A tensão permanece quando somos apresentados à Mulher Louca, personagem
interessante, pois é a única que se relaciona com os espectros do filme. Em sua primeira
cena, ela encontra Jura, filha do Coronel Santana, num piquenique rodeada pelos mortos
do título do filme. A jovem parece não os ver, enquanto a enigmática mulher – que está
grávida – dá sinais de que já os conhece, inclusive se comunicando com eles. Em
monólogo, na cena seguinte, a mulher explicita melhor essa relação ao afirmar que
Tudo aqui dentro, não tem mais nada fora.
O céu, o mato, os mortos
e mais alguma
gente que eu vi. Tá tudo aqui dentro girando, andando, gritando. Uma hora eu vou
parir todo esse redondo. Uma hora dessa vai pular toda a
berraria
. Eu vou
botar
pra fora o pus, a gosma, a baba
. Eu vou
parir todas as cheirezas
[sic]
desse mundo
.
Tá tudo aqui dentro; os braços, as caras,
as tripas
... Tudo vivo! Se mexendo e
caminhando como coisa e como gente. Eu vou
parir os venenos e as lepras
,
as
falas que roem as ferrugens
,
o osso e a madeira
. Eu vou
parir facões, chumbo
quente e pó de pólvora
. Eu vou parir uma muçurana comprida como eu e
botar
pra fora sangue e mais sangue e ainda sangue e sempre sangue e sangue sem
acabar de ser sangue até tudo ser sangue e sangue ser tudo
. Até o dormir do sol,
até o dormir da lua, até o dormir do verde, até o dormir dos homens, até o dormir
no tempo.
Vou parir, vou parir até tudo ser um podre só, até tudo ser um veneno
só, até tudo matar tudo, até o podre empodrar no próprio cheiro
. [...] e esse
mundo não ter lugar nem tempo até pra morte [...] (OS DEUSES e os mortos,
1970).
A personagem grávida encerra a cena rolando no chão com os espectros, com os
mortos. Como se tudo que fosse parido naquela terra já nascesse natimorto. O clima de
morte permanece na cena posterior, quando Sereno e Sete Vezes assassinam juntos outro
membro do clã D’Água Limpa sob o olhar do Coronel Santana. As ações da personagem
Sete Vezes parecem encarnar o desejo esboçado pela mulher grávida. Sua aliança com a
paranormal e com Sereno “[...] tem a benção dos ‘deuses e dos mortos’ que parecem ter
algo a cobrar dos patriarcas [...]” (XAVIER, 1997, p. 148). Durval Muniz ressalta que a figura
do coronel é quase sempre representada como “[...] truculenta e discricionária, [...] sempre
acompanhado do jagunço, tendo o cangaceiro como seu grande inimigo, ao lado dos
coronéis rivais” (ALBURQUERQUE, 2011, p. 226).
Em agradecimento a Sete Vezes pelo assassinato de membros da família D’Água
Limpa, o coronel Santana leva o estrangeiro para sentar-se à mesa com sua família. Na
mesa também estão sentados os mortos, além de Soledad e Jura, respectivamente esposa
e filha de Santana. A trilha sonora marcada por tambores do universo musical afro-
brasileiro embala o transe de Jura, aparentemente provocado pelos deuses e os mortos. O
fazendeiro sugere ao forasteiro que reconhece em sua figura uma espécie de castigo dos
deuses:
O destino do homem é tentar escrever a grandeza dentro do círculo traçado pelos
deuses [...]. Escutem: os deuses estão raivosos, de sua lei nós sabemos apenas o
castigo. [...]. Você me ajudou Homem, mas de cada navalhada no corpo de
Valeriano D’Água Limpa brotava mais sangue dentro de mim e do seu próprio
corpo. Você me ajudou Homem, isso me basta. Não lhe pergunto quem és, de onde
vens, o que buscas, porque és meu hóspede. Talvez porque eu conheça as