LEITE, Maiara Sanches
https://orcid.org/0000-0002-3271-090X
OLIVEIRA, Robson Silva
https://orcid.org/0000-0002-0239-9233
ZANETTI, Valéria Regina
https://orcid.org/0000-0003-2968-9342
RESUMO: Este estudo visa, à luz do conceito
de paisagem, analisar as transformações
urbanas e sociais ocorridas na cidade de São
José dos Campos-SP entre 1900 e 1950, após a
elevação do município à Estância Climática e
Hidromineral, título conquistado devido à fama
que a cidade adquiriu dos bons ares que,
segundo consta, curavam os acometidos pela
tuberculose. Essa condição impulsionou
significativas mudanças no espaço urbano,
como política de divisão de zonas (residencial,
sanatorial, industrial e comercial) que teve
grande impacto direto nas relações sociais,
com reflexos nos dias de hoje. Desse modo,
busca-se entender como foi a convivência
entre habitantes e doentes, promovida pelos
interessados em transformar a cidade em
estância de tratamento e compreender de que
maneira essas questões impactaram os
costumes em São José dos Campos. Utilizou-se
como fonte as Atas da Câmara Municipal de
São José dos Campos, periódicos como o
Correio Joseense e o Caixeiro, e referências
que versam sobre a tuberculose à luz do
conceito de paisagem cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Tuberculose;
Transformações Urbanas; Paisagem Urbana;
São José dos Campos.
ABSTRACT: This study aims, in the light of the
concept of landscape, to analyze the urban and
social transformations that occurred in the
city of São José dos Campos-SP, between 1900
and 1950, after the elevation of the
municipality to the Climatic and Hydromineral
Resort, a title won due to the fame that the city
acquired from the good airs that, according to
some, cured those affected by tuberculosis.
This condition has driven significant changes
in the urban space, with a policy of division of
zones (residential, sanatorial, industrial and
commercial) that had a great direct impact on
social relations, with repercussions nowadays.
Thus, it seeks to understand how the
coexistence between inhabitants and sick
people was, promoted by those interested in
transforming the city into a treatment resort
and understanding in what way these issues
impacted customs in São José dos Campos. We
use as a source for this article the Minutes of
the Municipality of São José dos Campos,
periodicals such as Correio Joseense and
Caixeiro, and a vast bibliography that deals
with tuberculosis in the light of the concept of
cultural landscape.
KEYWORDS: Tuberculosis; Urban
Transformations; Urban Landscape; São José
dos Campos.
Recebido em: 17/03/2022
Aprovado em: 30/06/2022
Professora da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
E-mail: maiarasanches@prof.educacao.sp.gov.br .
 Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UNIVAP). Email: robs_pjsjc@hotmail.com
 Doutora em História Social pela PUCSP (2008). Email: valzanetti.zanetti@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Este estudo busca analisar as transformações urbanas e sociais ocorridas na cidade
de São José dos Campos, sede da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte
(RMVPLN), depois de ter se transformado, em 1935, em um centro de tratamento da
tuberculose. Atualmente, o município de São José dos Campos é conhecido por concentrar
indústrias e empresas de diferentes ramos, em específico na área aeroespacial. No
entanto, até se tornar um polo industrial na atualidade, a cidade, que até o início do século
XX era inexpressiva como produtora de café no período imperial, passou a ser conhecida
nacionalmente, a partir de 1935, como a Kochlândia Brasileira, alcunha conquistada depois
que os ares da cidade ganharam projeção com a cura de alguns doentes acometidos pela
tuberculose que se tratavam no local.
No início do século XX, muitos que ali passaram em busca de ajuda encontraram
uma cidade incipiente, sem recursos e sem infraestrutura, mas que tentava, sem muitos
sucessos, caminhos para a modernização e o embelezamento do espaço urbano (ZANETTI,
2010). Embora tenha Campos em seu nome, não eram os campos da cidade que
proporcionaram os recursos de manutenção das receitas públicas. Foram os bem-
afamados ares deste município que fizeram dele um centro sanitário especializado em
doenças pulmonares, moldado conforme as demandas da tuberculose, a ponto de se
transformar, por ordem do governo do Estado, em 1935, em Estância Climática e
Hidromineral, o que possibilitou a captação de recursos e investimentos na área da saúde,
provocando as mudanças necessárias na paisagem urbana da cidade.
No entanto, até a descoberta da estreptomicina, em 1944, várias foram as teorias
profiláticas para o tratamento da tuberculose, nenhuma delas com embasamento sólido.
Isso estimulou a produção de compostos medicinais e o enriquecimento de muita gente,
que se achava de posse da fórmula milagrosa para a cura da temida doença. Nesse ínterim,
apareceram os pacovás, os elixires, os compostos, cuja venda era única fonte de lucro para
algumas pessoas. A terapia, até então, era baseada no tratamento higienodietética, que
consistia em uma boa alimentação, repouso e o clima das montanhas. O isolamento em
sanatórios
1
e preventórios era o mais recomendado por reunir as condições necessárias
para a profilaxia.
É fato que a vocação sanitária era uma realidade desde 1980; no entanto, a
administração pública, por diversas vezes, buscou outros meios de captação de recursos,
incentivando empreendedores a instalar seus negócios no município. Entre as vantagens
1
Locais adequados ao tratamento de doenças pulmonares (NASCIMENTO, 2008).
oferecidas pela municipalidade, isentava-se do pagamento de imposto predial aos que
construíssem prédios na cidade de acordo com a moderna arquitetura; concediam-se
terrenos e habitações para os operários e fornecia-se água gratuitamente durante 25 anos
(CMSJC, Atas da Câmara, 1920).
Apesar dos grandes esforços, as ações pensadas pela gestão blica, nesse sentido,
não surtiram muito efeito. Somente a partir de 1935 é que houve, de fato, condições
propícias para levar a cabo o projeto de melhoramento urbano, com os recursos das
atividades sanitárias adquiridos pelo Fundo de Manutenção das Estâncias, verba oriunda
do governo do Estado de São Paulo.
Ao mesmo tempo que significava investimentos em equipamentos públicos, a
ostentação do título de estância impunha uma série de transformações do ordenamento
espacial e das relações sociais, uma vez que o aumento do afluxo dos acometidos pela
tuberculose implicava em medidas sanitárias e profiláticas que visava isolar os doentes
dos sãos além de estabelecer uma convivência pacífica, já que vinha, dos doentes, a grande
captação de recursos do município.
A cidade de São José dos Campos-SP, originária de um antigo aldeamento jesuíta
do século XVI, tinha pouca expressividade econômica e política no cenário regional até o
início do século XX. A cidade pequena e provinciana era composta de um comércio simples
e de indústrias rudimentares de pequeno porte. A agricultura era baseada no cultivo de
café, cana-de-açúcar, arroz, fumo e cereais, produzidos em pequenas escalas (CALDEIRA,
1934).
Segundo Chuster (2011, p. 29), relatos de viajantes e observadores que passaram
por diversas cidades do Vale do Paraíba no século XIX descrevem São José dos Campos
como a menos importante e a menos populosa. A cidade de destaque era Taubaté, seguida
de Guaratinguetá, como nos relata Saint Hilaire (1974) em sua passagem por São José em
1822. O viajante comenta sucintamente as características da cidade, ressaltando sua pouca
expressividade regional e local:
A Légua e meia de Piracangava, passamos ao lado da Vila de São José. Entre
Lorena e Jacareí, se não me engano, não se atravessa lugar algum tão próximo da
Serra da Mantiqueira. Esta vila deve às montanhas uma vista bastante pitoresca,
aliás, não passa de mísera aldeia composta de casas pequenas, baixas e mal
mantidas. A Igreja é pequena e tem uma torre pouco elevada. Encontramos
muito menos casas à beira da estrada e quiçá mais miseráveis do que antes
(SAINT-HILAIRE, 1974, p. 98).
Com condições bem modestas, comparada às outras vilas da região do Vale do
Paraíba, o que chamou a atenção dos viajantes em São José, eram os seus atributos
naturais, conforme descreveu Zaluar (1945, p. 117) nos idos de 1860:
É triste realmente que um povoado favorecido pela natureza se veja pobre e
humilhado diante de outros municípios, e que, tendo proporções para socorrer
os vizinhos se ache forçado a recorrer a eles (...). A vila, apesar de achar-se
edificada sobre belíssima eminência, não sobressai muito nem mostra grande
desenvolvimento, pois as casas são quase todas baixas, e as ruas desiguais e mal
alinhadas, e os dois largos que nela se encontrem não tem as necessárias saídas;
falta-lhes adorno de alguns edifícios que atualmente se acham em construção,
como a cadeia, casa da câmara e a igreja matriz (ZALUAR, 1945, p. 117).
Foi com essas condições que São José dos Campos passou por todo o século XIX,
e início do século XX, apresentando uma economia pobre e pouco diversificada, sem
prestígio político e ínfima representação regional quando comparada às cidades vizinhas
como Taubaté, Lorena e Pindamonhangaba, municípios que ostentavam forte economia
cafeeira. Esse cenário passou a mudar de forma concreta no final de 1877 com a
construção da linha férrea ligando São Paulo ao Rio de Janeiro (CHUSTER, 2011, p. 78-79),
meio pelo qual afluíram muitos doentes que buscavam, nos ares da cidade, a cura para a
tuberculose, impulsionados por propagandas das mais diversas.
Apesar dos inúmeros casos de óbitos (BELCULFINÉ, 2001), o desesperado desejo
pela cura se contrapunha às evidências da mortandade no município. De certa forma, a
divulgação do sucesso da cura alcançada pelo afamado tisiólogo Dr. Clemente Ferreira no
Rio de Janeiro, baseada na climatoterapia como condição para a profilaxia da tuberculose,
e as recomendações dos mais renomados tisiologistas do país, como Miguel Couto,
projetaram o município no cenário nacional e fizeram dos ares da cidade o dispositivo que
motivou a disputa por acomodação nos estabelecimentos que recebiam os doentes, como
pensões, hotéis e repúblicas que os próprios doentes montavam.
Aos poucos, a cidade foi se transformando social e urbanisticamente para atender
não o público acometido pela tuberculose como os especialistas em doenças
pulmonares que chegavam ávidos em acompanhar o quadro de saúde da população doente,
tornando São José dos Campos um lugar de prestígio para as pesquisas médicas. A
construção do primeiro sanatório, em 1924 (Figura 1), por iniciativa da Irmandade da Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo, encabeçada por Vicentina Aranha, esposa do senador
Olavo Egídio; sua esposa deu nome ao estabelecimento e estimulou a procura dos
enfermos pelo município. O sanatório Vicentina Aranha se consolidou como um dos
maiores centros para tratamento de tuberculose da América Latina, foi o primeiro
sanatório de São José dos Campos e um dos primeiros do país.
Figura 1: Antigo Sanatório, hoje Parque Vicentina Aranha
Fonte: www.ajfac.org.br
A configuração demográfica do município acabou por evidenciar a sua vocação
sanitária, o que estimulou projetos de adequação e medidas para aparelhar a cidade à nova
condição. Em 1935, foi aprovado a equipe de médicos e da administração pública,
encaminhado ao governador do Estado, todos os envolvidos estavam interessados em
transformar o município em uma estância climática (ZANETTI, 2008).
A climatoterapia, ou terapia do clima, ao mesmo tempo que provocava amplos
debates e dividia a comunidade médica entre os que apoiavam e os que criticavam a
terapêutica, era o instrumento que ordenava a chegada dos doentes, certos de que o ar
puro salvava. No entanto, ao chegarem à cidade, os doentes constataram que era muito
díspar a imagem que circulava no país sobre as condições ideais e a realidade do município,
que evidenciavam problemas de abastecimento de água, de rede de esgoto e escassez de
demais infraestruturas importantes para acomodar um centro de tratamento, além de se
depararem com um grupo hostil à sua chegada, temerosos com a contaminação em massa.
Seja como for, o considerável afluxo de pessoas que buscavam o município para
tratamento impunha demandas sociais e urbanísticas. Transformada em laboratório, a
cidade foi alvo dos experimentos médicos e das políticas urbanas sanitárias, cujo saber
técnico sobre a vocação sanitária do município impulsionou significativas mudanças no
espaço urbano, como, por exemplo, a inédita medida urbana da política de divisão de zonas
(residencial, sanatorial, industrial e comercial), que teve grande impacto direto nas
relações sociais ao isolar a população em espaços definidos.
Este artigo, baseado no conceito de paisagem cultural, propõe apresentar não só
as transformações ocorridas na paisagem urbana de São José dos Campos, entre 1900 a
1950, para adequar o espaço às demandas sanitárias, como analisar como eram as relações
entre sãos e doentes e quais as políticas adotadas para proteger a população residente da
contaminação. Além das fontes primárias de época, como os jornais e as atas da câmara
do município, o artigo se apoiou na literatura que versa sobre os assuntos aqui tratados,
tais como Zanetti (2010); Vianna, Zanetti e Papali (2014); Belculfiné (2001); Chuster (2011);
Sousa (2002); Souza (2015), dentre outros.
O artigo esdividido em seções. Para título de esclarecimentos acerca do que se
concebe por “paisagem” neste artigo, importante conceito que deu suporte à análise. A
segunda seção discorre sobre o processo histórico do município de São José dos Campos,
que, de vila sem expressão econômica no período imperial, se tornou um importante
centro de tratamento de doenças pulmonares no início do século XX. Na terceira seção
apresentam-se as transformações na paisagem urbanizada da “cidade dos tuberculosos”,
que foi remodelada para dar vazão à vocação sanitária.
Os estudos acerca do tema concentram-se, sobretudo, na região do Vale do
Paraíba, em autores como Paula Carnevale Vianna (2014), Valéria Regina Zanetti (2010),
Ana Enedi Prince Silva (2001), Vitor Chuster (2011) e Cláudio Bertolli Filho (1993). Esses
autores buscaram, por meio de entrevistas orais, referências bibliográficas, projetos de
pesquisa e levantamento em acervos de jornais e sanatórios, investigar demandas ligadas
à fase sanatorial em São José dos Campos e Campos do Jordão, como as relações entre os
doentes e não doentes, o estigma da doença e a relação com o espaço e a memória.
Utilizou-se também de referências acerca da convergência de ações entre as cidades como
estância climática e investimentos em melhorias urbanas, como o estudo de Dilene
Nascimento (2008) que discute a questão da tuberculose, e de igual importância o estudo
de Lorena Almeida Gill (2004) que, em sua tese de doutorado “Um mal de século:
tuberculose, tuberculosos e políticas de saúde em Pelotas (RS) 1890-1930”, apresentou as
mais diferentes terapêuticas que prometiam curar a doença que, até pelo menos 1950, era
incurável.
Breve consideração sobre o que vem a ser paisagem cultural
Antes de seguirmos com os objetivos propostos, cabe aqui um breve entendimento
do que vem a ser "paisagem'', para fins deste artigo. Entende-se este conceito a partir de
uma perspectiva mais ampla, que engloba, além das características naturais (elementos
combinados de terreno, vegetação, solo, rios e lagos), as tradições e as relações sociais e
culturais. A paisagem, nesse sentido, guia-nos à compreensão das mudanças ocorridas na
cidade no início do século XX, uma vez que não é possível “formar uma ideia de paisagem
a não ser em termos de suas relações associadas ao tempo, bem como suas relações
vinculadas com o espaço” (SAUER, 1998, p. 42). A paisagem está inserida em um processo
constante de desenvolvimento ou dissolução e substituição. Assim, no sentido
cronológico, a alteração da área modificada pelo homem e sua apropriação para o uso são
de importância fundamental” (SAUER, 1998, p. 42).
Milton Santos (2006) nos alertava sobre a diferença entre paisagem e espaço.
Dizia o geógrafo: Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de
formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas
relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que
as anima” (SANTOS, 2006. p. 67-68). Isto posto, é preciso tratar a paisagem como um
processo cultural, pois revela o caráter histórico de uma condição social, que, por sua vez,
vai além das condições morfológicas (MENESES, 2002).
Paul Claval (1999, p. 420) corrobora com esse entendimento e ressalta que “não
compreensão possível das formas de organização do espaço contemporâneo e das tensões
que os afetam sem levar em consideração os dinamismos culturais. Eles explicam a nova
atenção dedicada à preservação das lembranças do passado e a conservação das
paisagens. Isso denota que a paisagem é a realização e materialização de ideias dentro de
determinados sistemas de significação, manifestados pela ação dos diferentes grupos
sociais dentro de um contexto cultural e discursivo.
É nesse sentido que será tratado o conceito de paisagem neste estudo, como uma
dimensão que engloba a morfologia, mas também as representações, a história urbana, os
símbolos, os discursos, o imaginário, a vida religiosa, as tradições, a paisagem sonora,
política, enfim, tudo que esteja ligado à paisagem natural e aos elementos antrópicos.
De vila sem expressão a centro de tratamento de doenças pulmonares: Processo de
urbanização de São José dos Campos no início do século XX
A São José dos Campos do início do século XX, com clima ameno que variava dos
seis a 20 graus durante o inverno e verão, era uma típica cidade do interior, que vivia,
sobretudo, dos escassos recursos da agricultura. A iluminação pública era fornecida por
um número insuficiente de lampiões e o município tinha precários acessos às cidades
vizinhas, como Paraibuna, com quem estabeleceu importantes transações comerciais.
Com modos de vida bem modestos, foi precisamente a partir da construção do
sanatório Vicentina Aranha, em 1924, que o município começou a se despertar lentamente
da inércia vivida durante o século XIX, experimentando seus primeiros passos em direção
à urbanização (BELCUFINÉ, 2001). Mas foi sobretudo a partir da condição de Estância
Climática, em 1935, que o clima passou a ser oficialmente o mote do desenvolvimento,
graças à verba destinada ao município, condição necessária para levar a cabo o tão
desejado projeto de melhoramento urbano, questão amplamente debatida na câmara
municipal ao longo do final do século XIX e início do XX (ZANETTI, 2010).
Enquanto nas demais cidades brasileiras a tendência era a eliminação de doenças
e expulsão de doentes como forma de reordenação do espaço central das cidades, São José
dos Campos fazia o sentido inverso, atraindo os doentes e concentrando-os no perímetro
urbano central. É crível dizer que “a mercantilização da doença retirou de São José dos
Campos a condição de cidade morta” (ZANETTI, 2010, p. 734).
Pautado na cura pelos “bons ares”, o afluxo de pessoas doentes fez dobrar a
população do município, até então sem recurso algum para acomodar os migrantes
doentes e suas famílias. Em 1912, São José contava com 12 mil habitantes, com evidente
projeção de crescimento populacional (Tabela 1) em relação aos municípios da região,
crescimento evidenciado em 1930, quando mais de 30 mil pessoas disputavam os espaços
recortados da cidade (ZANETTI, 2010), obrigando a municipalidade equipar e ordenar o
espaço público, que passou a empreender urbanisticamente para acomodar o pleito de
estância encaminhado ao governador do estado de São Paulo.
Fonte: ZANETTI et al., 2010
Os almanaques publicados na cidade entre 1905 e 1922 mostram uma significativa
mudança na paisagem da cidade, com o predomínio das farmácias, pensões e clínicas
pulmonares, estabelecimentos importantes para evidenciar a imagem ideal da cidade
equipada para o tratamento do grande mal que acometia a população. Estabelecimentos
subsidiários à economia da doença também passaram a ser instalados na cidade para
acomodar a grande demanda de outsiders, como os açougues, as casas bancárias, os
armazéns, as lavanderias, os hotéis, as imobiliárias, as casas de construção, entre outros.
2
2
Em
Os estabelecidos e os outsiders
: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade,
Norbert Elias e John L Scotson (2000), estudo realizado em fins da década de 1950 e inícios da de 1960 na
comunidade fictícia de Winston Parva, próxima de Leicester, na Inglaterra, os autores definem o conceito de
Além das mudanças referentes à infraestrutura, como instalação de
estabelecimentos privados e públicos, a cidade também passou por mudanças
comportamentais, que alteraram a paisagem cultural e deram uma nova configuração à
vida do município.
O desejo de transformar a pacata cidade interiorana em estância climatérica
estimulou projetos de introdução de equipamentos blicos desde a década de 1920,
quando foi iniciado o processo de mudança da paisagem uma maneira profunda, pois de
pacata e estagnada cidade interiorana, passou a ser considerada a “cidade dos
tuberculosos”. Muitas das pessoas, de vários estados do Brasil, que chegavam em busca
de tratamento, careciam de recursos para custear o tratamento de saúde. Por outro lado,
o município também não oferecia condições para tal; as ruas do centro da cidade eram de
terra, e a presença de animais de carga e para o abate circulando no perímetro urbano
colaborava com a proliferação de doenças (CHUSTER, 2011). Na tentativa de ordenar a
dinâmica da vida urbana e resolver problemas de insalubridade, de más condições
higiênicas e ajustar as posturas tradicionais não condizentes às novas determinações,
foram determinantes as posturas municipais. O jornal O Caixeiro noticiou, em 1905:
Merece acurado cuidado da municipalidade este próprio, mormente agora, que
na imprensa local se debate o momento o assunto da higiene desta cidade, cuja
responsabilidade de zelar por ela cabe-lhe a administração do município. As
condições do matadouro são péssimas segundo informações acima de quaisquer
suspeitas, sendo notável a falta de asseio e limpeza que se notam no edifício e
dependências, tornando-os infectos e repugnantes (O CAIXEIRO, 1905, p. 25).
A preocupação em disciplinar o espaço urbano adotando medidas sanitárias foi o
principal foco da administração pública, sobretudo quando o município ganhou
importância nacional depois da conquista do título de Estância Climática em 1935. A partir
de então passou a ser administrado por prefeitos médicos ou por engenheiros sanitaristas
indicados pelo governo do estado e não por voto popular, pelo Decreto N. 7.007, que criava
a Estância Climatérica de São José dos Micuins (CHUSTER, 2011), perdendo, dessa forma,
a sua autonomia política no que diz respeito à escolha do prefeito; ônus que o
status
de
estância carregava.
outsiders
ao estudar os dois grupos sociais existentes como os “estabelecidos”, moradores no local desde
longa data (entre duas e três gerações), e os “outsiders”, formados por residentes mais recentes, de,, no
máximo, vinte anos de ocupação. Estes últimos, reconhecidos pelos hábitos trazidos da vida urbana na
periferia de Londres, conflituavam-se com o estilo de vida da comunidade tipicamente provinciana de
Winston Parva. Para os autores, os
outsiders
são justamente as pessoas que se encontram fora do
comportamento, da organização e enquadramento estabelecidos pelos que estão mais tempo na
comunidade (ELIAS e SCOTSON, 2000).
A presença dos doentes e a ameaça que a tuberculose representava à população
residente era cotidianamente noticiada nos periódicos locais. Em 1905, os tabloides locais
(
Correio Joseense, A Caridade
) anunciavam a iminência do contágio e as elevadas
ocorrências de vítimas da doença no município, momento oportuno para cobrar atitudes
da prefeitura. De acordo com Chuster (2011), “essa talvez seja uma das primeiras
manifestações de caráter público veiculadas na imprensa local, dando conta das
preocupações do povo joseense em relação aos doentes da Tuberculose” (2011, p. 93),
evidenciando que havia uma acentuada tensão entre as relações dos moradores e
“forasteiros” que afluíam ao município em busca de cura. Essa relação, condicionada pela
funcionalidade sanitária do município, provocou impactos espaciais e culturais, delineando
uma paisagem morfológica e cultural pautada na tênue relação entre os que dividiam, de
forma restrita, os demarcados espaços da cidade.
A nova paisagem urbanizada da “cidade dos tuberculosos”
Na década de 1920, a então pacata cidade vivia estagnada pelos parcos recursos
oriundos da produção cafeeira, da produção de louças da Fábrica Santo Eugênio (1921), de
propriedade da família Bonádio, e dos cobertores produzidos pela Tecelagem Parahyba
(1924), de propriedade de Olívio Gomes, dono da maior parte das terras na zona Norte da
cidade, que alojava também a fábrica de louças.
Apesar da existência da Tecelagem Parahyba e da Cerâmica de louças Santo
Eugênio, o município vivia em torno, principalmente, dos dividendos dos sanatórios
3
e dos
demais estabelecimentos de cura, como pensões e repúblicas de doentes. De forma
orgânica, ou seja, sem que houvesse uma orientação política, o município foi alvo de
pessoas acometidas pelo bacilo de Koch desde fins do século XIX, quando São José passou
a exibir as mais diferentes alcunhas, como “cidade dos tuberculosos”, “Cidade Esperança”,
“Kocklândia Brasileira” “Canaã dos tuberculosos” (ZANETTI, 2010; AMARAL, 1930). Para
o município, afluíram pessoas de vários estados do Brasil, muitos deles carentes de
recursos para custear o tratamento de saúde no importante sanatório inaugurado em 1924
e nas pensões familiares que alojavam, algumas sem condição alguma, os doentes
pulmonares (ZANETTI, 2010).
Na época, o único sanatório existente, com projeto de Ramos de Azevedo e obras
executadas pelo engenheiro Augusto de Toledo, ostentava uma arquitetura adequada, com
3
Em 1967, São José dos Campos contava com 10 sanatórios; além do Vicentina Aranha, foram instalados no
município os sanatórios Vila Samaritana (1929), Ruy Dória (1934), Maria Imaculada (1935), Ezra (1936),
Adhemar de Barros (1938), São José (1946), Antoninho da Rocha Marmo (1946) e Adhemar de Barros 2 (1967)
(SILVA, 2020).
amplas janelas e longas varandas que recebiam a incidência de luz e sol, inspirada nos
sanatórios suíços (Figura 2),
4
reunindo as condições ideais para o tratamento da
tuberculose, epidemia que assolou o país até pelo menos a década de 1940, quando, com
o aparecimento da estreptomicina, os sanatórios deixaram de ter a importância que
tinham, embora, em São José dos Campos, permanecessem como espaços destinados à
cura da doença, até pelo menos a década de 1960.
Figura 2: Doentes em tratamento no Sanatório Vicentina Aranha na década de 1940
Fonte: Arquivo Público Municipal de São José dos Campos
Se, por um lado, o sanatório era o estabelecimento próprio para acolher os
tuberculosos, por outro lado, a cidade, que se mantinha graças à indústria” da tuberculose
(CHUSTER, 2011), não oferecia condições para tal. As ruas do centro da cidade eram de
terra, levantando poeira a cada revoada de vento ou passagem de carro, situação
imprópria para os doentes pulmonares. A presença de animais de carga para o abate, que
circulavam soltos no perímetro urbano, corroborava para a proliferação de doenças
(CHUSTER, 2011, s/p).
4
Devido a sua elevada altitude e as baixas altitudes, a Suíça se tornou referência no tratamento da
Tuberculose. Na Suíça, a história da luta contra a tuberculose apresenta três fases: a primeira (segunda
metade do século XIX) viu o aparecimento dos primeiros sanatórios em alta altitude; a segunda (1890-1920)
caracteriza-se pela fundação de instituições populares destinadas ao atendimento, prevenção e diagnóstico
precoce da doença (sanatórios, dispensários, preventórios, ligas antituberculose). Na terceira fase (1920-
1949) foi criada a lei federal de combate à tuberculose (1928), que permitiu coordenar e subsidiar obras
existentes (ou futuras), obrigando as autoridades cantonais a limpar o solo e as casas, ensinar medidas de
higiene às classes mais baixas, organizar um serviço médico escolar e promover a educação física na escola,
iniciativas coordenadas pela Comissão Central Suíça contra a Tuberculose (CORTI, 2012).
Sabe-se que o título de estância hidromineral exigia abundância de água para
limpeza do espaço e as condições higiênicas da população em geral. No entanto, São José
dos Campos não reunia essas qualidades, uma vez que a fonte de água de que dispunha,
“além de pequena vazão, era imprópria para o consumo” (VIANNA, 2004, p. 128). A água,
chamada como “líquido precioso” na época, era demasiadamente reduzida para uma
estância hidromineral e deixava a cidade por longos períodos na mais completa seca.
Munir o município com serviço de abastecimento passou então a ser o grande
desafio dos gestores públicos. Foi somente em 1933 que o sistema de abastecimento
passou por avaliação, constatando a má qualidade da água e o alto grau de contaminação.
O
Correio Joseense
(1933, p. 6), àquela época, denunciava: com a presença de 10.000 colis
(bacilos) por 100 centímetros cúbicos, [...] a avaliação a colocou entre as águas de péssima
qualidade e muito deveria ter sido considerada pelas autoridades sanitárias como
imprópria para o consumo”.
Em 1924, os postes de ferro da empresa Força e luz sofreram sanções da população,
que exigiu a sua substituição por postes de madeira (CORREIO JOSEENSE, 1924). A
modernidade tecnocrática, com sua decoração urbana, introduziu elementos que
incomodavam a provinciana cidade. A herança colonial resistia às mudanças e dificultava
o claro desejo de ocidentalização das cidades brasileiras.
Um grupo de moradores, indignados com os problemas de saneamento básico da
cidade e surpresos com os rumos tecnocráticos da cidade a partir da remodelação do
espaço urbano em processo de modernização, se opôs à manutenção do título de estância
climática e hidromineral, argumentando a falta de água na cidade. A indignação desse
grupo foi expressa em uma matéria do
Correio Joseense
: “E ainda deram à nossa terra o
pomposo título de Estância Hidromineral. Que heresia!” (CORREIO JOSEENSE, 1938). Além
das críticas da população com relação à falta de infraestrutura sanitária, o medo era
elemento estruturante no cenário social. O alto coeficiente de mortalidade por tuberculose
atingiu valores de 1.489,31 por 100.000 habitantes. A periculosidade do doente era prática
comum antes mesmo de 1935, quando São José ostentou o título da estância. Entre o
paradoxo da aproximação e distanciamento, os doentes que afluíam para o município
sofreram forte política segregacionista. Determinados setores da sociedade se
manifestaram declaradamente contra a presença dos temidos outsiders. Enquanto a
modernidade se instalava, a cidade se dividia entre sãos e doentes.
Uma matéria no
Correio Joseense
ilustra bem esse fato:
Cumprindo o sagrado dever que juramos em nosso primeiro número, em nossa
espontânea fé, vimos hoje com o intuito de defesa do povo desta terra, dirigir um
respeitoso apelo aos doentes de moléstias contagiosas e com especialíssimo
propósito aos enfermos de tuberculose [...]. São José dos Campos é inegável,
constitui hoje uma conhecidíssima estação de saúde. É um centro especialíssimo
de cura. Em procura de saúde, aqui apostam enfermos tuberculosos. É
justamente por isso, também, que a nossa situação se reveste de tão alta
excepcional gravidade, infundindo nos justos receios pelos infinitos perigos que
nos rodeiam. É devido a isso que clínicos de fora, e de reconhecido valor, lembram
as pessoas sãs que vem morar, a conveniência de não residirem nesta cidade,
pois o contágio da tuberculose, aqui, tende a crescer, a subir de forma tal que os
poderes públicos hão de, um dia, providenciar com medidas enérgicas de
segurança geral, muito embora restritivas da descabida e até excessiva
"liberdade" dos enfermos. Essa liberdade hoje se converte em verdadeiro
atentado à vida dos cidadãos. E nem pode ser por menos essa licença que os
doentes gozam de lançar suas cusparadas nas vias públicas sem a menor
cerimônia, sem o menor escrúpulo, cinicamente, com maior malvadeza possível,
fechando seus corações a todo o sentimento do altruísmo e da nobreza muito
longe do amor ao próximo, da comiseração e de piedade (CORREIO JOSEENSE,
18 de abr. 1920).
Diante do quadro entre os que defendiam a vinda dos enfermos como mote do
desenvolvimento local e os que os consideravam uma ameaça à saúde pública, a vida na
cidade transcorria entre a aproximação e a distância. O quadro ameaçador foi acentuado
quando, em fevereiro de 1934, os médicos que defendiam a chegada dos tuberculosos
fizeram um apelo aos colegas de profissão para que não encaminhassem para o município
os doentes sem recursos e desprovidos de guias para internação nos sanatórios (BOLETIM
MÉDICO, 1934). Esses infelizes, segue a matéria,
continuam a afluir em procissão contínua e desesperante, mas os sanatórios
estão abarrotados e, fora deles, a hospedagem gratuita esgota todas as
possibilidades. Ficam, pois, estes desgraçados, a perambular pelas ruas, quando
suas forças ainda o permitem, a mendigar o dinheiro de passagem de volta e a
exibir um quadro tristíssimo de doença e miséria (BOLETIM MÉDICO, fev. 1934).
Para evitar a discriminação, muitos enfermos escondiam a sua moléstia. Na década
de 1940, um censo expressava a subnotificação dos tuberculosos na cidade. João Flório,
responsável pelos dados, esclareceu que os 1.024 doentes censitados representavam
somente aqueles que não esconderam a sua situação; além destes, havia uma grande parte
que negava o seu estado patológico, e o seu fichamento não foi possível pelo fato de
permanecerem ocultos (FLÓRIO, 1944, p. 60). A situação dos tuberculosos era biológica e
social/trágica, por carregarem consigo as representações da doença, ligada à morte, ao
contágio e ao isolamento.
O embate entre costume e saber fez parte da paisagem cultural joseense quando a
concretização da estância desencadeou uma série de transformações radicais do espaço
urbano e da forma de viver dos moradores. Exemplo disso foi a notícia veiculada no jornal
local sobre o embargo da obra de abastecimento de água central, por “construir,
justamente no largo da Matriz, uma torre de 26 metros de altura por 8 metros de largura,
prejudicando não aquela bela praça na sua área como na sua estética” (CORREIO
JOSEENSE, 1938, p. 2). Os elementos de modernização da cidade, com suporte técnico
pautado no saber e na racionalização das áreas, autoritariamente imposto, incomodavam
a população joseense.
O prefeito sanitário Dr. Rui Dória, primeiro interventor da República Nova,
nomeado em 1931, por exemplo, dizia: “não precisamos de máquinas. Isso é para Taubaté
e Jacareí. Precisamos é de doentes.... Essa é a nossa indústria” (BONDESAN, 1967, p. 31).
Essa fala evidencia a funcionalidade do município, voltada para a área da saúde, o que
justifica, em parte, os melhoramentos urbanos voltados à salubridade do ambiente e do
município para acolher o grande contingente de pessoas acometidas pela tuberculose.
Como forma de evidenciar o predomínio da população no município, Coimbra (2016) se
manifestou: “Passarinho naquela época não cantava, tossia, de tanto tuberculoso que
tinha”.
Nessa época, médicos e engenheiros sanitaristas orquestraram os projetos
urbanos, cujas ações incluíam
colocação de guias e apedregulhamento das ruas e praças, ajardinamento e
arborização da cidade, serviço de encanamento, regularização do abastecimento
de água, iluminação pública por eletricidade e construção de fossas sépticas
aneróbicas e rede de esgotos. Elas foram efetivamente aplicadas ao espaço
urbano a partir de 1935, acelerando as mudanças iniciadas uma cada antes.
(ZANETTI et al, 2010, p. 733)
A cidade velha, um tanto anti-higiênica, dava vazão, por meio de uma missão
civilizatória, à cidade reformada, com casas modernas, água aumentada e usina de força e
luz (CORREIO JOSEENSE, 1925). Os melhoramentos concentraram-se na região central da
cidade, com a criação da zona sanatorial e a construção do Pavilhão da Higiene (1935). A
modesta rua São José, na região central, habitada majoritariamente pela população de
baixa renda, “foi ampliada e transformada em avenida. A demolição das casas do lado par
da rua abriu a vista para um grande vale, o Banhado, fortalecendo a imagem de estação de
cura da tuberculose” (ZANETTI, 2010, p. 732).
Apoiada no discurso da higienização do espaço, a limpeza também se dava pela via
social, com derrubada dos casebres e expulsão da população pobre que residia no
perímetro central da cidade, ação considerada necessária para dar lugar a largas avenidas,
corredores de circulação e espaços destinados ao abastecimento de água e à iluminação.
As novas edificações particulares foram pensadas a partir do contexto da doença.
Alpendres e varandas passaram a ser espaços exigidos pelas novas determinações
arquitetônicas. A fachada avarandada distanciava a casa da rua, a qual a doença passava
a ser tributária (Figura 3).
Figura 3: Casas em estilo moderno
Fonte: VIANNA, 2014, p. 142.
Por um decreto municipal, em 1909 ficaram estabelecidas as diretrizes para as
edificações. Elas recomendavam para os edifícios a serem construídos que tivessem um
alinhamento distante de 20 palmos, reservando uma área para ajardinamento (APMSJC.
Ata da Câmara, 15 de março de 1909). Os bancos das praças centrais, que antes serviam
como ponto de encontro e socialização, foram retirados em 1921 para evitar que os doentes
parassem por ali, escarrassem no chão e, com isso, contaminassem os sapatos dos
transeuntes que, consequentemente, levavam para suas casas o bacilo de Koch.
O alargamento das ruas anunciava não só a fluidez das mercadorias, condição
imposta pela rapidez das demandas, como expressava o distanciamento social e, na sua
origem, a exclusão social retratada no processo de expulsão de várias famílias que foram
desapropriadas para dar lugar ao novo espaço.
Como a indústria de São José era o doente, como dizia o prefeito Rui Dória em 1933,
a morte passou a ser, portanto, seu monopólio. Com o elevado índice de mortalidade, o
serviço funerário passava a ser um bom negócio que abrangia a fabricação e comércio de
artigos funerários e caixões mortuários, bem como o serviço de transporte fúnebre
(APMSJC. Ata da Câmara, 1930).
A intensa relação da cidade com a morte, decorrente da falta de medicação para a
cura, impôs à Câmara Municipal o aumento da área do cemitério da cidade e a isenção de
impostos para os estabelecimentos funerários instalados na cidade por um prazo de 10
anos (CORREIO JOSEENSE, 27 de jan. 1924; CORREIO JOSEENSE, 27 de abr. 1924).
Do ponto de vista físico, a cidade de São José recebeu em 1932 a primeira lei de
zoneamento, n°110 de 10 de março de 1932, que dividia a cidade em três zonas distintas,
Residencial, Comercial e Sanatorial, esta última composta por seis sanatórios (Vicentina
Aranha, Maria Imaculada, Vila Samaritana, Sanatório Ezra, Clínica Ruy Dória, Adhemar de
Barros) e pelas inúmeras pensões e repúblicas de doentes. Em 1933, foi acrescentada a
zona industrial (SANTOS, 2006, p. 62). Tal legislação tinha, entre seus objetivos, ordenar
o espaço urbano, proteger a população dos enfermos contaminados pela tuberculose e
delimitar as indústrias que se instalavam no município.
Figura 4: Mapa de Zoneamento (1938) São José dos Campos
Fonte: RAMOS, 2009.
A política de zoneamento implantada diferenciou a o município de São José dos
Campos das demais cidades da região, no que diz respeito ao modelo de urbanização
intervencionista, imposta pela concentração de doentes no perímetro urbano.
O bairro de Santana, localizado na zona norte, foi, até, pelo menos, a década de
1950, o ponto de referência de concentração de indústrias na primeira fase de
industrialização do município. Conforme observou Santos (2008, p. 6), “o bairro de
Santana concentrava, em meio às residências e casas comerciais, as máquinas, as oficinas,
olarias e pequenos estabelecimentos fabris que antecederam à instalação das indústrias
de porte, configurando a Primeira Industrialização” (SANTOS, 2008, p. 6).
As sucessivas fases industriais pelas quais passou o município (industrial e de
serviços) trouxeram outras mudanças na paisagem, convidando-nos a desvelar os
elementos discursivos de sua história tangível e intangível, cuja materialidade imposta pela
condição econômica, social e cultural não dão conta de revelar. O espaço, antes de ser
físico, é humanizado. De acordo com Claval (1999),
os espaços humanizados superpõem múltiplas lógicas: eles são em parte
funcionais em parte simbólicos. A cultura marca-os de diversas maneiras:
modela-os através das tecnologias empregadas para explorar as terras ou
construir os equipamentos e as habitações; molda-os através das preferências e
os valores que dão as sociedades suas capacidades de estruturar espaços mais
ou menos extensos e explicam o lugar atribuído às diversas facetas da vida social;
ajuda enfim a concebê-los através das representações que dão um sentido ao
grupo, ao meio em que vive e ao destino de cada um (CLAVAL, 1999, p. 296).
A orientação sanatorial do município foi enredo que escreveu a história da cidade
de São José dos Campos nas primeiras décadas do século XX, assim como marcou a
memória e a vida de pessoas que buscaram, na cidade, a única esperança possível de
usufruir da terapêutica do clima e de obter sucesso, assim como foi instrumento de renda
de muita gente, ávida em transformar em mercadoria o desejo pela cura de outrem. Lorena
de Almeida Gill (2004) apresenta, em seu estudo relacionado a Pelotas, as diferentes
atividades que surgiram no início do século associadas às tentativas de cura da
tuberculose. Dentre os “curadores” estavam os “feiticeiros, mandingueiros, ocultistas e
homeopatas, (que) estabeleceram uma espécie de guerra, para ver qual deles poderia ter
maior sucesso no tratamento da tuberculose” (GILL, 2004, 25), bem como surgiram
“diferentes terapêuticas propostas para a doença: injeções de açúcar, de nitrogênio,
transfusões, soros, cirurgias, vacinas, cura pelo sol, pelo banho de mar, pela luz azul,
através de voos em aeroplanos, além de uma lista extremamente vasta de remédios que se
propunham a curar o que era então incurável” (
Idem
).
No processo de mudança da vocação da cidade de São José dos Campos com a
chegada da estreptomicina em 1944, houve um esforço dos agentes públicos em criar uma
imagem da cidade desvinculada da doença. Se, antes, a doença era o motor da economia,
a partir de 1944 passa a ser um ônus para a imagem do município. Nelson D’Avila, médico
pneumologista que atuou na década de 1930, e que, inclusive, empresta o nome a uma das
mais importantes avenidas da cidade, relata sobre esse preconceito:
Eis um preconceito que é preciso acabar. Repare o senhor o preconceito que
contra S. José dos Campos e verá como o mesmo é sem fundamento. S. José dos
Campos é uma cidade a duas horas apenas de S. Paulo. Duas horas de automóvel,
duas horas de trem, tem uma estrada de rodagem incomparável. Tem vários trens
por dia, tem telefone, tem aparelhagem, tem assistência de vários e excelentes
médicos. O seu clima é fundamental sedativo. A sua posição desejável. É pois,
uma cidade naturalmente indicada para férias dos escolares, para o retempero
das forças gastas no ano, para os necessitados de repouso, os “surmenages”, os
que precisam convalescer no campo, os que vem de pneumonias. No entanto,
apesar de todas as facilidades que S. José apresenta; muita gente, quando precisa
de clima, vai buscar outros lugares cheios de doentes clandestinos, lugares de
contágio fácil, de medo - veja o que é o preconceito de vir a S. José dos
Campos, onde não menor perigo, é preciso acabar com essa tolice, na Suíça,
por exemplo, as estações enchem de gente que vem fazer esporte e ao mesmo
tempo, fruir de um clima apto e sadio (D’AVILLA, 1ª seção Folha da Manhã, 2014).
A chegada de indústrias e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial
(DCTA) para a cidade, se deu a partir de 1950. A instalação das empresas e do DCTA
alterou a configuração física do município, aproximando a transição para a segunda fase
industrial, quando São José dos Campos passou a alojar empresas, serviços e instituições
educacionais ligadas ao setor aeroespacial.
Considerações finais
Propôs-se entender por que vias São José dos Campos se tornou estância climática
e Hidromineral mesmo sem condições para tal. Percebeu-se que a condição de pobreza
que o município estava imerso condicionou as vias de desenvolvimento urbano e os meios
para viabilizar tal processo, sustentado na economia da doença, enquanto as demais
cidades brasileiras faziam o caminho inverso.
Pautado na propaganda dos bons ares, afluiu para o município um contingente de
pessoas doentes que, de certa forma, moveram a economia local, fragilizada pela precária
produção agrícola.
As determinações sanitárias impactaram a paisagem física e cultural do município
de São José dos Campos e estruturaram a especialização da cidade, baseada na propaganda
dos benefícios do clima, ancorada nos lucros advindos dessa forçosa adjetivação, que
animava as forças locais, com apoio exclusivo dos médicos pneumologistas. Os
melhoramentos urbanos impactaram a vida da população residente, que estranhou os
equipamentos da modernidade. É interessante ressaltar que os melhoramentos urbanos
realizados no município, no início do século, deram à cidade as condições para se destacar
localmente e, atualmente, tornar o município a capital do vale e referência da região
Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte. Reconhecida no passado como polo de
tratamento da tuberculose e estigmatizada como cidade de tuberculosos, São José dos
Campos conviveu com essa pecha por décadas. Se na época do predomínio do café, a
cidade não gozava de reconhecimento.
O título de estância climática e hidromineral muito auxiliou a transformação da
cidade em um grande polo industrial e aeroespacial. A modernização das estruturas, o
crescimento econômico acontecera por conta da doença. O título de estância, possibilitado
graças à grande consideração de tuberculosos na cidade, juntamente com o fundo de apoio
às estâncias aumentaram as receitas municipais, tudo isto fez da fase sanatorial um
período importante de transição de uma economia agrícola para uma economia industrial.
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CORREIO JOSEENSE, São José dos Campos, 27 de abril de 1920.
CORREIO JOSEENSE, São José dos Campos, 27 de março de 1924.
CORREIO JOSEENSE, São José dos Campos, 27 de abril de 1924.
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