Não são muitas as áreas de conhecimento que apresentam um caráter tão
multifacetado quanto a História da Ciência
1
. Localizada na intersecção entre Filosofia,
Sociologia e Antropologia, a disciplina que nome ao presente dossiê passou por
inúmeras transformações durante todo o século XX. George Sarton, e seu inspirador
otimismo relacionado ao “Novo Humanismo” (1988), pôde ilustrar as expectativas em
relação à História da Ciência nas primeiras décadas de 1900:
A história da ciência deve ser [...] usada apenas para seus próprios fins, para
ilustrar imparcialmente o funcionamento da razão contra a irracionalidade, o
desdobramento gradual da verdade, em todas as suas formas, sejam agradáveis
ou desagradáveis, úteis ou inúteis, bem-vindas ou indesejáveis
2
. (SARTON, 1952,
p. XIV, tradução nossa).
Sarton
3
pode ser visto como um dos grandes impulsionadores da área
4
.
Entretanto, muito além das aspirações unificadoras do projeto sartoniano, a História da
Ciência desenvolvida por todo o século XX, e primeiras décadas do XXI, seria marcada
por intensas disputas teóricas a exemplo das controvérsias continuidade
versus
descontinuidade
5
; internalismo
versus
externalismo
6
; dos debates sobre os alcances e
limites do Programa Forte em Sociologia do Conhecimento e do socioconstrutivismo
7
,
1
Esse campo de conhecimento é tão plural que até a nomenclatura “História da Ciência” é colocada em
perspectiva. Muitos têm preferido “História das Ciências” por identificar limitações no primeiro uso.
2
[No original] The history of science should [...] be used only for its own purpose, to illustrate impartially
the working of reason against unreason, the gradual unfolding of truth, in all its forms, whether pleasant or
unpleasant, useful of useless, welcome or unwelcome. (SARTON, 1952, p. XIV).
3
Sarton sempre deixou clara a sua associação à agenda positivista: “De fato, a atividade científica é a única
que é óbvia e sem dúvida cumulativa e progressiva.” (SARTON, 1988, p. 10, tradução nossa).
4
Vale ressaltar que Sarton, além de inaugurar a
History of Science Society
estadunidense, e impulsionar a
História da Ciência em muitos países pelo mundo, criou a
Isis
e
Osiris
, periódicos que se encontram até
hoje entre os mais importantes da área.
5
Entre os continuístas mais famosos, temos Pierre Duhem (1991), Ludwik Fleck (2010), Edward Grant
(1996) e Marshall Clagett (1959). Entre os descontinuístas, Alexandre Koyré (1986), Thomas Kuhn (2013) e
Bernard Cohen (1985).
6
Entre os principais internalistas, temos Koyré (1986) e Duhem (1991). entre os externalistas, Kuhn
(2013), Edgar Zilsel (2003), Robert K. Merton (1938), Boris Hessen (1992).
7
David Bloor (2009), Steven Shapin (2017), Bruno Latour (1994) e Jan Golinski (1998) estão entre os mais
reconhecidos debatedores dessa agenda.
das bases teóricas da pós-verdade e do negacionismo
8
etc. , e o projeto de construção
de uma disciplina “única”, “imparcial”, “positiva” ou que se dedicaria à “busca pela
verdade” foi substituído por uma História da Ciência marcada pelo pluralismo, pela
análise da influência sociopolítica na construção do saber, pela crítica ao autoritarismo e
ao eurocentrismo acadêmico, e muitas outras facetas que compõem a agenda
contemporânea da área.
E é nesse contexto que se insere o presente dossiê. Procuramos congregar
investigações relacionadas às inter-relações entre o fenômeno científico, sua
temporalidade e entendimento na História. Em tempos em que a credibilidade científica é
colocada em segundo plano, sufocada pela ascensão de grupos negacionistas e pela
crescente influência das
fake news
, reflexões críticas sobre a importância e a
historicidade do fenômeno científico tornam-se imprescindíveis. Mais do que qualificar
os debates sobre as diversas crises que permeiam a contemporaneidade, as ciências
exatas, humanas e biológicas cumprem um papel fundamental na mobilização de
alternativas voltadas à superação dos impasses que caracterizam a sociedade moderna.
A proposta do
História da Ciência em debate
se justifica frente ao momento
delicado que vivemos em função da pandemia da Covid-19 e o avanço do discurso de
determinados setores da sociedade que negam o papel que a ciência possui na produção
de conhecimento. A crescente onda de
fake news
no debate blico exige um
posicionamento da academia em termos de retomar o debate sobre o papel da ciência na
sociedade contemporânea e a maneira como a população apreende a produção científica.
Organizamos o dossiê com uma entrevista seguida de 9 artigos orientados a partir
de três eixos temáticos:
Teoria, historiografia e método na História da Ciência
;
Dimensões técnica, tecnológica e político-institucional da Ciência
e
História das Ciências
da Saúde
. Nunca é demais ressaltar que essa separação cumpre apenas uma função
organizacional, que, a rigor, todos os artigos aqui presentes são atravessados por uma
miríade de problemáticas distintas.
Apresentamos, inicialmente, uma entrevista com Steven Shapin, professor de
História da Ciência na Universidade de Harvard, na qual o autor discorre sobre o papel
da História da Ciência na formação de diversas áreas científicas, sobre a crise quanto ao
conceito de verdade e pós-verdade, sobre os limites e alcances da educação científica,
entre outras questões.
A entrevista é sucedida pelo primeiro eixo temático,
Teoria, historiografia e
método na História da Ciência
, conjunto que busca congregar pesquisas de natureza
8
Naomi Oreskes (2019) e Ivan da Costa Marques (2021) são exemplos de figuras contemporâneas do
debate.
epistemológica, que avaliam os limites e alcances conceituais e metodológicos da área e
se propõem a investigar a heterogeneidade da produção historiográfica consolidada.
No primeiro artigo do dossiê,
Duhem e a tese da continuidade: algumas metáforas na
história da ciência
, Amélia de Jesus Oliveira e João Henrique de Oliveira Guarsoni buscam
lançar luz sobre mais um notório elemento que compõe a famosa tese continuísta de
Pierre Duhem: o uso de metáforas. A partir de uma abordagem filosófico-comparativa,
que retoma elementos heurísticos próprios da História da Historiografia das Ciências,
Oliveira e Guarsoni realizam um cotejo entre a tese de Duhem e a perspectiva de alguns
de seus principais críticos. Em sua análise, os autores buscam explorar algumas das
metáforas que compõem o universo analítico duhemiano, investigando a potencialidade
argumentativa do filósofo francês. A continuidade científica em Duhem é representada
por diversas alegorias tais como a da ciência como uma árvore em crescimento, cujos
frutos são colhidos em temporalidades históricas distintas, ou mesmo do
empreendimento científico como um edifício em permanente construção, demolição e
reconstrução. Entretanto, críticos do continuísmo pinçam metáforas duhemianas e as
sintetizam em simplificações reducionistas, tais como a ideia de que a continuidade
deveria ser entendida como uma evolução científica linear e gradual que não comportaria
qualquer ruptura. Ao afirmar o fulgor do legado de Duhem, identificando a potencialidade
simbólica de suas metáforas, Oliveira e Guarsoni lançam luz sobre uma parte ainda
pouco explorada na literatura da Teoria da História das Ciências, evidenciando um
prolífico caminho analítico a ser seguido.
Em seguida, Helena Miranda Mollo e Ingrid Freitas Marques, no texto
Tempos da
Terra: possibilidades para a história da ciência
, passeiam por um tempo de longa duração
para vislumbrar os debates sobre o passado geológico do planeta, a questão ambiental e
o processo de surgimento e desaparecimento de espécies animais e vegetais no globo.
Nesse artigo, entram em cena os estudiosos do setecentos e oitocentos e suas
descobertas que descortinaram os caminhos para o entendimento de períodos históricos
anteriores ao ser humano e sua importância para a compreensão do passado da Terra e
seu impacto nos dias atuais.
O segundo eixo,
Dimensões cnica, tecnológica e político-institucional da
Ciência
, agrupa artigos que investigam as interfaces entre a produção do saber e suas
relações com outras áreas humanas, tais como geopolítica, social, histórica, econômica,
institucional e técnica. Natália Abreu Damasceno, em seu artigo
Promessas de
“desenvolvimento” para a América Latina: experts, cientistas e os projetos de
cooperação técnica dos Estados Unidos (1949-1954),
realiza uma interface entre a
ciência, seus conceitos e as relações políticas, tecnológicas e econômicas que nortearam
a relação entre os Estados Unidos e seus “irmãos” latino-americanos. Ao abordar a ideia
de subdesenvolvimento e as políticas oriundas da potência capitalista voltadas para os
países da América Latina, a autora estuda de que maneira a ciência esteve a serviço das
ações políticas ditadas pelos poderes norte-americanos, em sua abordagem sobre a parte
do globo que consideravam como pertencente a eles. Por meio da atuação de cientistas,
técnicos e toda uma gama de intelectuais, os Estados Unidos puderam consolidar sua
influência e hegemonia na região por meio de uma política de auxílios.
Alexandre Ricardi, em
Da tração animal aos carros invisivelmente propelidos: o
transporte público em Lisboa, 1834-1910 - parte I, o tempo das bisarmas (1834-1873)
,
revela-nos o complexo e fascinante percurso de criação do transporte público da capital
portuguesa. A partir de uma investigação de viés histórico-patrimonial, o autor busca
realizar uma genealogia institucional da consolidação do transporte coletivo lisboeta,
lançando luz sobre os diversos entraves políticos, econômicos, tecnológicos e sociais
que caracterizaram esse enredado processo. A análise inicia-se na década de 30 do
século XIX, com a criação da Companhia de Carruagens Omnibus de Lisboa, e segue até
1873, ano de criação da Companhia Carris de Ferro
.
De perfil acurado, a investigação de
Ricardi aborda diversas peculiaridades técnico-científicas do processo de implementação
do transporte coletivo desde a dimensão mecânica de seges, carruagens e caleches,
dos custos da tração animal, dos desafios urbanísticos, até as dimensões contábil e
gerencial das companhias envolvidas , ilustrando como uma análise em História da
Ciência pode estabelecer profícuos diálogos com distintos campos de conhecimento.
No último texto desse bloco,
Uma História da Ciência, Tecnologia e Inovação no
Brasil: o caso da FAPESP
, Francisco Assis de Queiroz, Marilda Nagamini, Paulo Augusto
Sobral Escada, Marcelo Barros Sobrinho e Marcelo Teixeira examinam a produção
científica brasileira a partir do estudo de caso da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP). No artigo, os autores investigam a fundação da FAPESP e
sua atuação no financiamento da pesquisa em seu estado sede a partir da década de
1960. Além disso, os autores buscam periodizar a atuação da agência de fomento,
reconhecendo a “internacionalização como a última fase. Vale ressaltar a bela
homenagem que os autores prestam à memória do professor Shozo Motoyama (1940-
2021), deferência esta compartilhada pelos coordenadores do presente dossiê.
Por fim, o último eixo,
História das Ciências da Saúde
, busca agrupar estudos que
se propõem a investigar as dimensões sociais, econômicas e, principalmente, históricas
de algumas das chamadas Ciências da Saúde. No artigo
José Ricardo Pires de Almeida: um
vulgarizador das ciências no Brasil do século XIX
, Aline de Souza Araújo França
descortina o desenvolvimento e as práticas médicas existentes no Brasil entre os séculos
XIX e XX. De sua abordagem podemos entender como o avanço da Medicina, sua
divulgação por meio de livros e folhetos, vendidos ou apresentados em jornais e revistas
da época, orquestrou mudanças na maneira pela qual a sociedade brasileira do Império e
do início da República começou a tratar a gravidez e a saúde do bebê. A divulgação das
concepções científicas do oitocentos possibilitou que a Medicina e os médicos que a
representavam começassem a ser vistos como os responsáveis pela saúde da população
em detrimento de outros grupos, como benzedeiras, parteiras, barbeiros, etc. Ao analisar
o manual do médico José Ricardo, a autora do artigo permite que nós, cidadãos do século
XXI, possamos visualizar a compreensão relacionada à saúde e aos cuidados pessoais de
compatriotas de outro período histórico.
Em seguida, Ygor Martins e Valentine Mercier, em
Estratégias das primeiras
psiquiatras brasileiras na consolidação de suas carreiras: a centralidade da psicanálise
para o avanço profissional (1941-1970)
, examinam o papel de mulheres na área da
Psiquiatria no Brasil nas décadas entre 1940 e 1970. A pesquisa utilizou como fontes
alguns jornais de grande circulação no período. Uma das conclusões dos autores se
refere à identificação do maior destaque, em termos nacionais e internacionais, de
profissionais que interagiram com as práticas psicanalíticas. Na pesquisa, os autores
também exploraram a aproximação da história da Psiquiatria com a história das
mulheres, além de abordar o debate acerca da profissionalização da ciência no Brasil e as
discussões sobre questões de gênero. A pesquisa abre perspectivas futuras de maior
exploração do tema em História da Ciência no Brasil.
em
A tranquilidade sob controle surgimento e difusão das drogas ataráxicas
dentro das comunidades médica e farmacêutica na década de 1950
, Gabriel Kenzo
Rodrigues investiga a emergência da produção de drogas ataráxicas de natureza
calmante a partir do contexto econômico e sócio-histórico estadunidense do pós-
Segunda Guerra Mundial. Para isto, e munido da teoria de
coletivos de pensamento
de
Ludwik Fleck e das diretrizes fornecidas pela teoria evolucionária econômica, Rodrigues
analisa o periódico farmacêutico
Pharmacy International
, reconhecendo-o como ponto
de convergência de interesses da indústria farmacêutica estadunidense, como
instrumento de propaganda de medicamentos, como relato do crescimento econômico
do setor e como espelho das novas perspectivas da pesquisa em Farmácia ligadas à
neurofarmacologia a exemplo da criação e comercialização da reserpina, cuja
produção estaria associada ao suposto benefício de seu efeito sedativo nos Estados
Unidos marcados pelo progressivo aumento nos casos de adoecimento mental.
Por fim, fechando o dossiê temático, Raíssa Rocha Bombini, autora de
O corpo
documental para a história da medicina medieval: um estudo de caso sobre os tratados
da Peste Bubônica do século XIV
, analisa a instigante e multifacetada coleção de tratados
médicos medievais que surgiram a partir da chegada da peste bubônica na Europa em
1347. A autora elege três grandes eixos teóricos para orientar o seu estudo: a
contextualização histórico-social dos tratados; a análise de suas dimensões epistêmicas
e a investigação dos documentos a partir da diversidade interpretativa presente na
literatura historiográfica sobre a Peste. Em sua análise, Bombini investiga o caráter
multifacetado da Medicina Medieval: muito além da lógica aristotélica, característica
fundamental da Escolástica, as práticas médicas da época incorporavam dimensões
mágicas e astrológicas tais como o uso de ervas, pedras e partes de animais, e suas
respectivas propriedades ocultas, em tratamentos. Ademais, o estudo da autora busca
revelar o sentimento desolador causado pela moléstia, identificando nos tratados uma
fonte profícua para a História das Mentalidades. A análise destaca, ainda, a natureza
multitemporal e multicultural desses documentos, que notabilizam um
corpus
de
conhecimento repleto de intertextualidade implícita e explícita , estabelecendo
diálogos tanto com autoridades médicas da Antiguidade Clássica como com o legado
intelectual de várias outras culturas a exemplo da árabe e bizantina.
Como se pode perceber, os artigos que compõem o dossiê formam um
harmonioso, e heterogêneo, mosaico de investigações, evidenciando a complexidade e,
ao mesmo tempo, fecundidade da História da Ciência contemporânea. Mais do que lançar
luz sobre a dimensão social que permeia a produção de saber, muito além de captar a
historicidade da ciência e identificar os diversos contextos que circundam
personalidades, práticas e instituições, os textos ora em evidência revelam que a Ciência
é uma empreitada predominantemente humana.
Desejamos uma excelente leitura a todos e todas.
Charles Nascimento de Sá
Doutor em História (UNESP) e Professor da UNEB
https://orcid.org/0000-0001-6096-7369
Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva
Doutor em História (UNESP)
https://orcid.org/0000-0001-8697-2799
Francisco Rômulo Monte Ferreira
Doutor em Neurociências e Comportamento (USP) e
Professor na UFRJ
https://orcid.org/0000-0002-1303-7318
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