[...] hoje, qualquer pessoa ou organização pode funcionar como
uma emissora de rádio ou de imagens produzindo notícias,
comentários e opiniões com grande alcance. Pode, portanto,
interferir na opinião pública, até mesmo por meio de falsidades
as chamadas fake news. [...] Seja como for, esse panorama,
naturalmente, também afeta a História. Antigas concepções
negacionistas ganham força, como, no caso brasileiro, a falsa
suposição de que não houve uma ditadura militar ou de que não há
racismo no país. A positividade da existência plural de
interpretações é conspurcada pela defesa de versões opinativas
não fundamentadas o que amplifica a importância do ensino
escolar da disciplina História, pois o debate de tendências
historiográficas diversas não se confunde com a legitimação de
quaisquer versões: a opinião é livre, mas ela não é conhecimento
objetivo.
(FICO, 2021, p. 34, grifos do autor).
Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico
de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas
edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção
do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso,
entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças,
estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente
no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano
condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos
senhores de terra em provas derradeiras de um passado
aristocrático.
(SCHWARCZ, 2019, p. 19).
A equipe da revista
Faces da História
alegra-se por publicar seu segundo número,
o último de 2021. Este exemplar abre-se com a entrevista de Steven Shapin, professor de
História da Ciência na Universidade de Harvard, logo seguida por 09 artigos do dossiê
História da Ciência em debate:
possibilidades, fontes e horizontes de pesquisa
2
e,
finalmente, 05 manuscritos na seção de Artigos Livres.
1
Subtítulo inspirado na ideia antônima de WOLFF, 2018.
2
A esse respeito, ver a apresentação escrita pelos coordenadores Charles Nascimento de Sá, Francisco
Rômulo Monte Ferreira e Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva.
Antes de considerar sobre os textos que integram a seção de Artigos Livres, é
fundamental agradecer o rigoroso trabalho do conselho editorial de
Faces da História
,
formado exclusivamente por estudantes do mestrado e do doutorado em História da
Unesp; dos revisores e revisoras gramaticais e de língua estrangeira; dos coordenadores
do dossiê, professores Charles Nascimento de Sá, Francisco Rômulo Monte Ferreira e
Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva; dos/das pareceristas de todas as seções, cujas
avaliações às cegas permitiram a apreciação crítica dos artigos e dos autores e autoras
que escolheram encaminhar seus textos para a revista. Os agradecimentos reforçam que
a atividade de edição de periódico científico requer a participação efetiva de intelectuais
consagrados pelo campo acadêmico e de, neste caso, alunos em formação, o que
demonstra, de fato, a preocupação do ambiente universitário com a autonomia
intelectual, que funciona [...] criando barreiras na entrada, excluindo a introdução e a
utilização de armas não específicas, favorecendo formas reguladas de competição,
somente submetidas às imposições da coerência lógica e da verificação experimental.”
(BOURDIEU, 2004, p. 42-43).
Como se consagrou na revista, a seção de Artigos Livres constitui-se na
divulgação de temáticas variadas, tendo em mira blico com interesses diversos, que
pretende conhecer e aprofundar as discussões a respeito da produção historiográfica
especializada e a mais atual. Os cinco artigos que compõem a seleção que agora
divulgamos atendem a habitual opção editorial de atualizar a cada número as escolhas de
textos a partir de temas, abordagens e recortes distintos, mas que demandam destaques
específicos em suas apresentações.
A princípio, contamos com a colaboração de Milton Luiz Torres, quem abre esta
seção com o manuscrito
Apolônio de Tiana e Seus Discípulos: Elementos Religiosos no
Antigo Magistério Filosófico.
O autor
traz a público alguns aspectos da vida religiosa do
filósofo e curandeiro Apolônio (c. 3 a. C.-97 AD), bem como os principais preceitos
difundidos aos seus discípulos. Para empreender a análise desses aspectos, Torres
mobilizou a biografia de Apolônio, escrita por Filostrato (c. 170-247) na Dinastia Severa
durante o Império Romano. Ao longo do artigo, o autor constata também a recepção e
interferência dessa obra nas questões religiosas à época romana e a comparação a
respeito do biografado com a figura religiosa de Jesus Cristo, a quem se atribuiu
qualidades semelhantes.
Na sequência, Luciano José Viana e Edjane Borges Fonseca propõem reflexão
interdisciplinar em
A utilização de filmes na formação de professores de História:
possibilidades sobre a História das Mulheres com o filme Em Nome de Deus (1988)
. A
análise fílmica realizada por ambos enfatiza diversos aspectos que podem ser utilizados
no ensino de História e nos processos formativos docentes, a saber: a reflexão sobre o
destacado protagonismo feminino da personagem de Heloísa, na França do século XII,
que permite considerar sobre os possíveis papéis sociais das mulheres no mundo
medieval; as discussões políticas formuladas pelo movimento feminista nos anos 1960
nos Estados Unidos, que demandaram a inclusão das mulheres na indústria
cinematográfica no contexto de produção do filme, em 1988 e, por fim, voltado ao nosso
presente, o modo como a fonte utilizada favorece o ensino sobre a história das mulheres
na Educação Básica.
No artigo de Guilherme Stipp Neto, Roberta Barros Meira e Fernando César
Sossai, intitulado
Os caminhos da extensa rede comercial ervateira e o seu excepcional
papel em Joinville (1851-1890)
, encontramos a análise do processo de integração da
cidade catarinense à economia da erva-mate na região sul do país, na segunda metade do
século XIX. Joinville, formada a partir da colonização germânica, constituiu-se,
posteriormente, numa oligarquia interessada em expandir negócios por meio da
economia ervateira que viabilizou a construção de uma ampla estrutura de produção,
comércio e consumo dessa mercadoria em Santa Catarina. Neto, Meira e Sossai
utilizaram os principais registros sobre a formação dessa rede comercial, quais sejam,
fontes da imprensa local, documentos oficiais, a exemplo dos relatórios da Sociedade
Colonizadora de Hamburgo e relatos de viajantes que constataram protagonismo
regional na economia do estado.
Impacto ambiental e as transformações sociais após a construção de uma usina
hidrelétrica na cidade de Amambai-MS nos anos 1950 são analisados em
As águas do
Panduí e a sua transformação após a instalação da usina hidroelétrica
por Ilsyane do
Rocio Kmitta. A autora investiga, numa perspectiva de longa duração, a história política
local a fim de evidenciar os trâmites que favoreceram a construção da usina por
intermédio de Ernesto Vargas Baptista, prefeito que viabilizou o empreendimento junto
ao setor privado. Com efeito, a intervenção no rio Panduí resultou ao longo desses anos
em sua degradação, sobretudo na contemporaneidade após o início da ação mineradora
no local.
Por fim, Samuel da Silva Alves finaliza esta seção com o artigo
O “fenômeno
Brizola” no Rio Grande do Sul (1945-1958): domínio de um habitus político e a conquista
do coração do eleitor
em que analisa as eleições para o governo do estado em 1958.
Como instrumental teórico, Alves valeu-se do
habitus
, conceito
proposto pelo sociólogo
francês Pierre Bourdieu, para investigar a popularidade de Brizola e o domínio da
linguagem e da retórica adequadas à conquista do seu público. Ao longo do texto, o autor
constata, entre uma série de fatores, que a liderança do político contou com a difusão
radiofônica de suas propostas, principal meio para efetivar a comunicação com o seu
eleitorado, estratégia que, segundo o autor, garantiu a sua expressiva vitória no pleito
eleitoral de 1958.
Nesta época do ano, são comuns nos meios de comunicação, sobretudo na tevê,
retrospectivas ou balanços dos principais acontecimentos do período que se finda,
objetivando transmitir análises preocupadas com o passado e a prospectar futuros. Mas
é importante que se diga que tal ação, a despeito de apresentar eventos pretéritos e
conteúdo analítico, é distinta da natureza do ofício de historiador, porque a tarefa deste
não se trata de apenas rever os principais acontecimentos de um único ano, organizá-los
em ordem cronológica, debatê-los em poucos minutos ou formar juízos de valor sobre
fatos diversos. Ao contrário, historiadores, como é bem sabido dos especialistas,
investigam, problematizam, questionam, lançam hipóteses sobre o passado, seja o mais
distante ou recente, motivados por problemas que ecoam na contemporaneidade e
munidos de documentos e ferramental teórico-metodológico, o que define a atividade de
construção de conhecimento científico.
A despeito dessa tentativa de divulgar conteúdo intelectual e do compromisso
com a transmissão de dados fidedignos, a imprensa não passa incólume à análise
apurada de historiadores, porque veículos de comunicação dirigem-se ao grande público
e apresentam política editorial, que carece de ser compreendida. Ademais, por vezes,
meios de comunicação comentem equívocos na transmissão de notícias (LEAL, 2021),
mas, determinado ato, ainda que problemático, não se equipara com a novidade, ou seja,
os disparos consentidos de
fake news
, acompanhados de discursos negacionistas, que
inundam nosso cotidiano através das redes sociais, porque são fabricações cuja intenção
é espalhar mentiras.
Fake news
e negacionismo também têm sua historicidade (NAPOLITANO, 2021),
mas, atualmente, ganham novos contornos devido à instantaneidade da circulação e
acabam por encontrar solo fértil na sociedade brasileira cuja herança é autoritária, uma
vez que não é estimulada para o diálogo democrático. São justamente esses os três
problemas mais graves que necessitam de ser compreendidos pelos historiadores da
contemporaneidade: negacionismo,
fake news
e autoritarismo. Assistimos nos últimos
anos, inclusive no Brasil e sobretudo a partir da pandemia de Covid-19, a discursos
mitomaníacos que desacreditam desde a ciência histórica à medicina, ao contrariar a
obrigatoriedade da utilização de máscaras, incentivar o uso de medicamentos ineficazes
para tratar o vírus, negar de modo contumaz a eficácia de vacinas, incitar a invasão de
hospitais para identificar irregularidades, para ficar nos assuntos mais divulgados.
Diante desse cenário distópico, cabe-nos a pergunta: qual lugar, ou melhor,
lugar reservado à utopia? Tendo em vista que a utopia de alguns grupos pode ser
considerada distopia por outros (PORTELA; PINTO, 2019), a exemplo da posição adotada
pela comunidade acadêmica, não podemos arrefecer nosso desejo de ver, se não o fim,
ao menos a diminuição dessas práticas ora descritas. Saídas? Arriscam-se algumas, que
vão desde a judicialização das atitudes criminosas de divulgação de notícias falsas e de
discursos que negam dados à educação formal, porque “[...] o investimento numa
formação educacional sólida, ampla e equânime pode abalar o ceticismo que tomou a
sociedade brasileira e animar a boa utopia de uma sociedade mais informada, leitora,
crítica e capaz de dialogar.” (SCHWARCZ, 2019, p. 220). Essa também é a nossa
expectativa para o futuro e esperamos que esta publicação possa contribuir para animar
as esperanças de construção de um horizonte mais promissor.
Finalmente, a despeito de avanço na vacinação contra a Covid-19, contabilizam-se
mortes, o que demonstra a letalidade do rus. Por isso, o apoio incondicional aos
pesquisadores e institutos dedicados à produção de vacinas e demais medicamentos que
objetivam solucionar essa e outras doenças. Editores e conselho editorial da revista
Faces da História
prestam solidariedade aos familiares das vítimas e o desejo de que essa
ferida, hoje aberta, um dia cicatrize.
Boa leitura!
Marcela dos Santos Alves
https://orcid.org/0000-0003-4972-386X
Daniel Alves Azevedo
https://orcid.org/0000-0001-8133-3832
João Lucas Poiani Trescentti
https://orcid.org/0000-0002-1801-6882
Referências
BOURDIEU, Pierre.
Os usos sociais da ciência
: por uma sociologia clínica do campo
científico. Tradução Denise Barbara Catani. São Paulo: Editora Unesp, 2004. [1997].
(Conferência e debate organizados pelo grupo
Sciences en Questions
, Paris, INRA, 11 de
março de 1997).
FICO, Carlos. Quem escreve a História: a qualificação do historiador.
In
: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Novos combates pela História
desafios, ensino. São
Paulo: Contexto, 2021. p. 25-50.
LEAL, Bruno.
Fake news
: do passado ao presente.
In
: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (org.).
Novos combates pela História
desafios, ensino. São Paulo: Contexto,
2021. p. 147-174.
NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo e revisionismo histórico no século XXI.
In
:
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Novos combates pela História
desafios,
ensino. São Paulo: Contexto, 2021. p. 85-114.
PORTELA, Millena; PINTO, Maria Aracy Bonfim Serra. Um presente para o futuro: a
distopia contemporânea e suas interseções com a experiência pós-moderna.
Literatura e
Autoritarismo
. Santa Maria/RS, n. 22, p. 121-136, set. 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/LA/article/view/39202/21839. Acesso em 07 dez. 2021.
SCHWARCZ, Lilia Moritz.
Sobre o autoritarismo brasileiro
. 1. ed. 2ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2019.
WOLFF, Francis.
Três utopias contemporâneas
. Tradução Mariana Echalar. São Paulo:
Editora Unesp, 2018. [2017].