FIGUEIRÔA, Alexandre *
https://orcid.org/ 0000-0003-0918-1242
RESUMO: O Cinema de Arte do Recife (CAR)
funcionou, no Recife, por 14 anos. Foi criado
em 1961 pelos críticos cinematográficos
Fernando Spencer, Celso Marconi, José de
Souza Alencar e Ivan Soares, com sessões
dominicais no Cine Soledade. Funcionou em
seguida nos cinemas Trianon e São Luiz e, em
1967, passou a ter uma sala permanente no
Cine Coliseu. O CAR seguia os moldes de
funcionamento para as salas de arte e ensaio
surgida na França e reproduzida em diversos
países, incluindo o Brasil. Sua existência foi
fundamental na consolidação de uma cultura
cinematográfica na cidade do Recife nos anos
1960 e 1970. Este artigo descreve a trajetória
histórica do CAR e o contexto de sua
experiência a partir do olhar do crítico do
Diario de Pernambuco Fernando Spencer, um
de seus principais articuladores.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema de Arte do Recife;
Fernando Spencer; Crítica cinematográfica;
cinema de arte e ensaio.
ABSTRACT: The Recife Art Cinema (RAC)
operated in Recife for 14 years. It was created
in 1961 by film critics Fernando Spencer, Celso
Marconi, José de Souza Alencar and Ivan
Soares, with Sunday sessions at Cine
Soledade. It then moved to the Trianon and
São Luiz cinemas and, in 1967, it began to have
a permanent movie theater at the Cine Coliseu.
The RAC followed the working patterns for the
art and rehearsal movie theaters that emerged
in France and reproduced in several countries,
including Brazil. Its existence was fundamental
in the consolidation of a cinematographic
culture in the city of Recife in the 1960s and
1970s. This research describes the historical
trajectory of RAC and the context of its
experience from the perspective of the critic
of Diario de Pernambuco Fernando Spencer,
one of its main articulators.
KEYWORDS: Recife Art Cinema; Fernando
Spencer; Film criticism; Art and essay cinema.
Recebido em: 10/02/2022
Aprovado em: 22/04/2022
* Doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Paris 3 Sorbonne Nouvelle
(França). Professor adjunto do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:
alexandre.figueiroa@unicap.br.
Abertura
O primeiro Cinema de Arte do Recife (CAR) surgiu em julho de 1961. Ele foi fruto
do entusiasmo dos críticos José de Souza Alencar e Celso Marconi, do
Jornal do
Commercio
, Ivan Soares, da
Rádio Jornal do Commercio
e Fernando Spencer, do
Diario
de Pernambuco
. Este último, um defensor incansável do cinema de qualidade artística e
para quem os clubes de cinema eram imprescindíveis, como elemento divulgador da arte
cinematográfica e, indispensáveis, para a formação teórica de críticos e cineastas em
potencial. Inicialmente, restrito a sessões semanais, o CAR ganhou em 1967 uma sala
exclusiva que funcionou no Cine Coliseu até agosto de 1975, marcando a vida cultural da
cidade e toda uma geração de admiradores da sétima arte.
A gênese do CAR, podemos afirmar, foi decorrente do ambiente e entusiasmo
com o cinema que tomou conta do Recife na década precedente. A cidade vivenciou um
renascimento da crítica cinematográfica a partir de 1949, ano em que jovens
colaboradores e antigos cronistas, estimulados pelo neorrealismo italiano, o cinema
hollywoodiano do pós-guerra e as iniciativas da Vera Cruz no Brasil, voltaram à ativa nos
jornais locais (ARAÚJO, 1997). Os seis jornais diários passaram a ter pelo menos um
crítico regular e no veículo mais tradicional da imprensa pernambucana da época, o
Diario de Pernambuco
, a página dominical dedicada a arte cinematográfica trazia textos
assinados por diversos colaboradores, comentando os filmes em cartaz e discorrendo
sobre artistas, diretores e temas gerais ligados ao cinema.
1
Essa intensa movimentação durou até 1954 e, posteriormente, sofreu um certo
recuo até o final da década, com os jornais abrindo mais espaço para o colunismo social
em detrimento de assuntos culturais. Mesmo assim, novos cronistas surgiram, a exemplo
de Celso Marconi, Augusto Boudoux e Fernando Spencer, e, no início dos anos 1960, a
crítica cinematográfica retomou seu dinamismo. Foi nesse contexto que, a partir de 1958,
o jornalista Fernando Spencer, além de rerter, passou a colaborar com a página de
cinema do
Diário de Pernambuco
auxiliando o seu titular Augusto Boudoux. Com o
afastamento de Boudoux, Spencer passou a ser o principal cronista do veículo, onde
ficaria por mais 40 anos.
Falecido em 2014, Fernando Spencer (depois também cineasta) é um dos nomes
mais significativos do audiovisual pernambucano e da produção jornalística a ele
relacionado. Principal responsável pela preservação e recuperação da memória do Ciclo
1
Detalhes sobre a crítica cinematográfica em Pernambuco, na década de 1950, podem ser encontrados no
livro
A Crônica do Cinema no Recife nos Anos 50
, de autoria de Luciana Corrêa de Araújo.
do Recife,
2
em sua trajetória, Spencer teve um papel essencial em diversas frentes no
que concerne a produção cinematográfica. Manteve no
Diario de Pernambuco
um
generoso espaço para noticiar e debater a produção internacional, brasileira e local,
sendo um dos principais divulgadores e estimuladores da realização de filmes em super
8, na década de 1970, e da profissionalização dos realizadores pernambucanos de curtas-
metragens.
Além disso, manteve durante cerca de dez anos, na
Rádio Clube de Pernambuco
, o
programa
Filmelândia
e, na
TV Rádio Clube
, o programa
Falando de Cinema
; no início da
década de 1960, foi criador e diretor da
Revista da Tela
; nos anos 1970 e 1980, foi um dos
programadores das sessões do
Cinema de Arte do Recife
; e nas décadas de 1980 e 1990
foi diretor da
Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco
. Como cineasta, Spencer foi
autor de uma vasta filmografia dedicada sobretudo ao cinema documentário e realizada
em 16mm, 35mm e super 8 com filmes reconhecidos e premiados como
Valente É o Galo
(1974),
Adão Foi Feito de Barro
(1978) e
Estrelas de Celulóide
(1986), entre outros.
A trajetória de Fernando Spencer na crítica cinematográfica seguiu o padrão
clássico de atuação dos críticos do período, cuja formação é marcada pela cinefilia, em
geral iniciada na adolescência. O período inicial como crítico foi de intensa atividade, e é
possível notar, desde então, o seu engajamento na defesa da arte cinematográfica,
assumindo abertamente o papel do crítico militante, outra característica típica dos
profissionais de sua geração. Antoine de Baecque define a cinefilia como uma maneira de
assistir aos filmes, falar deles e em seguida difundir esse discurso. Para o autor, o
fenômeno mais relevante reside no papel do crítico como legitimador do cinema como
arte, acompanhado da legitimação do próprio discurso crítico como elemento de
consagração de determinadas obras (BAECQUE, 2010).
Em sua atividade nas páginas do
Diario de Pernambuco
, Spencer preferia não se
definir como crítico, mas como um jornalista cinematográfico, privilegiando a informação
em vez da opinião. Contudo, quando analisamos o conjunto de seus textos, percebemos
claramente o quanto o seu discurso é marcado por uma atitude cinefílica, valorizando os
filmes por seus aspectos formais e estilísticos ou por sua capacidade de refletir um certo
contexto social. Ele destaca aspectos da linguagem cinematográfica e revela sua
identificação com autores a exemplo de Alain Resnais, Ingmar Bergman, Akira Kurosawa,
Federico Fellini, Luís Buñuel considerados, por ele, grandes nomes do cinema. Quando
2
O Ciclo do Recife (1923 1931) foi um dos mais importantes ciclos regionais da fase muda do cinema
brasileiro. Nele, foram realizados 13 longas-metragens, entre os quais os clássicos
Aitaré da Praia
, dirigido
por Ary Severo e
A Filha do Advogado
, dirigido por Jota Soares. O crítico e cineasta Fernando Spencer foi
um dos principais responsáveis pelo resgate e preservação das produções do Ciclo, sobretudo no período
em que foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, de 1980 a 2000.
ele passou a atuar como programador do Cinema de Arte do Recife, juntamente com
Celso Marconi, José de Sousa Alencar e Ivan Soares, o critério de seleção dos filmes
seguiu esse mesmo padrão.
Desde o início, tamm observamos que Spencer, a exemplo de outros críticos do
período, estabelecia uma distinção entre cinema comercial e cinema de arte, assinalando
em suas resenhas as obras que, mesmo apresentando méritos artísticos, sucumbiam aos
apelos comerciais, usando elementos narrativos e estéticos convencionais apenas para
agradar ao público. Não desmerecia os filmes da tradição clássica de Hollywood,
elogiando os grandes diretores como Alfred Hitchcock, John Ford ou Elia Kazan, e
destacando westerns e musicais de qualidade, gêneros por ele admirado; mas, ao mesmo
tempo, queixava-se do grande número de filmes medíocres importados pelos exibidores
(independente da nacionalidade dos mesmos, fossem eles americanos, mexicanos,
italianos ou franceses). Para estas obras, muitas vezes, fez críticas ferinas e demolidoras,
aconselhando o espectador a não perder tempo indo ao cinema vê-las.
Para a produção brasileira da época, Spencer era um dos críticos alinhados com
um olhar pouco favorável às chanchadas e comédias cariocas carnavalescas, não
hesitando em criticar duramente os filmes que estrearam no período. Nos textos
publicados, o crítico apontava os temas vulgares, os roteiros primários e a direção
dos atores como os maiores problemas dessas produções. Denota-se, por outro lado, um
olhar mais complacente com o cinema paulista, sobretudo de cineastas que passaram
pela Vera Cruz, por realizarem filmes considerados, por ele, mais limpos e sérios.
Posteriormente, não escondeu seu entusiasmo com o surgimento do Cinema Novo,
movimento que ele prestigiou e deu apoio incondicional.
A atuação de Fernando Spencer no Cinema de Arte do Recife pôde ser bem
delineada graças aos registros deixados nas páginas do
Diario de Pernambuco
entre 1958
e 1998, textos aos quais tivemos acesso em sua totalidade durante a realização do
projeto de pesquisa
A produção jornalística e cinematográfica de Fernando Spencer e
sua contribuição à cultura audiovisual em Pernambuco
, com apoio da
Universidade
Católica de Pernambuco
e da
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco
.
Avant-première
Em 1959, a cidade do Recife contava com sete salas de cinema localizadas no
Centro e mais 32 salas nos subúrbios. Cerca de oitenta por cento da programação era
composta por filmes americanos, e o restante era ocupado por filmes brasileiros,
ingleses, franceses e italianos. Nos anos anteriores, uma intensa movimentação
cineclubista, animara os cinéfilos. Em 1952, Valdir Coelho criou o
Cineclube Vigilanti
Cura
, com exibições no Círculo Católico, na Rua do Riachuelo, seguidas por debates após
as apresentações dos filmes. Na mesma época, surgiu também o
Cineclube Recife
,
coordenado por André Gustavo Carneiro Leão e José de Souza Alencar, com projeções
no quartel da Polícia Militar, no Derby. Dessas atividades cineclubísticas, surgiu, mais
tarde, o Círculo de Estudos Cinematográficos, coordenado por Jomard Muniz de Britto,
José Orman e José Luiz Libonati (ARAÚJO, 1997).
No início dos anos 1960, porém, esses cineclubes haviam encerrado suas
atividades e Spencer, pelo espaço conquistado no jornal, tornara-se um ativo articulador
em prol da cultura cinematográfica. Nas páginas do
Diario
, ele reivindicava aos cinéfilos
recifenses a necessidade deles se rearticularem, a exemplo de outras capitais como Belo
Horizonte e São Paulo. Em junho de 1960, esta mobilização foi por ele apoiada ao
divulgar a convocação de uma reunião com a participação de críticos e cinéfilos com
vistas a fundar um novo cineclube:
A fim de discutir a ideia ultimamente ventilada, da fundação de um Cine Clube
nesta capital, a crítica cinematográfica recifense deverá se reunir no dia 16, às
10 horas, no Edifício São Gabriel andar sala 14 na rua da Assembleia. (...) A
reunião deverá contar também com a presença de estudiosos ou interessados
em cinema, sobretudo dos nossos meios universitários, que esperamos se façam
presentes através de representantes de seus diretórios acadêmicos. (...) De
nossa parte daremos todo apoio e estaremos para em comum acordo
estabelecer as bases de uma entidade que surja para melhor compreensão do
Cinema. (...) Os elementos convocados na nota acima não podem deixar de
comparecer a essa importante reunião porque, daí pode se concretizar essa
ideia, muito esperada por todos aqueles que se interessam pelo Cinema
como arte. (SPENCER, 1960, p. 7).
Não registro do surgimento de um cineclube a partir desta reunião, mas a
iniciativa animou o crítico a buscar alternativas para exibição de filmes que não
encontravam espaço no circuito comercial. Em suas resenhas, Spencer sempre
assinalava a defasagem da programão das salas recifenses em relação a obras
relevantes que já haviam sido lançadas em outras capitais e não chegavam ao Recife.
3
Ele
acompanhava o noticiário das agências internacionais sobre os grandes festivais
europeus, os jornais do Rio, São Paulo e revistas, como a prestigiada
Revista de Cinema
,
publicada em Belo Horizonte. A solução apareceu quando Domingos Pereira, gerente do
3
Além das críticas e resenhas, Spencer divulgava para os leitores do
Diario de Pernambuco
informações
sobre o funcionamento das salas de cinema do Recife, observando desde as condições dos equipamentos
de projeção até o comportamento do público. Investigava ainda, junto aos distribuidores, quais os títulos
que entrariam em cartaz nas semanas seguintes e indignava-se quando descobria que cópias de obras
premiadas e aclamadas pela crítica estavam nos escritórios das filiais recifenses e eram preteridas por
filmes de pouca qualidade artística.
Cinema Soledade, enviou uma carta a Spencer com a ideia de criar uma sessão de Cine
Arte na modesta sala com pouco mais de 300 lugares pertencente a Paróquia da
Soledade, no bairro da Boa Vista.
A iniciativa foi batizada, desde o primeiro momento, como
Cinema de Arte do
Recife
, tendo o próprio Spencer mais os cronistas Celso Marconi, José de Souza Alencar
e Ivan Soares como responsáveis pela seleção dos filmes. As sessões aconteciam aos
domingos, às 10 horas da manhã, e a primeira delas ocorreu em 02 de julho de 1961, com
a exibição do filme
O Salário do Medo
(1953), de Henri-Georges Clouzot. Ao anunciar o
início das atividades do CAR no Soledade, Spencer destacou que a programação teria
“[...] películas de reconhecido valor artístico (velhas e novas) e já consagradas pela crítica
mundial.” (SPENCER, 1961a, p. 11). Entre os filmes anunciados estavam
Umberto D
(1952),
de Vittorio de Sica;
Amor de Outono
(1954), de Claude Autant-Lara; e
As Férias do Sr.
Hulot
(1953), de Jacques Tati, obras que, segundo Spencer, dificilmente seriam vistas ou
revistas por se tratar de películas malditas que não ofereciam boa renda de bilheteria e
serem destinadas “[...] a um blico limitado que vê o filme não como um simples
divertimento, mas como uma legítima manifestação artística.” (SPENCER, 1961a, p. 11).
Dois dias depois ele respondeu a indagações dos leitores a respeito da o
inclusão de certas obras na seleção feita para o CAR, explicando-lhes que elas não
estavam na seleção não por falta de critérios para tal, mas pela indisponibilidade delas
por questões alheias a vontade dos programadores. Dentre as justificativas, o crítico
destacava o fato de os filmes terem um certificado de censura com validade para quatro
anos e, expirado aquele prazo, as cópias voltavam para as companhias distribuidoras e,
se o certificado não fosse renovado, elas eram destruídas. Outras vezes não havia cópia
disponível no escritório local ou na matriz da produtora no Rio ou São Paulo.
Apesar dos contratempos, o empenho de Spencer e dos programadores era
manter o nível de qualidade dos filmes exibidos, compromisso reafirmado pelo também
programador Ivan Soares, ao comentar as sessões de arte no Soledade na
Revista da
Tela
4
:
“Observa-se pela escolha dos primeiros filmes, uma criteriosa seleção,
perfeitamente enquadrada no espírito de um cinema artístico, isento de concessões
comerciais [...]” (SOARES, 1961, p. 11). Além dos filmes inéditos, obras cujas cópias ainda
estavam no Recife e tinham sido mal lançadas no circuito comercial, eram levadas para o
Soledade, como aconteceu com um festival de filmes soviéticos em outubro de 1961. Os
filmes haviam sido exibidos cerca de dois anos, mas segundo Spencer a estreia não
4
Revista de cinema mensal editada no Recife que circulou entre julho/1961 e janeiro/1962. O diretor era
Domingos Pereira e o editor-chefe Ivan Soares.
havia sido boa, pois foram lançados em cinemas de subúrbios e muita gente não os viu.
Esses momentos serviam também para os programadores do CAR estabelecerem
uma distinção entre a iniciativa deles e o circuito comercial que nem sempre oferecia ao
público local obras que, para eles, eram merecedoras de melhor tratamento. Ao anunciar
o festival, Spencer aproveitou para, mais uma vez, ressaltar a falta de sensibilidades dos
exibidores recifenses. As películas não eram obras-primas, mas correspondiam aos
critérios da seleção usual do CAR:
O cinema Soledade inicia hoje, um pequeno Festival de filmes soviéticos, todos
apresentados cerca de dois anos nesta cidade. Infelizmente, sua estreia
não foi muito feliz, pois, lançados em cinemas de subúrbios distantes, muita
gente deixou de vê-los. Na época, poderiam ter sido exibidos em cinemas do
centro, porém a vontade e a política antipática existente nos bastidores
exibidor-distribuidor, em detrimento do público, motivaram fossem passados
aqui com indiferença e desprezo. Na realidade, não são obras primas do cinema,
mas possuem certa categoria artística e, de modo geral, são bons. Pertencem à
produção do cinema que se faz atualmente na União Soviética. (SPENCER,
1961b, p. 9).
Nos anos seguintes, as sessões do CAR continuaram acontecendo, mas nem
sempre de forma contínua. Em 1962, uma nova temporada foi iniciada no Cine Soledade
com o anúncio de reprises e filmes inéditos, a exemplo de
O Encouraçado Potemkin
(1925), de Sergei Eisenstein que nunca fora exibido no Recife. Na ocasião, Spencer
lembrou aos leitores que o CAR não era um cineclube e, portanto, poderia ser
frequentado por qualquer pessoa interessada. Lembrou também que foi graças ao CAR
que em 1961 o público recifense conseguiu ver, entre outros, dois filmes de Fellini,
Na
Estrada da Vida
(1954) e
Noites de Cabíria
(1957). A temporada abriu com o filme
Meu Tio
(1958), de Jacques Tati e levou um público de quinhentas pessoas ao Soledade.
Depois do Cine Soledade, o CAR passou pelos cinemas Trianon, sala com 750
lugares pertencente ao grupo
Art-Filmes
, localizado na avenida Guararapes, e pelo São
Luiz, da Empresa Severiano Ribeiro, a melhor sala do centro do Recife nos anos 1960
com 1450 lugares. As sessões passaram a acontecer nos sábados pela man e a
preocupação em oferecer obras de valor artístico irrefutável, premiadas em festivais
internacionais e aclamadas pela crítica cinematográfica permaneceu. E o esforço
desprendido por vezes era recompensado. Em várias ocasiões, Spencer declarou seu
entusiasmo com o cinema francês e quando o Cinema de Arte passou para o Trianon, fez
questão de ter o filme
Hiroshima Meu Amor
(1959), de Alain Resnais, na primeira sessão
da nova sala. Amigo do gerente da distribuidora França Filmes, Spencer conseguiu a
cópia para exibição, garantindo que o Recife tinha um público interessado em cinema
de arte.
Hiroshima
havia sido exibido em sessões normais, mas fora um fracasso de
bilheteria. A sessão de arte, todavia, foi um sucesso, lotou e mais uma sessão foi
realizada com êxito idêntico.
Em cartaz
Por essa época o conceito de cinema de arte ganhava espaço no universo da
crítica brasileira e ecos dessa maneira de se relacionar com um certo tipo de obra
cinematográfica municiavam a crítica recifense na sua militância por um cinema que
fosse mais do que uma simples forma de entretenimento. Nas páginas do
Diario de
Pernambuco
Spencer assinalava a pertinência de valorização do cinema de arte. Em
janeiro de 1964, o crítico publicou uma matéria sobre o florescimento de cinemas de arte
em Londres, no Reino Unido, destacando o
National Film Theatre
e o seu funcionamento
onde, por uma contribuição anual, o associado podia ver uma ampla variedade de filmes.
Assinalou também a existência de cinemas especializados em filmes de
avant-garde
como os que se dedicavam a exibir obras da
nouvelle vague
francesa ou filmes de
Antonioni e Ingmar Bergman.
O surgimento de sessões de arte em outras cidades do Nordeste também era
noticiado com entusiasmo. Em agosto de 1965, Spencer informou que ele, Ivan Soares e
Celso Marconi, para levar estímulo aos colegas, tinham ido até Campina Grande, na
Paraíba, prestigiar a fundação do clube de cinema daquela cidade. O crítico noticiou
ainda a criação de sessões de arte em Maceió (AL), em Caruaru (PE), onde um Cinema de
Arte, com exibição nos sábados à tarde no Cine Irmãos Macieira, passou a funcionar sob
coordenação do compositor Carlos Fernando. Todas as matérias continham sempre
palavras de incentivo e simpatia pela iniciativa. Ele também noticiava as incompreensões
e as atitudes arbitrárias dos exibidores com relação às sessões de arte. Em setembro de
1964, o
Diario
publicou uma matéria sobre o
Clube de Cinema de Fortaleza
(CE) que teve
a programação da sua sessão de arte suspensa por conta de desentendimentos com a
empresa Severiano Ribeiro. O Clube seguia a programação do CAR e Spencer fez um
apelo ao gerente da empresa em Fortaleza, o qual ele afirmava ser um conhecido seu,
para não deixar a cidade sem sua sessão de arte (SPENCER, 1964, p. 5).
Em 1966, Spencer enfatizava ainda mais o papel do CAR e de suas iniciativas. Nos
seus textos ele buscava estabelecer de forma clara a diferença entre cinema de arte e
cinema comercial. Costumava afirmar que o filme de arte era um filme honesto, no qual
prevalecia a criação artística e os recursos eram usados para se fazer obras de
qualidade, enquanto no cinema comercial as produções visavam em primeiro lugar o
retorno financeiro e mesmo que isso nem sempre significasse concessões ao mau gosto
ou ao sensacionalismo, o lucro viria em primeiro lugar e a qualidade artística em
segundo.
No material publicado na página de cinema do
Diario de Pernambuco
verifica-se
claramente o tratamento diferenciado dado às estreias promovidas pelo CAR. Em geral,
havia uma matéria informativa sobre a obra com dados do enredo e da produção, um
texto de pesquisa, sobre o diretor ou ator ou atriz de destaque do elenco, e resenhas
críticas, as quais tanto podiam ser textos de sua autoria ou de colaboradores regulares
da página como o cronista Ivan Soares, quanto reproduções, citando a fonte, de resenhas
publicadas em jornais do Rio de Janeiro ou São Paulo.
A programação do CAR nesta fase mostrava-se mais atualizada e os
programadores se orgulhavam das mostras realizadas, a exemplo dos festivais dedicados
aos filmes de Fellini, Kurosawa e Buñuel. Uma mostra Luis Buñuel, em novembro de
1966, foi exaltada por Spencer para mostrar que apenas cidades com cinemas de arte,
incluindo o Recife, tinham o privilégio de ver filmes como aqueles:
Um verdadeiro autor de filmes, cineasta de projeção mundial, no cinema desde
1926, figura importante do movimento surrealista, com uma obra clássica (“
Un
Chien Andalou
”) realizada com Salvador Dali, em 1928, Luis Buñuel é um dos
diretores malditos do cinema. De sua extensa filmografia com quase 40 títulos,
pouquíssimos aqueles exibidos no Recife. Ver os filmes de Buñuel é um
privilégio dos cine-clubistas e dos cinemas de arte existentes na Europa e agora
no Brasil, Alvorada e Paissandu (Rio), o Picolino (São Paulo), Salvador, Recife e
João Pessoa. (SPENCER, 1966, p. 7).
As sessões acompanhavam os filmes brasileiros que se destacavam em festivais
internacionais e também os dos jovens realizadores ligados ao Cinema Novo,
reapresentando aqueles que tinham obtido poucos dias de exibição no circuito comercial
ou obras cujo valor artístico despertava o interesse dos frequentadores habituais do
CAR, a exemplo de
O Pagador de Promessas
(1962), de Anselmo Duarte, Palma de Ouro
em Cannes;
Tocaia no Asfalto
(1962), de Roberto Pires;
Assalto ao Trem Pagador
(1962),
de Roberto Farias, e
Vidas Secas
(1963), de Nelson Pereira dos Santos, entre outros. As
sessões ganhavam ainda mais relevância quando nelas estreavam filmes estrangeiros ou
nacionais ainda inéditos no Recife.
O Processo
(1962), de Orson Welles, foi mostrado
na cidade, em 1964, por causa do empenho dos programadores do CAR. A boa
receptividade ao filme, segundo Spencer, surpreendeu até mesmo o seu distribuidor.
Esse Mundo É Meu
(1963), de Sérgio Ricardo, lançado em fevereiro de 1963, foi visto
no Recife, também graças ao CAR.
O que é um cinema de arte?
Ter sessões de arte na cidade para a crítica local e, sobretudo para Fernando
Spencer, era motivo de orgulho, por colocar o Recife em de igualdade aos grandes
centros culturais do país. Possuir uma sala exclusiva para exibir apenas obras que se
enquadravam na denominação cinema de arte era comprovar a existência de um público
inteligente, refinado e culto. Neste sentido, observamos que acontecia no Recife,
guardando as devidas proporções, o mesmo movimento que fizera surgir na década de
1950, na França, as chamadas salas “
d’art et essai
”, um rótulo que chegou a outros países
e que ganhou força também no Brasil nos anos 1960.
Não esno nosso horizonte discutir a pertinência da expressão cinema de arte,
uma definição que carrega algumas contradições e questionamentos tanto por parte dos
críticos e teóricos do cinema, quanto dos espectadores. Para os primeiros, um
persistente debate que opõe o cinema de arte (autoral e requintado) e o cinema industrial
(massivo e de fácil recepção), enquanto para o grande público, cinema de arte é sinônimo
de filmes lentos, chatos e incompreensíveis. Também não empreenderemos uma análise
de viés sociológico, embora saibamos das implicações que os discursos sobre o cinema
de arte ensejam em torno de questões sociais colocando em evidência os conceitos de
cultura, indústria cultural e a oposição entre o erudito e o popular, para citar as
contendas mais usuais. Em nossa tarefa de refazer o percurso do Cinema de Arte do
Recife vamos nos ater, portanto, ao desenrolar dos fatos de modo a estabelecer, dentro
do contexto histórico da época, o estado da arte que levou ao seu surgimento e sua
sobrevivência por quatorze anos.
De qualquer forma, achamos importante, mesmo de forma resumida, trazer
algumas considerações sobre como esta ideia de cinema de arte se difundiu a partir da
França, como ela foi encarada pela crítica brasileira e chegou até Pernambuco. Um artigo
de Michaël Bourgatte, publicado na revista
Communication & Langages
, nos apresenta
de forma bastante clara a origem do conceito de cinema de arte na França. Bourgatte
(2012) usa uma abordagem em parte oriunda dos estudos culturais ingleses e autores
contemporâneos que complexificam o olhar sobre as indústrias culturais. Segundo ele,
no início dos anos 1950, a quase totalidade dos exploradores das salas de cinema
concentravam sua atenção sobre os grandes filmes populares que atraiam massivamente
os espectadores. Todavia, um punhado de exibidores parisienses e a Cinemateca
Francesa portavam seu olhar sobre as produções de vanguarda dos anos 1920-1930.
Essas películas eram admiradas pelos intelectuais por desenvolverem formas de discurso
que se afastavam da linguagem característica das produções cujos objetivos eram de um
cinema essencialmente voltado ao lazer e à distração. Com isso:
O campo do cinema produção e exibição se então rapidamente
fracionado em dois, de um lado um cinema comercial e, do outro, um cinema
mais especializado. Este último é chamado “cinema de arte” e sua parte mais
experimental é chamada “cinema de ensaio”, remetendo aos filmes “no qual o
estilo ou o conteúdo mostra a intenção de abrir vias novas e novos modos de
expressão da arte cinematográfica (BOURGATTE, 2012, p. 112).
O autor vai mostrar ainda que essa definição era fundada em uma jogada técnica e
discursiva, na qual não se podia julgar a qualidade de um filme a partir dos cânones
comumente admitidos em termos de recepção cinematográfica, pois eles não estavam
integrados a esta concepção de valoração de uma obra fílmica. Em 1955, esta fratura do
campo cinematográfico foi endossada e institucionalizada com a fundação da Associação
Francesa dos Cinemas de Arte e Ensaio (AFCAE), estrutura visando a agrupar as salas
que se consagravam então a difusão de filmes de vanguarda. Bourgatte demonstra:
A fundação dessa associação faz nascer a expressão arte e ensaio, junção feita
quase por acaso entre essas duas noções distintas, embora não opostas, e
mesmo pouco distinguíveis: a do cinema de arte e a do cinema de ensaio.
Frequentemente considerada como um nicho elitista, o setor arte e ensaio se
inscreve, de fato, num pensamento cultural característico dos anos cinquenta e
sessenta que defende a abertura e a democratização do acesso às
cinematografias mais vanguardistas. (BOURGATTE, 2012, p. 113).
Bourgatte acrescenta que a audiência dessas salas era, porém, fraca e as
possibilidades de ação limitadas, levando o setor de arte e ensaio a solicitar, na França, o
apoio do setor público para continuar funcionando. Para o apoio ser efetivado, a
comissão encarregada em classificar se um programa cinematográfico era de arte e
ensaio, ou não, estabeleceu uma série de critérios. Um programa era considerado de arte
se:
1 - Os filmes apresentassem qualidades incontestáveis, mas não tivesse obtido
junto ao público a audiência que eles mereciam.
2 - Os filmes tivessem um caráter de pesquisa ou de novidade no campo da
criação cinematográfica.
3 Os filmes refletissem a vida de um país onde a produção cinematográfica
fosse pouco difundida na França.
4 - Os filmes de curta-metragem tendessem, por sua qualidade e sua escolha, a
renovar o espetáculo cinematográfico.
5 - Os filmes de reprise apresentassem um interesse artístico ou histórico, em
particular se fossem ‘clássicos da tela’.
Eventualmente os programas arte e ensaio poderiam incluir
1 - Os filmes recentes, caso eles houvessem conciliado as exigências da crítica e
o favor do público e pudessem ser considerados como portadores de uma
contribuição notável à arte cinematográfica.
2 - Os filmes de amadores apresentando um caráter excepcional (BOURGATTE,
2012, p. 113-114).
No Brasil dos anos 1960 essa divisão entre cinema de arte e cinema comercial e o
debate sobre o tema era corriqueiro no seio da crítica cinematográfica, com clara
exaltação dos empreendimentos que valorizassem o primeiro modelo. Em fevereiro de
1967, Spencer afirmava na sua coluna do
Diario de Pernambuco
, que enquanto o cinema
comercial declinava a olhos vistos, os clubes de cinema e os cinemas de arte
proliferavam em todo mundo. Para justificar seu ponto de vista informava que no Brasil
se achavam em atividade vinte cinemas de arte em diversas capitais. Complementava
com a informação da realização em novembro de 1966 do I Encontro Nacional dos
Cinemas de Arte, no Rio de Janeiro, e a fundação da Associação Brasileira de Cinemas de
Arte (ABCA).
Os resultados do evento foram divulgados e comentados por Spencer a partir de
uma entrevista dada pelo crítico Rudá de Andrade, da
Cinemateca Brasileira
e da
Sociedade Amigos da Cinemateca
, ao jornal
Folha de São Paulo
. Eleito membro da
Comissão Executiva da ABCA, as declarações de Andrade sintetizavam a visão da crítica
brasileira a respeito do tema e traziam informações relevantes da situação dos cinemas
de arte no país. O primeiro ponto abordado por Andrade era sobre o próprio
entendimento do que seria um cinema de arte:
A denominação Cinema de Arte gera discussões porque nela alguns querem
encontrar um significado preciso e terminológico. O certo é que se
convencionou chamar Cinema de Arte a uma casa de exibição que exerce um
tipo de atividade cinematográfica o muito definido, mas com intenções de
comerciar a cultura cinematográfica ou de dar uma dose de cultura ao comercio
cinematográfico.
Pode-se dar o caso de um cinema comum manter programação mais artística do
que um Cinema de Arte, e exibindo média de filmes mais premiados, mais
cotados pela crítica ou mais integrados em qualquer concepção estética. Mas
isso não faz um Cinema de Arte, pois sua programação boa
circunstancialmente, por acaso, é boa por tempo determinado.
O que marca o Cinema de Arte é determinada intenção numa programação
consciente visando a uma destinação cultural, uma instituição procurando ser
um veículo cultural e contribuindo, como mercado especializado, para
desenvolver o próprio mercado normal de exibição e distribuição. (SPENCER,
1967c, p. 10).
Para o conselheiro da ABCA os cinemas de arte surgiam quando eles se faziam
necessários e existisse um público amplo que o procurasse. O desenvolvimento cultural
do país ou da cidade seria determinante para que isso ocorresse e essa havia sido a razão
para que o cinema de arte tivesse seu primeiro desenvolvimento na França e
posteriormente se espalhado pelos centros mais avançados. Andrade informava que o
desenvolvimento do cinema de arte, nos países culturalmente mais privilegiados, tinha
feito surgir a Confederação Internacional dos Cinemas de Arte, congregando mais de
300 membros de 14 países, algo considerado positivo por ele:
A criação dessa rede de cinemas especiais é o início de uma garantia que os
produtos independentes e desligados dos trustes poderão ter para a criação
mais livre e despreocupada. É o início de um tipo de comércio da arte
cinematográfica que se desenvolve na dependência da emancipação cultural de
cada meio social. (SPENCER, 1967c, p. 10).
Indefinida e irregular era como Rudá de Andrade definia a situação dos cinemas
de arte no Brasil. Mas, segundo ele, um movimento nacional começava a surgir com a
emancipação dos clubes de cinema buscando uma abertura para encontrar um público
maior. Ao selecionar os filmes a serem exibidos, essas salas despertavam o interesse
crítico do espectador. O crítico do
Jornal do Brasil
Ely Azeredo fora o primeiro a
incentivar um movimento unindo os cinemas de arte ativos em todos os estados,
mostrando que certos problemas enfrentados podiam ser superados se tratados
coletivamente. Em seu depoimento, Andrade observava que:
O próprio desenvolvimento dos “cinemas de arte” se em termos de
circuito, isto é, como uma cadeia de salas exibidoras que, de comum acordo,
possam por exemplo influir na importação de certo cinema estrangeiro ou
na afirmação comercial de alguns filmes nacionais. Esse tipo de influência, que
pode melhorar qualitativamente o mercado exibidor, é possível apenas través do
esforço coletivo. Nenhum distribuidor importará um filme artístico para exibir
em uma sala apenas. (SPENCER, 1967c, p. 10).
Observamos aqui como o movimento em torno dos cinemas de arte no Brasil
repetia percurso similar ao dos cinemas de arte e ensaio na França, a necessidade de
uma institucionalização para garantir a sobrevivência da atividade. A criação da ABCA
concretizava assim essa proposta, como observou Rudá de Andrade:
Considerando a incipiência do movimento de Cinema de Arte pois, se já existe
número razoável (cerca de 20 no Brasil), a maioria funciona de forma restrita,
com apenas uma sessão ou um dia por semana a orientação inicial da ABCA é
fomentar esse movimento procurando criar novos “cinemas de arte” e
desenvolver o ritmo das atividades existentes. A ABCA criou uma comissão
de assuntos legislativos para trabalhar no sentido de obtenções de vantagens
fiscais, facilidades junto à censura e outras questões legais que possam permitir
ação cultural mais objetiva. (SPENCER, 1967c, p. 10).
Cinema é a maior diversão?
O rico debate sobre os cinemas de arte no Brasil chegou a Pernambuco no
momento em que os organizadores do CAR conquistavam uma grande vitória. O
surgimento da primeira sala permanente e exclusiva para funcionar como cinema de
arte, anúncio feito em janeiro de 1967, em tom solene, por Spencer, em matéria publicada
no
Diario de Pernambuco
:
O Recife a partir da quinzena de fevereiro terá o privilégio de possuir o
primeiro Cinema de Arte permanente no Nordeste, a exemplo do Rio e São
Paulo, pioneiros no Brasil.
(...) A Empresa Severiano Ribeiro, a mais importante cadeia exibidora do Brasil,
através do sr. José Ronaldo Gomes, gerente geral da referida organização,
atendendo sugestão feita pelos cronistas Fernando Spencer (DIARIO DE
PERNAMBUCO), José de Souza Alencar (TV Canal 2 e Jornal do Commercio) e
Celso Marconi (Jornal do Commercio), resolveu ceder o Cine Coliseu para que o
mesmo fosse transformado num Cinema de Arte permanente nos moldes do
Paissandu e Alvorada (Rio), Bijou e Scala (São Paulo).
(...) O Cinema Coliseu será assim transformado em uma autêntica sala de arte e
cultura. Além dos festivais de filmes que serão apresentados em convênios que
estão sendo estudados, o Cinema de Arte no Coliseu fará paralelamente às
exibições normais, exposições de arte, lançamento de livros, palestras e cursos
de cinema e outras promoções de sentido fundamentalmente artístico e
cultural. (SPENCER, 1967a, p. 10).
O período que antecedeu a abertura do Coliseu como Cinema de Arte do Recife
foi de intensa movimentação e preparativos, descritos com detalhes por Spencer. O
crítico ressaltava que as sessões do CAR no Coliseu não seriam destinadas somente à
intelectualidade recifense, mas abertas para o povo de modo geral que teria acesso à sala
do Coliseu sem acréscimo no preço dos ingressos. Para garantir o êxito da iniciativa os
programadores buscaram todo tipo de auxílio, incluindo as autoridades públicas
municipais, como o prefeito biônico Augusto Lucena, indicado ao cargo pelo regime
militar:
O prefeito Augusto Lucena, indiscutivelmente sensível à cultura e à arte
cinematográfica certamente não negará o seu apoio aos cronistas que irão ao
seu encontro dentro de alguns dias, no sentido de ajudar essa iniciativa que
reputamos das mais louváveis para o engrandecimento da cidade. (SPENCER,
1967a, p. 10).
O tom laudatório era usado também para enaltecer a empresa Severiano Ribeiro,
5
pois, naquele momento, sem ela a concretização do sonho de sala exclusiva para filmes
de arte seria impossível:
O Cinema de Arte do Recife surge agora em caráter permanente, graças a
compreensão e espírito progressista desse autêntico homem de negócios que é
o Sr. Luiz Severiano Ribeiro Junior que não vacilou em atender a solicitação dos
cronistas encaminhada pelo dinâmico José Ronaldo Gomes, gerente local da
Empresa São Luiz. Com essa colaboração pode o Cinema de Arte elastecer sua
programação, transformando-se num cinema permanente possibilitado ao
público do Recife conhecer filmes inéditos ou reprises que dificilmente
voltariam à programação normal. (SPENCER, 1967c, p. 10).
Para receber o CAR, o
Coliseu
, situado na Estrada do Arraial, no bairro de Casa
Amarela e capacidade para acolher 1.800 espectadores, passou por uma série de
reformas com o aval dos programadores, como informou Spencer dias antes da
reabertura da sala:
Na quinta feira última, estivemos em visita ao Coliseu. Vimos a projeção, o som
e outras condições necessárias para um bom cinema. A sala é nova. Cortinas
também e o sistema de som e projeção recebeu vários melhoramentos, inclusive
alteração na amperagem. Terá projeção idêntica ou melhor a dos cinemas do
centro. (SPENCER, 1967b, p. 7).
O fato de o Recife ter o primeiro cinema de arte permanente do Norte-Nordeste
era louvado por Spencer, mas, ao mesmo tempo, impunha desafios e responsabilidades,
algo que pode ser verificado no artigo por ele publicado explicando aos leitores as razões
para ter sido o
Coliseu
a sala escolhida para abrigar o CAR. Spencer sabia que o êxito da
iniciativa dependia da frequência do público e dos bilhetes vendidos: O apoio do público
é imprescindível. A iniciativa é ousada, mas vamos tentar essa realizão pioneira da
crônica cinematográfica no Norte-Nordeste.” (SPENCER, 1967b, p. 7). Dessa forma,
buscava atrair novos usuários e atender aos anseios dos frequentadores habituais das
sessões que até então aconteciam no
São Luiz
, uma sala confortável e localizada no
centro da cidade.
5
A
Empresa Severiano Ribeiro
era proprietária de algumas das principais salas de cinema do Recife, tanto
no centro da cidade quanto nos subúrbios. Acompanhando as matérias publicadas por Spencer no
Diario
de Pernambuco
por quatro décadas, observamos as oscilações da relação do crítico com a empresa, ora
amistosa, ora tensa, em torno de questões que iam das condições das instalações físicas das salas aos
filmes exibidos. O período em que José Ronaldo Gomes permaneceu como representante da empresa, de
meados dos anos 1960 até a década de 1980, foi o mais tranquilo. Foi de Gomes a iniciativa de inaugurar no
Recife a primeira cabine de projeção para a imprensa especializada no andar do
Cinema São Luiz
e
ceder o
Cinema Coliseu
para funcionar exclusivamente como Cinema de Arte.
Para muitos a mudança do Cinema de Arte para o Coliseu não alterará o
interesse do espectador. O espectador (ilegível) que todos os sábados com
chuva ou com sol está plantado numa poltrona estofada do São Luiz. Outros
acham que o deslocamento para o subúrbio poderá haver recesso do público em
geral. Ora, o Paissandu e o Alvorada cinemas de arte permanentes no Rio, não
estão localizados no coração da cidade, dependem também de dois transportes
e nem por isso deixam de atrair público diariamente às suas sessões.
A mudança do Cinema de Arte para o Coliseu oferece excelentes perspectivas
ao público recifense. Primeiramente teremos duas sessões diárias e três aos
domingos, serão lançados dois filmes mensalmente, com possibilidades de
serem exibidas todas as películas que continuam inéditas muitos anos nesta
capital. Não os filmes malditos, do público limitado. filmes para o grande e
para o pequeno público. Para atender este pequeno público surgem os cinemas
de arte em todo o mundo. (SPENCER, 1967b p. 7)
Além de reafirmar a permanência dos selecionadores (ele próprio, José de Souza
Alencar, Celso Marconi e Ivan Soares), Spencer elencava as vantagens da sala
permanente, entre elas o fato de que se o CAR continuasse a ter apenas uma
apresentação semanal, não teria chance de trazer a metade das fitas já anunciadas para o
mês de março no
Coliseu
. O crítico garantia que eles estavam recebendo ofertas de
películas não somente das distribuidoras do Recife, mas também do sul do país.
Nesta nova fase o CA Coliseu promete uma seleção de películas de excelente
nível artístico a começar pela que foi elaborada com o apoio dos diretores da
Metro Goldwyn Mayer, que colocaram à disposição dos coordenadores do
Cinema de Arte 5 filmes inéditos, todos de reconhecida categoria estético-
formal.
Esse louvável gesto do sr. Henry H. Ronge, diretor da MGM deve ser também
seguido pelas demais companhias cujos representantes possuem agências no
Recife. Esse apoio é imprescindível no sentido de que o Cinema de Arte possa
cumprir os seus objetivos propostos desde 1960, data de sua fundação no
Recife. (SPENCER, 1967c, p.10).
Afirmava ainda que a ABCA tencionava fazer exibições de filmes premiados em
toda rede de cinemas de arte no Brasil e o Recife estaria incluído.
A primeira sessão do CAR no
Coliseu
foi numa quarta-feira, no dia 02 de março
de 1967, com o filme
O Homem do Prego
(1964), de Sidney Lumet, eleito pela crítica
carioca, segundo Spencer, como um dos dez melhores filmes de 1966. O noticiário do dia
seguinte afirmava que mais de duas mil pessoas haviam prestigiado a sessão inaugural,
registrando a presença de nomes de projeção do mundo social com predominância da
chamada nova geração entre os quais “[...] representantes das forças armadas,
secretários do Estado, comandantes de guarnições, corpo consular, professores,
intelectuais, jornalistas e universitários [...]” (SPENCER, 1967d, p. 7).
A programação inaugural seguiu com obras como o filme japonês
O Túmulo do
Sol
(1962), de Nagisa Oshima, o italiano
A Ilha dos Amores Proibidos
(1962), de Damiano
Damiani, o britânico
Um Gosto de Me
l (1962), e a reprise do norte-americano
Júlio César
(1953), de Joseph L. Mankiewicz, entre outros. Folhetos com a programação da sala e
informações sobre os filmes enredo e ficha técnica eram distribuídos gratuitamente
com os frequentadores. Em junho, foi lançada uma enquete com os frequentadores do
cinema com consultas sobre programação e condições da sala, visando entrosamento
entre os espectadores e os coordenadores. Os anos de experiência com o CAR
mostravam que os espectadores nem sempre compreendiam o processo de curadoria de
uma sala de arte e, vez por outra, esclarecimentos precisavam ser feitos. Spencer
queixava-se que mesmo pessoas cultas e estudiosas do cinema solicitavam filmes, cujas
cópias nem existiam no Brasil, e como não eram atendidas responsabilizavam
injustamente os promotores do CAR pela falta de equilíbrio na seleção das obras:
Sabe-se que é diminuta a entrada de filmes de arte no Brasil, em comparação
com as produções de linha comercial distribuídas através das companhias
norte-americanas. Numa verificação nas listas de produções de várias
distribuidoras, é fácil constatar-se a disparidade. Num lote de 30 películas, duas
ou três podem ser catalogadas de arte. Por se que não é fácil manter-se
uma programação absolutamente de filmes de arte num cinema que exige por
mês 8 películas em exibição, como é o caso do Cinema de Arte-Coliseu.
(SPENCER, 1968a, p. 14).
Anunciar modificações na programação com a entrada de filmes inéditos,
contratados em exclusividade, como aconteceu no início de 1968, era um alívio para os
programadores do CAR. Isto foi possível graças a um acordo com a
Distribuidora
Franco-Brasileira
, detentora da maioria dos filmes de arte que entravam no país. A
empresa mantinha transações comerciais com os principais centro produtores mundiais,
adquirindo obras premiadas em festivais internacionais como Cannes, Veneza e Berlim.
O acordo foi noticiado pelo
Diario de Pernambuco
com o tulo “Público conhecerá filmes
de Godard”:
A Distribuidora Franco-Brasileira, com sede na Guanabara, é a única agência no
Brasil que se dedica à importação e distribuição de filmes de arte. A
programação do Cinema de Arte-Paissandu, do Rio, é mantida pela Franco-
Brasileira. A esta distribuidora se deve a entrada no Brasil dos filmes de Jean-
Luc Godard, Agnès Varda, Alain Resnais e outros importantes cineastas de
vanguarda da França.
Após longos meses de démarches entre a Franco-Brasileira e os cronistas
responsáveis pela programação do Cinema de Arte do Recife, foi possível um
acerto definitivo para a exibição, em exclusividade, no Cinema de Arte, das
produções da Franco-Brasileira. (SPENCER, 1968a, p. 14).
Godard era um símbolo do cinema de vanguarda da época e seus filmes estarem
na programão atestava o engajamento do CAR no cenário artístico e cinematográfico.
Spencer não poupou palavras para assinalar o feito.
Godard é o diretor da maior evidencia dentro do cinema mundial. Não é apenas
um grande diretor. É, acima de tudo, um pesquisador que busca sempre novas
técnicas e formas cinematográficas. “Acossado” é um exemplo e o resultado de
um cineasta sempre preocupado pelas inovações na linguagem do cinema. Seus
filmes têm revolucionado o panorama do moderno cinema. (SPENCER, 1968a, p.
14).
Além de Godard, o CAR se orgulhava de oferecer ao seu público cativo obras de
Antonioni, Pasolini, Arthur Penn, Chaplin, Kurosawa, Agnès Varda, Bergman, Glauber
Rocha, e mostras e festivais de filmes alemães, russos, iugoslavos e, no seu oitavo
aniversário, em julho de 1969, anunciava a exibição, entre outros, de
2001: Uma Odisseia
no Espaço
(1968), de Stanley Kubrick,
Tempo de Guerra
(1963), de Jean-Luc Godard e
Mouchette
(1967), de Robert Bresson.
Todavia, os números apontavam para a fragilidade que ainda rondava a
manutenção de uma sala exclusiva para filmes de arte. Em agosto do mesmo ano, uma
matéria de Enéas Alvarez revelava a situação real da sala a partir do levantamento de
dados dos ingressos vendidos nas salas do Recife pela Delegacia do
Instituto Nacional do
Cinema
. O levantamento apontava que a frequência média diária das salas do Recife era
de 15.700 pessoas e o
Cinema de Arte Coliseu
, a maior sala de Pernambuco vendia, em
média, a cada dia, 293 inteiras e 169 meias, com o ingresso custando NCr$ 1,00. A
maioria delas não era moradora do bairro de Casa Amarela (ALVAREZ, 1969, p. 8).
No ano seguinte, nas comemorações de aniversário do CAR, além das habituais
mostras especiais para assinalar a data, seus coordenadores inauguraram uma exposição
de discos com as gravações das trilhas sonoras dos filmes. O responsável direto pela
exposição foi Fernando Spencer, que expôs no hall do
Coliseu
parte de sua coleção de
quatro mil gravações de músicas, aberturas de filmes, diálogos e vozes dos astros e
estrelas do cinema. Na exposição era possível ver e ouvir discos dos filmes
Tempos
Modernos
(1936), de Charles Chaplin;
Quanto Mais Quente Melhor
(1959), de Billy
Wilder;
Mary Poppins
(1964), de Robert Stevenson, entre outras, cujos discos não haviam
sido lançados comercialmente no Brasil.
Em 1973, por ocasião da festividade pelos 12 anos em atividade Spencer, mais uma
vez, em sua coluna, chamou atenção para a longevidade do CAR diante da luta para
manter ativo um empreendimento cultural. Observou, no entanto, que nem sempre era
possível manter o nível artístico da programação pela indisponibilidade de produções que
atendessem aos critérios que norteavam o CAR desde seu início. Para driblar esses
obstáculos, os organizadores buscavam iniciativas que pudessem diversificar as
atividades e foi neste intuito que eles decidiram oferecer exibições com filmes em 16mm
e um projetor nesta bitola foi instalado no
Coliseu
. Ao anunciar a novidade, Spencer
informou que as sessões em 16 mm seriam realizadas uma vez por semana,
possivelmente às sextas feiras, com programas cedidos pelo Consulado da Alemanha e
entidades culturais como a
Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio
(SPENCER,
1973, p. 7).
Fecha a cortina
Em meados da década de 1970, muitos cinemas de arte encerraram suas
atividades pelo Brasil afora. Em 1975, um novo fôlego para o setor foi registrado no Rio
de Janeiro, com as salas especializadas se tornando lançadoras de algumas realizações do
cinema brasileiro, justamente as com mais dificuldades para conseguirem estrear nos
grandes circuitos. No
Diario de Pernambuco
, Spencer afirmava que filmes como
São
Bernardo
(1972), de Leon Hirszman,
Uirá
(1973), de Gustavo Dahl,
Os Condenados
(1975),
de Zelito Viana tiveram excelente acolhida de blico graças, em parte, ao trabalho de
motivação da plateia empreendido por cinemas de arte. Ele, porém, ponderava que “[...]
para se desenvolver nas grandes cidades e chegar a todos os pontos do país, os cinemas
de arte necessitam de estímulos sistemáticos.” (SPENCER, 1975a, p. 9), e informava que o
Instituto Nacional do Cinema
(INC) estava aperfeiçoando um projeto, apresentado por
críticos, no Congresso da Indústria Cinematográfica, com este fim.
Dois dias depois, Spencer voltou ao assunto, desta feita noticiando como o INC
estaria finalizando o projeto de credenciamento dos cinemas de arte e os critérios para
considerar uma sala exibidora como tal. Ao vermos, no texto de Spencer, como o INC
pretendia conduzir sua avaliação, imediatamente identificamos a semelhança com o
modelo francês que vimos anteriormente. Para uma programação ser considerada
aderente ao que se esperava de um cinema de arte, os filmes exibidos deveriam ser de
interesse artístico ou cultural, representarem experimentação positiva em tema ou
forma, serem considerados clássicos ou de especial significação na história do cinema,
ter valor educativo com nível apreciável de realização e representarem a experiência
cultural ou artísticas de países que normalmente não encontravam oportunidades de
lançamento no mercado (SPENCER, 1975b, p. 9). Enfim, não seriam as características das
salas exibidoras que as credenciariam como cinemas de arte, e sim as características de
sua programação. Além disso a resolução do INC determinava que somente depois de
pelo menos três meses de contínua atividade dentro desta linha o exibidor poderia
pleitear o Certificado de Registro de Cinema de Arte e a cada três meses deveria
comprovar a manutenção do mesmo tipo de programação.
O Cinema de Arte do Recife, todavia não usufruiu das medidas propostas pelo
INC. Depois de festejar o seu décimo quarto ano de existência com uma mostra dedicada
ao cineasta sueco Ingmar Bergman, cujo filme de abertura foi
O Sétimo Selo
(1957), o
CAR encerrou suas atividades. A última sessão foi no dia 3 de agosto de 1975, com a obra
O Rosto
(1958), do mesmo diretor. O fim do CAR ganhou voto de pesar deliberado em
sessão plenária do
Conselho Municipal de Cultura
e enviado à
Empresa Severiano
Ribeiro
pelo encerramento das atividades do
Cinema de Arte Coliseu
. O conselheiro José
Luiz Delgado propôs também um voto de aplausos “[...] pelo admirável esforço em favor
da cultura cinematográfica recifense, desenvolvido ao longo dos 14 anos de
funcionamento do Cinema de Arte [...]” (SPENCER, 1975c, p. 11), idealizado e mantido sob
a responsabilidade de Spencer e os demais companheiros da crônica especializada. Para
o crítico o fechamento do CAR foi fruto da ganância ilimitada do exibidor, na época,
Severiano Ribeiro Júnior. O herói do passado tornara-se vilão.
Créditos Finais
Com o fim das atividades do CAR, outras experiências com cinema de arte ainda
foram protagonizadas pelos seus antigos programadores, sobretudo Fernando Spencer e
Celso Marconi. Ainda em 1975, eles foram convidados para fazerem a seleção do Cinema
de Arte AIP que passou a funcionar no auditório da
Associação de Imprensa de
Pernambuco
(AIP), administração compartilhada do
Grupo Severiano Ribeiro
com a
associação e funcionando como sala lançadora seguindo os moldes do Cinema 1, do Rio
de Janeiro. Algumas dificuldades se impuseram de imediato, o tamanho da sala com
poucos lugares 170 poltronas e a própria programação pelas condições oferecidas
que nem sempre preservava a qualidade esperada para um cinema de arte. Boicotes dos
distribuidores não eram novidade e a situão apenas confirmava que nenhum exibidor e
distribuidor ao colocar um filme em cartaz, estaria pensando em termos culturais.
Em 1983, Spencer voltou a falar sobre cinemas de arte ao comentar o fato do
filme
Ao Sul do Meu Corpo
(1980), de Paulo César Saraceni, estar sem data de
lançamento:
O exibidor local não está interessado em mostrar filmes sérios como este. O
espaço é para pornográficos. Uma obra como “Ao Sul do Meu Corpo” e outros
da mesma linhagem não sensibilizam jamais o exibidor preocupado em lucros
fáceis e imediatos. Infelizmente, o filme de autor é e sempre foi marginalizado.
falei inúmeras vezes da viabilidade da instalação de um cinema pela
Embrafilme, destinado a esses filmes, brutalmente repelidos pelos exibidores.
Em algumas capitais ela instalou seu próprio cinema. É o caso de Salvador. O
Guarani, agora é Cine Glauber Rocha. (SPENCER, 1983a, p. B-12).
Spencer sugeriu então que o Cinema AIP fosse arrendado pela
Embrafilme
. Para
ele seria a melhor maneira de mostrar ao público os enjeitados filmes de autor que eram
vistos em limitadas sessões especiais. Segundo ele [...] a Embrafilme tem condições e
idoneidade para assumir a programação e a administração do cineminha da AIP. Outro
concessionário que aparecer não vai poder cumprir a programação que se exige para um
Cinema de Arte.” (SPENCER, 1983a, p. B-12).
O desejo de Spencer se concretizou, mas não pelas mãos da
Embrafilme
. Em maio
de 1983 o crítico anunciou em sua coluna a volta do Cinema AIP por iniciativa do
jornalista Joezil Barros, presidente da associação.
A proposta é de abrir espaço para o filme cultural e artístico marginalizado pelo
exibidor local. Assumimos (eu e Celso Marconi) a difícil tarefa de manter na
medida do possível, uma programação que se afine com os cinemas de arte
(poucos) que existem em nosso país.
Tentaremos trazer obras que nem chegam aos distribuidores locais. Ficam no
privilegiado eixo Rio-São Paulo. Inúmeros são os filmes brasileiros e
estrangeiros que não chegam ao Recife. São os chamados ‘filmes malditos’, que
não dão bons resultados financeiros.
A preocupação nossa sea mesma de vinte anos passados, quando iniciamos
no extinto Soledade, o Cinema de Arte do Recife, melancolicamente encerrado
no Coliseu. (SPENCER, 1983b, p. B-10).
Os tempos, porém, eram outros, e a nova tentativa de uma sala exclusiva como
cinema de arte não alcançou o resultado esperado. Em 21 de setembro de 1983, Spencer
publicou o artigo “Navegar é preciso, mas não com o barco furado” que reproduzimos na
íntegra pelo revelando um certo estado cultural da cidade do Recife no início dos anos
1980. Ela mostra também o cansaço do próprio Spencer na luta por manter no Recife a
cultura cinematográfica em movimento.
O Cinema de Arte AIP não vai bem. Quando eu o Celso Marconi assumimos
três meses, a administração, saamos que a empreitada não era fácil e nada
rendosa como muitos (maledicentemente) admitiam que ficaríamos ricos.
Não vai bem por falta de público. A matéria-prima (o filme) é boa, mas o público
é escasso. E o mais decepcionante é que falta aquela platéia que tanto
reclamava a ausência de um cinema de arte de bons filmes na praça.
Dificilmente você um estudioso de cinema, um crítico de cinema (são muitos
os que existem na província), professores de cinema e alunos, enfim, gente que
diz gostar de filmes de bom nível. Gente que detesta aqueles que m opinião
firmada e formada sobre cinema. É ave rara no cinema AIP. E por quê? Ainda
não entendi. No mês passado o Cinema de Arte exibiu uma série de filmes de
categoria, alguns até inéditos. “República Guarani”, de Sílvio Back, excelente
documentário sobre a nossa história, foi um dos maiores fracassos de público.
Um filme - diga-se de passagem - útil a professores de sociologia, antropologia,
historiadores e alunos. Por falta de informação é uma desculpa mentirosa. a
programação do Cinema de Arte AIP é diariamente anunciada nesta e na coluna
de Celso Marconi. Abusamos, inclusive, de noticiário e de informação. Não vai
quem não quer. Tem preconceito até com aquilo de que gosta - o cinema - por
ser uma arte popular. Tem muita gente esnobe nesta terrinha que foi de Nassau
e que hoje não é de ninguém. Não tem luz nas ruas, nem nos postes. Tudo é
trevas.
O Cinema de Arte AIP não vai bem. Falta público e são muitas as obrigações que
lhe são cobradas. Agora é o ECAD, órgão que colocou a Polícia Federal para
garantir a arrecadação de 2,5% (queriam 5%) da renda da bilheteria; a Prefeitura
do Recife leva 10% de ISS; ao filme se paga 40% (ao estrangeiro) e 50% (ao
nacional); o condomínio do AIP está cobrando uma soma altíssima como se o
Cinema de Arte fosse uma empresa, enfim, todo mundo leva suas fatias das
minguadas rendas do único cinema no Recife que não exibe filmes
pornográficos, prima por uma programação da melhor qualidade e onde o
público pode ver o filme sem anarquia, tudo com muito respeito, o que não se vê
nas outras salas de espetáculos. (SPENCER, 1983c, p. B-6).
Foram muitos os fatores que levaram a essa situação. Duas delas elencamos aqui
apenas como registro para melhor compreensão do contexto: a deterioração do espaço
urbano do centro do Recife e mudança do perfil dos frequentadores das salas, que
passaram a exibir principalmente filmes de kung-fu e eróticos, e a chegada do
videocassete, cujos efeitos nas audiências das salas de cinema foi marcante no período.
Felizmente, o ânimo pelo cinema de arte arrefeceu, mas não desapareceu. Em 1984, o
Cine Ribeira
, no
Centro de Convenções de Pernambuco
, com 210 lugares, passou a
funcionar como cinema de arte, tendo o crítico Celso Marconi como seu programador.
Na ocasião, Spencer publicou matéria no
Diario
anunciando a iniciativa e mostrando que
não tinha perdido a e reconciliou-se com o blico que o decepcionara no ano
anterior.
Faço votos que o Ribeira-Convenções estimule os bons lançamentos. Mesmo
com o risco de atrair pequenas plateias. Uma programação racionalmente bem
escolhida vai garantir o êxito do novo cinema. (...) O público reflexivo é pequeno.
Ninguém discorda. Mas pode garantir a sobrevivência de uma sala pequena. Isso
está provado em outras capitais. Os bons filmes estão aí. É preciso saber como
programá-los. Inéditos ou reprises não vão faltar. (SPENCER, 1984, p. B-6).
No final dos anos 1980, surgiu o Cineclube Jurando Vingar, formado por jovens
universitários, entre eles o cineasta Marcelo Gomes, e que funcionava no Cineteatro José
Carlos Cavalcanti Borges, em um dos prédios da Fundação Joaquim Nabuco, no bairro do
Derbi. O cineclube foi o embrião do Cinema da Fundação
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que, na década de 1990,
restaurou no Recife o gosto pelo cinema de arte e continua em atividade até hoje.
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O Cinema da Fundação se consolidou a partir do trabalho de Anizio Andrade e da diretora do Instituto de
Cultura da Fundação Joaquim Nabuco Silvana Meirelles na segunda metade da década de 1990. Em 1998, o
crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho foi convidado para criar uma política de exibição formadora de
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