BOMBINI, Raíssa Rocha *
https:// orcid.org/0000-0003-2562-287X
RESUMO: Com a chegada da Peste Bubônica
em 1347 à Europa, e em meio à urgência do
cenário catastrófico que se instaurou,
começaram a surgir, logo nos primeiros anos
da epidemia, tratados sobre a pestilência
escritos por médicos e professores ligados,
principalmente, aos principais centros de
medicina do continente. A partir do estudo de
caso fornecido por tais tratados médicos
produzidos durante os surtos da Peste na
segunda metade do século XIV, discute-se a
importância que essa documentação teve para
o estudo da medicina medieval. Para isso,
apresentamos o conteúdo geral proposto
nessas obras em sua relação com o contexto
de sua produção, com a historiografia e com
diversos campos do conhecimento aos quais
estavam ligadas, dando destaque à análise
epistêmica.
PALAVRAS-CHAVE: história da ciência;
história da medicina; século XIV; Peste
Bubônica; documentação.
ABSTRACT: With the arrival of the Bubonic
Plague in 1347 in Europe, and along with the
urgency of the catastrophic scenario that
occurred, treatises on the pestilence written
by doctors and professors linked mainly to the
main centers of medicine of the continent
began to appear. Based on the case study
provided by such medical treatises produced
during the outbreaks of the Plague in the
second half of the 14th century, we discuss the
importance that this documentation had for
the study of medieval medicine. For this, we
present the general content proposed in these
works in relation to the context of their
production, with historiography and with
various fields of knowledge to which they
were linked, highlighting epistemic analysis.
KEYWORDS: history of science; history of
medicine; 14th century; Black Death;
documentation.
.
Recebido em: 21/07/2021
Aprovado em: 08/10/2021
* Doutora em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse artigo
é um desdobramento da tese da autora, intitulada: Entre poções e amuletos: o uso de pedras preciosas na
Peste Bubônica do século XIV”. e-mail: rabombini@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O estudo da história da medicina medieval tem uma longa trajetória e uma
importância particular para os historiadores da ciência. Ele permite a um pesquisador se
debruçar sobre os mais diferentes documentos. Isso porque, assim como a própria Idade
Média é composta de povos, períodos e culturas bem diferenciados, a medicina medieval
também é complexa e multiforme. Dos
Euporista
e
De medicamentis
do século V
(PLOUVIER, 1993, p. 102), passando pelo
Bald's Leechbook
do século X, pelos primeiros
tratados da Peste Bubônica ainda em 1348 e chegando ao
Chirurgia magna
(1363) de Guy
de Chauliac (c. 1300 1368), o estudioso que se aventurar por esse campo encontrará
uma riqueza de saberes e materiais para análise.
Discutir toda a documentação que sustenta os estudos dessa área seria uma
empreitada de notória contribuição, porém não é possível realizá-la em um artigo.
Abordamos aqui, portanto, apenas um tipo de documento, essencial para o estudo dos
conhecimentos médicos do final da Idade Média, por ser uma expressão intelectual que
misturava o legado de
auctoritates
1
com a novidade dos
magistri moderni
2
: os tratados
feitos sobre a Peste Bubônica na segunda metade do século XIV. Nossa proposta é
mostrar como essa documentação, em suas articulações com as fontes, com outros
campos de estudo e outros textos, traz um universo de saberes e abre muitos caminhos
ao historiador da ciência.
Devemos compreender os tratados médicos como parte das ciências e do
conhecimento de sua época. Assim, podemos estudá-los enquanto um conjunto de
documentos que falam sobre o período em que se inserem. Eles respondem
determinadas perguntas, tais como: quem estava naquele momento de grande
emergência e busca de respostas? Quem são as figuras que fizeram com que esses
documentos fossem gerados? Em qual círculo intelectual elas se inserem? Apenas ao
compreender todas essas relações, o historiador da ciência transforma textos antigos em
um verdadeiro
corpus
documental. Esse trabalho propriamente epistêmico de análise
traz à luz um conjunto substancial de ideias e práticas importantes ao período. Os
documentos devem ser estudados, portanto, como sínteses particulares de ideias prévias
e contemporâneas a eles.
A análise epistemológica é uma das três esferas de análise propostas pela equipe
de pesquisadores do
Programa de Estudos Pós-graduados em História da Ciência
da
1
Autores e obras antigas e medievais que ganharam tamanha importância por seus conhecimentos que se
tornaram a base para grande parte dos saberes da época e, consequentemente, para os
curricula
das
universidades.
2
Como foram chamados, no próprio século XIV, os médicos que atuavam contra a Peste Bubônica.
Voltaremos a isso adiante no artigo.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e do
Centro Simão Mathias para
Estudos em História da Ciência
(CESIMA/PUC-SP). Quando interligadas, as esferas
contribuem com uma melhor compreensão e melhor desenvolvimento da pesquisa
científica. São as seguintes: uma primeira diz respeito aos condicionamentos históricos
e sociais que circundam o corpo documental. Nesse sentido, os documentos são
estudados em termos de produção de uma época. No caso dos tratados médicos sobre a
Peste Bubônica, essa época é composta pelo crescimento das universidades, pela
chegada da pestilência e por todos os eventos políticos e sociais que ocorreram no
século XIV. Uma segunda esfera, mencionada acima e mais bem desenvolvida na segunda
parte deste artigo, envolve a análise epistêmica interna aos documentos referidos,
considerando-se o assunto sob análise e consistindo nas articulações com outros
documentos. Por fim, uma terceira seria a abordagem historiográfica utilizada no estudo,
correspondente aos trabalhos realizados por outros especialistas, prévios ou
contemporâneos (ALFONSO-GOLDFARB, 2008, p. 7-9; FERRAZ; ALFONSO-GOLDFARB;
WAISSE, 2013, p. 44-45).
Sobre a abordagem historiográfica, sabemos que alguns trabalhos ocuparam-se da
medicina da Peste ao longo das últimas décadas, mencionando, assim, os tratados
médicos. Um deles é um artigo do historiador Nicolas Weill-Parot sobre a racionalidade
própria à medicina escolástica” (WEILL-PAROT, 2004, p. 73-74), intitulado
La rationalité
médicale à l'épreuve de la peste: médecine, astrologie et magie (1348-1500)
. Neste artigo
de 2004, o estudioso analisa o papel da magia e da astrologia na etiologia e no proposto
tratamento para a pestilência. Principalmente, analisa se esses conhecimentos teriam
afastado a racionalidade da medicina nesse período, chegando à conclusão que não seria
o caso (WEILL-PAROT, 2004, p. 73-88). De fato, sabemos que a magia e a astrologia
sempre estiveram presentes, implícita ou explicitamente, na prática médica desde a
Antiguidade, por exemplo no uso de ervas, pedras e partes de animais com propriedades
ocultas em tratamentos, o que se manteve por toda a Idade Média inclusive na
medicina da Peste principalmente com o desenvolvimento das ideias de magia natural.
Podemos citar ainda o trabalho do estudioso Jon Arrizabalaga, que fez um
panorama dos primeiros tratados produzidos com a chegada da Peste Bubônica, em 1348
e 1349, como as primeiras percepções e reações dos médicos à emergência que se
apresentava (1994, p. 237-288). Outro panorama das “respostas médicas” à chegada da
Peste é dado por John Aberth em um capítulo de seu livro
The Black Death: The Great
Mortality of 1348-1350: A Brief History with Documents
, de 2005 (ABERTH, 2005).
Recentemente, o autor expandiu esse capítulo em um novo livro, intitulado
Doctoring the
Black Death: Medieval Europe's Medical Response to Plague
(ABERTH, 2021).
Esse pequeno comentário da abordagem historiográfica indica como os
tratados médicos são e continuam sendo uma documentação riquíssima e fecunda
para o estudo da medicina medieval do século XIV, sendo aludidos pelos estudiosos
muitas décadas. Ainda podemos explorar esses textos em sua relação com as fontes, com
as outras ciências da época e com os materiais e ideias que os circundavam naquele
período. Faremos, a seguir, algumas dessas análises, levando em consideração as três
esferas já mencionadas.
Lembramos que o estudo sobre os tratados médicos feitos no período da Peste
é possível graças ao esforço monumental de grandes estudiosos do século XIX e início
do XX, tal como Karl Sudhoff, na Alemanha, Salvatore de Renzi, na Itália, Charles
Daremberg, na França, e Dorothea Singer, na Inglaterra (WALLIS, 2010, p. xix). Esses
historiadores filólogos versados em latim e grego dedicaram-se exaustivamente a
encontrar, compilar, publicar e analisar vastos grupos de documentos em medicina
medieval, possibilitando que um campo de estudo inteiro fosse descoberto e explorado
nas últimas décadas.
Os tratados médicos da Peste Bubônica
Os tratados produzidos nos períodos de surtos da pestilência nos mostram muito
mais do que os conhecimentos medicinais que os estruturavam. Muitas vezes, eles
fizeram o papel das crônicas, mostrando os caminhos da Peste e o sentimento de
desolação e desespero que pairava no período. Sabemos que os historiadores
frequentemente recorreram a crônicas monásticas e seculares para relatarem a história
da Peste Bubônica na Europa, identificando sua chegada pela Itália em 1347, o número de
mortes em cada reino e principais eventos que se seguiram a partir daí. Partem, assim,
do pressuposto defendido por Lynn Thorndike de que é necessário olharmos para a
história local das cidades, das províncias, vilas e para os registros de indivíduos se
quisermos encontrar as marcas de destruição que a Peste Bubônica causou, algo que
passaria despercebido na macro história dos reis e das guerras (THORNDIKE, 1927, p.
455).
Contudo, também a história da medicina, afirma Thorndike, conta-nos sobre a
Peste. Afinal, cada manuscrito e cada texto desse período parece conter sinais do horror
que ocorria em sua volta quando foi escrito (THORNDIKE, 1927, p. 455). Os tratados
médicos, com suas frutíferas informações sobre a pestilência, também nos permitem
compreender o contexto dessa época catastrófica. Isso porque o caminho da pestilência
pelo continente e pelas ilhas britânicas foi, também, o caminho da medicina. Esses
caminhos passavam por mosteiros e seus cronistas, por cidades, vilarejos e portos, por
faculdades e seus estudiosos, de forma que os expoentes de mortalidade mais cedo ou
mais tarde eram seguidos por expoentes de estudos sobre a doença.
Um exemplo disso é o tratado do médico Gentile da Foligno (f. 1348), um dos
principais nomes da medicina do século XIV, atuando na cidade de Perugia no período
em que a pestilência se espalhava pela Itália. Gentile da Foligno, em alguns de seus
tratados, detalhes do caminho da pestilência pela costa oeste da Itália, informando
que esta, depois de se manifestar em janeiro, “[...] veio à Pisa, Piombino, Massa e agora
está em Nápoles.” (SUDHOFF, 1912, p. 333). Antes disso, quando a epidemia chegava à
Úmbria, o estudioso apresentou ao colegiado de médicos de Perugia, possivelmente a
pedido da universidade e da cidade (ARRIZABALAGA, 1994, p. 241), um grande
Consilium
no qual afirmava que:
[...] a pestilência, que ocorreu em Janeiro, que veio de partes orientais e
meridionais e ocupou todos os lugares do mar e veio à cidade de Perugia, no ano
de Deus 1348 [...] essa pestilência ou epidemia ou qual nome é nomeada é muito
temida, nunca ouvida nem vista em livros [...]. (GENTILE DA FOLIGNO, 1348,
apud
SUDHOFF, 1912, p. 332).
Nesse mesmo sentido, temos o tratado do mestre Jacme D'Agramont (f. 1350),
médico catalão e professor da universidade de Lérida, que redigiu, provavelmente, o
primeiro tratado sobre a grande pestilência, ainda em abril de 1348, anterior ao do
próprio Gentile da Foligno, enquanto a Peste se aproximava por regiões vizinhas. Esta
obra mostra como a medicina logo acompanhou o caminho ibérico da doença. Esse
tratado foi endereçado às autoridades civis da cidade, de onde Jacme D'Agramont era
nativo (SARTON, 1993, p. 862; DURAN-REYNALS; WINSLOW, 1949, p. 57-89). O tratado
apresentado por Jacme D'Agramont pretendia ser apenas um regime de preservação,
com o propósito de instruir a população sobre o contágio e a prevenção, conforme
explicou o médico:
E ninguém deve estranhar que neste tratado eu apenas apresento o regime de
prevenção, e que não discuto a cura das doenças que em tais tempos ocorrem.
Porque nisto não sou incitado pela inveja nem pela iniquidade, mas pelo
verdadeiro amor e caridade, tendo feito este presente tratado principalmente
para o benefício do povo e não para instruir o dico, pois sou um dos mais
insignificantes da profissão médica no mundo, em comparação com muitos
outros. Todos podem fazer uso do regime de prevenção apresentado neste
tratado sem um médico e sem perigos. O regime de tratamento pertence
propriamente ao médico, uma vez que, nisso, qualquer pessoa sem a arte da
medicina poderia errar facilmente e, para evitar isso, nenhuma menção de
tratamento é feita aqui. (Jacme D'Agramont, 1348,
apud
DURAN-REYNALS;
WINSLOW, 1949, p. 58).
Vemos, portanto, que, a partir dos próprios tratados médicos, é possível ao
pesquisador conhecer um pouco do contexto em que essa documentação se insere,
valendo-se da historiografia que os resgatou dos manuscritos e da análise epistêmica,
que continuará a ser desenvolvida a seguir.
Os tratados se baseiam numa estrutura intelectual conhecida como escolástica e
se inserem dentro de um cenário de universidades emergentes. Consequentemente,
devemos sempre levar em consideração o peso que a influência das autoridades e da
lógica aristotélica pilares da escolástica medieval tiveram nos conhecimentos
médicos que estão ali presentes. No entanto, esses trabalhos refletem, igualmente, as
novas práticas e ideias dos chamados
magistri moderni
. Isso porque os “mestres
modernos” encontraram um grande problema ao começarem a estudar a epidemia.
Apesar de os conhecimentos trazidos pelas
auctoritates
gregas e medievais serem
amplos, a pestilência que se apresentava não era conhecida até então, o que significou a
falta de uma literatura específica sobre ela para consulta. Isso fez com que os médicos
tivessem que criar teorias, tratamentos e remédios diferenciados para combater a alta
mortalidade e a propagação da doença.
Vemos essa preocupação, por exemplo, no tratado de João da Borgonha, médico
de Liège, de 1365. Em seu estudo, João da Borgonha traz vários motivos para a criação do
tratado, entre os quais estão a ignorância sobre a pestilência que os atingia, a ineficácia
dos remédios dos médicos antigos e a relativa eficiência dos “modernos”, ou seja, de
seus contemporâneos (SIRAISI, 1990, p. 55-56). Nas palavras do médico:
Como resultado, ouso dizer, não como uma crítica às autoridades do passado,
mas por causa de uma longa experiência no assunto, que os mestres modernos
em qualquer lugar da terra são mais experientes na doença epidêmica
pestilencial do que todos os professores e autores da arte da medicina desde
Hipócrates aos posteriores. Pois nenhum em seu tempo viu a epidemia
reinando, exceto apenas Hipócrates na cidade Craton, que porém não durou
muito. Ainda assim, ele escreveu o que viu em seu livro sobre epidemias. Mas
Galeno, Dioscórides, Razi, Damasceno, Geber, Mesue, Copho, Constantinus,
Serapion, Avicena, Algagel e seus seguidores nunca viram uma epidemia assim
geral ou longa, nem testaram suas curas pela longa experiência, embora se
baseiem nos ditos de Hipócrates para discutir muitas coisas a respeito das
epidemias. Como resultado, os mestres desse tempo, tendo usado a experiência,
são maiores nessa doença que todos que nos precederam, de onde é dito e é
verdade, que a experiência faz a arte. (João da Borgonha, 1365,
apud
SUDHOFF,
1911, p. 68-69).
Esse trecho nos mostra a dualidade que os tratados médicos sobre a Peste
Bubônica continham, entre os saberes teóricos, provindos das autoridades, e os saberes
adquiridos pelos médicos do século XIV por meio da prática e da observação. Os
primeiros ainda compunham as bases para o conhecimento sobre a origem da pestilência
e sobre os regimes de prevenção e cura, porém são os segundos que fazem desses
tratados uma expressão de novidade e engenhosidade.
Cada médico nesse período dava uma certa singularidade ao seu texto, mas o
conhecimento e a estrutura básica dos tratados se mantinham na maioria deles, desde os
primeiros até os mais tardios. Por isso, podemos reunir obras de vários períodos e de
diversos médicos e faculdades e, ainda assim, montarmos o conteúdo comumente
encontrado nesses trabalhos sobre a Peste Bubônica.
As obras, em geral, eram compostas por três partes temáticas principais: a
etiologia da doença, o regime de prevenção e o regime de cura. Cada uma dessas partes
trazia em seus fundamentos os conhecimentos de algumas
auctoritates
antigas e
medievais, ainda que essas fontes não estivessem explícitas nos textos. A explicitude ou
implicitude de uma fonte em um texto, se considerarmos a intertextualidade, está
relacionada à presença ou ausência de referência, isto é, menção escrita à autoria do
texto-fonte do documento. Algumas fontes explícitas mencionadas nos tratados da Peste
são Galeno, Hipócrates, Avicena, Alberto Magno, al-Rāzī, Averrois, além de outros
nomes menos conhecidos, como Copho.
3
No século XIV, a Peste Bubônica foi compreendida e explicada a partir da teoria
miasmática, segundo a qual a doença seria causada por vapores pútridos no ar ou seria o
próprio ar corrompido por tais vapores (ARRIZABALAGA, 1994, p. 246), que entraria no
corpo pela respiração e pelos poros da pele.
4
Os tratados da época geralmente seguiam
uma das duas explicações. Por exemplo, o médico Jacme D’Agramont considerou que a
pestilência era uma mudança contranatural do ar em suas qualidades ou em sua
substância, da qual surgiriam as mortes e enfermidades (DURAN-REYNALS; WINSLOW,
1949, p. 61). Em contrapartida, os mestres parisienses consideraram que a Peste era uma
consequência da mudança do ar e não a mudança do ar em si (MICHON, 1860, p. 53).
Havia ainda alguns médicos que misturavam as duas explicações, como Gentile da
Foligno, pressupondo a pestilência ora como o efeito da mutação do ar, ora como a
própria mutação (GENTILE DA FOLIGNO, 1479,
apud
ARRIZABALAGA, 1994, p. 246). -
se, portanto, que a Peste poderia ser a causa da alteração do ar, consequência dessa
alteração ou ambas, dependendo do estudioso que sobre ela escreveu.
Em geral, os tratados médicos identificavam três causas para a epidemia de Peste
Bubônica: uma causa primária, divina, e duas causas naturais, divididas em remota
3
Copho foi, supostamente, um mestre salernitano do século XII de quem não temos muitas informações, a
não ser algumas obras atribuídas a seu nome (PRIORESCHI, 2003, p. 214).
4
Havia ainda outra hipótese de que a doença era transmitida pelo olhar, mas essa explicação foi menos
recorrente na literatura. Vide: MICHON, 1860, p. 46-52; ARRIZABALAGA, 1994, p. 262 e 263; SUDHOFF,
1916, p. 129.
(supralunar, celestial) e próxima (sublunar, terrestre). Quanto às duas últimas, sabemos
que estavam fortemente influenciadas pelo estudo do
Cânone
de Avicena e, mais
especificamente, sobre as febres pestilenciais, apesar de a fonte geralmente ser implícita
ao texto. Segundo Avicena, as causas dessas febres poderiam ser ”remotas e primárias”,
relacionadas à disposição dos céus, ou “próximas”, relacionadas a uma certa disposição
terrestre (AVICENA, 1527,
apud
ARRIZABALAGA, 1994, p. 251 e 252).
A causa “universal e distante” era, portanto, a astrológica. Nesta, explicava-se a
doença devastadora e sua grande mortalidade por meio da conjugação dos planetas. Vale
lembrar que os estudiosos medievais acreditavam na influência que os corpos celestes
tinham sobre os corpos sublunares, fossem humanos ou de outros reinos da natureza.
Dessa forma, os médicos deveriam conhecer e levar em consideração a influência astral
nas doenças, nos remédios, nos membros e órgãos do corpo. Os médicos da
Universidade de Paris foram um dos primeiros a considerar essa causa, ao afirmarem
que:
Portanto, dizemos que a causa distante e primeira desta peste foi e é uma certa
configuração nos céus. [...] No ano de nosso Senhor de 1345, particularmente na
primeira hora após o meio-dia do vigésimo dia do mês de março, houve uma
grande conjunção de três planetas superiores em Aquário [Saturno, Júpiter e
Marte]. Em verdade, essa conjunção, juntamente com outras conjunções e
eclipses anteriores, sendo a causa atual da corrupção ruinosa do ar que está ao
nosso redor, é um prenúncio de mortalidade e fome e muitas outras coisas além.
(FACULDADE DE MEDICINA DE PARIS, 1348,
apud
MICHON, 1860, p. 51 e 52).
As autoridades citadas pelos médicos parisienses para sustentar esse argumento
eram pseudo-Aristóteles
5
e Alberto Magno. Quanto ao primeiro, basearam-se em sua
obra
De causis proprietatum elementorum
, segundo a qual a conjunção de Saturno e
Júpiter causaria uma grande mortalidade humana. Quanto ao segundo, utilizaram uma
obra de Alberto Magno, também intitulada
De causis preprietatis elementorum
, segundo
a qual a conjunção de Marte e piter causaria uma grande pestilência no ar, e isso
aconteceria principalmente sob um signo quente e úmido, como Aquário. Isso porque
Júpiter teria a propriedade de levantar ventos poderosos, principalmente do sul, que
dariam origem ao excesso de calor e umidade na terra. Marte, por sua vez, era visto
como um planeta malévolo, quente e retrógrado, que teria elevado muitos vapores da
terra e do mar, que misturados ao ar corromperam sua substância. O resultado dessa
conjunção eram ventos pestilenciais que se espalhavam pelo território (MICHON, 1860,
p. 52 e 53).
5
Vale ressaltar que, na época, acreditava-se tratar de um texto autêntico de Aristóteles.
Essas ideias parecem ter servido de fonte para outros tratados que estariam por
vir nas décadas seguintes. Um deles é o de Maino de Maineri (f. c.1370), intitulado
Libellus de Preservatione ab epydimia
, de 1360. O autor grande foco às causas astrais
da Peste e, em um sentido mais amplo, às influências dos corpos celestes no mundo
sublunar (os homens e as coisas). Vemos isso em algumas passagens, como:
Porque existem corpos celestes perversos e infelizes, errantes e imóveis, e
enfraquecem e matam nossos corpos, e põem, preparam, agouram e dão a
enfermidade. O que é concluído por todos que os corpos celestes podem ser a
causa da mortalidade e da pestilência do corpo humano. E não apenas do corpo
humano, mas também daquelas coisas nascidas na terra. (MAINO DE
MAINERI, 1923, p. 16).
Com o tempo, os tratados foram dando menos destaque à causa astrológica,
resumindo-a. O médico Nicolas d’Udine, em 1390, relatou que: “[...] a causa da putrefação
do ar dita é dupla, universal e particular. A universal é a influência do céu a partir de
algumas conjunções [...]” (SUDHOFF, 1913, p. 362). E de maneira também resumida, no
século XV, essa explicação aparece em um tratado irlandês sob o breve comentário: “[...]
e isso [a pestilência] vem da guerra dos corpos celestes um com o outro [...]” (WULFF,
1926, p. 149).
Vemos, portanto, que a medicina da Peste Bubônica era uma medicina com base
astrológica, sustentada por textos que remontam a conhecimentos da Antiguidade e do
medievo árabe. Contudo, essa não é a única ciência com a qual a medicina do século XIV
mantém um elo, com fundamentais trocas de saberes. Outra área era a dos estudos
sublunares.
A causa próxima ou particular da Peste estaria relacionada a fatores terrestres,
tais como: ventos quentes e úmidos vindos de diferentes partes do planeta, que dariam
uma condição propícia à pestilência, a qual se favoreceria da umidade e do calor,
causadores da putrefação na matéria do ar. Esses mesmos ventos também poderiam
transportar vapores pestilenciais e pútridos de outros reinos, trazendo a doença. Outro
fator seria a decomposição a céu aberto de corpos humanos ou de animais após uma
batalha, elevando a putrefação ao ar (DURAN-REYNALS; WINSLOW, 1949, p. 66;
SUDHOFF, 1913, p. 361-362). Ou, ainda, poderia provir dos vapores pútridos que se
elevavam de lugares com água suja parada, como esgotos (SUDHOFF, 1913, p. 361-362;
WULFF, 1926, p. 148-149). Outra causa comumente citada era a elevação de vapores
úmidos de dentro da terra, após um terremoto, por exemplo (MICHON, 1860, p. 56). Em
geral, o cheiro fétido estava diretamente associado à doença, sendo um indicativo de ar
pestilencial. Por fim, as estações do ano que se apresentavam com características
diferentes das esperadas, como um inverno quente, um verão frio ou chuvas e neblinas
em excesso, chamadas de “estações perversas”, geralmente baseadas em Ptolomeu e
Hipócrates, também poderiam gerar um ar corrompido amplamente caracterizado pela
umidade e, consequentemente, pestilências (MICHON, 1860, p. 55; WULFF, 1926, p. 149;
SUDHOFF, 1916, p. 119). Quaisquer que fossem as causas sublunares identificadas nos
tratados médicos, o resultado era o mesmo: o ar corrompido ou pútrido, pestilencial
(DURAN-REYNALS; WINSLOW, 1949, p. 67).
Os medievais acreditavam que esse ar pútrido, ao entrar no corpo, atingia o
pulmão, o coração e o cérebro (MICHON, 1860, p. 54), chegando pelas veias e
instalando-se, principalmente, nos canais pulmonares. Uma vez lá, os pulmões parariam
de funcionar, deixando de resfriar o coração, que se aqueceria, formando uma febre
pestilencial (MICHON, 1860, p. 74-75). Essa explicação é apresentada, por exemplo, por
Gentile da Foligno, segundo o qual a pestilência era uma “[...] putrefação venenosa em
relação às partes do coração e do pulmão [...]” (SUDHOFF, 1912, p. 333). Nesse sentido, a
doença também passa a ser comparada a venenos, inclusive de animais peçonhentos,
enquanto antídotos tornam-se úteis para combatê-la. É o caso, por exemplo, de uma
receita encontrada em um manuscrito escocês do século XV. A receita é dita ter poder
“contra a Peste, contra veneno bebido e contra uma picada de animal venenoso”
(UNIVERSIDADE DE EDINBURGO, MS 175, f. 184v 185),
6
formando uma equivalência
entre os três.
O regime de prevenção proposto nos tratados médicos sobre a Peste Bubônica,
isto é, as práticas que deveriam ser adotadas a fim de se evitar o contágio da doença em
meio à epidemia, foi amplamente baseado nos ‘seis não-naturais’ de Galeno (
sex res non
naturales)
. Esses eram os seis fatores básicos que “mudavam o corpo e a saúde”
(GALENO, 1548, p. 506), ou seja, que uma vez seguidos corretamente e balanceados,
manteriam a pessoa saudável, evitando uma enfermidade. Se recorrermos aos próprios
tratados médicos, encontraremos explicações como a exposta a seguir, do final do século
XIV: “Note que existem seis [coisas] nas quais é conservada a saúde e é dito coisas não
naturais, porque empreendidas sem moderação, atrapalham a natureza, porém,
empreendidas de forma moderada, sustentam a natureza.” (SUDHOFF, 1915, p. 71-72). Os
seis não-naturais eram o ar do ambiente; a comida e bebida; o exercício e descanso; o
sono e vigília; a retenção e evacuação de fluidos; e as emoções (perturbações da mente)
(GALENO, 1548, p. 506).
6
Universidade de Edinburgo, MS 175, f. 184v 185:
Valet contra pestem contra venenum bibitum (...)
contra morsum venenosum
”.
Essas informações eram encontradas dispersas em diferentes textos antigos,
como no
De pulsibus ad tirones
, em que Galeno distingue entre as “causas naturais”,
“preternaturais” e “não-naturais”, afirmando que esta última englobaria exercícios,
banhos e quantidades de alimentos (GALENO, 1924, p. 462-473; PRIORESCHI, 2003, p.
598-599). Geralmente, a referência direta a Galeno nessa parte dos tratados médicos era
omitida, tornando-o uma fonte implícita. Outra fonte implícita em muitos argumentos
dos regimes de prevenção e cura era o
corpus
hipocrático. Os tratados hipocráticos
propunham o uso de flebotomia, medicamentos, algumas pequenas operações cirúrgicas
e uma grande parte na manipulação da dieta para tratar as doenças, reequilibrar os
humores e recuperar a saúde (SIRAISI, 1990, p. 1-2). A dieta, a flebotomia e os
medicamentos tinham um papel fundamental no combate à Peste Bubônica.
O primeiro ponto dos regimes de prevenção geralmente era a importância da
qualidade do ar. Os tratados sobre a Peste traziam a informação de que era necessário se
manter afastado de doentes ou de regiões tidas, uma vez que o contágio era feito por
vias aéreas.
7
Uma das recorrentes recomendações para aqueles que lidassem com os
doentes era de que o paciente fosse posicionado acima da cabeça dos presentes e que se
saísse com frequência de seu quarto para andar ao ar livre (SUDHOFF, 1912, p. 334-335).
No entanto, também era necessário ter cuidado do lado de fora. Isso incluía evitar
perambular pelas ruas e onde houvesse multidões (SUDHOFF, 1913, p. 175). Gentile da
Foligno recomendava, inclusive, que fogueiras fossem feitas pelas vias para remover o
cheiro pútrido das cidades e das casas (GENTILE DA FOLIGNO, 1479,
apud
ARRIZABALAGA, 1994, p. 275). Além disso, as pessoas deveriam portar em mãos
qualquer coisa odorífera para colocar junto ao nariz e corrigir o ar pestilencial fétido da
região; ou, ainda, lavar as mãos com água e vinagre sempre que possível (SUDHOFF,
1914, p. 175-176). Alguns médicos recomendavam ainda fugir para regiões longínquas ou
montanhosas, onde o ar era melhor. Tudo isso apontava para uma regra geral, a de se
buscar ar puro, limpo (WULFF, 1926, p. 149) e fresco (DURAN-REYNALS; WINSLOW,
1949, p. 76).
Isso valia, também, para o interior das casas. Recomendava-se, principalmente, a
limpeza. Era sugerido deixar abertas as janelas que recebessem os ventos setentrionais e
fechadas as que recebessem os ventos meridionais. Isso porque os primeiros retirariam
os ares pestilenciais pútridos trazidos pelos segundos (SUDHOFF, 1912, p. 371). Também
era recomendado escolher um quarto que não fosse “reumático” (úmido) (SUDHOFF,
7
Isso é exposto, por exemplo, no tratado do médico Cardone de Mediolano, escrito por volta de 1378. Vide:
SUDHOFF, 1913, p. 318-319.
1914, p. 175) para dormir e purificá-lo com a queima de certas madeiras, como
juniperus
,
ou com sufumigações de ervas específicas, como alecrim e sândalo, cujos bons aromas
opostos ao cheiro fétido expulsariam o ar pestilencial e confortariam o corpo (MAINO
DE MAINERI, 1923, p. 22; SUDHOFF, 1912, p. 338). Indicava-se, também, borrifar vinagre
e água de rosas pelos cômodos para contribuir com a limpeza (DURAN-REYNALS;
WINSLOW, 1949, p. 76; SUDHOFF, 1912, p. 334-335).
Quanto à alimentação, a principal recomendação era de se evitar o jejum e a sede
(SUDHOFF, 1912, p. 353-380), mas comer em moderação. As pessoas deveriam optar por
bons alimentos, de fácil digestão e, principalmente, frios e secos (SUDHOFF, 1913, p. 319-
321). Nesse sentido, carnes e frutas precisariam ser evitados por serem úmidos ou
indigestos (MAINO DE MAINERI, 1923, p. 22). Pães deveriam ser bem fermentados e
“cozidos” (SUDHOFF, 1912, p. 338-358). Vinhos fortes deveriam ser substituídos pelos
mais aquosos e pelos brancos (DURAN-REYNALS; WINSLOW, 1949, p. 76-77). Era
necessário que a água bebida fosse limpa (fervida), clara e fria. Por fim, grande parte dos
tratados indicava colocar vinagre nos alimentos e ingerir sucos cítricos, que
combateriam a corrupção (SUDHOFF, 1912, p. 338-353).
Sobre as evacuações, é dito que seria necessário o corpo expelir os excessos de
umidade (WULFF, 1926, p. 149), visto que esta era a “mãe da putrefação” (SUDHOFF,
1915, p. 74). Uma evacuação também poderia ocorrer por meio de flebotomia, realizada
em algumas veias específicas do corpo ligadas aos órgãos principais, com o intuito de
remover a matéria venenosa junto ao sangue. Também seriam utilizadas sanguessugas
com o mesmo propósito (SUDHOFF, 1912, p. 359); ou laxativos e outros remédios que
ajudassem a eliminar o excesso de humor nocivo, prescritos pelos médicos (SUDHOFF,
1916, p. 125). Alguns tratados chegaram a ressaltar que as pessoas que tivessem a
compleição oposta à da Peste, considerada quente e úmida, portanto, corpos com humor
seco e frio, lidariam melhor com a doença. Destacam, portanto, os melancólicos (WULFF,
1926, p. 149).
Os exercícios, por sua vez, deveriam ser feitos em moderação, em locais limpos e,
de preferência, antes das refeições para não interferir com a digestão. Os banhos e a
atividade sexual também eram considerados exercícios e deveriam ser evitados, por
debilitarem o corpo (SUDHOFF, 1913, p. 322). Sobre o sono e a vigília, era recomendado,
igualmente, moderação após refeições ou de dia (SUDHOFF, 1912, p. 356). Deveria ser
evitado dormir em lugares úmidos ou “reumáticos” (MAINO DE MAINERI, 1923, p. 26). O
último tópico das coisas não-naturais eram as emoções. Dever-se-ia evitar forte ira,
tristeza, angústia, melancolia e medo, sendo mais proveitoso escolher a alegria
moderada, ouvindo cantigas, histórias e músicas (SUDHOFF, 1912, p. 339, 356 e 390). A
autoridade muitas vezes citada para esse conhecimento era Avicena, quem teria
afirmado que os acidentes da alma (
accidentia animae
) mudariam a disposição do corpo
(SUDHOFF, 1915, p. 72).
Apresentados os seis não-naturais, os médicos poderiam passar aos remédios de
prevenção. A flebotomia, mencionada, e a alimentação eram, muitas vezes, tratadas
como medicamentos. Havia ainda outros, simples ou compostos, que poderiam ser
receitados para se manter a saúde. Em geral, esse material preventivo afastaria o veneno
da pestilência, bloqueando ou eliminando sua ação de putrefação dentro do corpo. Os
remédios simples eram, por exemplo, as ervas e fungos (MICHON, 1860, p. 60-61). Os
remédios compostos, por sua vez, eram formados por diversos ‘ingredientes’ vindos dos
três reinos na natureza, como as triacas. Os médicos medievais tinham uma longa
tradição literária de matéria médica para recorrerem quando necessário, começando
pelas obras de Galeno e Dioscórides, passando pelos ensinamentos dos primeiros
botânicos monásticos medievais, chegando às traduções latinas dos compêndios de
remédios greco-árabes e ainda incorporando os conhecimentos populares de cada povo,
fossem os saxões, os celtas, os teutões etc (FABBRI, 2007, p. 249). Sobre esse assunto,
Jon Arrizabalaga afirma que praticamente todas os remédios mencionados nos tratados,
simples e compostos, foram retirados de autoridades, principalmente de Galeno, al-Razi,
Avenzoar, Averrois e Avicena (ARRIZABALAGA, 1994, p. 281).
Além de um regime de prevenção, muitos tratados médicos continham ainda um
regime de cura, que consistia em práticas e medicamentos que tratariam o doente com a
Peste. Os tratamentos propostos nos tratados buscavam combater a ação da corrupção
no corpo, geralmente utilizando-se de flebotomia, sudorese, vômito e remédios. A
flebotomia era realizada em determinadas veias do corpo que tivessem ligação com o
órgão afetado pela matéria venenosa. O sangue, como transportador da doença, deveria
ser evacuado com sua parte corrompida para que o veneno não avançasse e para que os
“humores ruins” não se acumulassem (SUDHOFF, 1911, p. 65).
Os medicamentos de cura, assim como os de prevenção, poderiam ser simples ou
compostos. Entre os simples, estava a ingestão de vinagre, puro ou misturado com água
fria (SUDHOFF, 1916, p. 161). Os compostos, por sua vez, como comentado
anteriormente, eram formados por diversos componentes vindos do reino vegetal,
mineral ou animal. Em geral, eram selecionados ingredientes frios e secos, fazendo
oposição ao vapor pestilencial quente e úmido. Muitos remédios eram considerados
como antídotos e triacas, o que se justifica pela associação da Peste com um veneno. De
acordo com J. Arrizabalaga, os remédios de prevenção e cura podiam ser destinados a
limpar os corpos dos excessos de fluidos, com função purgativa; ou “cordiais”, que
deveriam fortificar o coração, como o nome sugere, mas também o cérebro e o fígado; ou
antídotos, que combateriam ou contrabalanceariam o veneno pestilencial
(ARRIZABALAGA, 1994, p. 281).
Considerações finais
O estudo de caso dos tratados médicos produzidos no período dos surtos de
Peste Bubônica, na segunda metade do culo XIV, abre caminho para algumas
observações. Primeiramente, mostram a importância que a análise epistêmica tem para a
história da ciência, principalmente em sua relação com o contexto e a historiografia. Em
segundo lugar, revelam como a medicina feita para o combate à pestilência não se
limitava à escolástica, mas era formada por relações com diversas áreas e campos do
conhecimento, como um enovelado de saberes que se costuram com muitas articulações,
marcadas pelo papel da medicina, principalmente a antiga e a vinda do mundo árabe, da
iatromagia, da magia natural e astral, da astrologia (e astronomia), do estudo sobre os
venenos, da religião e das crenças, fazendo os tratados materiais de grande
complexidade. As análises desenvolvidas a partir daí nos mostraram haver uma teia de
relações, um cosmo de conhecimentos e crenças que possibilitam o desenvolvimento de
novas pesquisas.
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