, Charles Nascimento de
Doutor em História (UNESP) e Professor da UNEB
https://orcid.org/0000-0001-6096-7369
SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da
Doutor em História (UNESP)
https://orcid.org/0000-0001-8697-2799
FERREIRA, Francisco Rômulo Monte
Doutor em Neurociências e Comportamento (USP) e
Professor na UFRJ
https://orcid.org/0000-0002-1303-7318
Muito conhecido por suas pesquisas relacionadas às interconexões entre a
produção científica e a sociedade, o estadunidense Steven Shapin é um dos nomes mais
notórios no que se refere aos estudos relacionados à Sociologia do Conhecimento.
Nascido em 1943, formou-se em Biologia, em 1966, no Reed College. Em 1967, realizou
estudos na pós-graduação em Genética na Universidade de Wisconsin. Defendeu a tese
A Sociedade Real de Edimburgo: Um Estudo do Contexto Social da Ciência Hanoveriana
em 1971, alcançando o título de doutor em História e Sociologia da Ciência na
Universidade da Pensilvânia. Após lecionar e pesquisar em uma série de universidades de
prestígio, tais como as de Keele, Edimburgo, Pensilvânia e Tel-Aviv, Shapin tornou-se,
em 2004, professor de História da Ciência na Universidade de Harvard, onde permanece
até hoje.
Seu livro mais conhecido, publicado em 1985 em coautoria com Simon Schaffer,
Leviathan and the Air-Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life
, alcançou rápida
notoriedade no campo de estudos da História e Sociologia das Ciências. Dentre várias
contribuições, os autores buscam lançar luz sobre as dimensões sociocultural e política
que caracterizaram a definição de filosofia natural e sobre a natureza multifacetada do
método experimental do século XVII. Tendo como eixo de problematização as disputas
científicas e teóricas entre Robert Boyle e Thomas Hobbes, os autores buscam
evidenciar como as controvérsias epistemológicas podem ser estudadas a partir de seus
respectivos contextos, entendendo que, muito além da perspectiva científica, a
construção do conhecimento é atravessada por muitas outras dimensões humanas, tais
como as disputas dos poderes político, cultural, social e moral. Mais do que impactar
decisivamente o campo de estudos da História das Ciências, o livro se tornou referência,
consagrando Shapin e Schaffer autoridades da área, ao lado de nomes de peso tais como
David Bloor e Bruno Latour.
Em suas últimas reflexões, Shapin tem se dedicado à temática da “Crise da
Verdade”, trazendo contribuições inovadoras ao debate. Muitos especialistas
contemporâneos têm estabelecido uma relação direta entre essa crise e a emergência de
grupos negacionistas. A pós-verdade estaria associada, segundo esses pensadores, à
política de desinformação e a projetos de poder da “nova” extrema direita. Assim,
constatada uma “crise na ciência”, a saída seria o aumento de investimentos na educação
científica da população. Em contrapartida, Shapin defende que a atual crise não está
necessariamente ligada à ausência de educação científica, mas sim a uma crise de
credibilidade das instituições ligadas ao saber. E é justamente o ineditismo de sua
perspectiva que nos fornece subsídios para a entrevista que se segue.
Registramos nosso imenso agradecimento ao professor Steven Shapin, que
respondeu, com muita diligência, todas as perguntas. Mais do que fornecer novos
elementos para entender o atual contexto negacionista, o autor reitera seu compromisso
em identificar a dimensão social do conhecimento, mostrando que, mesmo em um
contexto de reavaliação epistemológica, a dimensão humana cumpre um papel fulcral na
construção de uma ciência genuinamente crítica.
1. Professor, o texto
Is There a Crisis of Truth?
, publicado em 2019 pela Los Angeles
Review of Books, traz contribuições que nos fazem reavaliar a forma como concebemos
o problema da “Crise da Verdade”. Entre as provocações mais surpreendentes, o senhor
sugere que essa Crise não é motivada pela falta de cultura científica dos negacionistas.
Estes, na verdade, buscariam assumir uma postura de objetividade investigativa
surpreendentemente parecida com a de cientistas “A noção de ciência dos
negacionistas parece às vezes, por assim dizer, hipercientífica” (“The deniers’ notion of
science sometimes seems, so to speak, hyperscientific”). Nesse contexto, como
poderíamos fazer a distinção entre uma epistemologia realmente científica e uma teoria
falaciosa e negacionista?
Não nenhuma fórmula que eu conheça que possa fazer esse trabalho de
distinção de modo viável. Isto é cada vez mais reconhecido por historiadores e
sociólogos da ciência como também o tem sido por alguns eminentes cientistas.
Einstein, por exemplo, quando questionado sobre como reconhecer a diferença entre
ciência genuína e pseudociência, respondeu "Não nenhum teste objetivo"
1
. muito,
os filósofos procuram "critérios de demarcação", e estes critérios têm-se centrado
geralmente em alguma noção de
Método Científico
único, coerente e eficaz. Mas existem
problemas com esse critério. Sabemos que os filósofos diferem nas suas concepções do
que esse Método Científico pode ser, e alguns filósofos nem sequer acreditam que
um
Método Científico específico, um que se obtém em todas as disciplinas científicas e em
todas as ocasiões (por exemplo, Feyerabend, Rorty, Kuhn). Em segundo lugar, se estamos
preocupados como deveríamos estar com a forma como a ciência genuína é
reconhecida não pelos filósofos, mas pelo público em geral, isto torna o problema ainda
mais difícil de resolver. Como sabemos, é difícil o suficiente esperar que o público
discernisse o conhecimento científico autêntico e grande parte do público recebeu ao
menos uma educação científica rudimentar –, mas agora esperaríamos que diferenciasse
a
filosofia da ciência
correta e isso não é remotamente realístico. Membros do público,
além de jornalistas e políticos, por vezes fazem acenos a versões do
Método Científico
,
mas quase sempre o fazem com base em rumores, não por meio de qualquer tipo de
familiaridade com o que os filósofos consideram defensável. Nem o público está mais de
acordo sobre a natureza do Método Científico que os próprios filósofos.
A este respeito, constato que a sua indagação é sobre como "nós" devemos
distinguir entre uma "epistemologia" científica e uma "teoria falaciosa" e insisto que
devemos nos preocupar em pensar uma "crise da verdade" a partir da opinião pública. E
aqui a pertinência das "epistemologias" e das "teorias" da ciência é problemática. "O
público", penso eu, reage às afirmações científicas em circunstâncias específicas, na
medida em que se relacionam com ações específicas e com base em interesses
específicos. Estão pouco preocupados com "teorias" ou "epistemologias" da ciência; não
refletem sistematicamente sobre a natureza da ciência e não penso que haja algo de
errado nisso.
No ensaio "Crise da Verdade", introduzo a noção de
hiperciência
como uma forma
imperfeita como é, e sujeita a muitas qualificações de o público poder adquirir
1
I. B. Cohen, Interview with Einstein, Scientific American (July 1955), p. 70.
algumas sensibilidades úteis para distinguir o genuíno do falso, defeituoso, ou não
confiável
2
. Observo que muitas práticas científicas mais seguras em seus saberes
não
anunciam em voz alta o direito à
cientificidade
, nem proclamam a sua especial adesão
aos supostos
valores
ou
normas
da ciência. Químicos, biólogos marinhos,
neurofisiologistas, por exemplo, empregam todos os tipos de
métodos
para fazer o seu
trabalho, mas a sua formação geralmente não os introduz às noções do
Método
Científico
, nem habitualmente declaram a sua adesão a tal
Método
ou se entusiasmam
em abraçar noções do tipo "valores científicos essenciais". Raramente defendem a
autenticidade dos seus saberes ou apontam com intensidade para os defeitos de outros
corpos de conhecimento (Estas coisas podem, claro, acontecer, mas parecem estar
reservadas para ocasiões tão especiais, como discursos de aposentadoria,
autobiografias, discursos para crianças em idade escolar, ou certos tipos de escrita
popular). Em contraste, existem práticas onde a preocupação com o
Método Científico
e
as proclamações de lealdade aos valores científicos fundamentais fazem parte da rotina.
Este é o gênero ao qual eu chamo de hiperciência: é, por assim dizer, um exemplo de "ser
mais realista do que o Rei".
Este tipo de insistência enérgica na autenticidade científica e no seguimento
rigoroso do
Método Científico
está, muitas vezes, intensamente associado a práticas cuja
ortodoxia ou veracidade são disputadas, cuja posição na comunidade científica geral é
insegura, ou com aqueles corpos de conhecimento por vezes chamados
pseudociência
parapsicologia, Ciência da Criação, muitos tipos de posicionamentos "anti-vacina" e
negação das alterações climáticas. É claro que existem práticas nas quais a insegurança
"surge honestamente" e aqui pensa-se em muitas das ciências humanas, muitas
interpretações que também parecem estar obcecadas pelo
Método
. Mas penso que, em
geral, o ceticismo da hiperciência pode ser uma primeira abordagem útil na ordenação
das práticas que merecem, ou não, confiança. A hiperciência, como dizemos na língua
inglesa, "reclama demais"
3
. É como um amante manifestando que
realmente te ama
, ou
quando, de repente, ele traz para casa um enorme ramo de flores. É quando se pode,
justificadamente, suspeitar que algo es errado. Por vezes não está! o amante pode
apenas estar de bom humor –, mas é um sinal!
2 - Professor, ainda em relação ao artigo Is There a Crisis of Truth?, o senhor afirma que
“a Crise da Verdade é melhor descrita como uma Crise de Conhecimento Social e,
2
Veja também Steven Shapin, “Catastrophism,” London Review of Books 34, no. 21 (8 November 2012), pp.
35-38.
3
Originalmente o autor utilizou a expressão “protests too much”.
especificamente, como uma Crise de Instituições - de autoridade e legitimidade
institucional. (“The Crisis of Truth is better described as a Crisis of Social Knowledge
and, specifically, as a Crisis of Institutions of institutional authority and legitimacy”).
O que seria o “Conhecimento Social” nesse contexto?
As soluções metodológicas propostas para a demarcação não têm um histórico
muito bom. Isso soa como um julgamento deprimente, mas todos os tipos de pessoas
possuem fragmentos de conhecimento científico e, de tempos em tempos, encontram-se
avaliando alegações científicas concorrentes. Os acadêmicos têm se ocupado com a
pergunta “Como as pessoas
deveriam
fazer esta avaliação?” mas têm tendido a
negligenciar a pergunta “Como
realmente
a fazem?”.
É em resposta a esta última pergunta que introduzo a noção de "conhecimento
social" e mostro como essa categoria pode funcionar, e como tem funcionado, para
auxiliar não para
resolver
em sua totalidade no problema fundamental de “depósito
de confiança” isto é, na procura de fontes de conhecimento científico confiáveis e na
dimensão crível do que fornecem. Não quero dizer com esta noção de "conhecimento
social" nada de muito sofisticado. No meu uso, o
conhecimento social
não é uma
teoria
da sociedade ou uma
epistemologia social
. Em vez disso, é o tipo de conhecimento
amplamente utilizado para formar crenças e orientar ações do dia a dia e em
circunstâncias cotidianas. Muito do que sabemos sobre o mundo natural é conhecido
indiretamente
, ao encontrarmos fontes de confiança e ao acreditarmos no que dizem. A
confiança é uma forma ineliminável através da qual todos nós adquirimos e avaliamos as
declarações do conhecimento. Historicamente, a confiança tem tido uma má reputação: é
melhor acreditar nas evidências obtidas pelos seus próprios olhos do que aceitar o
testemunho dos outros. Mas pouco do que realmente sabemos provém da nossa própria
experiência direta, e, se a confiança por vezes nos leva ao erro, também nos leva ao
acervo de conhecimentos que consideramos verdadeiro.
Faz parte do
conhecimento social
confiar nos pais e professores como fontes de
conhecimento; orientar o comportamento do amanhã pelas previsões meteorológicas das
agências oficiais; considerar que os mecânicos bem avaliados de automóveis são capazes
de diagnosticar corretamente os problemas dos motores e de corrigi-los. É isso que
quero dizer com
conhecimento social
, o tipo de conhecimento que é normalmente
necessário para acumular e ajustar o seu conhecimento do mundo, incluindo o
conhecimento do mundo natural.
O conhecimento social os pais talvez sejam uma exceção é encontrado
através de
instituições
: escolas, universidades, agências governamentais (locais,
nacionais, internacionais), as profissões (das quais a ciência e a medicina são as mais
importantes para o conhecimento natural) e, em certos casos, até mesmo corporações. É
através do conhecimento social que adquirimos rotineiramente o nosso conhecimento
científico tal como o possuímos – e isso inclui pessoas cultas e os próprios cientistas: se
você souber muito sobre meteorologia, pode, entretanto, saber muito pouco sobre como
os vírus se comportam, e assim por diante. Portanto, todos nós temos que encontrar
fontes institucionais que consideramos críveis tanto em geral como em circunstâncias
específicas.
Isso é simples quando as instituições são respeitadas e quando falam com uma
voz. Mas qual é a fórmula quando as vozes institucionais dizem coisas
diferentes
? E qual
é a regra quando as pessoas pensam de forma
diferente
sobre se instituições específicas
falam a verdade ou se são corruptas e voltadas para o seu próprio interesse? Esta
instabilidade é exatamente o problema que agora enfrentamos. Não podemos esperar
resolver o problema da crença na falácia dizendo apenas "confie nos cientistas do
governo" ou "confie nas universidades de elite" ou "confie no consenso científico", e isso
porque a confiança nas instituições do Estado, na educação de elite e mesmo da
comunidade científica tem sido significativamente corroída. Sabemos que, nos dias de
hoje, muitas pessoas
não
confiam que o governo fala a verdade ou que tem, em seu
âmago, nossos interesses coletivos; sabemos que muitas pessoas preferem o discurso
dos pastores fundamentalistas ao dos cientistas de Harvard ou Oxford; sabemos que a
Internet é uma cafeteria interminável de Coisas-Em-Que-Podemos-Acreditar”
4
sobre
as alterações climáticas, sobre a COVID, sobre a origem das espécies e sabemos que
muitas pessoas vivem, na Internet, em uma espécie de "câmara de ecos", que construíram
para validar e reforçar suas crenças existentes. Sabemos que muitas pessoas contestam
a autoridade do consenso científico, ou interpretam o consenso como um sinal de
conspiração. E não parece que recordar às pessoas "o que a ciência diz" – repetidamente
e mais alto esteja tendo um grande efeito na resolução do problema da crença na
falácia. Isto é uma prova de que a confiança nas
instituições
tem decaído algum
tempo, e as instituições que costumavam comandar a credibilidade em assuntos
científicos fazem-no de forma menos intensa do que costumavam fazer. As instituições
que falam em nome da ciência não são as únicas neste contexto:
muitas
instituições que
antigamente eram reconhecidas como de confiança geral não têm a credibilidade de
outrora instituições financeiras, instituições jurídicas e políticas, as instituições de
jornalismo e os meios de comunicação social. Não me cabe aqui abordar o
porquê
de
tantas instituições estarem sofrendo uma crise de credibilidade, mas devo salientar que a
4
O autor utilizou o termo “Things We Might Believe”.
ciência não é especial em relação a isso e que, nos últimos tempos, a ciência tem se
vinculado muito estreitamente às instituições do governo e às empresas de modo que
seus problemas de credibilidade tornam-se, em grande medida, os problemas da ciência.
3 - Tal como a era Trump nos EUA, o Brasil tem vivenciado um período bastante crítico
em relação ao pensamento científico. O nosso atual governante Jair Bolsonaro não
apenas negligenciou a compra de vacinas durante boa parte da pandemia de COVID-19,
incentivando o consumo de remédios ineficazes contra o rus, como também es
promovendo uma política ambiental que nega o aquecimento global. O senhor acredita
que a ascensão desses líderes negacionistas nos postos mais importantes de seus países
significa o ápice desse processo sócio-histórico chamado Crise da Verdade? Como as
reflexões da História das Ciências poderiam ajudar a qualificar esse debate?
Tanto Trump como Bolsonaro, seja no COVID-19, seja nas alterações climáticas,
podem ser vistos como efeitos e como causas dos nossos problemas atuais. Por um lado,
falam em nome do Estado, a instituição central que supostamente deve assegurar o bem-
estar e a segurança do povo; por outro lado, eles se estabelecem como árbitros da
verdade científica, se portando como o ponto central que deve, supostamente, definir as
respostas políticas. Diz-se, geralmente, que eles representam "anti-ciência", mas penso
que precisamos de uma interpretação mais matizadas.
várias circunstâncias gerais que precisam ser enfatizadas na discussão sobre
as relações entre o poder político e os conhecimentos científicos. Em primeiro lugar, os
cientistas falam por uma única voz, e em áreas estabelecidas da ciência por exemplo,
aritmética, física clássica, química inorgânica –, o tipo de coisas que estão nos livros
didáticos e que são ensinadas nas escolas. Mas os domínios da ciência que cada vez mais
fornecem conhecimentos importantes ao governo
não
estão, muitas vezes, estabelecidos
dessa forma. Como em todas as áreas da Ciência-em-Produção
5
, e em muitas áreas da
ciência que abordam situações complexas,
variações
entre as opiniões dos cientistas
de renome. A Ciência em ação não é a ciência dos livros didáticos, sendo normal que haja
um grau de heterogeneidade. Os cientistas exprimem opiniões diferentes sobre o futuro
tanto da pandemia como do clima, e não forma de evitar que mesmo governos
competentes e bem-intencionados tenham que decidir entre vozes de especialistas
diferentes e até mesmo concorrentes.
Aqueles de nós que estão chocados com Trump e Bolsonaro estão confiantes
tanto sobre aonde podemos encontrar conhecimento genuíno como de que existe
5
Autor utilizou originalmente o termo “science-in-the-making”.
consenso entre os especialistas autênticos. Trump e Bolsonaro, nós dizemos, decidiram
de maneira incorreta; ignoraram a experiência científica. Mas
não podemos
dizer que
estão enfrentando circunstâncias diferentes das de, digamos, Biden ou Macron. Tanto os
bons líderes políticos quanto os maus dizem que estão "seguindo a ciência", mas tanto os
bons como os maus tiveram de decidir
qual
ciência seguir – ou seja, em quais cientistas e
instituições científicas confiar.
As pessoas de pensamento sensato
6
estão igualmente confiantes de que Trump e
Bolsonaro viram mais variações entre as opiniões dos experts do que realmente existem
ou mesmo que
fabricaram
dissensos onde existe um autêntico acordo de especialistas
mas ambos podem apelar à sensibilidade de longa data que afirma que a ciência progride
através da
oposição
à ortodoxia, indo
contra
os consensos. E podemos dizer que Trump
e Bolsonaro usam erroneamente o instinto pessoal e os rumores para escolher a
expertise que mais os favorece ou mais se adeque às suas agendas políticas. As políticas
que resultaram dos seus julgamentos foram desastrosas, mas é realmente necessário
pensar cuidadosamente na explicação do que está errado na forma
como
procederam.
Eles próprios conhecem pouca ou nenhuma ciência, assim como a maioria dos outros
líderes políticos que tem melhores juízos. Eles decidiram a qual ciência ouvir, mas Biden
e Merkel também o fazem. (A Chanceler alemã, recordemos, era uma cientista, mas,
sendo mais específico, uma física, sem qualquer competência particular em imunologia
ou meteorologia). Trump e Bolsonaro, dizemos nós, laçam mão de "juízos intuitivos"
7
em
questões técnicas, mas também o fazem muitos líderes políticos que admiramos. Trump e
Bolsonaro suspeitam dos consensos entre os chamados especialistas, mas muitos de nós
aplaudem, nos dias atuais, os políticos que rejeitaram o consenso neoliberal dos
especialistas em economia antes do crash financeiro de 2008.
Não faço esta observação para defender Trump e Bolsonaro eles são
indefensáveis –, mas os líderes políticos devem sempre tomar "a decisão final" sobre os
usos e aplicações da expertise científica: queremos viver em uma democracia eleita e não
em uma tecnocracia. O conhecimento especializado em sociedades democráticas deve
estar sempre à altura “do toque” e não “do topo”
8
. E os críticos têm que enfrentar as
dificuldades em encontrar uma fórmula clara e coerente sobre qual expertise deve ser
ouvida. Deveríamos dizer que Trump e Bolsonaro são "anti-ciência" ou deveríamos
abordar o problema de como os seus
conhecimentos sociais
diferem do que gostaríamos
6
O autor usa a expressão “Right-thinking people”.
7
O autor usa a expressão “gut judgments”.
8
Neste trecho, a tradução buscou preservar o sentido da frase, realizando uma pequena alteração xica
para manter seu sentido informal. Originalmente, Shapin utiliza a expressão ‘be “on tap” and not “on top”’.
que fossem? A distinção é importante, uma vez que as tentativas de remediar o problema
devem ser atualizadas pela nossa compreensão do que
é
o problema.
4. Como o senhor acha que os estudos em História da Ciência podem contribuir para a
formação dos jovens pesquisadores em História e em outras áreas de conhecimento que
não atuam diretamente com História da Ciência?
Durante muito tempo, a história acadêmica profissional pareceu tratar a ciência e
a tecnologia como
algo diferente
atividades e realizações humanas que não podem ser
descritas e interpretadas utilizando métodos e sensibilidades históricas comuns. A
história é agora largamente definida pela história política, história militar, cada vez mais
pela história social, econômica e cultural, história dos gêneros, das raças e dos grupos
étnicos de países, regiões e períodos distintos. A maioria dos departamentos de história
não empregam frequentemente pesquisadores de ciência, tecnologia e medicina.
Observam essas áreas, eventualmente, como marginais ou como
tratadas em outros
lugares
, por exemplo, pelos poucos departamentos de história da ciência, medicina e
tecnologia ou nos próprios departamentos de ciência. Isto é lamentável: separa áreas
fundamentais e relevantes da atividade humana da investigação histórica profissional, e é
especialmente insustentável na história moderna, quando a ciência, a tecnologia e a
medicina são inegavelmente poderosos motores de mudança política, social e cultural.
No entanto, eu não interpretaria de forma demasiada as causas desta negligência.
O sistema educacional em muitos países tende a fazer uma separação
precoce entre aqueles que passam para as especialidades científicas e tecnológicas e
aqueles que se interessam pelas ciências humanas. Isto costumava ser conhecido como o
problema das
Duas Culturas
: as pessoas que sabem muito sobre literatura e história
tradicional tendem a saber pouco sobre ciência, e
vice-versa
. Suspeito que os
historiadores convencionais não pensam realmente que a ciência e a tecnologia são
historicamente
irrelevantes
; pelo contrário, apenas acham o material
difícil
,
desafiador
,
"
técnico
",
inacessível
e é por isso que estes tópicos tendem a ser negligenciados.
historiadores confiantes de que podem aprender uma língua estrangeira ou discernir o
significado dos registos matrimoniais do século XVII, mas que tendem a recuar
horrorizados quando confrontados com a tarefa de interpretar textos matemáticos do
século XVIII ou artigos do século XIX sobre química orgânica. No entanto, não é óbvio
que tal material seja mais "técnico" do que os primeiros documentos eclesiásticos
alemães modernos.
Devo também acrescentar que alguns dos fundadores da disciplina da história da
ciência na primeira parte do século XX nomeadamente George Sarton, de Harvard
argumentaram vigorosamente que a ciência era
realmente
um assunto especial, um
assunto que os historiadores em geral
não
conseguiriam compreender e documentar
adequadamente. Afirmaram até mesmo que a ciência
estava fora da história
: você não
poderia dizer que, por exemplo, F = ma, E = mc
2
, ou a teoria da evolução pela seleção
natural e o estatuto do DNA como portador de informação genética eram realmente
objetos históricos, visto que eram fatos "verdadeiros" mesmo
antes
de serem
descobertos e seriam verídicos mesmo que
nunca
tivessem sido descobertos. Os objetos
científicos são historicamente importantes, e podem ser considerados como fontes
importantes de mudança histórica, mas, fora da história da ciência acadêmica, presume-
se largamente que lhes falta
historicidade
.
E penso que esse sentimento pode também parecer convincente para muitos
historiadores convencionais, alguns dos quais não estão muito seguros do que os
historiadores da ciência
fazem
ou assumem que a sua tarefa é julgar "quem descobriu o
quê" ou "quem merece crédito". Não é necessário, espero, dizer que os historiadores da
ciência não viram isto como seu trabalho por muitos anos.
5 - Professor Shapin, desde a geração do círculo de Viena, os filósofos da ciência estão à
procura de critérios de racionalidade que justifiquem a ciência em detrimento de seus
condicionantes histórico-sociais. Mesmo na chamada geração de filósofos historicistas
(Thomas Kuhn, Laudan, Lakatos e outros) essa tentativa permaneceu. Podemos afirmar
que essa questão foi superada na virada para o século XXI? Os valores pragmáticos
como critério epistêmico para o sucesso da Ciência venceram essa "contenda"?
fiz algumas observações sobre os
critérios de demarcação
, com especial
referência à metodologia. E você tem razão em afirmar que alguns filósofos da ciência
modernos manifestaram ceticismo quanto à possibilidade de se encontrar tais critérios.
Você diz que a tentativa de localizar os princípios de demarcação “permanece”, pelo que
presumo, quando diz que filósofos que ainda tomam a procura de demarcações
estáveis como uma tarefa adequada ou que até acreditam ter encontrado um princípio
defensável. Isso é uma verdade inegável, mas a sua sugestão de que versões
do
pragmatismo
se tornaram cada vez mais influentes é importante, especialmente se
nos movermos daquilo que os
filósofos
acreditam em direção às “filosofias da ciência”
informais que circulam na cultura mais ampla. O que geralmente é pensado sobre a
natureza da ciência e o que justifica o conhecimento científico? Neste sentido, penso que
alguma versão do pragmatismo é, de longe, o sentimento mais amplamente distribuído e
mais importante. O que é geralmente levado em consideração para distinguir a ciência da
não-ciência, do erro ou da pseudociência, é a
eficácia
. A ciência é
o que funciona
, o que
produz tecnologias, intervenções ou previsões. Essa sensibilidade, naturalmente, tem um
pedigree que remonta a Francis Bacon no século XVII, mas tornou-se bastante difundida
nos dias atuais e é frequentemente articulada pelos próprios cientistas, especialmente
quando buscam justificar a pesquisa às fontes de financiamento. Uma sensibilidade
pragmática, ou utilitarista, agora associa práticas que outrora eram rigorosamente
distintas ciência e tecnologia. E, a propósito, também marginaliza a categoria de
Verdade, precisamente em um momento em que tantas pessoas dizem que estamos em
meio a uma Crise da Verdade.