VICENTE, Wilq*
https://orcid.org/0000-0002-5994-0975
Resumo: O acesso às câmeras e fitas
magnéticas na década de 1980 proporcionou
uma quantidade até então inédita de registros
e narrativas em vídeo sobre temas e lutas
sociais, além de produção amadora e de
caráter educativo. Olhando para o acervo da
Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP)
e analisando um de seus itens, o vídeo
lugar
(1987), o texto aponta para um contexto
cultural de eclosão de novos temas no Brasil
do período, atores sociais emergentes, uma
dinâmica social particular, bem como um
esforço de utilização do vídeo como
instrumento de informação, mobilização e
memória das lutas sociais daquele período de
abertura democrática e intensa mobilização
social.
Palavras-chave: ABVP; Lugar; vídeo
popular; VHS; movimentos sociais no Brasil;
redemocratização brasileira.
Abstract: Access to cameras and magnetic
tapes in the 1980s provided a hitherto
unprecedented amount of video recordings
and narratives on social issues and struggles in
addition to amateur and educational
production. Looking at the collection of the
Brazilian Association of Popular Video (ABVP)
and analyzing one of its items, the video
Lugar
(1987), the research points to a cultural
context of emergence of new themes in Brazil
at the time, emerging social actors, a particular
social dynamic, as well as an effort to use video
as an instrument of information, mobilization
and memory of the social struggles of that
period of democratic opening and intense
social mobilization.
Keywords: ABVP; Lugar; popular video;
VHS; social movements in Brazil; Brazilian
redemocratization.
Recebido em: 27/01/2022
Aprovado em: 07/05/2022
* Mestre em Estudos Culturais pela USP, São Paulo (SP), doutorando do Programa de Ciências Humanas e
Sociais da UFABC, Santo André (SP). Bolsista UFABC. Este artigo decorre da dissertação de mestrado,
intitulada: “Imagens do povo no vídeo: Estado, lutas sociais e produção cultural das décadas de 1980 e 2000”,
defendida em 2016 no Programa de Estudos Culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH),
da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: wilqvicente@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Nos anos 1980, com o objetivo de reunir iniciativas de produção e exibição que
servissem aos movimentos sociais e populares, um conjunto de pessoas e grupos se
engajou na criação da Associação Brasileira de deo Popular (ABVP) , produzindo um
acervo expressivo de vídeos sobre as lutas e os conflitos que marcaram todo o período da
redemocratização no Brasil. A entidade chegou reunir cerca de 250 organizações não
governamentais (ONGs), produtores independentes e membros de diversas regiões do
país, tendo distribuído, em uma ampla rede de videotecas, em torno de 900 títulos
1
que
versam sobre temas como educação popular, reforma agrária, sexualidade, moradia,
gênero, saúde, questões étnicas e raciais, meio ambiente, greves e organização dos
trabalhadores, entre outros. Neste projeto, a ABVP contou com o apoio financeiro de
fundações internacionais, como a Ford Foundation e a MacArthur Foundation.
2
O cenário era o de institucionalização, reorganização e florescimento dos
movimentos sociais que vinham se destacando desde a década de 1970. É deste período a
criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST (1984), da Confederação
Nacional das Associações de Moradores - CONAM (1982), da Articulação Nacional de
Movimentos Populares e Sindicais - ANAMPOS (1980), além da reorganização de
sindicatos que culmina com a criação da Central Única dos Trabalhadores - CUT (1983) e
da Confederação Geral dos Trabalhadores - CGT (1986). Com a volta do pluripartidarismo
e a Anistia de 1979, os partidos começaram a se reorganizar. E também as organizações
não governamentais surgiram como organismos de apoio aos movimentos tradicionais.
A ABVP, fundada em 1984, tinha por objetivo incentivar a realização de deos de
interesse dos movimentos sociais, além da reunião de acervo, produção, exibição,
distribuição, formação e debate como ações integradas. A entidade reunia grupos
produtores diversos espalhados no país e ainda estabelecia interlocução com a produção
internacional, sobretudo latino-americana, como o
Festival Internacional del Nuevo Cine
Latinoamericano de La Habana
, em Cuba, e encontros de vídeo no Chile, Uruguai, Peru e
Bolívia, que experimentavam um movimento semelhante. Com o passar do tempo, a
entidade se articulou como uma grande rede de produtoras de vídeo, ONGs diversas,
1
Em 2007 o acervo da Associação Brasileiro de Vídeo Popular (ABVP), com suas fitas VHS, algumas matrizes
S-VHS e U-Matic, foi recolhido ao CEDIC - Centro de Documentação e Informação Cientifica da PUCSP.
Dessa forma, em 2013 em torno de 900 títulos foram digitalizados e salvos da degradação do tempo. Boa
parte deste acervo histórico pode ser conferida no canal da TVPUC no YouTube:
https://www.youtube.com/c/tvpuc/search
2
Por exemplo, a ABVP recebeu da Fundação MacArthur um aporte de US $340.000 em 1990. O objetivo do
apoio era de estabelecer videotecas regionais e treinar organizações não-governamentais no Brasil para
usar o vídeo de forma mais eficaz, principalmente em seu trabalho em saúde, planejamento familiar e direitos
reprodutivos. Mais informações aqui: https://www.macfound.org/grantee/associacao-brasileira-de-video-
popular-6449/
canais comunitários de TV, sindicatos, institutos de pesquisa e assessoria em temas
sociais.
O chamado “vídeo popular” surge antes como uma prática social do que como arte
e exercício de linguagem. Sua propriedade e contundência não decorriam apenas do seu
conteúdo e forma, mas também dos vínculos que eram estabelecidos com os movimentos
enfocados nas produções e o público que os assistia. Ainda assim, diferentes formas de
produção são abarcadas dentro dos mesmos marcos, abrigando, inclusive, deos
realizados a partir de um olhar externo sobre as ações e manifestações populares,
concebidos por realizadores independentes. É o caso, por exemplo, dos vídeos
Um Caso
Comum
, (1978), de Renato Tapajós, sobre questões de saúde na periferia da cidade de São
Paulo, montado por Olga Futemma, que atuou por 36 anos na Cinemateca Brasileira, e
A
Luta do Povo
(1980), também de Tapajós, que traça um resumo das lutas populares dos
anos de 1970 e início dos anos 1980 e, partindo do enterro do operário Santo Dias,
assassinado pela polícia num piquete de greve, mostra a vida de um casal de moradores da
periferia de São Paulo e registra diversos movimentos populares, como a luta contra a
carestia, o movimento de favelas e o movimento por saúde da época. Datados de antes da
criação da ABVP, são produções desenvolvidas na esteira dos movimentos sociais da
década de 1970, que passaram a compor o seu acervo e cujos produtores compunham de
forma mais ou menos participativa essa rede de troca e diálogo e somavam no esforço da
difusão e debate social por meio dos vídeos e organizações.
De acordo com Henrique Luiz Pereira Oliveira (2001a, p. 10), “[...] tratava-se de
contribuir para a percepção de alguma coisa que deveria ser transformada. Mais ainda:
trata-se de engajar a vontade de indivíduos e grupos em uma ação, o que implicava em
torná-los agentes de uma ação transformadora”.
Mas, de modo geral, é possível dizer que os realizadores de vídeo popular buscavam
uma “linguagem” mais apropriada às condições de produção e que fosse ao encontro do
cotidiano do homem comum, do povo”, ainda que implicasse em pouco espaço para a
exploração de uma linguagem própria. A mensagem social, construída ao lado da classe
trabalhadora, era mais importante e tinha contundência imediata, a comunicação direta
era necessária. Como aponta Luiz Fernando Santoro em depoimento a Newton Cannito
(2001, p. 3):
Não é possível analisar o vídeo popular apenas do ponto de vista da produção. É
por isso que o início foi muito mal-entendido. Para algumas pessoas ele era
apenas um registro de qualidade técnica. Ao se referir aos vídeos elas falavam:
“esteticamente isso não é nada!”. E era verdade! Nós colocávamos uma câmera
na mão de trabalhadores, por exemplo, e gravávamos uma determinada situação.
Os realizadores o tinham formação estética e isso se refletia na baixa qualidade
dos vídeos. Nós tínhamos consciência dessas limitações, mas, naquele momento,
optamos por deixar a discussão puramente estética de lado. A discussão política
era mais importante.
Os realizadores de vídeo popular de então aspiravam “dar voz” ao povo, como
vemos na perspectiva de Santoro (1989, p. 113), um dos fundadores e presidentes da ABVP:
O vídeo apresenta uma perspectiva bastante rica, que reforça o compromisso
daqueles que se preocupam com a realidade social latino-americana e brasileira.
E isso fazendo uso de um meio de comunicação que não é revolucionário, como
muitos acreditam, mas que pode ser um componente privilegiado das lutas
populares em todo o continente, colaborando para que as classes populares
possam expressar a sua própria visão de mundo, informar-se, registrar a sua
história.
A produção de vídeo estava então ligada aos anseios de participação e, portanto,
de voz da população, que passou a ver nela um canal de mensagens para ecoar suas
demandas e reivindicações, entre as quais estavam aquelas de ordem política, econômica,
social, e logo, também por mudanças do sistema de comunicação. Impulsionada pelas
novas tecnologias de comunicação da época, relativamente “mais acessíveis” à população
em geral, a produção de vídeo cresceu e desenvolveu-se, nesse momento, no âmbito da
chamada comunicação alternativa. Para Cicilia Peruzzo (2006, p. 6):
Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo
de comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter
mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que
perpassa e é perpassada por canais próprios de comunicação.
A difusão desta produção ocorria em circuitos não-tradicionais, em instituições e
espaços ligados às lutas populares, como associações de bairro, sindicatos e igrejas, entre
outros. Como apontado por Regina Festa e Santoro (1991, p. 190-191):
Os trabalhadores também organizaram seus esquemas de produção para
documentação e para a formação em sindicatos, nas escolas sindicais, na cidade
e no campo. Com tudo isso, apropriaram-se do vídeo os mais diferentes setores
da sociedade: trabalhadores, sindicatos, comunidades de base, mulheres,
ecologistas, negros, indígenas, associações de bairro, estudantes, escolas,
universidades e outros.
Esses segmentos “subalternos” utilizaram o vídeo com o objetivo de se opor ao que
era apresentado pelos meios tradicionais de comunicação e trazer novas vozes, olhares e
temas, como uma alternativa para a produção usual da época. Tinha-se em vista que, para
que uma parcela da sociedade pudesse estar presente nesse novo espaço audiovisual, ela
precisava ter o direito de controlar parte desse espaço, estabelecendo prioridades que
atendessem a suas necessidades informativas, escolhendo o que se vê e produzindo o que
não estava disponível.
Para Oliveira (2001b, p. 46),
Os produtores de vídeo popular […] justificavam sua opção pelo vídeo em função
de sua aplicabilidade à ação política: (1) o baixo custo, que favorecia a
democratização do acesso aos meios de produção; (2) a facilidade de circulação
dos vídeos, que necessitava apenas de aparelhos de videocassete e poderia
usufruir de uma rede de exibição junto aos movimentos sociais; (3) a agilidade na
produção, que ao contrário do cinema não necessita esperar revelação do
material gravado, possibilitando que o registro de uma greve ou repressão policial
fosse exibido logo após o acontecimento; (4) a facilidade na operação dos
equipamentos, que favorecia a democratização, pois permite processos menos
hierarquizados que no cinema, podendo inclusive assumir uma certa
precariedade; (5) a possibilidade de fomentar uma efetiva participação popular,
na medida em que os vídeos abordassem os movimentos populares […] e
envolvessem a sua participação nas etapas de realização. Devido a esses fatores,
o vídeo seria um instrumento estratégico para a reversão do processo
unidirecional e monopolista dos meios de comunicação de massa, conferindo voz
ativa àqueles que antes seriam receptores passivos.
O deo popular realizado em boa parte do Brasil pretendeu se diferenciar dos
meios de comunicação hegemônicos. “A câmera [era] utilizada para expor a realidade na
sua crueza, de modo a produzir evidências 'realistas' aptas a captar o interesse e a
mobilizar a vontade de agir dos espectadores” (OLIVEIRA, 2001a, p. 9, grifo nosso). O vídeo
passou a problematizar, por meio da imagem videográfica, temas, questões, cenários,
imaginários e personagens ausentes nos veículos tradicionais da indústria cultural. Os
vídeos sustentavam seu apelo na densidade da situação enfocada miséria, fome,
desemprego, precariedade na saúde e educação, insegurança no trabalho, organização
popular, lutas e mobilizações etc. Desta forma, para Arlindo Machado (1993, p. 10-11),
O vídeo passou a ser entendido como um novo meio de comunicação, capaz de
permitir a confecção de programas para os movimentos, não considerando mais
o público como uma massa indiferenciada, mas como uma soma de grupos de
interesse. [...] o vídeo tende a se disseminar de uma forma processual e não-
hierárquica no tecido social e isso acaba por confundir os papéis de produtores
e consumidores, donde resulta, pelo menos nas experiências mais bem-
sucedidas, um processo de troca e de diálogo pouco comum em outros meios.
Buscando uma ruptura com as narrativas tradicionais, seja televisiva ou
cinematográfica, o vídeo popular introduziu o “olho amador”. Este olhar, fora do campo
artístico, proporcionou um maior “acesso” popular também ao “olho da câmera”, ainda
que de forma geral, as classes médias progressistas fossem agentes centrais no processo,
havendo uma integração na concepção e na realização de boa parte dos vídeos. Para Julio
Wainer,
3
produtor na época da ABVP, o vídeo ainda era um equipamento para poucos. Os
que vinham da base social e tinham algum acesso, não tinham repertório nem
procedimento para uma mensagem mais elaborada. No máximo, filmavam uma palestra
que julgavam importante, de forma que continuava a ser de classe o controle e a
elaboração da linguagem, ainda que houvesse uma participação popular inédita no
processo.
Do ponto de vista histórico, o vídeo tornou-se acessível, ao menos no discurso de
representação simbólica da realidade. Com iniciativas de caráter significativamente
variado, compreendendo um longo período e no qual orbitaram diferentes produtores, o
Cinema Novo buscou, através de diversas estratégias lmicas, a aproximação com as
classes populares. Os grandes temas sociais foram abordados em obras de fôlego e o
registro e o acercamento a segmentos populares se fizeram frequentes. Mas foram mais
raras as experiências de articulação direta entre as produções e os movimentos populares
organizados.
Por outro lado, o vídeo popular não herdou, em grande medida, a problematização
estética do
Nuevo Cine Latinoamericano
, colocando-se como um “meio menor”, sem
explorar todas as potencialidades artísticas do aparato. Por esta razão, para Machado
(1993, p. 10), “[...] a questão da linguagem 'natural' ou 'específica' para o vídeo nunca
encontrou um terreno muito fértil para germinar, e se alguém tentasse enfrentá-la com
seriedade muito breve se desencorajaria diante da descomunal diversidade das
experiências”.
Com a implantação do Plano Real no Brasil e a dolarização da economia, os recursos
de organismos internacionais que sustentavam a atuação da ABVP deixaram de ser
significativos, ameaçando um projeto que àquela altura já era bastante amplo e ambicioso
de capacitação, distribuição de boletins informativos
4
e regionalização das atividades. A
distância entre as bases e os dirigentes da instituição, envolvidos pragmaticamente em
projetos, também se aprofundou. O que seria um espaço para a discussão sobre o uso do
3
Diretor da TV PUCSP e professor de jornalismo na mesma instituição. Foi membro e coordenador do
Conselho Editorial do boletim da ABVP. Entrevista concedida por e-mail em 16 de novembro de 2015.
4
Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV-SP). Boletim da ABVP, no 5, ano III, Junho de 1989.
Disponível aqui: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PVIPOSP051986005.pdf
vídeo no movimento social passa a ser uma associação de realizadores sob a égide do
popular, uma grande ONG articuladora e capacitadora. Ao mesmo tempo, consolidava-se
o cenário institucional das oportunidades audiovisuais para os principais produtores
ligados à entidade, particularmente com a expansão das TVs universitárias e educativas.
Sendo assim, a ABVP encerrou as atividades em meados de 1995.
O fim da entidade não dissolve seu papel precursor no fomento à organização e
participação popular na criação, produção e difusão de vídeos. A ABVP apontou
importantes caminhos no campo da comunicação alternativa, na luta pela democracia e na
representação simbólica do discurso social. É possível afirmar que o arcabouço deixado
pela entidade ainda oriente projetos, grupos e coletivos de comunicação alternativa no
país, ultrapassando o âmbito da geração.
Alguns exemplos desta produção que compõe o acervo da ABVP são os vídeos
Nossos Bravos
(1987),
Almerinda
,
uma mulher de trinta
(1991) e
Eu
,
Mulher Negra
(1994)
ambos dirigidos por Joel Zito Araújo, realizador que durante sua trajetória fez diversos
vídeos em colaboração com sindicatos e organizações civis nos anos de 1980 e 1990. É
também dessa fase o vídeo
Há lugar
(1987),
de
Julio Wainer e Juraci de Souza, que registra
o processo de ocupação de terrenos na região da zona leste da cidade de São Paulo e
adjacências, que será abordado no próximo item.
Entende-se que é possível traçar um recorte do que era o Brasil na década de 1980
a partir do acervo da ABVP, como um conjunto de registros e narrativas que preservam a
memória e as dinâmicas das lutas sociais daquele período, nas quais constam imagens e
histórias do caldo político, cultural e social que nos formou, nos explica e nos define. O
Brasil de hoje é o país construído a partir da Constituição de 1988 e esse tempo foi
registrado e lido pelas lentes do que se convencionou chamar vídeo popular, contando
uma versão da história recente do país. Como disse Pierre Nora (1993, p. 9), “A memória é
um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma
representação do passado”.
O povo no vídeo -
Há lugar
(1987), do acervo da ABVP
O título do documentário
lugar
é sugestivo. Colocado como afirmação, insinua
a defesa da ação de ocupar o espaço vazio, de dar lugar para quem está sem. Trata-se de
local que existe no tempo presente do vídeo, no agora, indicando certa urgência. Ao mesmo
tempo em que brinca, como alternativa, com a palavra “alugar”, de “aluguel”.
A questão proeminente do vídeo é a moradia. O documentário mostra o processo
de ocupação para fins de habitação de um terreno sem uso social na zona leste de São
Paulo, buscando defender discursivamente a ação. Com três blocos, o vídeo segue a
estruturação da narrativa clássica, com uma situação inicial, o desenvolvimento do
conflito e um desfecho.
na primeira imagem a temática da moradia é apresentada: uma casa pequena e
simples, reboco por fazer, tijolos de construção ao lado, com a paisagem típica de casas
de periferia ao fundo. Um som de berimbau, conotando a ideia de uma luta popular,
permanece no campo auditivo, enquanto são apresentadas mais imagens da paisagem da
periferia, homens simples chegando no descampado e se tornando visíveis à câmera.
À frente da casa da primeira imagem, um homem do povo recita para a câmera um
cordel que anuncia a perspectiva do vídeo, de luta por direito, convocando o envolvimento
do espectador:
Vou narrar uma história que emociona o coração / A luta de um povo humilde,
vivendo em opressão / Lutando contra o relento, buscando casa e sustento / Pra
não viver como cão. O povo pobre e sofrido de quem eu quero falar / cansou
de sofrimento e vem aqui reivindicar / O direito à moradia, lutando com euforia
para construir o seu lar (HÁ Lugar, 1987).
O homem dialoga diretamente com o espectador ao direcionar o olhar para a
câmera, evocando a relação de proximidade com a audiência preconizada pelo movimento
de mídia comunitária do período. O plano-sequência sugere que este homem, popular, o
outro de classe do videomaker, que não vemos, mas sabemos ser de origem de classe
média, deixa de ser objeto fílmico para se tornar sujeito, a partir da tomada do microfone.
O documentário se apresenta inicialmente desta maneira, com o povo assumindo a
primeira pessoa na narração dos fatos, evocando a premissa de “dar voz” ao povo,
presente no horizonte dos realizadores de vídeo popular da época, alinhados ao clima da
redemocratização em curso no país. O trecho do cordel ainda ante o elemento da
emoção, que será importante na estrutura do documentário. A dignidade atribuída do
“povo humilde” que busca “casa e sustento” também aponta a busca por empatia do
espectador com aqueles que são objeto do vídeo.
O cordel é entrecortado por outra sequência de imagens um homem capina a
terra, placas escritas à mão identificam os lotes onde estão armados precários barracos
de lona, imagens do processo de construção de casas, tijolos assentados um a um. A
sequência mostra o processo de organização popular do espaço e reforça a ideia de
dignidade e o caráter positivo e edificante da ocupação, do trabalho, da auto-organização
e da ação daqueles homens - a luta pela moradia, de uma maneira geral. A câmera realiza
uma panorâmica do terreno, a partir dos homens trabalhando, para dar a ideia da dimensão
da ocupação, ainda sob o som do berimbau. Deriva da imagem do povo labutando na terra
o sentido de que estão erguendo o sonho da moradia. O povo retratado ali não está passivo
à espera de direitos. É um povo que “luta”, que “reivindica”, que labuta, que constrói. A
montagem do vídeo abusa de conotações, conferindo significados específicos a registros
empíricos, como nestas primeiras sequências de imagens, unidas pelo som do berimbau e
pelo discurso apresentado pelo cordel.
O que vemos é um preâmbulo que sugere o discurso da classe trabalhadora como
o discurso do vídeo. Nota-se que o vídeo elabora um discurso favorável à classe
trabalhadora, sugerindo construir os fatos a partir de seu ponto de vista. o embate entre
os produtores de vídeo pertencentes à classe média e o movimento social de luta por
moradia, até o momento não aparece na condução do tema e só pode ser pensado a partir
de informações contextuais. Não ali qualquer discussão sobre essa disposição ou sobre
a ética dos realizadores em relação aos homens do povo, “objeto” do vídeo.
A casa e o espaço natural atrás do personagem buscam conferir autenticidade à
fala. Discurso e ambiente natural são expostos como pertencentes ao mesmo mundo
homogêneo, fortalecendo a ideia de que o discurso emana daquele ambiente social e não
de quem está atrás das câmeras. Mas é quem está atrás da câmera que conduz o
personagem do povo para a fala e o discurso. O homem ali interpreta não a si mesmo como
o vídeo tenta sugerir ao espectador, mas o papel criado por um outro, realizador do vídeo.
Ignora-se que “Indiscutivelmente, o documentário não é reflexo da realidade, mas
interpretação, seleção, discurso [...].” (BERNARDET, 2003, p. 278). Sob o olhar-
testemunha da ocupação, desenha-se o discurso de
Lugar
, de maneira a encobrir a
representação que ele produz.
Olhando para a maneira como o vídeo se posiciona no jogo entre “dado empírico”
e interpretação”, para usar a polaridade trabalhada por Ismail Xavier, parece claro que
prevalece nele a elaboração, sendo o aspecto de “registro” utilizado de maneira submissa
ao discurso. O próprio início do vídeo demonstra isso com a apresentação através da
fala de um homem do povo, cuidadosamente posicionado na paisagem-cenário,
evidenciando a prevalência do “simulado” sobre o “espontâneo”, da “encenação” sobre o
“registro”, da “pose” sobre a “presença” o vídeo como um processo de apropriação
discursiva de uma determinada situação social.
Ainda no que podemos identificar como um primeiro bloco do deo, logo após este
preâmbulo, é apresentada uma sequência de imagens de passeata. Insinua-se o movimento
de reivindicação e de ação. “O povo unido, jamais será vencido” é entoado em coro pelos
manifestantes. Os realizadores fazem um recorte da manifestação, partindo de vários
cartazes com dizeres como: “Aqui ocupantes de Camargo Velho”, “Chabilandia presente”,
“Terra repartida, vida garantida”, “A terra é de todos nós”, simbolizando a pluralidade da
“massa” e a generalidade daqueles em luta, entre outros cartazes que mencionam termos
como democracia, direitos, igualdade, dever do estado, vida, Deus, mutirão, reforma
urbana. Nesta parte, as imagens da manifestação e as inúmeras faixas de apoio e defesa
da luta pela moradia buscam reforçar a defesa que o vídeo faz da luta, colocando uma
grande massa ao seu lado, corroborando o discurso. Novamente o discurso de defesa da
ocupação é mostrado como autêntico do povo, do povo unido.
A manifestação de rua caracteriza a pressão exercida pelos moradores da
ocupação. A câmera vai passeando e mostrando o rosto do povo, na sua grande maioria
mulheres, mas também homens e crianças, mãos dadas simbolizando a solidariedade entre
eles, pés simbolizando a marcha coletiva. A passeata é filmada de vários ângulos e tenta
nos dar a dimensão do protesto. A montagem sugere dinâmica, vivacidade. Uma música
instrumental animada por palmas, de Milton Nascimento, artista que ficou identificado no
imaginário nacional com a Nova República, alinha a sequência de imagens e enaltece a
cena com um clima de esperança, a ressoar a favor da luta.
Em locução
off
, uma voz feminina declama uma poesia que apela para o
deslumbramento: Domingo na praça, mar de gente / Muitos rios vindos de todos os
cantos / Cada ocupação é uma nascente / Ocupação na zona leste / É a troca do lixo, do
mato e da marginalidade / Por casas, pessoas, escolas” (HÁ Lugar, 1987).
A locução aqui funciona claramente como “voz de Deus”, que comenta a sequência
de imagens e diz claramente ao espectador a leitura que deve ser feita, de forma que “[...]
seu tom transmite um ponto de vista pronto, com o qual espera que concordemos”, como
aponta Bill Nichols (2005, p. 78), a respeito do uso desse tipo de recurso. Como se a
montagem das imagens da manifestação não fosse suficiente para dignificar a luta e buscar
a identificação e comoção do espectador, a declamação reforça a perspectiva.
Ainda dentro do que identificamos como um primeiro bloco, que enaltece o homem
do povo e sua luta em tom de esperança, o vídeo apresenta um conjunto de entrevistas
com pessoas do povo. Um homem levantando a parede de uma casa explica, confiante, que
está em curso a negociação do terreno com o proprietário, concluindo: “estamos bem
encaminhados”. Outro explica o processo de organização da ocupação, outra justifica a
ocupação frente aos aluguéis impeditivos, outra afirma que a luta é de todos, e não de uma
liderança específica. Um senhor diz que busca ali “um ranchinho para terminar o resto de
vida”. O que é seguido de um canto africano que reforça o caráter comovente da fala, junto
a imagens de mãos trabalhando a terra, o processo de construção.
É importante destacar que, nessa etapa do documentário, os entrevistados, o povo,
são anônimos, sem identificação, sugerindo uma ideia de unidade de grupo onde, cada
pessoa que fala, ao invés de expressar uma opinião pessoal, representa ali uma classe.
Existe um encadeamento múltiplo de vozes, lembrando um pouco o “povo fala” da
televisão. A sequência das falas gera uma unidade de grupo, superando a condição e a
história de vida pessoal.
Após a fala comovente do senhor de idade, para retomar o aspecto positivo do
bloco, apresenta-se uma sequência de imagens de crianças da ocupação sorrindo e
brincando, tendo ao fundo o som de um forró animado, tocado em sanfona. O homem do
início do vídeo recita um último trecho do cordel, finalizando o bloco com a sinalização do
conflito e a perspectiva de paz do movimento: O povo se organiza e encara a coisa sem
medo / Pois lutar contra essa raça, já não é nenhum segredo / Brigando sem violência,
derrubando intransigência / Pra garantir seu sossego” (HÁ Lugar, 1987).
A sonoridade grave de um instrumento de cordas inicia o segundo bloco,
anunciando, junto a planos fechados de uma cerca de arame farpado, a tensão e o conflito
que serão o mote deste conjunto. A imagem da cerca, simbolizando a propriedade privada
e a divisão social, com suas farpas evocando a violência, tem, em segundo plano, tijolos
amontoados, restos de casas destruídas, apresentando o rompimento do sonho idílico
apresentado no primeiro bloco. O sossego, como expressado no cordel, não se faz
concreto ainda.
Inicia-se um conjunto de falas institucionais. É notável que, neste segundo bloco,
os entrevistados são todos identificados, nomeados, diferentemente dos personagens do
povo do primeiro bloco, que não tinham nome próprio, nem suas profissões mencionadas.
Um advogado dos proprietários do terreno defende a propriedade privada a partir
da lei, que é sutilmente zombada como justiça burguesa através da introdução de um plano
ascendente da estátua da deusa grega da justiça em mármore, material nobre que
contrasta com toda a estética de terra e tijolo do vídeo. O mesmo advogado sugere que o
estado banque o “banquete” de todos, indenizando os proprietários para garantir o
assentamento.
A fala de um bispo da igreja católica, dizendo que “a terra é de Deus”, contrapõe o
advogado, dizendo que a lei que protege a propriedade particular sem função social
precisa ser mudada”, defendendo a ocupação com base na constituição e
responsabilizando o poder público pela reforma agrária e urbana. O bispo faz, no vídeo, a
função de intelectual orgânico do movimento e incorpora o papel que, de fato, segmentos
da igreja católica tinham junto às mobilizações populares da época.
o secretário de habitação é enfático ao dizer que o estado não tem o nimo
interesse em compactuar com a “invasão”. Uma nova fala do advogado menciona que é o
estado que deverá fazer a reintegração de posse, em cumprimento da lei. A montagem dos
depoimentos é didática em expor os dois lados do conflito, bem como o lado escolhido pelo
estado, junto ao proprietário capitalista, o que leva ao fim da ocupação. A montagem de
imagens da ocupação e da reintegração de posse deixa claro para qual lado do discurso o
vídeo pende.
Uma sequência de planos dos barracos no chão, tijolos quebrados, da guarda civil
derrubando as casas, da ação truculenta da polícia armada na reintegração de posse do
terreno é disposta numa montagem dinâmica de cortes rápidos, acompanhada pelo rock
acelerado
Polícia
(1986), da banda
Titãs:
“Polícia para quem precisa, polícia para quem
precisa de polícia”. Através da música, a sequência sugere a posição a favor do movimento
e contra o braço de ferro do Estado.
O enfretamento entre policiais e ocupantes é inevitável e é nesse momento, nessa
ação desproporcional, que é assassinado um dos ocupantes, o pedreiro Adão M. da Silva.
No início do vídeo temos a imagem positiva e edificante da luta, simbolizada pelas mãos de
um pedreiro e, neste momento ao final do primeiro bloco, o clímax do vídeo, um
desmoronamento desta imagem com a morte de um trabalhador.
É fundamental para os realizadores do vídeo mostrar a violência contra o
trabalhador, usando cenas dos disparos policiais contra os manifestantes e um corpo
sendo carregado. Nessa mesma sequência, os realizadores optaram por silenciar a música
e deixar o som ambiente, deixando transparecer a tensão entre correria, gritos, desespero
das pessoas, armas e tiros, buscando o envolvimento e comoção do espectador. A
comoção é reforçada pela música
Sentinela
(1980), de Milton Nascimento, que logo adentra
o campo sonoro: Morte vela / sentinela sou / do corpo desse meu irmão que se vai /
revejo nessa hora tudo que ocorreu / memória não morrerá”.
Com sonoridade solene, o tratamento por “irmão”, a ritualística e a presença da
reza na vigília fúnebre que a música tematiza evocam a questão da religiosidade, que
aparece diversas vezes no deo. A menção à igreja católica havia aparecido na presença
visual de duas igrejas ao fundo de imagens de manifestação, da palavra “Deus” em cartazes
das manifestações, e na fala de um bispo como espécie de intelectual orgânico que
organiza politicamente a fala dos ocupantes.
“Todo artista tem de ir aonde o povo está”, trecho da música
Nos bailes da vida
(1981), de Milton Nascimento e Fernando Brant é utilizado por Marcelo Ridenti (2014), para
nomear o último capítulo do livro Em busca do povo brasileiro” onde analisa a
permanência de traços do romantismo revolucionário das décadas de 1950 e 1960 nos anos
1970 e 1980. Alguns segmentos da MPB, incluindo Milton Nascimento, e setores da igreja
católica estão entre os grupos que dão continuidade à utopia, apesar do refluxo de sua
presença mais generalizada. Estava presente, então, o ideário da Teologia da Libertação,
de valorização dos pobres da terra, de resgate das raízes autênticas do povo, de sua
comunidade perdida numa sociedade de capitalismo selvagem. Milton Nascimento foi o
artista que trabalhou a confluência da música com essa utopia da esquerda católica, por
exemplo, no LP
Missa dos Quilombos
, de 1982, com textos de Dom Pedro Casaldáliga e do
poeta Pedro Tierra.
A canção
Sentinela
(1969), surge justamente no ápice dramático do vídeo. Gravada
em 1969 no álbum
Milton Nascimento,
seria regravada em disco homônimo à canção em
1980. Os versos de Fernando Brant,
[...] misturavam vivências pessoais com percepções do Brasil ditatorial: a morte
imaginada de um grande amigo mesclava-se à morte da liberdade política, e o
“vulto negro” que contava histórias de um passado distante transfigurava-se na
vontade de uma mudança dos tempos atuais, nos quais era urgente sobreviver
(DINIZ, 2012, p. 185).
Assim, é sintomático que Milton Nascimento tenha regravado a música de 1969 em
1980, atualizando o imaginário dos fins da década de 1960 para o contexto da
redemocratização e fazendo da memória, presente na temática da música, uma
reapropriação política do ideário de antes. É possível dizer que “A visão dos dias de hoje
nutre-se dos eflúvios emanados nas eras de outrora e delas retira um incoercível desejo
de realizar, no futuro, o já muito acontecido” (ARRUDA, 1990, p. 215).
A imagem de um barraco de lona com uma bandeira, no momento do trecho em que
a música fala “memória não morrerá” simboliza a insistência da busca da conquista e
sugere a ética da luta que não deve parar, em memória daqueles que morreram lutando. A
luta continua, mas agora em outro tom, não mais tão positivo quanto aquele tom do
primeiro bloco. Finaliza-se com esta música e esta imagem o segundo bloco do vídeo.
O terceiro bloco inicia-se com uma nova fala do bispo, como se ele reavaliasse a
situação a partir do desfecho do conflito. A fala é mais ponderada em relação à posição
inicial, que inflava a ocupação, mas preserva o mesmo caráter de avaliação política e social
da questão da moradia no país e o papel de intelectual orgânico do padre. Sabemos que
essa é uma reavaliação feita pela montagem, visto que o plano imagético do bispo é
idêntico ao do segundo bloco, sugerindo uma mesma entrevista entrecortada. O bispo diz:
“eu sempre digo que a ocupação não resolve, mas a ocupação sacode, coloca o governo
correndo um pouco”.
Um representante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) fala de
maneira mais pragmática sobre as conquistas imediatas da ocupação, abaixo do
reivindicado, comparando o governo do estado da época, nas mãos de Orestes Quércia,
com o anterior, de Franco Montoro, apontando o caminho da democracia institucional.
Essa fala encerra as informações mais factuais a respeito do processo daquela ocupação
específica da zona leste. Uma sequência de planos de multidão e de barracos precários são
embalados com o samba de Dorival Caymmi que diz: “eu não tenho onde morar, é por isso
que moro na areia” (1960), sugerindo que apesar da luta e de suas conquistas parciais, a
realidade da falta de moradia continua. A música sinaliza, assim, a aposta do filme na esfera
do simbólico como caminho de elaboração da experiência, para além da luta política
concreta.
As três falas seguintes avaliam o mutirão popular como estratégia de construção
de casas populares a baixo custo, financiadas pelo governo, tornando-se este o tema final.
articulando o fim do documentário, estes trechos desligam-se daquela mobilização
inicial e da ocupação específica. Novamente a visão do governo é oposta à visão dos
intelectuais e representantes do povo. O secretário de habitação do governo do estado é
categórico: “É absolutamente impossível que eles produzam qualquer coisa que tenha
sequer um mínimo de lógica arquitetônica”.
O arquiteto Nabil Bonduki, presidente do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo,
expõe o desconhecimento, por parte do secretário, do processo de construção de
habitação na cidade, argumentando que:
a grande maioria das casas foram produzidas ou gerenciadas pelos próprios
moradores. O que isso significa que é possível existir uma organização da
população para produzir em massa a moradia. O estado pode garantir assessoria
técnica, recursos para compra de material, garantir o acesso à terra (HÁ Lugar,
1987).
Mais adiante uma fala de um militante do PCdoB exalta a importância da construção
de casas em mutirão por ser um processo barato, que gera empregos e renda, em
detrimento dos recursos passados para as grandes construtoras.
Dessa maneira o vídeo “[...] se apoia na competência dos técnicos, que criam uma
camada intermediária [...].” (BERNARDET, 2003, p. 51), entre a fala do povo e quem assiste,
o espectador, desmontando a perspectiva apresentada inicialmente, como se o
documentário fosse um discurso do ponto de vista do homem popular. No conflito, este
homem popular precisa da assessoria desses personagens de outra camada social.
Apesar da fala cheia de preconceitos do representante do governo do estado, este
último bloco apresenta o mutirão como uma perspectiva de conciliação possível no regime
democrático, sendo a síntese dos dois blocos anteriores, sinalizando uma nova esperança
no equilíbrio de forças.
O documentário faz questão, porém, de finalizar com falas breves do povo, um
homem e uma mulher, relatando a solidariedade entre os envolvidos na ocupação/mutirão
e a real necessidade de estarem ali, por não poderem pagar aluguel. Seguem-se imagens
da ocupação, pessoas construindo, pessoas sorrindo, enquanto ouve-se a canção “daqui
não saio, daqui ninguém me tira”, que finaliza com uma perspectiva otimista da república
em reconstrução: “mas dizem por que a coisa vai melhorar.” Os créditos finais do
vídeo se iniciam sobre uma imagem da ocupação ao som de Gilberto Gil cantando,
Soy
loco por ti América
(1968), hino revolucionário contra o imperialismo, dele e Capinam.
no vídeo uma série de recursos discursivos que apontam para a utilização de
elementos da construção da narrativa clássica de ficção. O cordel inicial, assim como a
leitura do poema e uma série de canções presentes no vídeo demonstram que ali a palavra
e, portanto, o universo do discurso, coexistem com o universo das imagens e seu caráter
indicial. A edição conecta estes elementos discursivos às imagens, de maneira a forjar um
efeito de verdade às palavras e autenticidade da narrativa, ao mesmo tempo em que as
palavras guiam o sentido de leitura das imagens que se apresentam como documentos da
realidade.
Perspectiva histórica
Nas décadas de 1960 e 1970, em caráter de exceção, algumas experiências ousaram
em não tratar do povo apenas enquanto temática e/ou realidade a ser documentada,
apostando na participação desse “outro de classe” em algumas etapas da realização
fílmica. A influência do Neorrealismo italiano no cinema brasileiro e latino americano
trouxe a ideia de trabalhar com atores não profissionais, provenientes do povo, das
comunidades onde eram realizadas as locações. À luz da história do cinema no país,
Cabra
marcado para morrer
(1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), tem como ponto de partida
o assassinato de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba, em 1962. O
documentário buscou trabalhar com atores não profissionais que provinham justamente
da comunidade que se ia documentar, atores do povo que representavam a si mesmos. Em
razão do golpe militar, as filmagens foram interrompidas em 1964 e retomadas vinte anos
depois, em 1984, como um retorno e análise do autor àquela experiência de juventude em
que se apostava no vínculo entre o cinema e o movimento social rural, interrompido pela
repressão.
Jean-Claude Bernardet (2003, p. 227), enxerga “[...] um projeto histórico
preocupado em lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem
futuro e o agora não fique sem passado”. Revisitando a própria forma através da qual
buscou se relacionar com esse povo 20 anos antes, o documentário promove uma ruptura
do ponto de vista estético e político, para Ismail Xavier (2012, p. 26),
[...] da partilha de uma experiência com o outro de classe, iniciado em termos
problemáticos nos anos 60, é recuperado no início dos anos 80, recolhendo a rica
experiência do cineasta na reportagem e no documentário para rearticular a
relação entrevistador e entrevistados […] personifica o trajeto dos cineastas
empenhados na luta política.
Como ponto de maior tensão entre “Cineastas e imagens do povo”, título do livro
clássico de Jean-Claude Bernardet (2003),
Jardim Nova Bahia
(1971), dirigido por Aloysio
Raulino (1947-2013), é um exemplo em que o cineasta entrega a câmera a seu personagem.
Práticas como estas são, porém, mais isoladas nas décadas de 1960 e 1970, período de
intensa produção de representações do povo pelo cinema, “[...] com influências de
esquerda, comunistas ou trabalhistas” (RIDENTI, 2014, p. 9), mas ainda marcadas pelo
alinhave geral do discurso do diretor, outro de classe do povo.
O cinema militante do final da década de 1970 também teve aproximações com o
povo, que se dava nos seus círculos de exibição, na concepção de um projeto de cinema
político popular, sendo possível citar
Trabalhadoras metalúrgicas
(1978), de Renato
Tapajós e Olga Futemma;
Braços cruzados, máquinas paradas
(1979), de Roberto Gervitz
e Sérgio Toledo Segall;
Greve!
(1979), de João Batista de Andrade e
Um
dia nublado
(1979),
de Renato Tapajós. O cinema era então concebido como meio de politização das massas.
Diferentemente do projeto do Cinema Novo e outras cinematografias de vanguarda
das décadas de 1960 e 1970, não parece haver em
Há Lugar
e em grande parte dos vídeos
reunidos em torno do acervo da ABVP, além da militância política e a análise da sociedade
ali presentes, uma crítica endereçada ao próprio dispositivo do cinema, típica das
narrativas modernas. Pelo contrário,
Lugar
possui uma estrutura clássica, usando da
emoção para promover a identificação do espectador com a mensagem unilateral proposta
pelo vídeo. Como postula Ismail Xavier (2004, p. 75), se “[...] existem formas específicas
de interação entre o gesto do cineasta e os fenômenos, algumas dessas formas são mais
capazes de incorporar o que de problemático na relação entre imagem e referente,
tirando proveito disto”. Mas esse não parece ser o caso e o propósito de
Lugar
, mais
interessado em tornar convincente seu ponto de vista e enaltecer uma causa.
É patente ainda nas letras de música a origem social dos realizadores. O universo
musical do deo é aquele da música popular progressista, predominantemente presente
nos círculos das classes média-alta intelectualizadas. O que evidentemente se coloca em
contradição com a tentativa inicial de se apresentar como um vídeo que vocaliza a voz do
povo. Apesar de simular a vocalização do povo no primeiro bloco, os blocos seguintes
deixam transparecer a assimetria de poder estabelecida entre quem e quem é visto pela
câmera, entre cineasta e povo.
Como aponta Ismail Xavier (2004, p. 75),
O filme […] é também a história de uma produção que, socialmente, constrói uma
identidade, uma condição fortemente marcada pelo indicial (o rastro do mundo
empírico na imagem) que, reconhecido, precisa ser assumido, não como verdade
total do jogo, mas como parte integrante dele.
Quais seriam então as relações de poder estabelecidas entre o “aparato do cinema
e os agentes locais”, para usar a formulação de Ismail Xavier em texto sobre o filme
Iracema: uma transa amazônica
(1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna, ou entre
“cineastas e imagens do povo” (2003), para usar a formulação de Jean-Claude Bernardet
em livro homônimo?
O vídeo utiliza o mecanismo de entrevista de maneira tradicional, tentando sugerir
que os depoimentos são puramente testemunho e verdade. No entanto, é possível
perceber o recorte particular da realidade promovido pela montagem, elaborando um
discurso próprio. As entrevistas selecionadas esmeram-se em construir um discurso
consistente, que defende um dos lados do conflito social em foco.
A estrutura do deo, simples, típica das ficções clássicas, buscando o envolvimento
e a empatia do espectador, torna o argumento do vídeo facilmente compreendido e aceito
por uma camada ampla da população. Com isso, elimina possíveis contradições do
processo social enfocado e da relação de dominação presente nos distintos estratos
sociais que aparecem no vídeo e que envolvem a sua produção, descartando as
ambiguidades. O vídeo recorre a diversos recursos, que buscamos apontar ao longo da
descrição analítica acima, para trabalhar a emoção e a aproximação do espectador. O uso
da música contribui bastante neste sentido.
A reflexão de Renato Ortiz (1999), a respeito da relação que a indústria cultural e a
crítica estabelecem com o realismo é interessante para compreender o que está em jogo e
como se posiciona a produção de vídeo popular no campo cultural brasileiro. Ortiz
diferencia um realismo reflexivo” - que trabalha a pluralidade de apresentações de um
mesmo objeto e que utiliza de recursos de distanciamento do espectador, bastante
presente em filmes do Cinema Novo e em propostas teatrais brechtianas do “realismo
reflexo” da indústria cultural, que apresenta uma única versão da realidade, “colando” o
espectador a ela e eliminando possibilidades de reflexão.
Ortiz toma como base a discussão de André Bazin (2014), a respeito da “Ontologia
da imagem cinematográfica”, onde defende a capacidade do cinema em registrar a
realidade em sua ambiguidade, sem impor significados sobre ela, com o devido “respeito
fotográfico pela unidade da imagem”. Bazin, alinhado com o neorrealismo italiano,
defenderia o plano-sequência, a profundidade de campo e o desenrolar da ação dramática
dentro do enquadramento, por oposição ao cinema de montagem, onde o sentido e a ação
dramática se desenrolam a partir da ordenação proposital dos planos, obedecendo ao
argumento/drama (no caso da montagem usada, por exemplo, no cinema mudo) ou ao jogo
das emoções proporcionados pela montagem psicológica.
É claro em
Lugar
o uso exacerbado da montagem para conferir sentido às
imagens captadas do real e para jogar com a emoção do espectador. Não há uma busca de
construção de elementos reflexivos de distanciamento, de maneira que ocorre uma
maximização dos efeitos do real, na ilusão de estarem transmitindo ao espectador uma
consciência crítica do mundo”, para usar a formulação de Renato Ortiz a respeito de
cineastas americanos de esquerda durante os anos da Depressão. Ao utilizarem de uma
estrutura da narrativa clássica para transmitirem uma mensagem, “[...] a fim de que os
oprimidos pudessem entender mais facilmente o enredo, e se identificarem com a
realidade, de uma certa forma eles estavam retomando, querendo ou não, uma boa parte
das premissas da cultura popular de massa” (ORTIZ, 2001, p. 174). A busca por uma
aceitação massiva de narrativas do nacional-popular é, segundo Ortiz, um dos elementos
do desenvolvimento da indústria cultural brasileira.
Tal como a nova indústria de audiovisual que se configurava na época, com a
televisão à frente, os produtores de vídeo popular rejeitavam o que poderia ser visto como
certo elitismo presente na elaboração estética experimental do Cinema Novo. A busca de
uma linguagem “fácil”, que dialogasse com o povo, em última instância se ligava
diretamente às premissas da nova fase da indústria cultural brasileira, interessada na
“comunicação universal” do mercado, ainda que mantivesse uma busca pela contestação
e rejeitasse o puro entretenimento. É significativo que muitos dos realizadores do deo
popular do período, incluindo o diretor de
Lugar
, Julio Wainer, tenham se envolvido
com projetos de implantação de Tvs comunitárias que começavam a surgir na época. Um
exemplo é Luiz Fernando Santoro, ex-presidente da ABVP que colaborou com o
surgimento e criação da TV dos Trabalhadores Rede TVT em São Bernardo do Campo -
SP.
A ideologia professada revela a crença na ideia de que o novo vínculo aos
movimentos e a linguagem mais simples poderiam concretizar a promessa de uma
produção audiovisual efetivamente vista pelo povo. A ABVP, em seu projeto de acervo e
distribuição de vídeos para movimentos e organizações populares, em certa medida
demonstra essa preocupação. Para Santoro, “[...] os realizadores encaravam a produção
como uma missão política e existia uma grande disposição em difundir ideias” (CANNITO,
2001, p. 3). Ou, como aponta Oliveira (2001a, p. 13), “[...] os produtores de deo popular
puderam acreditar que seus vídeos jogavam um peso significativo nesse processo,
contribuindo para fortalecer os movimentos e para assegurar a participação a camadas
mais amplas da população”.
O vídeo popular das décadas de 1980 e 1990 dialogava de maneira particular com a
herança cultural das décadas anteriores, onde a temática do povo se fazia presente. No
livro “Em busca do povo brasileiro” (2014), Marcelo Ridenti desenvolve a hipótese de que
parte significativa da produção cultural dos anos 1960 e início da década de 1970 pode ser
descrita como romântica-revolucionária. Utilizando a noção de “estrutura de sentimento”
de Raymond Williams (2011), Ridenti (2005, p. 87) identifica a idealização do homem do
povo e das raízes populares do passado nacional para a construção de um processo de
mudança social como elementos centrais:
Os artistas engajados das classes médias urbanas identificavam-se com os
deserdados da terra, ainda no campo ou migrantes nas cidades, como principal
personificação do caráter do povo brasileiro, a quem seria preciso ensinar a lutar
politicamente. Propunha-se uma arte nacional-popular que colaborasse com a
desalienação das consciências.
Contraditoriamente, essa estrutura de sentimento romântico-revolucionária
encontrava grande aceitação no mercado cultural da época, cenário bastante diferente do
cenário da década de 1980. Segundo Ortiz (2001, p. 168),
Toda a política e a ideologia do Instituto Nacional do Cinema e posteriormente da
EMBRAFILME expressa a necessidade de desenvolvimento de uma filmografia
voltada para o mercado. Por isso o cinema de autor, em particular o cinema novo,
será o alvo principal das criticas, uma vez que sua característica artística, seu
código estético, implicava a restrição do público consumidor. Para os intelectuais
da nova indústria cinematográfica, o esteticismo e a arte (na sua dimensão
política ou o) se associava ao 'elitismo' dos pequenos grupos, em contraposição
à 'comunicação universal' do mercado.
No entanto, parece que os realizadores de vídeo popular da década de 1980
compartilhavam daquela estrutura de sentimento romântico-revolucionária dos filmes do
Cinema Novo, que “[...] valorizam a brasilidade arraigada no homem simples do povo (no
campo ou habitante da periferia das grandes cidades), denunciam as desigualdades sociais,
buscam desvendar 'a realidade do Brasil', entre outras características [...].” (RIDENTI,
2005, p. 95).
Conclusão
O acesso às câmeras e fitas magnéticas proporcionou uma boa quantidade de
registros, tanto das lutas coletivas e também registros caseiros, sobretudo a partir da
década de 1980. Esse volume de registros é vulnerável pela qualidade das mídias, pela falta
de capacidade de armazenamento e ausência de equipamentos reprodutores. Alguns
desses acervos magnéticos foram perdidos, alguns estão aos poucos sumindo. Nos últimos
anos alguns projetos possibilitaram salvar parte dessa história, se utilizando de
ferramentas digitais como, por exemplo, a recuperação e digitalização de parte do acervo
da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), realizada pela PUC São Paulo, que
disponibilizou os vídeos via YouTube, acarretando novos desafios.
No Brasil, tem-se conhecimento de uma dezena de experiências relevantes na área
do vídeo popular, como a TV VIVA, criada em 1984 em Olinda, Pernambuco, e a TV
Maxabomba, fundada em 1986 na Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, e que encamparam
a construção da ABVP. Ambas as iniciativas mantêm canais de divulgação dos seus
respectivos acervos no YouTube. Outra inciativa é o Vídeo nas Aldeias, projeto fundado
em 1986 que se mantém ativo até hoje e que tem canais de compartilhamentos no Vimeo
e no YouTube para divulgar suas produções. No final da década de 1990 alguns projetos
deixaram de existir. Mas nas primeiras décadas do século XXI, outros surgiram, com
transformações no campo da distribuição. Nos últimos anos a restauração digital
possibilitou que acervos antes esquecidos e que corriam sérios riscos de desaparecer
fossem digitalizados e disponibilizados em plataformas de compartilhamentos na internet.
No entanto, a política de preservação do patrimônio cultural brasileiro ainda é
demasiado precária. Nos últimos anos, não raro assistimos episódios emblemáticos de
perdas de acervos de relevância nacional, com incêndios no Museu de Ciências Naturais
da PUC de Minas Gerais (2013); Centro Cultural Liceu de Artes e Ofícios (2014);
Cinemateca Brasileira (2016) e Museu Nacional (2018), que destruíram boa parte dos
arquivos das instituições. Em 2020 uma grande enchente atingiu parte do acervo da
Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, gerando grande motivo
de alerta. Mas a crise na instituição continuou.
No artigo “Cinemateca Brasileira: o sequestro e a destruição de nossa memória
audiovisual”, de 2021, o professor e pesquisador Eduardo Morettin (2021, p. 556), elenca
pontos chave sobre as dificuldades que atingiram a instituição:
É preciso aqui abrir um breve parêntesis para explicar que a Cinemateca já vinha
agonizando desde 2013, depois de ter experimentado seu apogeu entre 2008 e
2012. Em janeiro de 2013, o Ministério da Cultura, posteriormente extinto pelo
governo Bolsonaro em janeiro de 2019, afasta seus dirigentes e interrompe o
aporte de recursos dados à Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC), parceira
da instituição desde o momento de sua criação em 1962. [...] Decorrente desta
situação de abandono, em fevereiro de 2016 ocorre o quarto incêndio sofrido em
sua história, com a perda de mais de mil rolos de filmes em nitrato de celulose.
O governo federal, de quase nenhum diálogo com o setor cultural e audiovisual, não
sinalizou novas medidas nem interesse em conter a grave crise instaurada na Cinemateca.
Eduardo Morettin (Ibidem, p. 558-559), argumenta como as ações governamentais e
descaso geraram danos irreparáveis,
Infelizmente, a inação federal persistiu e a destruição sobreveio. No final da tarde
do dia 29 de julho [2021], um incêndio atingiu as dependências de uma das sedes
da Cinemateca Brasileira, situado em terreno de 8 mil m2 próximo à zona
cerealista da cidade de São Paulo. Essa unidade vinha recebendo investimentos
públicos da instituição desde 2006 para abrigar o Museu do Cinema Brasileiro, o
Centro de Referência Audiovisual (CRA) e, fundamentalmente, um novo arquivo
de filmes, dado que o da sede principal se encontrava com a sua capacidade
limitada e a intenção era a de expandir o seu acervo. [...] Esse espaço físico foi
destruído pelo fogo, mas, desgraçadamente, as perdas não se restringiram ao
edifício e a todo o esforço despendido em sua qualificação. Quatro toneladas de
documentação relativa às políticas públicas para o setor cinematográfico no
Brasil desapareceram para sempre, assim como equipamentos, que integrariam
o futuro museu acima mencionado, e filmes, em quantidade ainda incerta.
Também foram consumidos pelo incêndio parte do acervo textual do cineasta
Glauber Rocha, além de parcela dos filmes realizados pelos alunos e alunas do
Departamento de Cinema, Rádio e Tv da Escola de Comunicações e Artes da USP.
De março de 2020 a novembro de 2021 a Cinemateca Brasileira teve suas portas
fechadas, o que gerou grandes perdas em suas ações de preservação, formação e difusão.
Em outubro de 2021, a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) foi eleita para gerenciar a
Cinemateca Brasileira com previsão de reabertura para maio de 2022.
Segundo Pierre Nora (1993, p. 13), “Os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento que não memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas,
porque essas operações não são naturais”. Para se entender o percurso de nossa história,
para o pensamento social e a produção artística dialogarem de forma contundente com as
questões da sociedade, é fundamental que seja possível revisitar o caminho que nos trouxe
até aqui, para que os novos passos sejam sempre fundamentados na experiência. A política
de preservação de acervos no país ainda é notadamente precária.
A Cinemateca, integrada à SAv Secretaria do Audiovisual no Governo Lula,
projetou então a criação do Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais (SiBIA), a
partir do qual seria possível reunir informações sobre os acervos de cinema e vídeo
dispersos no país e então estabelecer um Plano Nacional de Preservação do Patrimônio
Audiovisual Brasileiro (BEZERRA, 2014). Com dois encontros do SiBIA, realizados em
2008 e 2009, reunindo 33 instituições brasileiras,
5
as iniciativas, no entanto, não foram
efetivadas e encontravam dificuldades nas próprias instituições de acervo, carentes de
políticas e recursos para catalogação, informação e preservação para alimentar o sistema.
Esforços como a criação, em 2008, pela sociedade civil, da Associação Brasileira
de Preservação Audiovisual (ABPA), e outras iniciativas junto ao Congresso Brasileiro de
Cinema, entre outras, vem tentando articular ações junto ao poder público e buscando
legitimidade, representatividade e diálogo, nem sempre com sucesso. A governança
precária entre os diferentes órgãos relacionados no governo federal, a ausência de
recursos, as dificuldades de gestão num país de porte continental e de priorização do tema
nos governos, exigindo ação coordenada, tem afetado os avanços no setor.
Na escassez de recursos, também foi tensionada a priorização de investimentos na
estruturação e ações da Cinemateca Brasileira referentes a seu acervo e aquelas voltadas
à política de acervos audiovisuais mais global. Durante 2008 e 2012 a Cinemateca
desenvolveu o Programa de Preservação e Difusão de Acervos Audiovisuais, com
importantes ações de restauração, expansão de parque tecnológico, formação técnica,
edição de publicações especializadas, aquisição de acervos e fortalecimento institucional.
Mas com a desmobilização de recursos no período posterior e as crises
institucionais que somente se agravariam com a mudança de governo, volta-se ao estado
de ações emergenciais mínimas de socorro à Cinemateca, seguindo à míngua uma política
de preservação audiovisual para o país.
Referências
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Mitologia da mineiridade
: o imaginário mineiro
na vida política e cultural do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999
.
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O que é o cinema?
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
BERNARDET, Jean-Claude.
Cineastas e imagens do povo
. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
5
Mais informações: http://bases.cinemateca.gov.br/page.php?id=90
BEZERRA, Laura. A preservação audiovisual nas políticas culturais do brasil entre 2003-
2010.
In:
ENECULT ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA
,
10, 2014. Salvador. Anais. Salvador: UFBA, 2014, p. 1-15.
CANNITO, Newton. Depoimento de Luiz Fernando Santoro.
Sinopse Revista de Cinema
,
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7, ano III, p. 2-7, agos. 2001.
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Nuvem Cigana:
a trajetória do Clube da Esquina no campo da MPB.
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Campinas, 2012.
FESTA, Regina; SANTORO, Luiz Fernando. A terceira idade da TV: O Local e o
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NOVAES,
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MORETTIN, Eduardo. Cinemateca Brasileira: o sequestro e a destruição de nossa memória
Audiovisual.
Reciis Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em
Saúde
, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 553-560, jul./set. 2021.
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Introdução ao documentário
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Filmografia
A LUTA do Povo [curta-metragem]. Dir. Renato Tapajós, São Paulo, Brasil, 1980, 30 min.
ALMERINDA, uma mulher de trinta [curta-metragem]. Dir. Ângela Freitas e Joel Zito
Araújo, São Paulo, Brasil, 1991, 25 min.
BRAÇOS cruzados, máquinas paradas [longa-metragem]. Dir. Roberto Gervitz e Sérgio
Toledo Segall, São Paulo, Brasil, 1979, 76 min.
CABRA marcado pra morrer [longa-metragem]. Dir. Eduardo Coutinho, Rio de Janeiro,
Brasil, 1984, 119 min.
EU, Mulher Negra [curta-metragem]. Dir. Joel Zito Araújo, São Paulo, Brasil, 1994, 31 min.
GREVE! [curta-metragem]. Dir. João Batista de Andrade, São Paulo, Brasil, 1979, 37 min.
HÁ lugar. [curta-metragem]. Dir. Julio Wainer e Juraci de Souza, São Paulo, Brasil, 1987, 21
min.
IRACEMA - uma transa amazônica [longa-metragem]. Dir. Jorge Bodansky e Orlando
Senna, Brasil e Alemanha Ocidental, 1974, 91 min.
JARDIM Nova Bahia [curta-metragem]. Dir. Aloysio Raulino, São Paulo, Brasil, 1971, 15 min.
NOSSOS Bravos [curta-metragem]. Dir. Joel Zito Araújo e Peter Overbeck, São Paulo,
Brasil, 1987, 31 min.
TRABALHADORAS metalúrgicas [curta-metragem]. Dir. Olga Futemma e Renato Tapajós,
1978, 17 min.
UM dia nublado [curta-metragem]. Dir. Renato Tapajós, São Paulo, Brasil, 1979, 34 min.
UM caso comum [curta-metragem]. Dir. Renato Tapajós, São Paulo, Brasil, 1978, 22 min.