GARRETT, Adriano Ramalho*
https://orcid.org/0000-0001-5195-9623
SCHVARZMAN, Sheila**
https://orcid.org/0000-0003-1593-4925
RESUMO: Levando em conta a história da exibição
fílmica e o papel de festivais de cinema na
divulgação de obras, formação de públicos e
incentivo a realizadores, propomos neste artigo
historicizar e conceituar as transformações do
trabalho de seleção e programação de filmes em
festivais de cinema brasileiros no século XXI,
quando o termo “curadoria” se tornou mais usual.
Divididos entre os conceitos de curadoria
lato
sensu
(a existência de alguma forma de seleção e
programação) e
stricto sensu
(características como
recorte conceitual, a publicização do trabalho
curatorial, o pensamento de conjunto, o
entendimento histórico, a especialização e a
continuidade), destacamos o trabalho curatorial do
forumdoc.bh
, da
Mostra do Filme Livre
, do
Cine
Esquema Novo
, da
Semana dos Realizadores
, do
CachoeiraDoc
e da
Mostra de Cinema de
Tiradentes
, situando-os no contexto das mudanças
no audiovisual brasileiro no período, que incide na
ampliação de produtores e públicos e na maior
diversidade de vozes que passam a se expressar.
Palavras-chave: Curadoria em cinema; Cinema
Brasileiro Contemporâneo; Festivais audiovisuais;
Exibição cinematográfica; Estudos de festivais de
cinema.
ABSTRACT: Taking into account the history of film
exhibition and the role of film festivals in publicizing
artworks, educating audiences and encouraging
filmmakers, we propose in this article to historicize
and conceptualize the transformations of the work
of selection and programming of films in Brazilian
film festivals in the 21st century, when the term
“curation” became more common. Divided between
the concepts of
lato sensu curatorship
(the
existence of some form of selection and
programming) and
stricto sensu curatorship
(with
characteristics such as the establishment of a
conceptual framework, the publicization of
curatorial work, joint thinking, historical vision,
specialization and continuity), we highlight the
curatorial work of forumdoc.bh, Mostra do Filme
Livre, Cine Esquema Novo, CachoeiraDoc and
Mostra de Cinema de Tiradentes, placing them in
the context of changes in Brazilian audiovisual in
the studied period, which is marked by a greater
diversity of voices.
Key-words: Film Festival Studies. Film Curating
Studies. Brazilian Contemporary Cinema. Film
Programming.
Recebido em: 11/02/2022
Aprovado em: 21/04/2022
* Mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo-SP. Este artigo é proveniente da
dissertação do autor, GARRETT, Adriano Ramalho. A curadoria em cinema no Brasil contemporâneo:
Festivais de Cinema e o caso da
Mostra Aurora
(2008-2012). Dissertação. (Mestrado em Comunicação). São
Paulo, Universidade Anhembi Morumbi, 2020. Disponível em: E-mail: adriano@cinefestivais.com.br
** Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas-SP. Pós doc em
Multimeios pela Unicamp. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Anhembi Morumbi, atuando na linha de Pesquisa de Processos Midiáticos na Cultura
Audiovisual. E-mail: sheilas1000@outlook.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A primeira década do século XXI representa uma transformação significativa para
o circuito audiovisual brasileiro. A produção de filmes nacionais de curta, média e longa-
metragem aumenta exponencialmente, o que ocorre no contexto de mudanças como o
barateamento dos custos de produção e s-produção devido à tecnologia digital; à
criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), em 2001; ao aumento e à
descentralização de recursos públicos destinados à atividade cinematográfica (por meio
de editais ou leis de incentivo); e ao crescimento, também acompanhado de uma
descentralização, da oferta de cursos de formação, tanto universitários quanto de
especialização.
Em paralelo ao aumento da produção de filmes, ocorre também uma expansão
nunca antes vista do número de festivais de cinema brasileiros. Em 1999, existiam no país
38 eventos do tipo com proposta de periodicidade regular, número que saltou em 2009
para 243 (LEAL; MATTOS, 2011, p. 22), um crescimento de mais de 500%. Esse grupo amplo
de eventos tem papel importante para a exibição e difusão de filmes brasileiros que, em
sua maioria, possuem dificuldade para chegar ao circuito comercial e, quando chegam,
muitas vezes são vistos por um público total inferior ao das exibições anteriores em
festivais.
Nos levantamentos que realiza sobre festivais de cinema brasileiros, o pesquisador
Paulo Corrêa aponta que 2020 foi o ano com o menor número de festivais no período entre
2016 e 2021, com 241, enquanto 2021 foi aquele com o maior número de eventos do tipo
ainda que em grande medida, realizados
online
por conta da Pandemia da Covid-19, o que
barateia os custos –, com 377 (CORRÊA, 2022, p. 10). Constata-se a partir desses dados
que o
boom
na ocorrência de festivais no Brasil não foi um fenômeno passageiro localizado
no início dos anos 2000; o número anual de festivais de cinema brasileiros permanece até
hoje, de forma contínua e sustentada, na casa das centenas.
Na pesquisa acadêmica brasileira, esse corpo heterogêneo de festivais começa a
ser estudado com mais regularidade em anos recentes. Na apresentação do dossiê
Festivais e Mostras Audiovisuais: olhares e perspectivas – Volume 1
, publicado pela
Rebeca
revista brasileira de estudos de cinema e audiovisual
em sua edição do segundo semestre
de 2021, as pesquisadoras Izabel Cruz Melo, Tetê Mattos e Juliana Muylaert fazem um
levantamento bibliográfico sobre o tema dos festivais audiovisuais nos anos 2010, listando
trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado, artigos e livros, além da criação do grupo
de pesquisa
Festivais de cinema e audiovisual: história, políticas e práticas
(MATTOS;
MELO; MUYLAERT, 2021, p. 13).
No artigo
Festivais pra quê? Um estudo crítico sobre festivais audiovisuais
brasileiros
, Tetê Mattos propôs uma divisão dos festivais audiovisuais brasileiros em
quatro categorias: Festivais de Estética, nos quais “[...] a experiência artística se mais
em torno da forma do que sobre a função da obra”; Festivais de Política, focados “[...] em
questões relacionadas a uma determinada militância, como questão feminina, questão
étnica, questão ligada à sexualidade ou à classe social, entre outros”; Festivais de Mercado,
“mais preocupados com a troca, com a comercialização, com a satisfação do blico
interessado, tratado de certa forma como clientes/espectadores”; e Festivais de Região,
“que apresentam uma produção mais diversificada e uma tendência que procura privilegiar
a produção local” (MATTOS, 2013, p. 123).
Neste artigo abordaremos os chamados Festivais de Estética e aos Festivais de
Política, pois estão situados nestes grupos eventos que procuram moldar suas identidades
particulares a partir de novas características curatoriais:
forumdoc.bh
(MG),
Mostra do
Filme Livre
(RJ),
Cine Esquema Novo
(RS),
CachoeiraDoc
(BA) e
Mostra de Cinema de
Tiradentes
(MG). No entanto, entendendo que, de 2013 a 2022, o que era considerado
nicho (filmes realizados por minorias de poder, como mulheres, pessoas negras,
LGBTQIA+s e indígenas) passou a ocupar o centro de visibilidade e reconhecimento da
maior parte dos festivais brasileiros, e também que uma análise estética não pode tratar
forma e conteúdo como entes dissociados, preferimos utilizar o termo
festivais estético-
políticos
para se referir a esses eventos.
A curadoria em questão
Para chegarmos ao objetivo central deste artigo isto é, estabelecer características
que, em conjunto, compõem aquilo que denominamos como
curadoria stricto sensu
,
pensamos ser necessário pontuar nosso entendimento sobre o uso dos dois termos mais
populares para tratar da atividade na atualidade: “programador” e “curador”.
No campo dos estudos acadêmicos sobre festivais de cinema, ainda poucas e
insuficientes tentativas de estabelecer distinções entre os significados de cada palavra.
Peter Bosma, sugere uma possível confusão terminológica entre o trabalho de
programadores de cinema e o de programadores de computador, argumento que se revela
frágil. Sua defesa do uso da expressão curador de cinema” continua quando diz que o
termo “[...] sugere um nível mais sofisticado de conhecimento cinematográfico em relação
a simplesmente programar sessões específicas” (BOSMA, 2015, p. 6). Já Marijke De Valck,
apesar de utilizar o termo “programador”, aponta para uma outra possível duplicidade de
significados, pois também recebe esse nome o profissional que faz a programação de salas
de cinema comerciais função para a qual a autora acha mais adequado o termo
“agendar”/
scheduling
do que “programar”/
programming
(DE VALCK, 2012, p. 26). Neste
artigo, adotaremos o termo “curador” por entendermos que ele tem um caráter mais
abrangente do que “programador”. Enquanto o primeiro aponta para um entendimento
global dessa função, que inclui o estabelecimento de um recorte/perfil curatorial que irá
guiar a seleção e a programação (arranjo dos filmes dentro de uma grade), o segundo
destaca somente a característica homônima.
Todavia, as escolhas e os significados de cada termo divergem a depender do
contexto, o que pode ser notado pela maneira como os próprios festivais nomeiam
integrantes de suas equipes. Em festivais europeus – pelo menos desde a década de 1970
é mais comum a adoção do termo “programador” (
film programmer
) ou “diretor
artístico” (
artistic director
), nesse último caso designando a pessoa com maior poder
decisório e pela qual passa a concepção geral de um evento. No Brasil, o termo “curador”
é utilizado nos anos 1990 em alguns festivais de cinema como o
Festival Internacional
de Curtas-metragens de São Paulo
, o Curta Cinema e o Festival do Rio, entretanto,
normalmente surge associado a mostras isoladas e com caráter retrospectivo dentro de
uma programação, e não ao evento como um todo
1
. A primeira década do século XXI traz
uma maior popularização da expressão, e é nesse período que uma parcela de novos
festivais (e seções, como no caso da
Mostra Aurora
, em Tiradentes), surgidos a partir dos
anos 2000, refletem de forma mais sistematizada e sofisticada sobre a noção de curadoria.
Em meio ao citado aumento exponencial do número de festivais de cinema no Brasil, a
aposta na curadoria é uma forma de se particularizar diante de seus pares – aqui incluídos
não os outros festivais de cinema brasileiros, mas também toda uma cadeia formada
por jornalistas, críticos, acadêmicos, cineastas e profissionais do audiovisual em suas mais
diferentes áreas.
Um desafio de pesquisa que se coloca a partir disso diz respeito a como caracterizar
a curadoria realizada em festivais de cinema brasileiros contemporâneos. Diante de um
uso cada vez mais recorrente do termo “curadoria”, há quem defenda que a nomenclatura
seja utilizada com parcimônia, tendo alguns requisitos para ser bem utilizada. Um adepto
dessa ideia é o crítico, pesquisador e curador Victor Guimarães, que defendeu em
entrevista ao site
Cine Festivais
que, “[...] se não uma certa estabilidade é até difícil falar
de curadoria. Tem uma série de festivais no Brasil que você não pode falar que eles têm
1
Tal proposta de curadoria retrospectiva, mesmo que não nomeada com este termo, está presente no Brasil
desde o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, ocorrido em São Paulo no ano de 1954, dentro do qual
Paulo Emílio Salles Gomes concebeu duas retrospectivas históricas, uma dedicada ao cinema mundial
(‘Grandes Momentos do Cinema’) e outra a um cineasta específico (‘Retrospectiva Erich von Stroheim’). Mais
sobre o tema pode ser lido em: ZANATTO, Rafael Morato. O I Festival Internacional de Cinema do Brasil
(1954). Aniki, v. 8, n. 1, 2021, p. 101-130.
curadoria, são festivais que a cada ano respondem aos filmes que são enviados, mas que
não têm um pensamento curatorial” (FOSTER; GUIMARÃES, 2019).
a professora, pesquisadora e curadora Amaranta Cesar vê como “improdutiva” a
tentativa teórica de estabelecer se haveria ou não curadoria em determinado festival, pois
[...] inevitavelmente, querendo ou não fazer o que se faz, dizendo ou não que é
curadoria, com consciência ou não, o que se faz é um trabalho de mediação, de
construção de um espaço de atravessamento entre as obras e os espectadores, e
o campo da recepção, e outro atravessamento que é o campo econômico, social,
de legitimação, de possibilidade de escritura histórica. (...) A curadoria,
independentemente da sua consciência, independentemente de se nomear como
tal e de se poder nomear como tal, o gesto de seleção de filmes e de programação
agencia visibilidades e apagamentos. No sentido de que a ver um conjunto de
filmes, dá a ver um conjunto de obras, põe essas obras e realizadores na História,
com traços de exclusão inevitáveis à prática (GARRETT, 2020, p. 137).
A partir da visão de Cesar, entendemos: mais importante do que discutir o emprego
do termo
curadoria
em contextos específicos seria pensar no que em comum nos
pressupostos curatoriais dos festivais estudados neste artigo. Dessa forma, propomos
uma distinção entre um conceito
lato sensu
de curadoria (a existência, inerente a quase
todos os festivais, de algum tipo de seleção e programação) e um conceito
stricto sensu
de curadoria (composto por seis características particulares conceito, publicização do
trabalho curatorial, pensamento de conjunto, entendimento histórico, especialização e
continuidade – que abordaremos a seguir).
Conceito curatorial
Como citado anteriormente, o grande aumento no número de filmes produzidos e
de festivais realizados no Brasil a partir da década de 2000 gerou para cada evento o
desafio de criar uma identidade particular que o destacasse perante público, cineastas,
crítica, etc. Entre os festivais estético-políticos, um dos caminhos para que isso ocorra é
a valorização da curadoria, que sempre tem como ponto de partida a criação de um
conceito que norteie a programação de cada festival (ou de determinada edição). O
trabalho curatorial tende a ganhar relevância quanto menos generalista e mais específico
for esse conceito.
A seguir, vamos destacar brevemente a história e a particularidade conceitual de
cada um dos cinco festivais estudados neste artigo (
forumdoc.bh
,
Mostra do Filme Livre
,
Cine Esquema Novo
,
Mostra de Cinema de Tiradentes
e
CachoeiraDoc
), que foram
escolhidos por terem contribuído de diferentes maneiras (pelo pioneirismo, pelo
simbolismo e/ou pela proposta conceitual) para o aprimoramento da discussão sobre
curadoria em cinema no cenário brasileiro. Para efeito de síntese, não serão citados outros
festivais que também se enquadram dentro da ideia de
curadoria stricto sensu
aqui
defendida, como a
Semana dos Realizadores
(Rio de Janeiro, fundada por Eduardo Valente,
Felipe Bragança, Gustavo Spolidoro, Helvécio Marins Jr., Kléber Mendonça Filho, Lis Kogan
e Marina Meliande, em 2009), o
Janela Internacional de Cinema
(Recife, fundado por Emilie
Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, em 2008), o
Olhar de Cinema
(Curitiba, fundado por
Aly Muritiba, Antônio Junior e Marisa Merlo, em 2012) e o
Fronteira
(Goiânia, fundado por
Marcela e Henrique Borela, em 2014).
forumdoc.bh
Entre os festivais destacados neste artigo, o
forumdoc.bh Festival do Filme
Documentário e Etnográfico
é o único criado nos anos 1990. Tal escolha se por
entendermos que o evento antecipou algumas características que farão parte do debate
mais acurado sobre curadoria em cinema que passa a ocorrer em festivais brasileiros no
século XXI, como também exerceu influência em alguns pares criados posteriormente.
Fundado na cidade de Belo Horizonte, em 1997, pelos antropólogos Junia Torres,
Paulo Maia e Ruben Caixeta, associados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
o
forumdoc.bh
estabelece de saída um recorte conceitual as intersecções entre a
antropologia e o cinema documental
2
a partir do qual sua programação será pensada.
Como lembra Torres, naquele momento o termo “curadoria” não era utilizado.
Sempre que falamos em antropologia, a gente pensa em diversidade cultural, em
novos paradigmas de pensamento, não ocidentais etc. Então a gente estava muito
interessado nos filmes que pudessem nos aproximar da alteridade, de outras
formas de ser, de pensar, de estar no mundo. Mesmo que naquele tempo a gente
não se tratasse como curadores, existia toda uma organização conceitual que
enformava o festival nesse sentido (GARRETT, 2020, p. 160).
A identidade construída pelo
forumdoc.bh
ao longo dos anos está ligada à
experiência da associação Filmes de Quintal. Criada oficialmente em 1999, ela reúne
pesquisadores, professores, realizadores e estudantes de cursos como Antropologia, Artes
Visuais, Comunicação Social, Filosofia e Letras. Atualmente, o festival constitui apenas
2
Vale apontar que o recorte etnográfico havia aparecido no cenário dos festivais brasileiros na Mostra
Internacional do Filme Etnográfico, criada em 1993 no Rio de Janeiro e citada por Junia Torres como uma das
inspirações para a criação do forumdoc.bh. O evento carioca também realizava seminários com debates, e
alguns deles resultaram na publicação de um livro (MONTE-MÓR, Patrícia; PARENTE, José Inacio. (orgs.).
Cinema e antropologia: horizontes e caminhos da antropologia visual. 1994. Rio de Janeiro: Interior
Produções).
uma das iniciativas do grupo, que se dedica a ações de reflexão, fomento, formação,
divulgação e realização em cinema e desenvolvimento de pesquisas.
O
forumdoc.bh,
tem uma estrutura que costuma se repetir com pequenas variações
desde a primeira edição – constituída por duas mostras contemporâneas (uma nacional e
outra internacional) e uma mostra conceitual (dedicada a uma temática ou a um autor),
além de sessões especiais. Para a mostra conceitual, cada membro da Filmes de Quintal
pode propor um recorte curatorial, e a proposta mais votada dentro de uma assembleia da
associação é levada adiante. Dessa maneira, mesmo tendo a assinatura de um(a) curador(a)
individual a cada ano, a seção carrega a chancela e as discussões do coletivo. para as
mostras contemporâneas, a composição da equipe de seleção costuma variar a cada ano,
circulando entre membros da Filmes de Quintal e colaboradores convidados.
Entre os eventos declaradamente influenciados pelo
forumdoc.bh
, destacam-se os
casos do
CachoeiraDoc
, criado em 2010, em Cachoeira (BA), e do
Fronteira
, fundado em
2014, em Goiânia (GO). No primeiro caso, a influência se nota particularmente pelo
entendimento do documentário como aproximação da alteridade, com interesse especial
pela produção de grupos contra-hegemônicos, como os indígenas; no segundo caso, a
aproximação se dá pelo interesse formal por documentários não-convencionais.
Mostra do Filme Livre
A gênese da
Mostra do Filme Livre
(MFL) é o movimento cineclubista carioca do
final dos anos 1990 e início dos anos 2000, em alta em um contexto de ampliação da
produção audiovisual, sobretudo pelo acesso facilitado a câmeras de deo. As reuniões
mensais do “Mostra o que neguinho fazendo”, ocorrido na Fundição Progresso, no bairro
da Lapa, Rio de Janeiro, desembocaram no projeto de um festival anual que recebesse
filmes de todo o Brasil e ampliasse os debates que ocorriam nas sessões do cineclube.
Uma das marcas iniciais foi a de rejeitar a divisão entre vídeo e película que era regra nos
festivais tradicionais. A MFL teve a sua primeira edição em 2002, no Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, e até 2019 foi realizada anualmente no mesmo
local e em CCBBs de outras cidades, como São Paulo e Brasília.
Em entrevista concedida ao site
Cine Festivais
em 2018, a equipe de curadoria da
17ª MFL, formada por Diego Franco, Gabriel Sanna, Guilherme Whitaker (idealizador do
festival) e Scheilla Franca, comentou a respeito da trajetória do festival:
Nosso esforço, desde antes de nos constituirmos enquanto MFL, foi auxiliar na
difusão e criar janelas de acesso ao cinema brasileiro mais independente, fosse
estética ou economicamente. Buscamos, ao longo do tempo, propor espaços para
pensar sobre esses filmes, independentemente dos seus formatos. Com a
transformação da perspectiva subordinada à película, nossos gestos e olhares se
voltam, ainda mais intensamente, para a experimentação, para a pesquisa destes
suportes enquanto linguagem, enquanto alternativa de produção, enquanto
possibilidade estética e política (WHITAKER
et al
. 2018, n. p.).
Dentro desse intuito de visibilizar produções contra-hegemônicas em um sentido
amplo (no que se refere ao formato de captação, ao gênero, à estética, ao modo de
produção), a principal contribuição da MFL para o debate sobre curadoria em festivais
brasileiros foi ter se constituído, a partir do nome, como um evento de cunho propositivo
com relação ao cenário do cinema brasileiro contemporâneo. Em vez de uma busca pelos
“melhores filmes”, buscava-se nortear o trabalho de seleção e programação a partir do
conceito de “filme livre”, que englobava variáveis éticas, estéticas, econômicas e políticas
(IKEDA, 2018, p. 113).
O pesquisador Marcelo Ikeda, um dos curadores da
Mostra do Filme Livre
por dois
períodos (2003-2013 e 2016-2017), contou em entrevista para a dissertação que originou
este artigo que
[...] os curadores não necessariamente tinham a mesma visão, eles o
coincidiam, não tinham uma visão totalmente uniforme e homogênea do que seria
isso (o conceito de “filme livre”). Eu acho que isso é bom, porque a mostra ao
mesmo tempo é muito multifacetada, cada curador pode escrever textos nos
catálogos em que colocam a sua própria visão do que seria um filme livre. As
discussões de curadoria da mostra giravam em torno exatamente do que o filme
inscrito poderia acrescentar/contribuir nessa discussão dentro do panorama
brasileiro do cinema independente daquele período ou daquele ano, o que ele
poderia acrescentar ao panorama do cinema livre no Brasil (GARRETT, 2020, p.
169).
Cine Esquema Novo
Fundado em 2003, um ano depois da
Mostra do Filme Livre
, o
Cine Esquema Novo
(CEN) também nasce a partir da iniciativa de realizadores que começavam a formar uma
nova cena independente em sua cidade. Um dos pontos de encontro em Porto Alegre (RS)
era a mostra Cinemeando na Garagem, que desde o final dos anos 1990 fazia sessões
semanais de filmes super-8 no Bar Garagem Hermética. A produção da nova geração, em
grande parte realizada em suportes alternativos, como vídeo e super-8, tinha pouca
visibilidade na grade de programação do principal festival do Rio Grande do Sul, o de
Gramado, visto que as competitivas eram divididas por bitola e os filmes que não eram
produzidos em 35 mm eram exibidos ou em horários alternativos, ou em locais diferentes.
Alisson Ávila, fundador do festival ao lado de Gustavo Spolidoro, Jaqueline Beltrame
e Morgana Rissinger, escreve que
olhando em retrospectiva, a primeira edição do
Cine Esquema Novo
(CEN) era
quase uma oposição simbólica à diluição que o Festival de Gramado parecia
representar. Foi o desejo de proporcionar em Porto Alegre, todos os anos, um
ambiente de congregação nacional orientado a outros olhares geracionais
perante o cinematográfico […]. Foi o grito de destruição das divisões formais entre
registro documental e ficção, entre filme-vídeo-digital em prol da experiência
fílmica. Se este é hoje um quase não assunto, circunscrito a uma opção estética
do artista, naquela altura ainda representava algum tabu – que o próprio CEN só
assumiu por completo (e de corpo e alma a partir de então, diga-se) na sua
segunda edição, em 2004 (ÁVILA, 2018, p. 160-161).
O caso do
Cine Esquema Novo,
traz uma particularidade conceitual pelo fato de o
festival ter se notabilizado por estabelecer desde as suas primeiras edições uma relação
com outras artes visuais, exibindo obras que ficassem no limiar entre cinema e
videoinstalações. Em 2011, o CEN deixou de acontecer apenas em salas de cinema e passou
a ocupar também o espaço de galerias. Desde 2016, as mostras competitivas agregam
videoinstalações, performances e filmes, o que trouxe novos desafios para a curadoria,
incluindo a abertura de diálogo com realizadores para discutir o melhor contexto de
exibição para cada obra.
Como a gente também trabalha com as videoinstalações, pensamos em como
seria a experiência do espectador vendo esse filme num outro local, que não a
sala de cinema, e vice-versa. Já aconteceu o oposto também, de falar com artista
e pedir pra exibir na sala de cinema, e chegar a resposta “sala de cinema o,
prefiro outro trabalho” ou “ah, pode ser, mas vou repensar o corte”. Existe esse
diálogo, aconteceu mais de uma vez, inclusive de ter uma mudança no filme
quando a gente faz uma proposta de como exibir (GARRETT, 2020, p. 157).
Mostra de Cinema de Tiradentes
Criada em 1998, a
Mostra de Cinema de Tiradentes
apresenta em sua primeira
década de existência uma intenção generalista de se constituir como um grande painel da
diversidade da produção cinematográfica brasileira contemporânea. A2007, o festival
era reconhecido não propriamente pela sua programação de filmes (pois, além de muitos
deles terem sido exibidos previamente em outros eventos, não se destacava uma
identidade particular no modo como eram selecionados e programados), mas por ter se
tornado um importante polo de discussões sobre o cinema nacional, algo facilitado pelo
orçamento, pela estrutura de produção profissional e por se situar em uma cidade
turística e ocorrer em um período de férias escolares (sempre no mês de janeiro). Vale
destacar que, entre os cinco festivais aqui estudados, Tiradentes é o único em que não há
correspondência entre quem criou/produz o evento (a coordenadora geral Raquel Hallak)
e quem é o responsável por sua identidade artística. A mostra faz parte de um portfólio
mais amplo da Universo Produção, que inclui também outros festivais de cinema
3
e eventos
culturais variados.
Dentro dessa estrutura profissional, a chegada à décima edição, em 2007, marca
um desejo da organização por reposicionar a Mostra de Tiradentes na hierarquia simbólica
do cenário cada vez mais numeroso de festivais brasileiros. Construir um discurso
curatorial próprio tornou-se, então, vital para a (re)construção da identidade do festival. É
nesse momento que assume a curadoria do festival o crítico de cinema Cleber Eduardo,
que tinha passagens por veículos da mídia tradicional (como
O Diário Popular
e
Revista
Época
) e contra-hegemônica (revistas eletrônicas
Contracampo
e
Cinética
, sendo
cofundador desta última). Cleber descreve assim o convite recebido:
Quando a Raquel (Raquel Hallak) me faz a proposta de ser curador, na verdade
ela me falou “você precisa fazer a seleção dos filmes, escolher as pessoas que
debatem e pronto”, não tinha competição. E era a primeira vez que tinha inscrição,
porque até então os filmes eram convidados, e a partir dali ia ter seleção. No
trabalho em si, eu não via muita curadoria. A curadoria passou a ser quando ela
me perguntou o que eu achava, que cara o festival deveria ter pra ele se tornar
um festival relevante, fazer a transição de um festival simpático, que ele era,
para um festival de relevância dentro do cinema brasileiro e para a crítica, que a
crítica quisesse ir ver os filmes, porque ela (Raquel Hallak) tinha um problema de
cobertura [de imprensa] muito grande. Como não tinha filme inédito, ela tinha
matérias gerais no início (do festival), mas não filme a filme, então o que ela
precisava é “como que em alguma medida eu consigo uma cobertura que
Gramado e Brasília m”. sim eu acho que foi um trabalho curatorial, “então
vamos ter uma cara pro festival, vamos estabelecer um rosto pro festival”
(GARRETT, 2020, p. 109).
Essa nova “carado festival ganhará um carro-chefe a partir de 2008, quando se
dá a criação da
Mostra Aurora
, seção competitiva para realizadores em início de carreira
em longa-metragem
4
. A curadoria dessa seção, que sempre reúne sete filmes, apresentou
desde sua primeira edição um caráter propositivo que buscava relacionar os filmes de sua
programação e levantar debates que atravessavam, se não todos, uma parte expressiva
dos filmes selecionados. A ideia do tema central (ou conceito), já presente na
Mostra de
Tiradentes
desde sua quarta edição, ganha especial relevância a partir de 2008 por
mobilizar principalmente as discussões em torno dos filmes da
Aurora
, visto que a seção
competitiva se tornou desde sua criação a atração principal do festival.
3
O programa Cinema Sem Fronteiras, criado pela Universo Produção, também organiza a CineOP – Mostra
de Cinema de Ouro Preto (voltada para a discussão sobre preservação, história e educação) e a CineBH
Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (voltada para a relação entre cinema e mercado, com a
exibição de filmes internacionais e a realização de um encontro de coprodução). A realização desses três
festivais complementares é um exemplo de gestão profissional e de um entendimento de que cada festival
necessita de uma identidade própria bem delineada.
4
A2012, eram aceitos na
Mostra Aurora
filmes de cineastas com até dois longas-metragens. A partir de
2013, este número foi ampliado para até três longas.
Outro ponto a ser destacado é a valorização de questões relacionadas à forma
cinematográfica, algo que levou Tiradentes, ao menos em um primeiro momento, a ser “[...]
muito mais visto como um festival formalista que político” (GARRETT, 2020, p. 111). Nos
textos em catálogos do festival dedicados às cinco primeiras edições da
Mostra Aurora
aparecem termos como assinatura autoral”, “ousadia” e “quebra de protocolos” para
designar o que a curadoria buscava do ponto de vista estético em seus filmes postulantes.
Não esperamos que, em todos os filmes e em todos os momentos, renovação seja
revelação, subversão e invenção. Mas é inegável que, quando se reúne a
renovação de uma forma minimamente organizada, procura-se por algo mais.
Inovação, quase sempre. Há uma tendência em se esperar dos novos realizadores
algum indício de novidade estética (D’ANGELO, 2009, p. 56).
CachoeiraDoc
O
CachoeiraDoc: Festival de Documentários de Cachoeira
é criado em 2010 a partir
do recém-criado curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB). Amaranta Cesar, professora da universidade e uma das idealizadoras do
festival, aponta que uma das intenções presentes nessa gênese era fazer com que “[...] o
cinema contemporâneo que desafia estruturas de produção estandartizadas,
hegemônicas” (CESAR, 2017a, n.p.) chegasse até aqueles alunos. Devido a questões de
infraestrutura, as quatro primeiras edições do festival concentraram suas exibições em
espaços dentro do
campus
universitário, mas a preocupação relativa à formação
acadêmica nunca restringiu o evento ao ambiente universitário desde a sua gênese,
também havia o desejo de se inserir no circuito nacional de festivais. A partir da quinta
edição, com a reinauguração do Cine Teatro Cachoeirano, foi ali que passou a ocorrer a
grande maioria das sessões do evento
5
.
O festival apresenta desde sua primeira edição, uma estrutura de programação bem
definida (que inclui mostras competitivas de longas e curtas-metragens brasileiros,
oficinas, ciclos de conferências, conversas com realizadores e mostras especiais) e um
conceito menos restritivo/tradicional sobre o que constituiria o campo documental.
O CachoeiraDoc é irmanado e nasce muito inspirado no forumdoc.bh, (...) que tem
pensado o documentário como esse terreno expandido, mas o tempo todo
friccionado e provocado pelo real, e que não perde esse engajamento, ainda que
invente formas que sejam diversas, inventivas, e muito próximas inclusive da
5
O CachoeiraDoc não teve edições em 2018 e 2019 devido a problemas orçamentários. A nona edição do
festival estava prevista para maio de 2020, mas foi adiada devido à pandemia de Covid-19. Entre os dias 26
de maio e 7 de junho do mesmo ano, o evento promoveu uma programação online sob o título “Festival
Impossível, Curadoria Provisória”.
ficção. (...) Acho que o documentário é um campo fértil porque ele está o tempo
inteiro se reinventando (CESAR, 2017a, n.p.).
Para além do debate acerca do campo documental, o que particulariza a curadoria
do
CachoeiraDoc
é a maneira como trabalha com a noção de contra-hegemonia a partir
de três eixos interligados: o público, a curadoria e a formulação teórica. Existe, por
exemplo, um entendimento de que a especificidade do contexto local, dentro de uma
universidade com 83,4% de estudantes autodeclarados negros e 82% oriundos de famílias
com renda total de até um salário mínimo e meio
6
, pode gerar novas possibilidades de
reflexão crítica. Amaranta Cesar, cita como exemplo a exibição de dois documentários que
abordam trabalhadoras domésticas a partir de um ponto de vista da classe dominante:
Babás
, de Consuelo Lins, que participou da segunda edição do
CachoeiraDoc
, e
Luna e
Cinara
, de Clara Linhart, integrante da programação da quarta edição. As obras falam,
respectivamente, sobre a presença das babás no cotidiano das famílias brasileiras
(incluindo a da diretora do filme) e a respeito da ida ao cinema de uma idosa com sua
empregada doméstica.
[Quando esses filmes] surgem no festival, eles têm um impacto que diz respeito à
maneira como dialogam com esses espectadores, que são majoritariamente
estudantes de cinema pobres, oriundos de famílias de baixa renda, negros. Eu me
lembro de ter um aluno filho de empregada doméstica que escreveu uma crítica
e fez uma fala no debate. Naquele momento ainda estavam nascendo no Brasil
esses debates sobre em que medida as experiências histórico-culturais, histórico-
sociais esses corpos atravessados por essas experiências normalmente
dolorosas, de sofrimento, ligadas a traumas coloniais, a relações de desigualdade
de classe, de gênero, de raça – também forjam perspectivas críticas, e como elas
precisam ser incorporadas ao debate crítico. Então a gente vivenciou isso na
prática, e aí isso foi se elaborando como uma identidade (GARRETT, 2020, p. 130).
Do ponto de vista da seleção/programação, desde a primeira edição do
CachoeiraDoc
era possível notar uma atenção especial (embora nunca exclusiva ou
temática) da curadoria para filmes que pouco circulavam em outros festivais brasileiros e
que eram produzidos por grupos como indígenas ou movimentos sociais.
Kene Yuxí, As
Voltas do Kene
, dirigido por Zezinho Yube, e
Espelho Nativo
, dirigido por Phillipi Bandeira,
integraram a primeira mostra competitiva nacional de longas ou médias-metragens do
festival, e na terceira edição houve uma homenagem aos 25 anos da Vídeo nas Aldeias,
organização fundada por Vincent Carelli que tem como um de seus objetivos principais a
formação de realizadores indígenas. Também na primeira edição o filme
Atrás da Porta
, de
6
Ler mais em: https://ufrb.edu.br/portal/noticias/4800-em-seus-12-anos-ufrb-comemora-maioria-negra-
e-pobre-no-ensino-superior
Vladimir Seixas, que retrata a luta por moradia na cidade do Rio de Janeiro, foi o vencedor
do prêmio do Júri Jovem e recebeu menção honrosa do Júri Oficial.
O gesto de selecionar e visibilizar tais filmes foi acompanhado de uma construção
conceitual que levou em conta a especificidade da curadoria como instância que inscreve
ou apaga filmes da historiografia do cinema brasileiro. O contato com diversas obras de
cunho militante que passaram a ser realizadas no cenário brasileiro em maior número a
partir de junho de 2013, fez com que padrões de avaliação fossem revistos.
Do ponto de vista formal, esses filmes retomam uma relação com as imagens
muito posta em crise: a crença das imagens pela sua dimensão referencial. Mas
essa retomada do caráter indicial das imagens aparece em articulação com a
vontade de fazê-las atuarem no mundo de forma ativa ou, dito de outro modo,
articula-se com a sua dimensão performativa. Essa articulação nos demanda um
entendimento da imagem como acontecimento, e isso me fez rever parâmetros
críticos, sim. No lugar de pensar nos filmes apenas como obras, estou propondo
pensá-los também como gestos, iniciativas, atos. Ou seja, pensá-los em sua
dimensão fenomenológica, o que implica em considerar os filmes em sua conexão
com a vida, com o extra-campo cinematográfico. Agir curatorialmente desse
modo, a partir desse conceito, tem nos levado a olhar de modo renovado para os
filmes das minorias, dos outros sujeitos históricos que agora estão a filmar
(mulheres, negros, índios, minorias sexuais, etc.), subvertendo parâmetros
universalizantes, tentando descolonizar um pouco o nosso olhar (CESAR, 2017b,
n.p.).
Publicização do trabalho curatorial
O conceito que cada um desses festivais constrói, ganha centralidade no discurso
que a curadoria dos festivais produz sobre si mesma em entrevistas para a mídia, mesas
de debates e textos para catálogos, o que está relacionado, por um lado, à busca por se
particularizar e obter legitimidade em meio às centenas de outros festivais existentes, bem
como a um ponto de partida em comum. Conforme aponta Marcelo Ikeda,
A publicização desse recorte curatorial visa deixar claro a ideia de que o evento,
um festival de cinema, pode ser mais do que o debate e a somatória das obras
isoladamente. Que essas obras em conjunto provocam debates cujo alcance vai
além delas. Essa é uma das apostas da nova curadoria: que esse conjunto de obras
selecionadas pode mais; que elas, uma ao lado da outra, provocam atritos ou
somas que podem levar esse debate para uma outra forma. Então vem daí a
importância de publicizar essas relações, esses critérios, para desenvolver o
debate dessas questões (GARRETT, 2020, p. 172).
No
forumdoc.bh
, uma das marcas do caráter propositivo e reflexivo da curadoria é
o catálogo do festival, que com o passar das edições se tornou uma publicação de
referência para a pesquisa sobre documentários no Brasil e incorporou um número cada
vez maior de artigos, depoimentos e entrevistas na seção “Ensaios”, que tem o objetivo de
ampliar a discussão em torno dos filmes e temáticas das mostras. Outro ponto de destaque,
que aparece no nome do evento, é a importância dada ao fórum de debates (ou
seminário), que faz circular discussões pouco vistas em outros eventos cinematográficos,
graças à relação estabelecida com a pesquisa acadêmica em Antropologia e áreas
correlatas. Junia Torres destaca que “[...] cinema não é fazer filme, é pensar sobre os
filmes, escrever sobre os filmes… Tudo isso é constituir um campo de cinema” (GARRETT,
2020, p. 163).
Na
Mostra do Filme Livre
, os catálogos também adquirem um caráter reflexivo,
recebendo textos em que membros da equipe de curadoria propõe reflexões que podem
envolver o conceito do festival, filmes que compõem seções específicas ou outros temas
correlatos. Um ponto importante que se revela nessas publicações é a valorização e a
publicização do dissenso entre integrantes da curadoria sobre determinados temas (como
a maneira de lidar com o conceito de “filme livre”), o que criava um contraponto à ideia de
consenso que permeou de maneira geral a seleção de filmes nos festivais brasileiros entre
os anos 1960 e 1990. O que predominava na MFL, não era a definição de um gosto médio
entre os membros da curadoria, mas as questões que cada filme poderia suscitar dentro
de um contexto maior da programação do festival.
na
Mostra de Cinema de Tiradentes
, como pode ser visto na Imagem 1, os
catálogos da Mostra de Tiradentes foram crescendo de tamanho ano a ano após a chegada
de Cleber Eduardo como curador, em 2007, o que é resultado da centralidade que a
curadoria adquire no discurso produzido pelo evento. Os textos apresentam visões
curatoriais a respeito do conjunto de filmes selecionados e explicam o recorte conceitual
que norteou cada edição. Tal qual o espaço em que se tematiza a própria noção de
curadoria, como nesta passagem escrita por Eduardo no catálogo da 10ª edição:
A curadoria é menos uma atividade de seleção hierárquica e mais a organização
crítica de um instante histórico. Quais cinemas brasileiros passaram a existir nos
últimos meses? As palavras-chave desse processo são “safra” e “contexto, ou
seja, um universo de obras em determinado momento. Um curador não inventa
uma safra. Tem de lidar com o conjunto das obras inéditas em circuito, identificar
as principais características desse conjunto, localizar recorrências estilísticas e
dramáticas, antes de propor recortes estéticos-temáticos e de decidir pelos
títulos mais expressivos, por melhor expressarem esses recortes propostos, seja
por seus êxitos como obra, seja pelo caráter sintomático dentro do panorama
geral (D’ANGELO, 2007, p. 24).
Imagem 1. Catálogos da Mostra de Cinema de Tiradentes,
da 10ª edição (2007) até a 16ª edição (2013)
Fonte: acervo pessoal do autor.
Pensamento de conjunto
Nos cinco festivais aqui estudados existe um entendimento de que a curadoria deve
ter uma visão global sobre a programação, propondo diálogos inter e intra sessões de
filmes, e também pensando os debates, os textos de catálogo etc. (ou seja, toda a grade do
evento) como parte de um todo. Como exemplo, citamos a maneira como Jaqueline
Beltrame, do
Cine Esquema Novo
(CEN), e Amaranta Cesar, do
CachoeiraDoc
, descrevem
um entendimento empírico, trazido pelo passar dos anos, de que maneiras mais
potentes de organizar os filmes na programação do que pelo critério dos blocos temáticos.
O objetivo central é que cada obra possa ser exibida dentro do melhor contexto possível
para que suas potencialidades sejam destacadas.
A trajetória do CEN ilustra um refinamento interno da lógica de seleção e
programação. É curioso notar que, apesar de surgir como um contraponto ao Festival de
Gramado, o evento utiliza em suas primeiras edições um modelo de seleção semelhante,
com convidados de diferentes áreas do audiovisual revezando-se em comissões a cada
ano, sem que houvesse uma pessoa ou grupo pensando a programação do começo ao fim
do processo, de uma maneira global. Como explica Beltrame:
A gente recebia todas as inscrições, aí se fazia uma triagem do que era filme que
não passaria no
Cine Esquema Novo
. A gente assistia também, mas era o Gus
(Gustavo Spolidoro) que fazia com mais duas pessoas convidadas. Então dali eles
tiravam tudo que era filme que realmente não passaria no festival. Filme careta,
linear, que o tem nada de novo, nenhuma proposta que pudesse chegar próximo
de um filme ousado, experimental, criativo. Esses nem iam pro júri que depois
fazia a seleção final do que ia para o festival. Esse júri final não tinha nenhum de
nós sócios como parte dele. Ele era feito por outras pessoas do meio que a gente
convidava. Tentávamos ter um conjunto de pessoas que não fossem só diretores,
produtores ou críticos, a gente sempre tentava colocar alguém que era das artes
visuais junto. (...) Então nós não éramos os curadores desde a primeira edição. A
gente dava uma diretriz para essas pessoas, mas não era a gente que fazia
curadoria. E acho que foi pela quarta ou quinta edição que assumimos a
curadoria, e não chamávamos mais ninguém pra trabalhar com a gente nesse
processo de escolha dos filmes (GARRETT, 2020, p. 155).
Do ponto de vista da programação, entendida como a maneira de dispor os filmes
selecionados na grade do festival, também se percebe um amadurecimento ao longo da
história do CEN. Se nas primeiras edições quem selecionava as obras não participava da
montagem da grade, a partir da entrada dos fundadores do festival como membros da
curadoria, essas duas funções (selecionar e programar) passam a ser trabalhadas de
maneira conjunta. Sobre o tema, Jaqueline Beltrame aponta como, de modo empírico, o
trabalho no festival fez com que os curadores fossem percebendo a melhor forma de
programar cada sessão.
Isso parte de uma conversa entre todos nós. Um propõe algo e o outro fala “não,
mas acho muito redundante essa mostra aqui com esses filmes juntos um do lado
do outro”. Aí leva mais uma semana, todo mundo quebrando a cabeça, “esse filme
não pode entrar aqui porque se esse ficar com esse vai estragar a sessão, vai
anular esse filme, vai dar outro peso pra sessão”. Então a gente tem um super
trabalho nisso que é bem diferente do que era no início. No início a gente pensava
pelas temáticas. Sem contar que na primeira edição tinha divisão de bitola né, isso
logo na segunda já não tinha mais. Mas no início a gente tinha, por exemplo, a
coisa de “ah, esses filmes todos m um viés mais videoarte, vamos colocar todos
na mesma sessão”. Hoje a gente parte do princípio oposto, que é não colocar o
óbvio (GARRETT, 2020, p. 157).
No caso do
CachoeiraDoc
, Cesar aponta que a seleção de filmes do festival termina
em conjunto com a programação, fazendo com que haja casos cujas obras que em um
primeiro momento haviam sido descartadas sejam trazidas de novo ao debate por fazerem
sentido diante da programação de uma sessão ou de uma mostra como o todo. Para isso,
ela defende a importância de se complexificar o diálogo entre os filmes.
Eu acho que uma chave [
para a programação
] é essa ideia da poética da relação
de Glissant [Edouard Glissant, filósofo martinicano]. No sentido de que os
programas também precisam escapar das
fronteirizações
. Então pra mim um erro
que eventualmente a gente cometeu é blocar tematicamente uma sessão, ou
blocar estilisticamente uma sessão. Hoje penso que a programação precisa ela
também operar nessa poética das relações, em fricção. Então se a gente escolhe
um filme militante, eu acho que funciona muito mais criar relações pensando o
regime do sensível, que sejam desafiadoras das fronteiras, perturbadoras das
fronteiras (GARRETT, 2020, p. 138).
Entendimento histórico
Nos festivais estudados neste artigo, a curadoria assume um papel de
proposição/intervenção no contexto do audiovisual contemporâneo, ao mesmo tempo que
demonstra consciência do seu papel como agente de inscrição e legitimação histórica. Um
dos caminhos para que isso ocorra é a citada atenção dedicada aos catálogos, que faz
com que os festivais sirvam, para alguns filmes independentes, como “[...] o único sinal de
que esses filmes existiram”, podendo ser vistos “não só como
gatekeepers
moldando o
futuro da cultura fílmica, como também um arquivo de sua própria história” (RASTEGAR,
2016, p. 188).
O entendimento histórico também pode se encontrar na capacidade que um festival
possui para incentivar a produção cinematográfica e influenciar a carreira de cineastas. O
impacto desses eventos na produção cinematográfica pode ser direto (através de prêmios
em dinheiro, laboratórios de roteiro, fundos de financiamento, residências artísticas,
coprodução de filmes) e/ou indireto (por meio da legitimação que o festival adquire entre
crítica e realizadores). No caso da
Mostra Aurora
, o recorte proposto por sua curadoria
teve o mérito inicial de identificar e apostar em um tipo de produção (com baixo
orçamento, realizados com tecnologia digital por cineastas iniciantes que traziam
propostas estéticas consideradas autorais) que viria a se expandir nos anos posteriores.
Junto à percepção de uma demanda reprimida de filmes que não tinham/teriam espaço ou
eram/seriam coadjuvantes em festivais mais tradicionais, a curadoria da
Aurora
acabou
por estabelecer uma via de mão dupla em sua relação com realizadores, também
influenciando e incentivando um modelo de produção cinematográfica que passou a ser
associado ao festival.
Sobre o tema, pesquisadores como Marijke de Valck e o trio Jen Webb, Tony
Schirato, e Geoff Danaher utilizam ideias do sociólogo Pierre Bourdieu para tratar da
relação entre artistas e o campo cultural em que atuam. O conceito de
habitus
é definido
por Bourdieu a partir de duas capacidades distintas “[...] a capacidade de produzir
práticas e obras c1assificáveis” e “a capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas
e esses produtos (gosto)” (BOURDIEU, 2007, p. 162). Tais capacidades, por sua vez,
constroem normas sociais que influenciam [...] o comportamento e o pensamento
individual” (DE VALCK, 2016, p. 109). Assim, o
[...] habitus
é importante para entender o que os artistas fazem e como entendem
a si mesmos e ao próprio campo, pois os artistas competem por posições e as
assumem com base em duas estruturas importantes: as estruturas objetivas (o
campo e suas instituições), que tornam as posições disponíveis; e as estruturas
incorporadas (
habitus
), que predispõem os indivíduos a entrar no campo (WEBB;
SCHIRATO; DANAHER, 2002, p. 173).
Essa predisposição para entrar no campo muitas vezes se verifica através da
adequação a determinados parâmetros valorizados pelas instituições (no caso do cinema,
os festivais). Assim, a curadoria desses eventos não realiza somente uma “filtragem”
(
gatekeeping
) das obras à sua disposição; seu papel está também na formação de gostos
(
tastemaking
), “[...] ativamente dando forma à cultura fílmica” (RASTEGAR, 2016, p. 183)
local/global.
Outra maneira de intervir no contexto do audiovisual contemporâneo, pode ocorrer
quando determinados parâmetros de funcionamento e legitimação do próprio circuito de
festivais são colocados em xeque. Um exemplo particular nesse sentido ocorreu em 2016,
quando o
CachoeiraDoc
realizou a “Vivência em curadoria da perspectiva das mulheres”.
O texto de apresentação do encontro dizia o seguinte:
[…] como não suspeitar que a aparente frágil presença de mulheres no cinema
brasileiro não se deve também às perspectivas masculinas que estariam
imiscuídas aos critérios de valoração dos filmes? Nos perguntamos, então, em
que medida a atuação minoritária das mulheres na curadoria e na crítica
condiciona os parâmetros de legitimação dos filmes em vigor, bem como a notável
negligência crítica em relação às mulheres do/no cinema brasileiro. Assim, a
partir da consideração de que a curadoria, instância fundamental para a inscrição
dos filmes na História dos cinemas, é uma ação política e perspectivada, a
Vivência em curadoria da perspectiva das mulheres levanta e tenta enfrentar a
questão: o que podem as mulheres para a legitimação e escritura histórica dos
filmes de mulheres e de suas trajetórias? (VIVÊNCIA…, [2016]).
Esta provocação conceitual, depois de debatida em encontro no festival, originou a
mostra Com Mulheres, feita com curadoria coletiva e que trazia obras que abarcavam
tanto a questão da representatividade (filmes de realizadoras) quanto da representação
(filmes sobre mulheres). Ou seja: esteve presente nesse processo um forte caráter
propositivo desde a formulação do evento, passando pelo modo de organização (não um
debate, mas vários, constituindo uma vivência) e chegando à programação de sessões e às
exibições do festival. Ademais, o evento antecipou uma discussão que viria a se adensar
nos anos seguintes acerca da presença de mulheres e outras minorias de poder nas
curadorias de festivais de cinema brasileiros
7
.
7
Exemplo desse movimento é a pesquisa realizada em 2018 por Cleissa Regina Martins, do Grupo de Estudos
Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), intitulada “Raça e gênero na curadoria e no ri de cinema”.
Mudanças na composição de curadorias foram verificadas em diversos festivais brasileiros, a exemplo da
Mostra de Tiradentes, que em 2016 não tinha mulheres em seu corpo curatorial, e em 2022 contou com três
curadoras: Camila Vieira e Tatiana Carvalho Costa (curtas-metragens) e Lila Foster (longas-metragens).
Continuidade
Outra característica presente nos cinco festivais retratados neste capítulo é a da
continuidade, que pode ser entendida de diversas formas. A primeira delas é a
continuidade temporal
, que diz respeito à ocorrência de edições anuais regulares, visto
que uma característica do circuito de festivais brasileiros apontada por Paulo Corrêa
(2022) é a considerável presença de festivais estreantes (98 em 2021) e, por outro lado, a
descontinuação de festivais que existiam, o que pode prejudicar a construção de uma
mirada curatorial particular
8
. A segunda delas é a
continuidade conceitual
, que concilia o
estabelecimento de um recorte curatorial que guie as diversas edições do festival às
demandas que se transformam ano a ano tanto no corpo de filmes inscritos quanto no
cenário sociopolítico do Brasil.
A continuidade também pode ser estrutural, não apenas no sentido físico
referente, por exemplo, aos locais de exibição mas também da grade de programação,
que é composta pelas mesmas mostras durante muitos anos, e/ou de equipe. Neste último
caso, referimo-nos tanto à assinatura de uma pessoa ou de um grupo ligados por muitos
anos ao mesmo festival quanto à entrada de novos integrantes no corpo curatorial que
entendam as particularidades e a trajetória do evento em questão para, a partir daí,
instigarem novas miradas e debates.
Especialização
A partir das cinco características elencadas acima, passa-se a um entendimento da
curadoria em festivais de cinema como um trabalho especializado que vai se refinando e
estabelecendo seus parâmetros a partir de uma experiência empírica e de uma exposição
cada vez maior no debate blico. Saindo do grupo de festivais estudado até aqui,
encontramos um bom exemplo de diferenciação entre ideias de
curadoria lato sensu
e de
curadoria stricto sensu
em edições recentes do Festival de Brasília (2016-2021). Entre 2016
e 2018, Eduardo Valente assumiu a direção artística do evento e pontuou em entrevista
que entendia que
[...] curadoria e seleção de filmes é um trabalho específico, que acredito que
requeira não só uma ‘vocação’, por assim dizer, como inclusive uma série de pré-
requisitos de quem o exerce (como um certo conhecimento da história do cinema
8
Uma exceção nesse sentido foi a paralisação ocorrida no CachoeiraDoc nos anos de 2018 e 2019 devido à
falta de recursos públicos para sua produção. Apesar das sugestões de alguns espectadores para que fosse
criada uma campanha de financiamento coletivo privado, a direção do festival entendeu que este não seria
um gesto político condizente com a origem do CachoeiraDoc, dentro de uma universidade pública. Dessa
forma, o evento só voltou a ocorrer em 2020, novamente com recursos de editais públicos.
que aquele festival exibe – no caso de Brasília, o brasileiro; um acompanhamento
muito próximo da produção contemporânea por alguns anos, um conhecimento
sobre os nomes de diretores e produtores que estão ativos hoje na cena, seja em
quais gerações ou regiões do País, etc.). Brasília vinha montando comissões cujo
problema, para mim, não era serem plurais, e sim serem de pessoas que trabalham
em cinema nas mais distintas capacidades, mas a maioria dela sem experiência
constante nesse trabalho da curadoria (VALENTE, 2016, n.p.).
O argumento de Valente é uma defesa do que, neste artigo, identificamos como uma
curadoria stricto sensu,
entendida como uma atividade especializada e cujo
aprimoramento depende de uma prática constante. Por outro lado, após a mudança
ocorrida na equipe curatorial do
Festival de Brasília
, notou-se naquela edição e nas duas
posteriores uma reaproximação com um conceito de
curadoria lato sensu
. A presença de
um compositor musical (Patrick de Jongh) em uma das comissões em 2019, por exemplo,
retomou a ideia da curadoria como função esporádica e não especializada, visando uma
suposta popularização da programação. em 2020, no mesmo festival, a seleção de filmes
foi divulgada aos moldes de um edital público, com notas atribuídas a cada selecionado, o
que transpareceu uma visão burocrática, e não artística, a respeito da atividade de
curadoria.
Vale salientar que no mesmo
Festival de Brasília
, em 2014, um tipo semelhante de
disputa no campo da curadoria já havia se esboçado, embora naquele momento o
texto
(os
filmes selecionados para a mostra competitiva de longas-metragens
9
) estivesse muito mais
em foco do que o
contexto
(as diferentes visões sobre curadoria cinematográfica). O
debate gerado antes, durante e depois daquela edição do festival girou em torno de uma
suposta
tiradentização
da programação do festival, visto que dos seis longas selecionados
para a seção principal, cinco eram dirigidos por realizadores em início de carreira em
longa-metragem com proposições estéticas que buscavam a autoralidade e quase sempre
tensionavam as fronteiras entre ficção e documentário
10
, características fortemente
ligadas ao perfil da
Mostra Aurora
, em Tiradentes, como foi detalhado neste artigo.
Encaixavam-se neste grupo os filmes
Brasil S/A
, de Marcelo Pedroso;
Branco Sai, Preto
Fica
, de Adirley Queirós;
Ela Volta na Quinta
, de André Novais Oliveira;
Pingo d’Água
, de
Taciano Valério; e
Ventos de Agosto
, de Gabriel Mascaro. A exceção a essa tendência,
embora também contivesse alguma ambição estética em sua composição audiovisual, era
o documentário
Sem Pena
, de Eugênio Puppo.
9
O grupo que selecionou os longas-metragens da mostra competitiva do Festival de Brasília em 2014 foi
composto por Alexandre Cunha (jornalista), Daniela Capelato (roteirista, produtora e cineasta), Erika Bauer
(documentarista e professora), Helena Ignez (atriz e cineasta) e Marcelo Ikeda (professor e crítico de cinema).
10
A edição de 2014 do Festival de Brasília também ficou marcada por abolir a distinção entre ficções e
documentários, que até o ano anterior competiam em mostras separadas.
A recepção crítica ao
Festival de Brasília
de 2014 teve como foco o perfil da seleção
de longas-metragens, com posicionamentos que variavam entre a adesão e a rejeição a
esse conjunto de filmes. Em seu blog em
O Estado de S. Paulo
, Luiz Zanin Oricchio
escreveu que
[...] nada proíbe, a não ser talvez o bom senso, concentrar-se numa vertente única
e ignorar a diversidade do cinema brasileiro de autor. Essa opção fechada criou
um sentimento de euforia entre diretores jovens e parte da crítica. Mas havia
muitos descontentes em Brasília que se manifestavam em
off
, preocupados com
os efeitos de linha curatorial tão segmentada no futuro do festival. Infelizmente,
essa polêmica potencial não se explicitou e foi também ignorada pela imprensa
local, que preferiu aderir à torrente de elogios dominante (ORICCHIO, 2014, n.p.).
A explicitação do dissenso acabou por não acontecer de maneira ampla e franca na
repercussão daquela edição do
Festival de Brasília
. Em seu texto, Oricchio não nomeia nem
os argumentos, nem os autores de quem havia acolhido de maneira positiva a seleção de
longas-metragens do festival – onde lê-se “parte da crítica”, há uma referência implícita a
textos publicados em veículos contra-hegemônicos de internet, sobretudo na
Revista
Cinética
, mas é ignorado, por exemplo, o contundente posicionamento de confronto aos
longas daquele ano em veículos da mesma estirpe, como na Revista Interlúdio, por meio
do crítico Sergio Alpendre.
As observações de Oricchio se unem a um tipo de visão conservadora propagada
por jornalistas com histórico de cobertura do Festival de Brasília, como Maria do Rosário
Caetano (Revista de Cinema) e Marcos Petrucelli (CBN), que viam na seleção de 2014 do
evento um retrocesso, uma afronta a uma identidade histórica do festival, não se dando
conta de que: 1) desde 1965, quando foi criado por um grupo de pensadores que continha,
entre outros, o crítico Paulo Emilio Sales Gomes, o
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
passou por reformulações diversas, sendo difícil apontar uma mesma identidade para
diferentes décadas, ou mesmo para anos sucessivos; 2) um festival sempre responde ao
seu tempo histórico: o que a seleção de longas de Brasília em 2014 mostrava era uma
transformação geracional e estética que viria a se confirmar e se ampliar (por exemplo,
através dos recortes de gênero e raça) nos anos seguintes; 3) dado o grande aumento da
produção de filmes no Brasil após a transição digital, é uma ilusão acreditar que um único
festival (no caso, o de Brasília) possa servir como ponto de conciliação dentro de uma
inevitável disputa simbólica entre diferentes vertentes de criação. Assim, nomes que
faziam parte do “cânone” do cinema brasileiro em festivais dos anos 1990 e 2000, como
Tata Amaral e Murilo Salles (citados no texto de Oricchio), perdem força para figuras
emergentes como Adirley Queirós, cineasta de Ceilandia (DF), vencedor do
Festival de
Brasília
de 2014 com o seu segundo longa-metragem,
Branco Sai, Preto Fica
.
Cerca de um ano depois daquela edição, no contexto da publicização da seleção de
filmes do
Festival de Brasília
de 2015, Raul Arthuso, publicou um artigo na
Revista Cinética
no qual colocava em xeque posicionamentos como os de Zanin, Caetano e Petrucelli.
Arthuso defende que
[...] falar em “tiradentização” ou “sucursal de Tiradentes” mascara, no fundo, a
cegueira crítica em perceber as novas configurações de forças do cinema e as
nuances entre os filmes. As escolhas críticas e cinéfilas se darão nas trincheiras
dessa nova geração; o trabalho da crítica está em conseguir lidar com as
diferenças dessa nova geração em relação às outras e estabelecer um diálogo
histórico e político desses filmes com o restante da produção postura crítica
essa que requer trabalho e curiosidade (ARTHUSO, 2015, n.p.).
Embora seja parte importante em todo esse debate, é interessante notar como o
termo “curadoria” pouco é citado nesses textos; mesmo quando ele aparece, isso se dá de
modo lateral. No artigo de Arthuso, o embate entre crítica hegemônica e contra
hegemônica é o foco, juntamente com uma leitura sobre a transformação geracional e
estética no cenário de realizadores brasileiros. A palavra “curadoriaaparece uma única
vez, não à toa quando é referida a experiência de Cleber Eduardo à frente da Mostra de
Tiradentes. No texto de Oricchio, a citação ao tema surge para questionar a presença de
filmes não-inéditos e uma linha curatorial que teria uma única tendência do ponto de vista
estético, mas não há citação nominal a nenhum membro da comissão de seleção (algo que
condiz com a maior visibilidade e individualidade adquirida por curadores e curadoras nos
últimos anos em determinados festivais brasileiros) e jamais são colocados em questão
fatores estruturais/processuais (como uma demanda por um trabalho especializado ou por
uma continuidade de equipe e de visão curatoriais). Outro aspecto que demonstra uma
mudança no foco dos debates públicos gerados por festivais de cinema entre 2014 e 2022
é o fato de a representatividade não ter sequer aparecido nos debates sobre o
Festival de
Brasília
de 2014, mesmo com a seleção apresentando apenas filmes dirigidos por homens,
sendo apenas um deles negro (André Novais Oliveira).
Considerações finais
Conforme procuramos expor ao longo do artigo, a curadoria de produções
audiovisuais se modificou sobremaneira nos anos 2000, e em especial a partir de 2013,
momento em que se por um lado, a crise política e econômica se aprofundava –, por
outro, a expressão de grupos contra hegemônicos maiorias minorizadas e caladas foi
ganhando nova expressão. Nesses festivais, as curadorias ganham inédito destaque,
abrindo caminho para diferentes tipos da expressão artística e política de vozes e corpos
e renovando lugares de exibição, diálogo e confronto com públicos e mesmo produtores
que ela também forma.
Por outro lado, ciente de que o campo dos estudos de festivais audiovisuais no
Brasil é recente e ainda tem muito a se desenvolver incipiência que é ainda mais marcada
pelo número reduzido de pesquisas sobre curadoria em festivais cinematográficos –, este
artigo procura contribuir para a reflexão sobre esse tema ao elencar características que,
em conjunto, constituem aquilo que denominados aqui de
curadoria stricto sensu
,
presentes em cinco festivais aqui tomados como
corpus
de estudo, cuja expressão artística
e política de engajamento com o cinema e as questões contemporâneas certamente
contribui para revitalizar os festivais de cinema, a curadoria, a produção cinematográfica
e o público com o qual precisa dialogar.
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