BERTONCELLO FONTES, Ana Paula*
https://orcid.org/0000-0002-1503-6482
Resumo: O presente artigo objetiva discutir
sobre a última produção do diretor polonês
Andrzej Wajda (1926-2016). Em
Afterimage
(2016), Wajda retoma o passado do período
stalinista, em 1948, ao narrar a inserção do
Realismo Socialista numa Polônia ocupada por
soviéticos, pós Segunda Guerra Mundial.
Artistas, músicos, literatos e cineastas foram
afetados por esse projeto artístico, incluindo
Wajda. Assim, o enredo se desenvolve nos
quatros anos finais da vida do pintor
vanguardista Wladyslaw Strzeminski,
mostrando a sua resistência a essa linguagem
estética adotada pelo regime. Essa
cinebiografia foi produzida em um contexto de
crescente adesão dos poloneses à retórica do
governo de extrema direita, representado pelo
partido Lei e Justiça (PIS). Dessa forma,
pretendemos refletir acerca do discurso
cinematográfico produzido por Wajda,
propondo uma análise de seu contexto de
produção e de sua codificação.
Palavras chaves:
Pós Imagem;
Andrzej Wajda;
Cinebiografia.
Abstract: This article aims to discuss the last
production of Polish director Andrzej Wajda
(1926-2016). In
Afterimage
(2016)
Wajda revisits
the past of the Stalinist period, in 1948, narrating
the insertion of Socialist Realism in a Poland
occupied by the Soviets, after the Second World
War. Artists, musicians, literati and filmmakers
were affected by this artistc project, including
Wajda. Thus, the plot develops in the four final
years of the painter and avant-garde artist
Wladyslaw Strzeminski, showing his resistance
to this aesthetic language adopted by the regime.
This biopic was produced in a context of
increasing acquiescence of the Polish people to
the rhetoric of the far-right government,
represented by the Law and Justice party. In this
way, we intend to reflect on the
cinematographic discourse of the film,
proposing an analysis of its production context
and its codification.
Keywords:
Afterimage;
Andrzej Wajda; Biopic.
Recebido em: 28/01/2022
Aprovado em: 08/05/2022
* Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade
Estadual de Londrina/PR. E-mail: ana.paulabfontes@gmail.com. O presente artigo faz parte da pesquisa de
mestrado, ainda em desenvolvimento, intitulada “A arte sob ameaça: A representação do Realismo Socialista
em
Afterimage
(2016) de Andrzej Wajda”.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O filme polonês
Ida
(2014), do diretor Pawel Pawlikowski, chamou atenção do
circuito cinematográfico nos últimos anos. Essa película, que foi a grande vencedora do
Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 2015, narra a história de uma jovem freira em sua
busca para descobrir as origens de sua família judia, num contexto em que a nação
polonesa enfrentava as consequências desgastantes da invasão nazista e a recente
anexação à URSS, em 1968.
Ida
, bem como o filme investigado neste artigo, confirma e
atualiza toda uma tradição cinematográfica que é própria da Polônia: variadas
representações históricas da guerra, da ocupação nazista e soviética, da experiência
socialista e seus efeitos na sociedade polonesa.
Essa tradição possui grandes nomes, se iniciando com jovens cineastas formados
entre os anos 1950 e 1960. De acordo com o historiador Vinícius Santos de Medeiros,
influenciados pelos eventos hisricos de seu tempo, esses cineastas produziram seus
filmes imbuídos com uma necessidade moral de representar os efeitos da guerra sobre a
Polônia” (2016, p. 14). Sem dúvidas, o maior expoente dessa geração foi Andrzej Wajda
(1926-2016), que através da sua trilogia de guerra, compostas pelos filmes
Geração
(1955),
Kanal
(1957) e
Cinzas e Diamantes
(1958), ficou conhecido no mundo todo pela sua
produção marcada por filmes de ficção histórica.
Em
Afterimage, sua última produção baseada em fatos biográficos,
Wajda mobiliza
o passado histórico do período stalinista ao narrar os últimos anos do pintor e
vanguardista polonês Wladyslaw Strzeminski (1893-1952). A película se ambienta em 1948,
pós-guerra, quando houve a fusão dos socialistas e do Partido Unido dos Trabalhadores
Poloneses, dando origem a um Estado de Partido Único. Nesse regime, todo tipo de
liberdade de expressão foi esmagada, as oposições foram sufocadas e todos os aspectos
da política, da educação e da cultura foram controladas. Em
Afterimage,
Strzeminski sofre
uma asfixia criativa, uma vez que o Realismo Socialista, projeto artístico do Estado, fora
imposto. Ao longo do enredo do filme, esse pintor tem suas obras de arte censuradas e é
preso por promover ideias vanguardistas.
Primeiramente, é imprescindível que informemos ao leitor o arcabouço teórico-
metodológico que se encontra este estudo. Partimos da premissa de que todo filme é um
filme histórico, ou seja, contém matéria histórica e social como substrato dos seus arranjos
estéticos (NAPOLITANO, 2022, p. 13). Essa pesquisa adota as ferramentas de análise do
historiador Marcos Napolitano, na qual procura compreender o cinema a partir de suas
estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade (ou
seja, seu conteúdo narrativo propriamente dito) (NAPOLITANO, 2005, p. 237). Assim,
impedindo que imagens e sons sejam sobrepostos pela pesquisa histórica, o ponto crucial
desta pesquisa é a de preservar o estudo erudito, desvendando os projetos ideológicos
com os quais a obra dialoga e trava contato, sem perder de vista o seu contexto de
produção.
Pela última vez, Wajda retornou com a certeza de que a experiência histórica da
Polônia tinha relevância para o mundo. Dessa forma, pretendemos refletir acerca do
discurso cinematográfico do filme, propondo uma análise de seu contexto de produção e
um estudo dos códigos que o compõem, isto é, de que forma o diretor trouxe o passado
stalinista para a tela. Ademais, faz-se necessário apontar que a hipótese primordial desta
pesquisa é a que o cineasta realizou esse filme para abordar os problemas do autoritarismo
na história do país, pois, nos últimos anos, a Polônia vem chamando atenção do mundo por
sua adesão ao discurso autoritário da extrema direita, representada pelo “PIS” (Partido Lei
e Justiça).
Não obstante, este estudo é parte de uma pesquisa de mestrado em andamento, na
qual se busca compreender a narrativa e as representações do Realismo Socialista na
última filmagem do diretor. Logo, para fins organizativos, este artigo foi dividido da
seguinte forma: (I) uma análise do fim do socialismo polonês e a consequente ascensão da
extrema direita polonesa; (II) os anos 2000,
Afterimage
e os traumas publicizados; (III)
uma análise geral do discurso da película, para que fique mais compreensível quais as
estratégias fílmicas adotadas por Wajda para ambientar o período autoritário de 1948.
O fim do socialismo Polonês e o regresso dos nacionalismos
faz pouco mais de trinta anos desde a queda do Muro de Berlim e a desintegração
da União Soviética, concretizando o fim do socialismo enquanto um movimento mundial
que nasceu com a Revolução Russa de 1917. Como evidencia Noberto Bobbio (1992, p. 17),
é inegável que o fracasso não foi apenas dos
stablishments
comunistas
1
, mas também da
revolução inspirada pela ideologia comunista. Todo esse processo, que se desenrolou e
culminou em 1991, não se trata somente da crise de um regime, mas da reversão de uma
utopia política. Ainda assim esse evento histórico acarreta discussões políticas e
acadêmicas sobre o seu significado no tempo presente.
1
Os stablishments comunistas são aqueles, nomeados por Stephen Kotkin e Jan Gross, como os patrões, os
propagandistas do partido, os agentes da polícia secreta e os oficiais militares. É essa elite que entrou em
colapso em 1989, não somente na Polônia, mas também na Hungria, na Alemanha Oriental e na Romênia. A
dinâmica da elite interna e a geopolítica mundial são as causas para a implosão do socialismo no Bloco
(KOTKIN; GROSS; 2013, p. 13).
Para se entender a desintegração soviética são necessárias longas reflexões,
analisando as mudanças no contexto internacional, a rivalidade das superpotências, bem
como compreender o programa idealista de renovação socialista do último líder do Partido
Comunista, Mikhail Gorbachev. Da mesma forma, não caberia no espaço que temos uma
análise minuciosa sobre o fim do socialismo na Polônia, contudo, procuraremos
demonstrar, de forma concisa, como este fim influenciou o processo de redemocratização
da Polônia e, mais tarde, a consolidação do PIS.
No caso dos países pertencentes ao bloco, em 1989, os historiadores Stephen
Kotkin e Jan T. Gross (2013, p. 34) indicam que muitos analistas insistem em dar enfoque
para a oposição, buscando pela burguesia como a causa para a queda do regime. Mas, a
“sociedade civil”, como os autores chamam, foi mais uma consequência de 1989, do que
uma causa primária. O repúdio ao Estado de Partido Único, a administração e a economia
estatal possibilitaram o surgimento de uma sociedade civil. De toda a União, apenas a
Polônia teve uma oposição, o sindicato Solidariedade.
A insatisfação dos poloneses com o regime era recorrente. Divergindo das
explosões pontuais da Alemanha Oriental (1953), da Hungria (1956), da Tchecoslováquia
(1968) e da Romênia (1977), os protestos poloneses contra os
stablishments
ocorreram em
1956, 1968, 1970, 1976 e 1980. Com relação ao sindicato Solidariedade, esse foi o resultado
do esforço dos trabalhadores poloneses em se organizarem de forma notável. Antes dele
surgiram, já em 1976, grupos de dissidentes que atuavam na semilegalidade.
Em 1980, esse projeto de emancipação social começou a se tornar realidade quando
o país viveu pouco mais de um ano de protestos presididos pelo Solidariedade, liderados
pelo eletricista Lech Waleça. O historiador polonês Jan Skorzynski (2012, p. 72) aponta que
a questão do Solidariedade era dual: por um lado, eles reivindicavam direitos humanos
básicos, incluindo liberdade de expressão, de religião e de associação, bem como o direito
de greve e de organização, por outro, eles não procuravam derrubar o sistema, mas sim
democratizá-lo. Esse sindicato partia do princípio que reformas eram importantes e que
estas seriam bem-sucedidas apenas com a cooperação entre eles e a ala reformista do
regime
2
.
Mais tarde, depois de uma nova onda de greves, em 1988, concessões foram feitas
para o Solidariedade. Essas foram possíveis pois Mikhail Gorbachev, que recentemente
havia assumido a liderança no Kremlin, tinha rompido finalmente com as políticas
2
Rejeitando o caminho da revolução violenta, o Solidariedade constantemente pressionava o governo para
iniciar conversas e chegar a um acordo que respeitasse as exigências dos dois lados. o Kremlin o
incentivava os comunistas poloneses a chegarem a um compromisso com o sindicato, no entanto, não
levantava obstáculos também (KOTKIN; GROSS; 2013, p. 164).
exercidas pela URSS, anulando a doutrina Brejnev
3
. O governo, ao incorporar a oposição
nas instituições do Estado, corria riscos enormes, pois a mesma poderia retirar, parcial ou
totalmente, o partido do poder. Assim, os
stablishments
buscavam uma saída para a crise
econômica e o Solidariedade buscava voltar para a legalidade, cautelosos em assumir a
responsabilidade de governar (KOTKIN; GROSS; 2013, p. 165).
As longas negociações tornaram o sindicato legal e produziram um projeto de
eleições livres para o parlamento. Em vista de uma explosão social eminente, as
autoridades do partido foram obrigadas a fazer esse acordo com o adversário. Nessa curta
e organizada campanha, o Solidariedade fez do voto um plebiscito, ou seja, a favor ou
contra o comunismo. Com efeito, o resultado foi negativo para o governo e o Solidariedade
ganhou. Apesar do governo ainda ser maioria no parlamento, essa vitória do sindicato
abalou seu monopólio.
O líder do sindicato, Lech Waleça, recusou-se juntar a um governo liderado em sua
maioria pelos comunistas. A partir disso, criando uma coligação com outros dois partidos
pequenos do parlamento, Waleça declarou que o Solidariedade estava pronto para
assumir. Contra a parede, o presidente do Partido Comunista Polonês, General Jaruzelski,
aceitou como presidente do país Waleça e como novo Primeiro Ministro Tadeusz
Mazowiecki (1927-2013).
Assim, com o fim da União Soviética, um panorama completamente novo se abriu,
cheio de incertezas para as relações internacionais. De para cá, a Polônia sofreu diversas
transformações, passando a fazer parte da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico
Norte) em 1999 e, logo depois, em 2004, entrando para a União Europeia (UE). Não
conseguiríamos detalhar todas as mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais da
Polônia desses últimos trinta e dois anos. Contudo, é de extrema relevância ressaltar que,
na última década, esse país tem sido observado pelos membros do Parlamento Europeu
pelo crescimento massivo de discursos ultranacionalistas, provenientes do partido Lei e
Justiça (Prawo i Sprawiedliwosc, “PIS”).
No poder desde outubro de 2015, o PIS se mostra cada vez mais insatisfeito com as
mudanças políticas que ocorreram na Polônia desde o fim do socialismo. O anticomunismo
é visivelmente predominante em seu discurso, bem como seu descontentamento com
participação do país na UE. Mesmo tendo tido contato com o ultranacionalismo na década
de 1930, grande parte da Polônia parece abraçar esse grupo de forma considerável.
3
Em abril de 1985, houve um primeiro sinal de abandono da doutrina Brejenev quando Gorbachev declarou
que cada partido no poder era responsável pelo que estava acontecendo em seus próprios países, deixando
claro que estes eram independentes. A doutrina dizia respeito ao direito que a União Soviética tinha de
interferir militarmente nos países do Bloco (SKORZYNSKI, 2012, p. 72-73).
De fato, essa adesão a grupos de extrema direita foi se configurando, com o passar
dos anos, em um evento mundial: na Índia, com Narendra Modi (2014); nas Filipinas, com
Rodrigo Duterte (2016); na Alemanha, com a Alternativa para Alemanha (AfD) (2017); nos
Estados Unidos, com Donald Trump (2016) e, no Brasil, com Jair Bolsonaro (2018). Todas
essas expressões possuem suas características próprias, mas, em sua grande maioria,
apresentam-se com um nacionalismo exacerbado e agressivos em relação aos
outgroup
(imigrantes, homossexuais, feministas, esquerda). Afirmam-se como organizações nada
convencionais e se definem como verdadeiros regeneradores da pátria que “corre perigo”.
De acordo com o historiador Enzo Traverso (2019, p. 11), trata-se de um “pós-fascismo
que se desenvolveu no centro das instituições democráticas.
Desde a queda do socialismo no Bloco do Leste, alguns estudiosos já identificavam
o nacionalismo como a ideologia predominante. Conforme Alberto Cunha, ao contrário do
que aconteceu no início do século XX, esses nacionalismos escolheram “jogar o jogo”
democrático, ou seja, são eleitos através do voto direto pois a população, insatisfeita com
a incapacidade das instituições de Estado em atender suas demandas, identifica-se com
seus discursos reabilitadores e elege esses representantes (2019, p. 76). Ademais, o
filósofo Jurgen Habermas (1991, p. 43) aponta que, com o desencantamento e o fracasso
do ideal socialista, as revoluções no centro-leste europeu acabaram por buscar antigos
símbolos nacionais, havendo um resgate por tradições políticas do período entre guerras
Essa “revolução recuperadora”, orientou-se por modelos que tinham sido superados,
distanciando-se da tentativa de construir algo novo.
Apesar disso, segundo a cientista política Alexandra Iancu (2019, p. 59), a Polônia
foi o país mais bem-sucedido no processo de transição devido a uma rápida privatização,
renovação política e um processo suave de democratização. Porém, faz-se necessário
ressaltar que houve uma forte polarização no processo de criação do seu sistema
partidário. Essa divisão se materializou, nos anos 1990, entre pós-comunistas e
anticomunistas. De lá para cá, estes últimos, representados pelo PIS, empreenderam uma
agenda de “descomunização” e anticorrupção, aliados a valores tradicionais, ao
catolicismo e a um
ethos
de identidade polaca, representando, acima de tudo, as
comunidades rurais. Com a radicalização gradual do seu discurso, recompensada
eleitoralmente, os líderes do partido adicionaram mais elementos nacionalistas e religiosos
em suas reivindicações.
Desde as últimas eleições em 2019, quando o PIS foi reeleito, teóricos têm
enfatizado um retrocesso democrático acelerado assumindo diferentes formas. Uma delas
foi a restauração e a politização do sistema judicial. De acordo com Iancu (2019, p. 62),
uma reforma foi implementada no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de substituir
mais de 40% dos magistrados de suas funções
a justificativa é por uma
“descomunização tardia”. Contudo, os ataques foram realizados não somente ao poder
judicial, mas à imprensa e à sua independência de comunicação social, aos direitos
reprodutivos, à liberdade de associação e, como veremos, às instituições de memória
nacional da Polônia.
Enfim, o mundo não havia experienciado desde os anos 1930 esse crescimento
massivo da direita radical. Inevitavelmente, ela recorda a memória do fascismo e promove
nos debates contemporâneos muitas questões. Conforme Enzo Traverso (2019, p. 12),
variados conceitos são indispensáveis para pensar a experiência histórica, mas, também,
para repensar as novas experiências na contemporaneidade. Atualmente, poucas pessoas
falam abertamente de um fascismo, mas muitos estudiosos reconhecem suas semelhanças
e, também, diferenças, entre esses novos movimentos e aqueles do início do século XX.
Por isso que Traverso adota “pós-fascismo”
4
como termo para definir esse avanço da
extrema direita no presente.
Os anos 2000: traumas publicizados
O fim do socialismo na Polônia possibilitou a discussão de tabus e a publicização de
traumas deixados por essa experiência. Isso só fora possível graças à recém conquistada
liberdade de expressão e ao acesso a arquivos. Iniciada nos anos 1950, a cinematografia
de Wajda caminhou até a contemporaneidade na esteira de filmes que retomam esses
eventos históricos traumáticos, mas que principalmente trazem reflexões para o seu
momento de produção. Todavia, os últimos filmes wajdanianos são também resultado de
um fenômeno mnemônico que, desde a década de 1980, chamou atenção de estudiosos do
mundo ao se caracterizar por uma volta ao passado, energizando a opinião pública com
“passados presentes” (HUYSSEN, 2000, p. 9).
A mídia acabou por desempenhar um papel muito importante na construção e na
reabilitação desses discursos memorialísticos. No caso polonês, o cinema sempre foi um
importante arquivo da memória coletiva nacional e é neste âmbito que se encontra
Afterimage.
Antes de tudo, é relevante ressaltar que este estudo é uma análise crítica do
último filme de Wajda e que nada tem a ver com o anticomunismo reacionário. Além disso,
é relevante considerar, como aponta João Portal (2020, p. 3), quais os limites éticos de se
4
Deve-se ressaltar que há, na contemporaneidade, um uso generalizado do termo fascismo, embora seja
reconhecida a existência de organizações neofascistas e, também, àquelas que se inspiram nas suas práticas
e representações. Assim, é importante que haja uma compreensão da sua historicidade por parte do
pesquisador que investiga esse atual crescimento da direita radical.
compreender a história da URSS se baseando somente em seus eventos mais violentos,
como se o comunismo soviético se resumisse a isso. Com efeito, o objetivo, nesta parte do
artigo, é entender
Afterimage
dentro do universo de filmes que assumem para si uma
vocação política para a memória e a necessidade de revisão histórica.
Destarte, dentro da historiografia do cinema, sabe-se que filmes de ficção histórica
representam um acontecimento em imagens visuais e sonoras, armazenando, muitas
vezes, recordações de sujeitos que são convocados para o exercício de rememoração.
Segundo Cássio Tomaim (2016, p. 102), estes são exemplos de como a arte assume uma
dimensão ética no presente ao fazer uso do passado. O exercício de representar esse
passado, através de uma câmera, envolve-se de um significado de resistência, de crítica,
de revelação e de experiência. Muitas vezes, essa produção mnemônica pretende revelar
outras facetas da história, como é o caso dos últimos filmes de Wajda.
Assim como
Afterimage,
Wajda dirigiu nos anos 2000 duas películas de ficção
histórica que tratam de temas sensíveis para a esquerda
Katýn
(2007) e
Waleça: Man of
Hope
(2013). A primeira retoma o passado da Segunda Guerra Mundial ao representar o
massacre de oficiais poloneses, prisioneiros de guerra, pela Agência de Polícia Soviética
(NKVD), na floresta de Katýn. a segunda narra um pouco do processo dissertado no
início deste artigo, sobre a luta do sindicalista Lech Walesa contra a ditadura do General
Jaruzelski, na década de 1980.
Não pretendemos analisar as duas películas descritas acima, porém vale salientar
que, ambas e
Afterimage,
fazem parte de toda uma produção de filmes possíveis graças à
lei de incentivo à cinematografia nacional, elaborada pelo Parlamento Polonês (Sejm), em
2005. Conforme Marek Haltof (2019, p. 372), especialista na área, o Instituto Polonês de
Cinema (PISF), criado a partir da lei mencionada, apoiou e promoveu jovens cineastas,
financiou a produção de filmes e proporcionou a presença destes em festivais
internacionais. No caso analisado por este artigo, o PISF foi uma das agências de
financiamento de
Afterimage
.
Essa questão de estimular filmes de ficção histórica não pode passar despercebida.
Segundo Haltof (2019, p. 372), através do PISF, o partido Lei e Justiça (PIS) apoiou muitos
filmes que lidam com a história da Polônia, pois estes “foram concebidos para lembrar as
gerações mais jovens sobre as figuras e eventos históricos que o regime comunista apagou
da memória oficial polonesa”. Pós-queda do socialismo, a política dos governos seguintes
foi de incentivar uma narrativa de ruptura revolucionária entre a ditadura comunista e a
democracia polonesa, apesar da ausência de uma real revolução, como foi visto no início
deste estudo.
O que causa certa indignação é que, nos últimos anos, o PIS tem emitido a sua
versão acerca do passado histórico da Polônia por meio dessas instituições estatais que,
supostamente, deveriam ser apolíticas, como foi o caso do Instituto de Memória Nacional
(IPN). Por meio de rigorosas pesquisas de arquivo, essa entidade foi criada para disseminar
informações históricas acerca da ocupação alemã e do período comunista. Contudo, a
extrema direita polonesa vem se utilizando dessas instituições para promover as suas
políticas anticomunistas (HALTOF, 2019, p. 373).
Essas narrativas proferidas pelo PIS não passaram despercebidas por Wajda, que
desde 2013 numa entrevista para o jornal
O Globo
, quando perguntado sobre a dimensão
revolucionária do cinema, o cineasta demonstrou certa preocupação ao controle do
Estado no âmbito artístico:
Essa crença depende da situação política atual e das expectativas sociais de cada
país. Eu não fui buscar na política uma forma de entender as contradições da
sociedade. O que tentei fazer com meus filmes foi conscientizar o público sobre
a situação do país. O mesmo papel foi cumprido por toda a escola polonesa de
cinema [...], mas hoje, se os movimentos nacionalistas da extrema direita
tentarem assumir o poder na Polônia, o cinema polonês de novo vai virar uma
ferramenta política, como aconteceu no passado (FONSECA, 2013).
Assim, a última produção de Wajda se encontra em meio a esse contexto arbitrário,
e aqui vale a máxima que todo filme é histórico, ou seja, sempre dialoga com o tempo
presente de sua produção (TOMAIM, 2019, p. 117). Além de enxergar a última película de
Wajda como um produto mnemônico que pretende questionar alguns tabus deixados pela
experiência socialista, objetivamos desmontá-lo ainda mais e compreendê-lo como
resultado da época e da sociedade que o produziu. Conforme Jacques Le Goff (2013, p.
497), como historiadores devemos, em primeiro lugar, desmistificar o significado aparente
do documento, pois ele é algo que permanece e que oferece para a sociedades do futuro
uma determinada imagem de si próprias.
Conforme Marcos Napolitano, no cinema, arte e técnica estão intrínsecas, abrindo
um campo de possibilidades sem limites para monumentalização ou desconstrução desse
passado operacionalizado (2011, p. 67). Logo, consideramos que
Afterimage
é mais do que
aparenta: essa película pode ser vista como uma proposta pedagógica que usa um evento
passado para criticar uma visão da história atual. Essa dimensão ética que as obras de
Wajda assumem configura-se em uma relação dialética entre passado, presente e futuro.
Mesmo tendo o PISF, órgão estatal, como uma das suas instituições de fomento, Wajda
desconstrói o passado autoritário stalinista ao utilizá-lo como uma crítica para o governo
polonês vigente.
A “última canção” wajdaniana
Desde a sua fundação, o PISF também se envolveu na realização de filmes
biográficos que narram a história de poloneses que, anteriormente, haviam sido eliminados
do enquadramento da memória oficial durante o período pós-guerra. Esse é o caso de
Afterimage
, o qual se concentra nos últimos anos de vida do pintor e vanguardista polonês
Wladyslaw Strzeminski. De fato, muitos enxergam esta última produção como um filme
pessoal e autorreflexivo sobre as próprias lutas de Wajda com a censura e o dogma
comunista nas artes pois, na década de 1950, o cineasta teve que conviver com o projeto
artístico realista socialista.
Apesar de Andrzej Wajda
celebrar as vanguardas, a mis-en-scène de seu último
filme se configurou em algo clássico. Nesse gênero cinematográfico, as imagens são
organizadas de forma que traga significado para com as imagens presentes em nossa
vivência. A câmera se comporta como se fosse o olho humano, caso contrário o espectador
perde o contato direto com o que está sendo apresentado, e a ilusão do real será desfeita
(BERNARDET; RAMOS; 2013, p. 15). Em vista disso, a direção de arte se preocupou em
posicionar muitos signos que fazem referências à vanguarda, como as pinturas dos artistas
e as cores primárias vermelha, amarela e azul, sempre presentes em suas paletas.
Imagem 1. Reprodução da Sala Neoplástica
Fonte:
Afterimage
, Andrzej Wajda, 2016, 10m24s.
A cena acima (IMAGEM 1) faz referência àquilo que Marcos Napolitano (1997, p. 17)
colocou como “homologia entre o artista de vanguarda e o movimento revolucionário de
1917”, pois, assim como a revolução, a vanguarda carregava em si a promessa de uma nova
sociedade. Nessa cena em específico, logo no início da película, a educadora museal explica
para uma sala cheia de crianças sobre as inovações da
avant garde
e como, juntos aos
revolucionários russos, tentaram construir uma nova consciência social. Em plano aberto,
a mulher disserta sobre as realizações de Strzeminski e, num
close up
, é apresentada uma
menina que, mais adiante, descobrimos ser a filha desse pintor
5
.
Destarte, a caracterização e atuação de Strzeminski, interpretado pelo ator polonês
Boguslaw Linda, é notável. Assim como a cenografia polonesa, que ambientou um país em
ruína pós 1945, foi caraterizado um homem marcado psicológica e fisicamente pela guerra,
uma vez que o vanguardista não tinha um braço e uma perna. A agonia do pintor retoma
àquilo que colocamos no início, sobre os paralelos entre Wajda e o protagonista, ou seja,
ambos foram personalidades que lutaram pela independência da Polônia ocupada
6
e ambos
são homens agoniados com relação ao futuro de seu país. Apesar das circunstâncias, suas
forças criativas tentaram resistir a repressão. A seguir, um cartaz (IMAGEM 2) de
5
Esta e outras cenas de
Afterimage
são analisadas com mais profundidade em outro texto, apresentado na
ANPUH 2021, intitulado “A representação do realismo socialista em
Afterimage
(2016): o autoritarismo na
Polônia”.
6
Antes de estudar na Escola de Cinema de Lodz, nos anos de conflito armado, em 1945, Wajda lutou no
exército de resistência polonês AK (
Armija Krajowa
), na qual usava métodos clandestinos para combater o
inimigo alemão (FALKOWSKA, 2008, p. 13).
divulgação do filme na qual conseguimos visualizar, com melhor resolução, a
caracterização do vanguardista:
Imagem 2. Cartaz de divulgação de
Afterimage
Fonte: Adoro Cinema.
Assim como a vanguarda, Wajda utilizou muitas imagens e signos que remetem ao
Socialismo, como figuras dos grandes pensadores comunistas e o emprego da cor
vermelha. Passeatas, discursos calorosos para o povo, imagens dos idealizadores da
revolução, em todas essas cenas Wajda emprega a cor vermelha não apenas como um
recurso visual, mas como um elemento que age dentro da estrutura da narrativa,
intensificando os efeitos da trama, como é o caso das imagens a seguir (IMAGEM 3 e 4).
Imagem 3. Cena de
Afterimage
em que mostra o cartaz de Stalin sendo colocado na
janela da casa de Strzeminski
Fonte:
Afterimage
, Andrzej Wajda, 2016, 04m45s.
Imagem 4. Cena de
Afterimage
em que mostra Strzeminski sendo interrompido pelo
cartaz de Stalin
Fonte:
Afterimage
, Andrzej Wajda, 2016, 04m41s
Por fim, nas cenas a seguir, foi possível verificar outro recurso visual, adotado por
Wajda, para dar mais realismo à tela
.
Nelas, localizam-se furgões de guerra, faixas, imagens
e pinturas com os rostos de Friedrich Engels, Karl Marx, Josef Stalin e Vladimir Lenin. O
filme reproduz uma passeata do Dia do Trabalhador, um dia significativo para toda a União
Soviética e países anexados. É interessante observar (IMAGEM 5 e 6) como o diretor
produz imagens ficcionais, em tomadas externas, com aparência de cinejornais, trazendo
uma impressão de realidade para o espectador.
Imagem 5. Cena de
Afterimage
em que mostra a passeata do Dia do Trabalhador
Fonte:
Afterimage
, Andrzej Wajda, 2016, 01h11m19s.
Imagem 6. Cena de
Afterimage
em que mostra os alunos de Strzeminski na passeata
Fonte:
Afterimage
, Andrzej Wajda, 2016, 01h11m38s.
Considerações Finais
Como foi visto,
Afterimage
está inserido em uma cadeia de produções sociais, na
qual se envolvem não somente o seu diretor, mas críticos, historiadores, outros cineastas,
o público, questões estéticas, enfim. Este artigo buscou explorar o contexto de produção,
a narrativa fílmica e as estratégias adotadas pelo diretor para ambientar todo o universo
ficcional de
Afterimage
, evitando que o filme seja entendido somente pela realidade
histórica representada em tela.
Ao final, podemos considerar que a última produção de Wajda, como
cinebiografia, dramatiza a vida de uma importante figura histórica e artística da Polônia,
trazendo uma reflexão para o presente, configurando-se como mensagem para as
gerações futuras. Essa é uma característica não apenas das obras wajdanianas, mas de
filmes de ficção histórica em geral, pois ancoram-se no presente, com sua produção,
distribuição e exibição, e no passado, com os eventos, personagens e datas históricas que
marcam o tema desses filmes.
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