fernando III
,
el santo
,
no processo de conquista e reorganização da
região sul da Península Ibérica, conhecida como
Andaluzia. Para isso, são utilizados os relatos
contidos na
Chronica regum Castellae
, e o
conjunto normativo do
Fuero de rdoba
, uma
vez que circunscrevem temporalmente do
momento de sua coroação, em 1217, ao processo
de aforamento definitivo de Córdoba, em 1241.
Desse modo, este artigo se dividirá em dois
momentos distintos: primeiro, uma breve
apresentação e contextualização das fontes
utilizadas, especialmente, nos aspectos de sua
produção e inserção histórica, e
posteriormente, serão propostas algumas
reflexões de caráter teórico que acenam para a
construção da imagem de Fernando III e seu
processo jurídico-administrativo da ocupação
de Córdoba.
PALAVRAS-CHAVE: Andaluzia; Península
Ibérica; Reconquista.
ABSTRACT: The first intention of this article is
to present some preliminary reflections
obtained in the development of the master's
research entitled "Potentialities of the Teaching
of Iberian History from the study of the
conquest of the kingdom of
Cordoba
by
Fernando III between 12361241". The approach
presentedin this article aims to indicate some
propositions for understanding the ideological
construction of the image of
Fernando III, el
santo
, in the process of conquest and
reorganization of the southern region of the
Iberian Peninsula, known as Andalusia. For this,
the reports contained in the Chronica regum
Castellae, and the normative set of the Fuero de
Córdoba are used, since they are temporally
limited from the moment of the conquest of the
city, in 1236, to the process of definitive tenure
in 1241. In this way, this article will be divided
into two distinct moments: first, a brief
presentation and contextualization of the
sources used, especially in the aspects of their
production and historical insertion, and later,
some theoretical reflections will be proposed
that point to the construction of the image of
Fernando III and its legal-administrative
process of the occupation of
Cordoba
.
KEYWORDS: Andalusia; Iberian Peninsula;
Reconquest.
Recebido em: 11/04/2022
Aprovado em:08/06/2022
* Graduado em História pela Universidade Federal de Alfenas, Alfenas-MG, mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas, Alfenas-MG. Professor da rede pública
do Estado de São Paulo. E-mail: saymon.siqueira@sou.unifal-mg.educacao.edu.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Reconquista
: uma questão conceitual?
Estudar a História Medieval Ibérica requer considerar um de seus fenômenos mais
extensos e significativos histórica e historiograficamente, referimo-nos a chamada
Reconquista
. Ainda que o objetivo não seja discutir exclusivamente acerca do conceito,
faremos um breve recorrido, uma vez que o assunto perpassa o trabalho.
Reconquista
é por excelência um conceito muito discutido nas produções ibéricas,
e manejado com menor problematização em contextos internacionais (LOMAX, 2000, p.
1012). Neste texto, partiremos da compreensão que se trata de um termo que faz
“referência ao programa ideológico sobre o qual se sustentou o movimento expansionista
das distintas monarquias hispano-cristãs sobre as terras de Al-Andalus durante a Idade
Média” (RÍOS SALOMA, 2005, p. 380), sem desconsiderar o que Ríos Saloma nomeou
como caráter polissêmico da formulação terminológica
Reconquista,
que possui ao menos
três significações: o processo histórico de lutas entre cristão e mulçumanos; o período
particular compreendido de 718 (batalha de
Covadonga
) até 1492 (conquista de
Granada
);
e o momento de conquistas militares feitas pelos cristãos e o processo de reorganização
da localidade (RÍOS SALOMA, 2005, p. 414).
Assim, o conceito está presente nas reflexões à medida que é mobilizado como um
termo “descritivo vago”, significando, portanto, que depreendemos das discussões e
documentos que se trata de um “termo emaranhado” que reúne em um feixe um
conjunto diverso de atividades e atributos que podem ocultar distinções necessárias
(THOMPSON, 1998, p. 22):
Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus
componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a
transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do
costume sob formas historicamente específicas das relações sociais e de
trabalho. (THOMPSON, 1998, p. 22).
Com isso, alertamos para a primeira superposição existente na referida formulação
conceitual. que se pensar que existem, no mínimo, dois níveis discursivos sendo
articulados, e atravessando o exercício de compreensão. O primeiro nível se refere ao
discurso existente nas próprias fontes, isto é, seus conteúdos e materialidades
sincrônicos. O segundo, portanto, se refere à produção historiográfica que engendrou
construções epistemológicas bastante significativas. Assim, cumpre destacar que no final
do século XIX, se iniciou um debate mais enfático acerca da ideia de
Reconquista
e sua
herança sensível na história recente de Espanha. A partir do chamado
regeracionismo
1
, em
1
A respeito do conceito geral, cumpre destacar que o
regeracionismo
não foi uma teoria sistemática ou
ideologia coerente, mas, sim, um conjunto de ideias, ações e posições ideológicas muitas vezes contraditórias
entre si advindas, sobretudo, do chamado “desastre de 98”, isto é, o resultado da guerra hispano-
que se propunha fechar de uma vez por todas o sepulcro de
El Cid
, numa indicação de que
“o particularismo ibérico, seu atraso em relação a Europa e seu estado de superexcitação
guerreira” que afetava tão negativamente a Espanha naquele momento, nos aspectos de
seu desenvolvimento social e econômico, eram tributários da
Reconquista
(GONZÁLEZ
JIMÉNEZ, 2003, p. 151152).
As tensões ideológicas daí originadas, sobretudo, o debate de caráter identitário,
possibilitaram o confronto das teses
indigenista
2
e
romanista
3
, que permitiu aprofundar o
conhecimento do estado das populações do norte peninsular no momento da chegada dos
muçulmanos na Península Ibérica, elucidando as continuidades e rupturas das estruturas
políticas e culturais visigóticas, desde a reação de
Pelayo
45
.
Corpus
documental:
Chronica regum Castellae
e
Fuero de Córdoba
A
Chronica regum Castellae
6
narra os eventos ocorridos em Castela a partir da
morte do conde Fernán-González em 969, mas centra-se nos reinados de Alfonso VIII
(11551214) Enrique I (12041217) e Fernando III (12011252), concluindo a narrativa com a
conquista de Córdoba (1236)
7
. No que se refere a autoria e datação da
Chronica
, o
documento não apresenta nem assunto e nem promotor. A redação final se aproxima de
estadunidense e seus corolários (perda das possessões ultramarinas do Pacífico e consequente declínio da
Espanha diante dos Estados Unidos). Ainda, segundo Saz (2016, p.5), “o
regeneracionismo
não significou, em
última análise, nada mais que a emergência de um novo nacionalismo, amplo, plural, transversal, muito
alinhado, aliás, com aqueles que estavam surgindo em outros países europeus”. Ademais, tamanha amplitude
e pluralidade transformou o
regeracionismo
“em um fenômeno geral, onipresente, transversal ao extremo:
havia um regenerador conservador e progressista, havia o liberal e o reacionário, o tradicionalista e o
republicano” (SAZ, 2016, p. 4).
2
Impulsionada pelos trabalhos de Marcelo Vigil e Abilio Barbero que afirmam “como eixo fundamental de
sua argumentação, o escasso nível de romanização e de cristianização dos povos do norte e a persistência
de estruturas sociais muito primitivas. Afirmavam que estes povos, que haviam mantido frente aos visigodos
a mesma atitude de resistência exibida frente à Roma, rechaçariam com a mesma contundência a presença
dos árabes invasores” (GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2003, p. 153, tradução nossa).
3
Endossadas por historiadores como Sánchez-Albornoz e Iglesia Ferreirós (1977, p. 115195), sinalizam a
debilidade das teses propostas pelos indigenistas, comprovando com bons argumentos e fontes o alto nível
de romanização dos povos do norte e a prematura extinção, concretamente em Astúrias, da organização
gentílica (GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2003, p. 154, tradução nossa).
4
Destarte, no que se refere às fontes mesmas e suas categorias sincrônicas, sabe-se que a restauração da
ordem dos godos levada a cabo em tempos de Alfonso II, não surgiu do nada: dita ordem, de forma
embrionária se preferem, havia estado presente em Astúrias desde os mesmos dias da sublevação de Pelayo
contra os invasores mulçumanos. (GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2003, p. 155, tradução nossa).
5
Don Pelayo
é considerado o inaugurador da linhagem de reis das Astúrias, principalmente, pelo movimento
de insubmissão ao domínio islâmico peninsular a partir da batalha de Covadonga em 722. (ÁLVAREZ
BALBUENA, 2019).
6
Doravante, referida e abreviada como CRC.
7
Foi preservada em um único manuscrito do final do século XV, que é uma cópia da obra originária do culo
XIII, e encontra-se sob a guarda da biblioteca da Real Academia de la Historia em Madrid, identificada MS
G-1 ou 9/450, fólios 89 a 122. Sua editio princeps foi publicada em 1912, de autoria de Georges Cirot que a
nomeou
Chronique latine des rois de Castille jusqu'en 1236
(CIROT, 1912). Em 1984 aparece a edição crítica
de Luis Charlo Brea com a primeira tradução ao castelhano da
Chronica.
É essa a edição que foi utilizada
nesta pesquisa, justamente por suas características apreciadas de trabalho historiográfico e filológico.
um período entre 1236 e 1237, de autoria de Juan de Soria
8
, bispo de Osma e chanceler de
Fernando III desde 1217 (FERNÁNDEZ ORDÓÑEZ, 2006)
9
.
O fato de a
Chronica
não ter composto a elaboração do projeto de História de
Alfonso X, o Sábio (12211284, rei desde 1252), assim como o foram as obras
Chronicom
mundi
(1236/1238) de Lucas de Tuy, e
Historia de rebus Hispanie
(1243/1246) de Rodrigo
Jiménez de Rada, deixaram a
Chronica regum Castellae
obscurecida por longo tempo
(BREA, 1984, p. I). Diferentemente do Tudense e Toledano que se servem
fundamentalmente da prática compilação de obras pregressas para comporem suas
crônicas, Juan de Soria o faz em menor medida, preferindo mobilizar documentação da
chancelaria real, a qual possuía acesso devido a sua posição, e conhecimentos
memorialísticos dos quais foi testemunha dos muitos eventos que narrou.
O
Fuero de Córdoba
10
é, também, uma produção da política expansionista de
Fernando III, escrita pelo mesmo bispo de Osma
11
. A primeira é a versão romance, aforada
pelo rei ainda presente em Córdoba, na data de 3 de março de 1241, contendo 26 rubricas
direcionadas a organizar a ocupação e manutenção do espaço conquistado. A segunda e
definitiva versão está em latim e foi aforada pelo rei já em Toledo, datada de 8 de abril de
1241, contendo 58 rubricas. A princípio, o que essencialmente muda de uma versão para
outra é a adequação do segundo documento aos requisitos da chancelaria, e a presença
de elementos norteadores preexistentes no
Fuero de Toledo
e o
Liber Iudiciorum
que
serve como modelo jurídico, a partir das antigas leis visigóticas traduzidas e adaptadas ao
novo contexto peninsular. (CHAMOCHO CANUTO, 2017, p. 25; GONZÁLEZ JIMÉNEZ,
2001, p. 111121).
8
Segundo Ayala Martínez (2014, p 247–248, tradução nossa): “Vinculado a cúria gia, primeiro como
escrivão desde 1209 e como notário desde 1215, para passar a ser chanceler em 1217, cargo que
desempenharia até sua morte em 1246; entretanto, ocupou diversas e sucessivas dignidades eclesiásticas:
foi abade de Santander entre 1217 e 1219 e de Valladolid desde esse último ano até 1231, em que foi eleito bispo
de Osma até que, finalmente, em 1240 passou até a sua morte à sede de Burgos.”
9
A respeito da autoria de
Juan de Osma
, é importante destacar que se trata de uma inferência historiográfica,
justamente por informações documentais e datações próximas dos eventos contidas na narrativa
(FERNÁNDEZ ORDÓÑEZ, 2006)
10
Doravante, abreviado e referido como FC.
11
Existente em duas versões, romance e latina, os dois códices originais encontram-se no
Archivo Municipal
de Córdoba
, sec. 1, serie 1, n.º 2 (romance), e sec. 1, serie 1, n.º 1 (latina). A respeito de edições e estudos, há
uma quantidade considerável de produções que podem ser consultadas, sobretudo, pelas referências
oferecidas por Chamocho Cantudo (2017, p. 3334), porém, foi utilizada nesta pesquisa a edição crítica e
tradução de Mellado Rodriguez, publicada no ano 2000. É uma obra bastante madura, com um trabalho de
interesse histórico e filológico, que se inicia em 1990, com uma publicação inicial no
Boletín de la Real
Academia de Ciencias, Bellas Letras y Nobles Artes de Córdoba
, em que o autor oferece uma análise
detalhada da primeira rubrica do
Fuero
. Em 1994, ocorre a publicação de outro trabalho na mesma direção
no
II Congreso de Historia de Andalucía. Andalucía Medieval
, e por fim, em 2000 ocorre a publicação da
referida obra na revista
Árbor: Ciencia, Pensamiento y Cultura
.
Breve panorama do contexto histórico-jurídico
Segundo Barrero-Garcia (2001), os
fueros
são entendidos “como os conjunto
normativos da época medieval que por configurarem juridicamente as comunidades
vizinhas e encontrar nelas seu âmbito de aplicação, eram tidos como próprios das
mesmas”
12
.(BARRERO-GARCIA, 2001, p 89, tradução nossa). Devido à complexidade e
diversidade do material em questão, convencionou-se na historiografia jurídica dividir os
fueros
em duas tipologias principais:
fueros
breves e extensos, ou cartas e livros de
fuero
,
e posteriormente classificá-los em famílias forais.
Os chamados
fueros
extensos ou livros de
fuero
se caracterizam, sobretudo, por
não cumprirem os requisitos de chancelaria, indicando sua formação marginal. Todavia, a
diferença tipológica se circunscreve em função de sua gênese, utilização e ordem jurídica
em que se inseria. Para tanto, faremos uma breve recapitulação.
que se pensar que a entrada dos muçulmanos na Península Ibérica não trouxe
apenas um confronto de cosmovisões, mas, alterou profundamente a dinâmica
preexistente nesse espaço. Portanto, em 711 com a entrada árabe-berbere, ocorre a queda
do Reino de Toledo visigodo, e com isso sua estrutura administrativa unificada até então
pelo
Liber Iudiciorum
, também tem seu status jurídico comprometido parcialmente. Até
então, o
Liber
, com base no Direito Romano pós-clássico, estava em uso desde 654 com a
promulgação de Recesvinto e havia sido revisado por Ervigio em 681 (MARTÍNEZ
LLORENTE, 2019, p. 3536).
O desenvolvimento da ordem jurídica da Alta Idade Média (peninsular) ocorreu
sobre o lastro deixado pela aplicação do
Liber
em tempos visigóticos, e sobre o dinamismo
de uma população de fronteira. Portanto, não se trata de um continuísmo, nem tampouco
de uma criação
ex nihilo
. Como afirmou Iglesia Ferreirós, o caráter do ordenamento
jurídico alto medieval se origina da tradição hispano-romana-visigoda, isto é, a tradição
romana na península encontrou na monarquia visigoda seu motor autônomo (IGLESIA
FERREIRÓS, 1977, p. 123). A continuidade do
Liber
ocorreu como “ordenamento jurídico
enraizado na prática” (IGLESIA FERREIRÓS, 1977, p. 125), como um direito geral, que
paulatinamente foi sendo articulado a novas formas de criação normativa.
Das deficiências de um direito cristalizado, uma vez que desapareceu seu criador,
o monarca, apareceu um ordenamento jurídico novo, complementar, e, igualmente, melhor
correspondente a um regime senhorial. O primeiro regime a ser destacado é o de
fazaña
12
[No original]
como los conjuntos normativos de época medieval que por configurar jurídicamente las
comunidades vecinales y encontrar en ellas su ámbito de aplicación, eran tenidos como propios de las
mismas”.
(BARRERO-GARCIA, 2001, p 89).
ou
fueros de albedrío
. Segundo Martínez Llorente (2019, p. 39), uma
fazaña
“é um acordo
ou sentença cujo conteúdo resolutório serve de precedente para futuras decisões
análogas.”. Galo Sánchez (1929, p. 262), afirma que, “pela carência de normas o juiz
castelhano encontrou fácil o caminho para converter-se em criador da norma jurídica, e
com frequência foi verdadeiro legislador, pois sentenciava conforme sua livre decisão
(
libre albedrío
)”. Todavia, como bem afirmou Paola Miceli, não há que se pensar a prática
do costume como espontânea, mas, como produto de uma vontade jurídica, uma prática
(MICELI, 2003, p. 11).
Assim, os referidos
fueros
se inserem nesta tradição de criação e atualização
normativa desde o século IX até o século XIII, todavia, sua finalidade é de repovoamento,
característica da
Reconquista
. Destarte, é importante perceber que, qualquer
manifestação foral é por excelência uma manifestação de privilégios, isenções, ou
exonerações da regra geral, seja ela de caráter fiscal, tributária ou de cargas (
portazgos
,
pontazgos
,
facendera
,
censos
), de reconhecimento de direitos especiais de atividades
(sobre pastos, feiras ou mercados), ou assim mesmo de natureza normativa geral
(exoneração de algumas exigências processuais civis ou penais, etc.) (MARTÍNEZ
LLORENTE, 2019, p. 43).
Em suma, o que se percebe é um complexo movimento em que fenômenos
diferentes são articulados. que se pensar que o movimento repovoador gerou uma
notável classe nobiliárquica. Ainda que a discussão a respeito das temporalidades e
efetivação da feudalização da península seja complexa, tal como propõe Valdeavellano
(2000) e Moxó (2000, p. 5972), é importante reconhecer que o regime senhorial exerceu
considerável pressão e suporte econômico e social.
Como afirma Moxó (2000, p. 67, tradução nossa), “a sociedade feudal europeia fez
do senhorio seu grande suporte econômico e a instituição através da qual se exercia a
direção de grupos humanos, ligados ao senhor pornculo territorial.”. A questão entre a
existência de
fueros
breves e do regime de senhorio, reside no fato de que a classe de
guerreiros recebia habitualmente terras em remuneração a seus serviços, ainda quando a
monarquia dispunha de erário suficiente, devido ao regime de párias, para remunerar em
metal (MOXÓ, 2000, p. 67).
[...] a sociedade ibérica é uma sociedade de fronteiras e como tal, caracteriza-se
por uma forte mobilidade social, onde as possibilidades de ascensão são tão
numerosas como os riscos incorridos. [...] [A guerra] não pode ser considerada
uma arte reservada aos todo-poderosos [...]. Todos nela participavam
fisicamente, com ou sem cavalos, ou financeiramente pela concessão de
contribuições ao rei [...]. Em troca, todos tiravam proveito daí, proveito que não
era orgulho nacional [...]. O proveito económico não deve ser desprezado, na
medida em que aqueles que servem o rei, dividem os despojos obtidos depois de
retirado um quinto que reverte para a coroa, à razão de duas partes para aquele
que possui um cavalo
caballero
e uma parte para aquele que serve a
péon
. Por outro lado, tanto no século XIII como no XV, as terras reconquistadas
são repartidas entre cristãos, grandes e pequenos [...]. (RUCQUOI, 1995, p. 217).
Ainda segundo Moxó (2000, p. 67):
Ainda que as imunidades que desfrutaram os nobres e instituições monásticas
em Leão e Castela não tenham sido tão amplas quanto em França, nos
encontramos ante o fato da existência de tais imunidades com a atribuição de
funções públicas e substituição dos oficiais régios em benefício de seu titular
(MOXÓ, 2000, p. 67, tradução nossa)
13
.
É fulcral destacar alguns elementos entre os autores mobilizados. Moxó (2000) se
debruça em evidenciar os matizes do processo de feudalização (senhoralização) de Leão
e Castela. A síntese produzida de seu debate com Valdeavellano (2000)
14
indica que, ainda
que não se possa negar a presença de elementos feudais, sua conformação no espaço
hispânico é
sui geniris
. Assim, a complementaridade das asserções de Rucquoi (1995)
possibilitam perspectivar de modo objetivo a que fazemos referência ao compartir da
posição dos autores. De fato, o fenômeno da
Reconquista
em seu espectro amplo (social,
cultural, econômico e político) foi um elemento estruturante do reinado de Fernando III.
As anexações de novos territórios, bem como a conversão das taifas em reinos tributários,
permitiram ao rei um tipo de administração e construção de regiões administrativas que
não reduziam sua soberania (
imperium)
, de sorte que mesmo quando dispunha de moedas
o suficiente para remunerar as participações nas campanhas bélicas, não prescindiu da
prática dos
repartimientos
.
Ademais, a partir dos trechos supracitados, almeja-se indicar o caráter fronteiriço
dos reinos ibéricos do período, especialmente, a Castela e Leão fernandinos, que será
discutido mais à frente. Além disso, essas características possibilitam compreender sob
quais bases fundamentavam-se as diferenças regionais, e como a administração
fernandina agiu a fim de construir na relação rei-conselho (e, por consequência, suas duas
principais classes constituintes: aristocracias e campesinos) a expressão da evolução
histórica das estruturas sociais e administrativas, pilar organizacional de seu governo e
política centralizadora, encarnados nos processos de aforamentos locais (ASTARITA, 1997,
p. 134135).
Nesses termos se inscrevem o que Iglesia Ferreirós (1977, p. 129130) chamou de
malos fueros
, que eram os usos praticados pelo senhorio latifundiário, e que o movimento
13
[No original]:
Aunque las inmunidades que disfrutaron los nobles e instiuiciones monásticas en León y
Castilla no fuean tan amplias como en Francia, nos encontramos ante el hecho de la existencia de tales
inmunidades con la atribución de funciones públicas y sustitución de los oficiales regios, en beneficio de su
titular.
(MOXÓ, 2000, p. 67).
14
Cf. VALDEAVELLANO, Luis G. de.
El feudalismo hispánico
. Barcelona: Editorial Crítica, 2000.
repovoador em direção ao sul da Península liderado pela monarquia fez ser suavizado.
Incentivar o repovoamento incorria na necessidade de isentar dos maus usos os foros, e
assim sendo, fomentavam núcleos de convivência que gradativamente desembocariam em
uma vida urbana desenvolvida sob a forma de município, com autonomia.
Nesse contexto, os foros extensos e breves se diferenciaram pela ação criadora do
poder régio que começa a ser restaurada pela recepção do
ius commune
, bem como pela
diferença de autonomia dos núcleos. “Os foros extensos, inclusive quando englobam em
sua articulação os foros breves, são a manifestação mais clara da autonomia municipal”
(IGLESIA FERREIROS, 1977, p. 130).
A partir do século XIII, especialmente com a recepção do Direito Comum, a
monarquia passa reivindicar cada vez mais a criação do direito, o que configurará o direito
municipal como um ordenamento jurídico completo, através da aparição dos foros
municipais extensos. Nesse cenário, a monarquia castelhana agirá de modo a garantir sua
primazia centralizadora e criadora. O artifício da confirmação de privilégios, cartas, foros
e concessão de novos foros foi empregado por Fernando III para consolidar seu poder
diante de uma dinâmica senhorial e localista pujante.
Em síntese, a partir do
usus terrae
e outras regras antigas se condensaram as
ordenações que regiam os domínios senhoriais e realengos e suas imunidades. Assim,
existia uma grande variedade de direitos tradicionais em cada localidade. Leão contava
com as práticas do antigo
Liber Iudiciorum
, que nos séculos XII e XIII passaram a ressoar
em Toledo. Castela em seu período condal e mesmo durante a estruturação monárquica
dos séculos XII e XIII, foi regida pelos costumes e
fazañas
. (MONSALVO ANTÓN, 2010, p.
216).
A partir deste processo jurídico diverso, composto de normas gerais, a
concretização dos acordos se efetivou em âmbito local a partir dos
fueros
nos séculos XII
e XIII. Ainda que exista uma grande quantidade de
fueros
, somente uma pequena parte foi
considerada municipal, “a maior parte eram contratos agrários, de
franquicia
ou
assentamento colocado por escrito pelas autoridades monarquia ou senhorio e por
algumas aldeias ou povoadores” (MONSALVO ANTÓN, 2010, p. 216).
Construir
imagens
e
fronteiras
: algumas proposições teórico-metodológicas
A inserção de Fernando III no poder não se fez apenas pelo campo jurídico, mas
igualmente, pela história, pela narrativa. Passaremos agora a uma articulação entre os
elementos ideológicos do
Fuero
em relação à
Chronica regum Castellae
(CRC), entendendo
que a crônica histórica é uma realização discursiva narrativa, construída a partir de
pressupostos de uma tradição cristã, retomada e recriada por seus cultores, com a
intenção de verdade, ainda que incorpore elementos do
maravilhoso
15
que servem a essa
verdade (GUIMARÃES, 2012, p. 6971). E ao destacarmos essa característica, acenamos
para um dos atributos enfeixados no emaranhamento terminológico a que fizemos
referência inicialmente. Especificamente, referimo-nos ao aspecto religioso integrado. A
política eclesiástica da monarquia castelhana em tempos de Fernando III, teve relevância
considerável nos desdobramentos da administração do reino, mas, sobretudo, permite
evidenciar que diferentemente de posições que entendem a
Reconquista
como elemento
diferenciador e distanciador da Península Ibérica em relação a Europa, tal diferença
estrutural não existiu de forma categórica (RODRÍGUEZ LÓPEZ, 1988, p. 79).
A
Chronica
nos permite perceber traços socioculturais, características
compartilhadas pelos agrupamentos humanos do Ocidente Medieval. A inserção na
Orbis
Christiana
promovia certa unidade político-teológica, e isso é possível notar a partir dos
recursos discursivos mobilizados, não apenas aqueles que procuram inserir o reino
castelhano-leonês no contexto
extra territorium
16
, mas, também, em episódios
intra
territorium
.
Podemos tomar como exemplo desta questão a descrição da iniciativa política de
Fernando III, na declaração formal de guerra contra os mulçumanos, diante da cúria de
Muñó celebrada na sequência da solenidade de Pentecostes em julho de 1224. A escolha
de termos e expressões, como na frase “cumpridor de seu voto”
17
, permite perceber os
recursos empregados pelo cronista a fim de consolidar a ação programática do rei, em um
processo de conquista de apoio do papado de Honório III, e a aquisição do
status
de
Cruzada para a empresa ibérica de conquista
18
. Outros recursos retóricos e ideológicos
são também empregados na narrativa a fim de mobilizar elementos legitimadores e
compreensíveis ao horizonte de referências ideológicas do período: a ideia de vocação
martirial, como no caso das operações que conduziram a conquista de Córdoba, momentos
em que a vida do rei correu grave perigo na defesa de seu povo (CRC, 1984, p. 96). Nesta
mesma passagem Fernando III é descrito como o “soldado de Cristo, fortíssimo rei"
19
.
15
Por maravilhoso acompanhamos a perspectiva de Rui (2012), em que “a crença do homem medieval em
forças sobrenaturais, sejam elas maléficas ou benéficas” fazem parte da mentalidade medieval.
16
Um exemplo interessante e diretamente relacionado com a monarquia castelhana, está a morte de Luís
VIII em 1226, e o processo conflituoso entre Blanca de Castela e o conde de Toulouse (Raimundo VII) que
levou à coroação de Luís IX, ainda que Blanca tenha feito a tutoria por largo tempo. Nesse mesmo episódio,
a presença do papado de Honório III é marcante para assegurar o poder de Luís IX e a contenção do conflito
com o referido conde. (CRC, 1984, p. 7375).
17
[No original]: “
quase uoti compos
” (CRC, 1984, p. 63).
18
Cf.
infra
, nota 31.
Neste artigo não abordaremos mais pormenorizadamente as relações entre Fernando III
e o Papado a fim de não incorrer em imprecisões analíticas, uma vez que esse processo ainda se encontra
em aprofundamento de estudos.
19
[No original] “
miles Christi fortissimus rex Fernandus”
(CRC, 1984, p. 94).
Depreende-se daqui um dos elementos nodais para a capacidade de convencimento da
narrativa na construção da
imagem
de Fernando III
20
.
Nesses exemplos referidos, vários elementos reflexivos são mobilizados para a
restituição e interpretação do horizonte de expectativas das agências históricas em
questão. que se considerar o pertencimento a hierarquia eclesial e, portanto, o universo
de referências compartilhados desde Roma e a
Orbis Christiana
. Isto é, várias passagens
ao longo de toda crônica possuem trechos da Bíblia. Esses trechos não são apenas diretos
como no relato dos problemas sucessórios ocorridos no califado almôada após a morte de
Iúçufe Almostancir (1224), em que uma passagem do livro de Isaías é empregada para
louvar esse momento de discórdia e bendizer a justiça divina que castiga aos maus
21
.
Virtudes e vícios da mentalidade cris são empregados pelo autor para compor a
figuração do rei.
Construir a representação de Fernando III articulava elementos presentes nas
mentalidades, ordenando-os a fim de conseguir um fim específico, construir uma
imagem
.
Isto é, uma ideologia convence a seus adeptos para ser tal e intenta convencer
aos que ainda não o são. Por isso, a ideologia constrói seu discurso com
elementos que podem ser compreendidos por todos e a todos pareça familiar,
sempre com ressonâncias benéficas para seu interesse. A estas ressonâncias é o
que denominamos
imagens
(SOLANO FERNÁNDEZ-SORDO, 2009, p. 113,
tradução nossa)
22
.
É, portanto, nesse sentido que se entende o “programa ideológico da
Reconquista
”,
isto é, “um sistema completo de pensamento que diferenciamos de mentalidade ou
cosmologia porque está elaborado por um sujeito determinado concreto ou coletivo
perseguindo um dado fim, sendo empregado por um setor da sociedade para a consecução
de um fim.” (SOLANO FERNÁNDEZ-SORDO, 2009, p. 111). A agência de Fernando III e sua
chancelaria, criou o que se chamou
imagens
, e consolidou não apenas as estruturas
20
Cf.
infra
. Essas referências da cosmovisão cristã se devem mais em virtude dos valores vigentes no século
XII, e da formação do cronista, do que de uma sacralidade própria do rei.
21
“Os votos se dividiram na cúria almôada de Marrocos, que em verdade até esse momento havia sido forte
durante muito tempo, e foi eleito [
Abd al-Wahid al-Makhlu
] como único rei, ao que os outros, que não
agradava, mataram. Portanto, entre os poderosos daquela terra, surgiu tanta discórdia que não pôde ser
acalmada de forma alguma e ainda dura, e oxalá dure para sempre. [...] E se cumpriu aquele oráculo do
profeta Isaías: Ai de ti, devastador nunca devastado; saqueador nunca saqueado; quando acabar de saquear,
será saqueado.” (CRC, 1984, p. 64–65, tradução nossa). [No original]
Tunc uero diuisis uoto in cúria
Almohade apud Marrocos, que quidem floruerat multis diebus usque ad tempus illud, electus fuit unus in
regem, quem alii, quibus non placebat, post paucos dies intefecerunt. Ex qua causa tanta discordia inter
potentes illius terre orta est, quanta sedari non potuit usque modo et durant adhuc, et utique duret in
eternum.
[...]
Impletum est illud oraculum Ysaye prophete: Ve qui predaris! nonne depredaberis? et qui
spernis, nonne sperneris? cum consumaueris depredationem, depredaberis
”.
22
[No original]:
una ideología convence a sus adeptos para ser tal y ha de intentar convencer a quien aún no
lo es. Por eso, la ideología ha de construir su discurso con elementos que puedan entenderse por todos y a
todos resulten familiares, siempre con resonancias beneficiosas para su interés. A estas resonancias és a lo
que denominamos “imágenes”
. (SOLANO FERNÁNDEZ-SORDO, 2009, p. 113).
fundamentais do reino de Castela, mas fundou a ideia mesma de Andaluzia e sua
incorporação às coroas de
Espanna
23
. Assim, a ideia mesma de se referir à
terra Maurorum
como
Handalucia
(CRC, 1984, p. 75)
24
, passa pelo processo de incorporação deste espaço
físico e imaginário, bem como sua organização de grande impacto, a partir dos dispositivos
empregados pelos sujeitos históricos para lograr seus objetivos.
Como afirmou González Jiménez, definir a que Andaluzia nos referimos é uma
questão prévia a todos os trabalhos sérios sobre a história da região (GONZÁLEZ
JIMÉNEZ, 2010, p. 21). Assim, há no mínimo, uma dupla acepção considerada. Andaluzia é
entendida primeiro, como demonstra a
Chronica
, como a região sul peninsular sobre
controle muçulmano, e, posteriormente, é entendida como a região das grandes conquistas
da Castela fernandina, a Andaluzia dos três reinos:
Córdoba
,
Jaén
e
Sevilla
. Essa concepção
permite melhor refletir acerca da
Frontera
no século XIII castelhano.
De saída, precisamos abordar a conceptualização da
Frontera
distante dos
“tratamentos dominantes que esse assunto tem recebido. Isto é, sob o signo de Kant e sua
promessa de um cosmopolitismo sem limites, e sob o signo de um individualismo liberal
visto como antídoto para os impulsos fascistas arraigados na governança e na burocracia
europeias.” (MBEMBE, 2019). Como se sabe, a perspectiva moderna em relação ao
conceito, foi forjada na transição do século XVIII para o XIX, em um momento de uma
história alinhada com preocupações nacionalistas, como se disse anteriormente neste
texto (BARRIO, 2011).
Mas, sabemos que essa definição é completamente estranha à Idade Média. O que
se verifica são espaços fronteiriços, mais ou menos alargados (dependendo do período),
que funcionavam como uma membrana viva e em constante movimento, e não
exclusivamente como dispositivo segregador imóvel (BAZZANA, 1997). Um espaço
fronteiriço, não somente é um espaço privilegiado para estudos das características
complexas que formatavam a sociedade ibérica medieval local, no que se refere aos seus
traços de formação política, social, cultural e ideológica, mas ajudam a compreender
mecanismos de inclusão e exclusão, liminaridade e comunidade, bem como, os dispositivos
23
Essa percepção objetivamente é possível, por exemplo, no fato de Alfonso X, o sábio (12211284, rei desde
1252), ter mandado escrever no epitáfio de seu pai:
el que conquirió toda Espanna
”, tal como se na
Primera
Crónica General
a passagem do reino de Fernando III para Alfonso X, sobre a parte
conquerida
e a outra
tributada
(Primera Crónica General de España, 1955, p. 772773).
24
[No original]
Dicebat eosdem Almohades oppresores et uiolentos exactores, se uero asserebat liberatorem
populi de Handalucia. Sic enim uocatur cismarina térra Maurorum, unde et populi Handaluces uocantur.
quos quidam credunt Vándalos esse
(CRC, 1984, p. 75).
expansivos da lógica medieval que compôs a
Reconquista
e, posteriormente, sua extensão
idealizada e concreta no continente americano
25
(AYALA MARTÍNEZ, 2019).
O processo mesmo de aforamento de Córdoba contém esse caráter de fronteira e
integração, tanto quanto, de costume e centralização. Por um lado, ao pertencer à família
foral toledana o reino de Córdoba passa a integrar juridicamente o reino de Castelhano-
leonês
26
, atendendo também a necessidade repovoadora de sua conquista. O próprio rei
se compromete a defender Córdoba enquanto tiver condições para tanto (rubrica 31):
Também estabeleço e concedo que, enquanto me acompanharem a vida e a saúde,
defenderei a Córdoba, sempre que o necessite, para livrá-la de todos os que quiserem
oprimi-la, sejam cristãos ou mouros. (FC, 2000, p. 208, tradução nossa)
27
.
Esta rubrica apresenta interesse à medida que demonstra a preocupação
repovoadora e o caráter fronteiriço da cidade naquele momento, bem como as constantes
disputas que ocorriam internamente no reino. É possível perceber isso que o rei se
compromete a defender a cidade sempre que necessite, para livrá-la de todos os que
queiram oprimi-la, sejam cristãos ou mouros.
A preocupação repovoadora está presente também nas rubricas 32, ao dizer que
terá propriedade em Córdoba aqueles que residirem com sua família na cidade
“Ademais, ordeno e estabeleço que nenhuma pessoa tenha herança em Córdoba, salvo
quem morar nela com seus filhos e esposa”
28
(FC, 2000, p. 209, tradução nossa). Outro
exemplo também está na rubrica 55 que obriga aos proprietários a cumprirem e
defenderem a jurisdição e o foro: “Assim mesmo, disponho e ordeno que todos os
moradores e povoadores nas propriedades que eu darei no termo de Córdoba aos
arcebispos, bispos, ordens e
ricoshombres
, cavaleiros e clérigos atendam a jurisdição e
fuero de Córdoba
29
(FC, 2000, p. 219, tradução nossa).
Evidencia-se, portanto, o caráter complexo da fronteira ao ser possível verificar
que existia a grande fronteira entre cristãos-muçulmanos, e, também, as
micro-fronteiras
.
Isto é, existiam um conjunto de fronteiras interiores entre grupos populacionais distritos
25
A monarquia castelhana do século XVI é um corolário dos processos históricos da
Reconquista
, de tal
modo que ao exportarem à América o modelo peninsular, acaba por reproduzir a lógica fronteiriça vivenciada
em seu próprio território (AYALA MARTÍNEZ, 2019, p. 4).
26
Lembremo-nos que o reino de Valência adquiriu um conjunto normativo exclusivo, fazendo com que seu
processo de tríplice fronteira e integração posterior ao reino aragonês, em tempos de Jaime I, percorressem
caminhos históricos muito diversos (BARRIO, 2011).
27
[No original]
“Item statuo et concedo quod ego semper tempore necessitatis, uita comite et salute,
succurram ad defensionem Cordube ut liberem eam ab omnibus uolentibus eam oprimere, siue sint christianj
siue mauri.”
(FC, 2000, p. 208).
28
[No original]
Iubeo insuper statuendo quod nulla persona habeat hereditatem in Corduba nisi qui moratus
fuerit in ea cum filiis suis et uxore sua
” (FC, 2000, p. 209).
29
[No original] “
Item iubeo et mando quod omnis morator et populator in heredamentis que ego dedero in
terminis de Corduba archiepiscopis et episcopis et ordinibus et riquis hominibus et militibus et clericis, quod
ueniant ad iudicium et ad forum de Corduba
” (FC, 2000, p. 219).
do reino, e entre os reinos cristãos, tanto quanto existiam fronteiras internas em
Al-
Andalus
entre povoamentos muçulmanos e seus distritos (BAZZANA, 1997, p. 28). A
complexidade do processo reside em seu aspecto complementar, além de mecanismos
reguladores de guerra e paz.
Ao inaugurar uma nova prática legislativa, o próprio Fernando III, começava a
recuperar a prática do
rei juiz
, que produz a legislação de seu reino. Iniciou um processo
de concessão foral importante, escolhendo famílias forais de modo a agrupar as ordens
locais em eixos semelhantes, criando assim, uma fronteira histórico-jurídica. Essa
imagem
de rei juiz é construída pela prática do aforamento e pelo cruzamento da escrita histórica,
à medida que a crônica aponta para a ideia de um rei inspirado diretamente por Deus, sem
mediador, imbricado na luta contra os
inimigos da
, ampliando continuamente a
terra
,
retomando elemento ideológico semelhante ao período visigótico (rei, povo e sua terra).
Assim, a característica de fronteira provisional e em constante movimento pode ser
compreendida como uma característica do período e região.
Como se argumentou anteriormente, o século XIII é marcado pela recepção do
ius
commune
, e nessa esteira, a partir de 1236 inicia-se uma nova etapa de aforamento por
Fernando III, tencionando aumentar a intervenção monárquica na organização dos
poderes locais, bem como alterando os regimes de impostos, mas, sobretudo, acenando
para a “recuperação da
plenitudo potestatis
(GONZÁLEZ JIMENEZ, 2001)
30
.
Concretamente verificamos no
fuero
a incorporação de novos princípios jurídicos:
“procedimentos judiciais por pesquisa e garantias no processo, provas escritas, atuação
de ofício, âmbito acima dos domínios e vontade de superar o pluralismo, atomização e
localismo jurídicos tradicionais. Este novo direito é o que incorporarão as monarquias a
partir de então” (MONSALVO ANTÓN, 2010, p. 216).
A inserção da figura pessoal (
Ego
) é uma característica interessante dos
dispositivos histórico-jurídicos e discursivos das produções fernandinas. O protocolo
inicial mostra as diferenças de adequação chancelar entre a versão romance e latina, mas
também características do programa ideológico em curso.
Notadamente, uma evocação distintiva nesta composição. O protocolo da versão
final, apresenta a informação: “Para que as ações de reis e príncipes alcancem a memória
30
A relação entre a coroa castelhana e o papado romano se inscrevem também em outros termos nesse
contexto. Depois de 1236, o papado de Gregório IX faz dois tipos de concessões a Fernando III: as relativas
aos privilégios canônicos, como a proteção ao monarca e sua família, e a concessão da indulgência da
cruzada oriental àqueles que lutavam junto ao rei contra os muçulmanos. Mas a mais relevante concessão
papal advém do Papa Inocêncio IV: a permissão de intervir nas rendas eclesiásticas durante três anos, a fim
de financiar a guerra contra os muçulmanos. Prerrogativa que a monarquia castelhana mesmo após
Fernando III não se desprenderia (RODRÍGUZ LÓPEZ, 1988, p. 3238).
de que são dignas, devem consolidar-se com o benefício da escritura”
31
. É significativa a
intenção que envolve o documento, uma vez que o protocolo romance se inicia apenas
com a
invocatio
. Ou seja, a disputa entre a tradição escrita e oral são cada vez mais
patentes, e como já argumentaram outros teóricos, essa disputa e privilégio epistêmico se
estendeu pelas sociedades ocidentais e, posteriormente, nas sociedades colonizadas
(certamente, guardadas as proporções de apropriações criativas da escrita e permanência
das tradições orais (SANTOS, 2016; SANTOS; NICODEMO; PEREIRA, 2017).
O escatocolo
32
romance também possui um elemento fundamental para as análises
que fizemos. Pela primeira vez a fórmula
rege exprimente
aparece em um documento. Tal
fórmula, será por excelência, própria da documentação fernandina. Essa reivindicação de
autoria e inscrição de sua figura na memória (
memoriam
é caso acusativo de
memoria
,
ae
)
aparece também em outros aspectos distintivos de sua produção chancelar. As rubricas 4
a 39 são procedentes do
Fuero de Toledo
, especialmente, voltada aos cavaleiros. Mas, não
se trata de uma simples cópia
ipsis litteris
como se esperaria do
scriptorium
chancelar. O
Fuero de Toledo
está redigido na terceira pessoa, ao passo que o
Fuero de Córdoba
foi
escrito na primeira pessoa. Com isso, enfoca-se a pertinência em compreender esse
processo de interioridade, pessoalidade e autoria
33
.
De tal modo que as proposições de Foucault (2002) e Chenu (2006) nos oferecem
subsídios teórico-metodológicos quando focalizam questões como as transformações nas
formas jurídicas, que em grande medida, indicavam transformações sensíveis na
experiência do tempo histórico. É fundamental destacar que o subjetivismo” é bastante
patente na literatura penitencial do período (uma das fontes legítimas das práticas
jurídicas e sociais), especialmente quando se observa “as sumas de casos de consciência,
cuja formalística introduz, na prática formalista da penitência, os elementos de intenção,
circunstância, responsabilidade, personalização e fineza psicológica, que dão um novo
tom” ao Direito canônico e laico (CHENU, 2006, p.2425; FOUCAULT, 2002, 5779; LE
GOFF, 2002, p. 384389).
Mas, possivelmente a mais distintiva, complexa e extensa rubrica é também a
primeira do
Fuero
, e a partir dela podemos verificar esses traços de disputas de
agenciamentos. Em síntese, ela dispõe sobre a organização do conselho municipal, sua
composição e sua forma de eleição, bem como a execução dos cargos. Todavia, é uma
31
[No original]
Ut facta regum et principum memoriam qua digna sunt assequantur, scripture sunt beneficio
solidanda
” (FC, 2000, p. 196).
32
Trata-se do protocolo final do documento e divide-se em: subscrição ou assinatura, datação e precação
(isto é, assinatura de testemunhas ou executor do ato, e sinais de validação: selo e carimbos) (BERWANGER;
LEAL. 2020, p. 31).
33
Elementos esses que estão em fase de pesquisa e formalização epistêmica da pesquisa.
rubrica muito diferente das demais, sua redação é muito extensa e possui uma organização
sui generis
. Abaixo apresenta-se uma tradução livre. Devido a sua extensão, a rubrica 1 foi
dividida em 13 subitens, dos quais seis são apresentados.
Outorgo, pois, e concedo por foro ao conselho de Córdoba que renove
anualmente o juiz, os prefeitos (alcaldes), o mordomo e o escrivão (1). E que os
alcaldes sejam quatro (2). E que a colação a que corresponder a eleição, eleja toda
ela quatro hombres buenos que sejam aptos para estes cargos (3). E esses quatro
da antedita colação deixem a sorte qual deles estará no cargo. E aquele sobre
quem recair a sorte, permaneça no cargo por um ano (4). [...] E o que um ano foi
empossado, não será novamente até todos os outros agrupamentos exerceram
sua vez (7). E se, por acaso, aqueles do agrupamento que não chegaram a um
acordo ao escolher esses quatro, tampouco coincidiram na escolha dos homens
bons das outras colações, encarregados de escolher a estes quatro, enviem seus
bons homens perante o rei e que se faça como ele mandará(8). (FC, 2000, p. 196
198, tradução nossa)
34
.
Além das descontinuidades nos assuntos, destaca-se o reconhecimento de
autonomia concedido à cidade para executar sua própria eleição do conselho. Autonomia
também parcial já que o conselho deverá julgar de acordo com o
Fuero Juzgo
, traduzido e
dado à cidade juntamente com seu
Fuero
. Dessa forma, uma vez mais, destacam-se as
presenças de elementos norteadores preexistentes no
Fuero de Toledo
e o
Liber
Iudiciorum
. Os processos multifacetados de continuidades e rupturas permitem repensar
a conquista em suas perspectivas variadas, para além do consagrado “choque de culturas”
e expulsão do contingente populacional islâmico (ALMEIDA, 2017, p. 103).
À guisa de conclusão e outras provocações
Pensaremos a respeito das breves reflexões apresentadas, e suas possibilidades
como dispositivos heurísticos e hermenêuticos, e ao fazermos isso esperamos não
necessariamente oferecer um conjunto de afirmações formalistas, mas, propostas que se
preocupem com a inserção social da história medieval ibérica e sua relação mais ampla
com o campo de produção do conhecimento (ALMEIDA, 2017). Segundo Achille Mbembe,
Compreender a genealogia de uma obra e suas eventuais contradições exige
saber em que contexto ela nasceu e se desenvolveu, quais o as questões às
quais ela tenta responder, em que idioma, em que grandes debates ela se insere
e quais foram seus pontos de virada. Isso vale para todo produto do espírito,
34
[No original]
Dono igitur et concedo pro foro populo Cordubensi quod iudex et alcaldes et maiordomus
et scriptor mutentur annuatim(1). Et alcaldes sint Quatuor (2). Et collatio cuj euenerit electio, tota illa collatio
eligat quatuor bonos uiros qui sint apti ad istos portellos (3). Et isti quatuor de predicta collatione iaciant
sortem quis eorum sit in portello. Et ille super quem sors ceciderit, sit in portello usque ad unum annum (4).
Et qui uno anno fuit aportellatus, non sit usquequo compleantur omnes alie collationes (7). Et si forte illj de
collatione qui non concordauerint in eligendo istos quatuor, non concordauerint in eligendo illos bonos uiros
de collationibus qui debent eligere istos quatuor, mittant ad regem suos bonos homines et quomodo ipse
mandauerit ita sit (8).”
(FC, 2000, p. 196198).
pouco importando a região do mundo de onde ele vem, ou a língua em que
adquiriu forma. (MBEMBE, 2020).
Esta é uma importante citação que apresenta o
modus procedendi
compartilhado
entre as chamadas Ciências Modernas, em especial, as Ciências Humanas. Discutir a
respeito de metodologia na História, é fundamentalmente, discutir a respeito de teoria.
Como bem afirma Reis (2019, p. 30), a História é antes de tudo “teoria, no sentido estrito:
epistemologia, metodologia, gnosiologia, ontologia, ética, política, estética, linguística, e só
depois, e a partir de escolhas, decisões, definições, seleções, reflexões e construções
teóricas, é crítica documental”. Como sabem os historiadores, no mínimo, desde Marc
Bloch, uma observação passiva nunca foi produtiva em ciência alguma (se é que isso é
possível), muito menos para o trabalho historiográfico, que as fontes não têm nada a
dizer espontaneamente. São os historiadores que possuem questões, perguntas,
problemas e hipóteses e com isso recorrem às fontes. É, portanto, um trabalho do espírito,
e “o que é provado não é ‘o evento tal como se passou’, mas a hipótese que o representa”
(REIS, 2019, p. 15).
O que está se afirmando, precede o estágio em que um determinado objeto material
é considerado fonte. Como afirma Funes, “o objeto se constitui durante o processo de
conhecimento, a partir então, de uma relação dialética entre o sujeito e objeto, que implica
tomar distância tanto do realismo ingênuo como de um transcendentalismo relativista”
(FUNES, 1997, p. 123144). Com isso, compreendemos que a produção de conhecimento
histórico precisa de complexidade intelectual e consciência em relação à responsabilidade
social (BARROS, 2020). De sorte que
apriorismos
e sistemas conceituais fechados podem
conduzir a caminhos distorcidos. Este foi o motivo pelo qual optamos em entender o
aparato conceitual como termos emaranhados, ainda que tenha sido apresentado tão
somente um conjunto selecionado das atividades e atributos enfeixados.
O termo agência histórica foi tomado de empréstimo da obra de E.P. Thompson, e
compreende aqui a ação humana como transformadora da sociedade. Ou, como indica
Santos (2016, p. 30), “noção de que os homens são sujeitos de sua própria história, embora
em condições que não escolhem”
35
. A decisão pelo dispositivo se deu pelo conhecimento
acumulado de pesquisas predecessoras, e também, como enunciação de hipótese que
atravessou o trabalho. Ao propor o termo
agência
para a figura histórica de Fernando III,
estávamos acenando para relações mais abrangentes e que por vezes tencionaram as
35
É do nosso conhecimento que a formulação inicial da ideia é da lavra de Karl Marx em sua obra
O 18 de
Brumário de Luís Bonaparte
, todavia, a escolha do conjunto de autores mencionados se deve por sua
especificidade e objetos de estudo que nos permitiu ampliar os horizontes teórico-metodológicos, bem como
possibilitou a utilização do conceito que não ocorreria de outro modo. Cf. SANTOS, 2016, 3031.
perspectivas a respeito da Idade Média: a discussão dos modos de produção feudal (ou
Feudalismo, se quisermos).
Não se trata de retomar toda a longa historiografia produzida sobre o assunto, mas,
de objetivamente compreender o que se chamou de
sistemas de equilíbrio de alto nível
”,
e considerar que “a lógica econômica de um modo de produção incluí, é claro, sua dinâmica
subjacente, assim como os modos mais imediatos como produtores, mudanças na
disponibilidade e preços de produtos, e por assim vai” (WICKHAM, 2012, p. 234).
Cumpre lembrar que o modo de produção feudal coexistiu com outros modos de
produção, seja o comunal, o exploratório, e mesmo o trabalho assalariado. Mas, “ainda que
os modos de produção coexistam, apenas um domina a lógica do sistema socioeconômico
como um todo”. Como apresentou Wickham (2012, p. 236), “enquanto o modo feudal
durou, o que foi por milênios em alguns lugares, o trabalho assalariado, em particular, foi
comum; só que a lógica de seu uso foi dominada pelos ciclos econômicos do feudalismo”.
Destarte, “a lógica econômica do modo de produção feudal possuía grande capacidade de
se perpetuar, durando milênios em algumas regiões. Ele também possuía enorme
dinamismo, mas sua capacidade de perpetuação e adaptação foram impressionantes”
(WICKHAM, 2012, p. 240–244). Logo, “temos um sistema complexo
socioeconomicamente, mas que estava em equilíbrio, no sentido de que não precisava
necessariamente mudar estruturalmente” (WICKHAM, 2012, p. 240–244).
Portanto,
agência
nos ajuda a pensar a respeito do estudo de um sistema de
equilíbrio de alto nível, que costumeiramente passou a ser analisado unicamente por seus
elementos de ruptura. Assim, propusemos analisar as situações de equilíbrio também pelos
elementos que potencialmente as levariam à permanência. De sorte que, concordando com
Wickham (2012, p. 242) novamente, “são as
pessoas
, as ações das forças sociais, que fazem
a passagem da dominância de um modelo para o outro, uma vez que condições nimas
tenham sido atingidas para essa transformação”, de modo que, não há nada que assegure
que um modo de produção tenda a outro modo de maneira inescapável.
Assim, desejamos recuperar a discussão que entrelaça a pesquisa e ensino, por
conseguinte, sua inserção social. O processo epistemológico enfatizado aqui, não apenas
seleciona o processo de pesquisa
per se
, mas dialoga com as reflexões do ensino de
História e seu impacto, que procuram romper com uma ênfase seletiva que privilegia o
ensino do tempo do capitalismo”. Isto é, a História medieval fica limitada a uma
configuração do feudalismo da cristandade, interessando apenas pelo seu declínio que
propicia o advento da burguesia e do capitalismo mercantil (BITTENCOURT, 2018, p. 143).
Podemos igualmente afirmar que fórmulas didáticas demasiado generalizantes,
como as que são muitas vezes empregadas na história da historiografia ou ensino de
história, possuem um caráter silenciador. “Séculos e séculos de historiografia são, por
vezes, reduzidos a ideias como ‘
historia magistra vitae’
, de que os gregos viam o tempo de
maneira cíclica’, ou que ‘na Idade Média se escrevia uma história eclesiástica’.” (AURELL,
2016; SANTOS, 2015, p. 7). Pensando nos elementos apresentados é que se propôs
agência
histórica
como um dispositivo de conhecimento, a fim de tentar compreender os móbeis
que levaram às ações e mudanças efetuadas no período fernandino, e que transcendem
também à pesquisa histórica enquanto uma prática.
Desta forma, quando se faz referência a potencialidade heurística da discussão
conceitual historiográfica de
Reconquista
, no sentido
rüseniano
, entendido como
“momento em que o saber teórico toma a forma de questionamentos claros e abertos à
experiência, ao mesmo tempo em que produz uma estimativa metodologicamente regulada
do que as fontes podem dizer” (ARRAIS, 2010, p. 221), e, do mesmo modo, “o momento de
exame e classificação das informações das fontes relevantes para responder às questões
levantadas e da ampliação do conteúdo informativo das mesmas (ARRAIS, 2010, p. 221),
deseja-se afirmar a proficuidade do aparato conceitual metodológico, mas não
subsumindo a concretude do objeto de pesquisa à uma realidade artificial universalizante
a-histórica. Citando Rüsen, “uma hipótese é heuristicamente fecunda se corresponder às
carências de orientação das quais, em última análise, se originou” (RÜSEN 2007, p. 119).
Revisitar conceitualmente a História Ibérica, permite a revisão de “conceitos e
valores que operam na ciência e em outras formas de enxergarmos o mundo”
36
(SANTOS;
NICODEMO; PEREIRA, 2017, p. 163), sobretudo, buscando ferramentas onto-epistêmicas
que possibilitem relacionar sincronia e diacronia histórica, e articular uma produção
historiográfica de modo transnacional. Verificar a complexidade do processo histórico-
jurídico da conquista de Córdoba e formação da imagem de Fernando III, possibilita
repensar a própria história do tempo presente, atendendo às lacunas de orientação de
sentido dos diversos públicos e convidando-os a agir em sua própria realidade histórica
(BARROS, 2020). Outrossim, um estudo como esse, em que se tenta restituir um
imaginário e motivações tão distintas, a retórica da alteridade, ajuda aos sujeitos de seu
tempo a refletirem também sobre sua própria realidade, não como um monolito, mas sim,
como processos em constante transmutação e significação (FARGE, 2011).
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36
Isto é, o próprio caminho epistemológico que o artigo constrói embasa-se nesta premissa.
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:
a revisão bibliográfica da
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e os horizontes teórico-metodológicos que podem ser percorridos na
ressignificação do conceito de
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