OLIVEIRA, Amélia de Jesus
*
https://orcid.org/0000-0003-0905-9079
GUARSONI, João Henrique de Oliveira
**
https://orcid.org/0000-0003-0831-2538
RESUMO: A caracterização histórica do
desenvolvimento científico foi impactada pelos
escritos de Pierre Duhem, especialmente por
suas investigações acerca da ciência medieval.
Sua obra, apesar de saudada como uma imensa
contribuição à história da ciência, não passou
ilesa a críticas. Muitos de seus intérpretes têm
questionado sua defesa em prol da
continuidade da ciência, entendida como a
negação de mudanças revolucionárias. Neste
trabalho, discutimos a perspectiva de Duhem
sobre o desenvolvimento científico a partir de
algumas metáforas por ele empregadas. Ao
mesmo tempo que argumentamos em favor da
importância delas para compreensão da noção
de continuidade, buscamos mostrar como são
utilizadas de forma distorcida por alguns de
seus críticos.
PALAVRAS-CHAVE: Continuidade; Evolução;
Revolução; Ciência medieval; Duhem.
ABSTRACT: The historical characterization of
scientific development was impacted by the
writings of Pierre Duhem, especially by his
investigations into medieval science. Despite
being hailed as an immense contribution to the
history of science, his work did not pass
unscathed through criticism. Many of his
interpreters have questioned his defense of
the continuity of science, which is understood
as the denial of revolutionary changes. In this
work, Duhem's perspective on scientific
development is discussed based on some
metaphors he used. While arguing in favor of
their importance for understanding the notion
of continuity, this article seeks to show how
they are used in a distorted way by some of his
critics.
KEYWORDS: Continuity; Evolution;
Revolution; Medieval science; Duhem.
Recebido em: 20/07/2021
Aprovado em: 08/10/2021
* Doutora em Filosofia pela Unicamp, Campinas-SP. Professora de Filosofia na Faculdade João Paulo
II/Marília-SP. E-mail: amelijeso@gmail.com
**
Graduado em Filosofia pela Faculdade João Paulo II/Marília-SP. E-mail: joao_guarsoni@hotmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Considerações iniciais
A expressão “tese da continuidade” tem sido usada na historiografia da ciência
geralmente associada à concepção de Duhem acerca do modo de avanço do
conhecimento científico e, na maior parte das vezes, seu emprego vem seguido de
severas críticas. Para alguns estudiosos, a referida tese implica a negação da ocorrência
de qualquer revolução; para outros, a negação da ocorrência da revolução científica
ocorrida nos séculos XVI e XVII exclusivamente, sem menção à existência de outras
revoluções científicas. Nesse sentido, a importância da ciência da Idade Média para a
ciência moderna é sempre assunto relevante.
Para alguns intérpretes ainda, a defesa da tese da continuidade teria levado
Duhem a transportar a revolução científica para o século XIII.
1
Na esteira de Koyré (1961,
p. 33), esses intérpretes tomaram literalmente a afirmação de Duhem (1984, p. 412),
quando ele afirma: “Se tivéssemos que assinalar uma data para o nascimento da ciência
moderna, escolheríamos, sem dúvida, a data de 1277 [...]”.
Um aspecto importante quando se discute a antecipação da revolução científica
diz respeito a uma investigação por precursores, um ponto nevrálgico na análise de
alguns críticos de Duhem.
2
E sobre esse aspecto, pode-se ainda identificar intérpretes
para os quais Duhem admitiria revoluções apenas no campo da metafísica, mas não da
física, como é o caso de Agassi (1973, p. 622).
Diante de concepções distintas, abordadas comumente de modo muito breve,
resta indagar: em que consiste, afinal, “a tese da continuidade” na historiografia da
ciência duhemiana? Essa questão se levanta no contexto da crítica dirigida a Duhem, e
não a partir de seus escritos. É digno de nota o fato dos intérpretes duhemianos
mencionarem a “tese da continuidade” (e seus correlatos) adotando uma das
características que a comporiam (recusa total de revoluções; busca de precursores etc.)
ou fazendo a conjugação de mais características, sem explicitar a complexidade
envolvida na discussão
3
ou, ainda, o que parece ser mais problemático, admitindo
incoerências. Afinal, como conjugar a crença de que Duhem, de fato, tenha afirmado
1
A passagem foi comentada por Koyré (1961, p. 33) para criticar a continuidade da ciência da Idade dia
para a Idade Moderna, o que significaria a negação da revolução científica. Ver, por exemplo, Beltrán (1995,
p. 32), Grant (1987, p. 34-35), Lindberg (1978, p. VII-VIII; 2007, p. 248-249). Para uma crítica dessa leitura,
ver Ariew e Barker (1992, p. 332) e Oliveira (2012, p. 212-217). Vale lembrar que, para Sargent (1982, p.12),
Duhem teria antecipado a revolução científica para o século XIV, em função da teoria do ímpeto
,
de Jean
Buridan.
2
Para Koyré (1991, p. 94), a busca pelos “precursores de Galileu” (parte do subtítulo do terceiro volume dos
Études sur Léonard da Vinci
) faz com que Leonardo da Vinci deixe “de ser um gênio único para ser
simplesmente um elo entre a Idade dia e os tempos modernos.” Ver ainda Canguilhem (1970, p. 20),
Fichant (1971, p. 87).
3
Patapievici (2016) expõe a complexidade envolvida na abordagem da continuidade, apresentando,
inclusive, aspectos distintos daqueles explorados anteriormente.
categoricamente que a revolução científica tenha ocorrido no século XIII (ou XIV) e a sua
noção de continuidade como oposta à de revolução?
Em atenção a isso, discutimos aqui a noção de continuidade relacionada
especialmente a duas interpretações: (1) a de negação de qualquer revolução e (2) aquela
que nega a revolução que início à ciência moderna. Embora a segunda esteja contida
na primeira, a abordagem das duas exibe a diferença de concepções acerca da noção de
continuidade e o âmbito de interesse e de crítica dos intérpretes duhemianos. E o
faremos por meio da análise de metáforas
4
. Embora tenhamos discutido parte delas
em outros trabalhos, com intuito de caracterizar a visão duhemiana, o objetivo agora é
explorá-las também nos escritos dos críticos da continuidade duhemiana. Veremos que
metáforas foram escolhidas, em diversos contextos, como passagens que, supostamente,
atestariam algumas das características componentes da “tese da continuidade”, ora
abordadas isoladamente, ora em conjunção com outra(s).
A metáfora da árvore
É um consenso que a noção de continuidade em Duhem está vinculada a de uma
evolução lenta e gradual do conhecimento. A partir de estados embrionários, o percurso
até um estágio mais desenvolvido demanda tempo e maturação. Duhem empregou muitas
imagens da biologia para discorrer sobre o aperfeiçoamento da ciência. Em seus escritos
abundam referências ao reino da biologia em nome substantivos (sementes, germe,
embrião, fruto etc.), verbos (germinar, crescer, florescer, colher, frutificar).
5
As
passagens que seguem são comuns nos críticos da continuidade da ciência:
É pelos frutos que se julga a árvore; ora, a árvore da ciência cresce com
extrema lentidão; séculos passam antes que seja possível colher o fruto maduro;
somente hoje nos é permitido extrair e apreciar o sumo das doutrinas que
floresceram no século XVII. (DUHEM, 1992a, p. 3).
O desenvolvimento da mecânica é propriamente, portanto, uma
evolução
. Cada
um dos estados dessa evolução é o corolário natural dos estados que o
precederam; está prenhe dos estados que o seguirão. A meditação dessa lei
deve ser o conforto do teórico [...] através dos séculos, as ideias que ele semeou
e fez germinar continuarão a crescer e a gerar seus frutos. (DUHEM, 1992a, p.
346).
4
Consideramos metáforas as instâncias da linguagem em que uso de palavras ou imagens em sentido
figurativo, não literal, quando uma comparação do assunto principal com um assunto secundário no
sentido de se exibir as semelhanças entre as relações estabelecidas. Embora a existência de uma grande
discussão teórica sobre o emprego da metáfora tenha sido relevante entre pensadores, ao menos desde
Aristóteles, ela extrapola o objetivo de nosso trabalho, focado não no processo, mas no resultado das
imagens empregadas.
5
Como afirma Leite (2012, p. 116, nota 116), a “metáfora da semente ou germe que se desenvolve até atingir
o estado adulto apto a render frutos é a preferida” de Duhem. A seu ver, a tarefa de indicar as vezes em
que aparecem seria inútil dada a abundância de ocorrências em seus escritos.
Esses trechos são extraídos, respectivamente, dos finais da introdução e da
conclusão de
L‘évolution de la mécanique,
publicado originalmente em 1903. Partes delas
são citadas por Fichant (1971, p. 85) para corroborar sua afirmação de que, para Duhem,
a história da ciência não comporta “nem revoluções nem rupturas”. Contudo, como se
pode observar, não existe no trecho acima, e certamente em nenhuma obra de Duhem,
uma afirmação categórica (como a exibida por Fichant) de que não existem revoluções na
história da ciência. Por que, então, essas passagens foram escolhidas para afirmar a tese
da continuidade? Como se pode observar pela seleção de Fichant, o ponto central é o da
lentidão do processo evolutivo em contraposição ao processo revolucionário, visto pela
historiografia mais antiga, como um evento repentino (OLIVEIRA, 2014, p. 17-19). Um
antagonismo entre evolução e revolução na ciência estava consolidado. Logo, a defesa da
evolução seria incompatível com a admissão de revoluções.
Essa é, claramente, a visão de Bernard Cohen (1994, p. 562-563), que cita e
comenta a segunda passagem de
L‘évolution de la mécanique,
citada acima e lembra que,
somente dois parágrafos anteriores a ela, Duhem escreveu não somente sobre a
‘revolução cartesiana’, mas também chamou ‘a Nova Mecânica’ uma contra-revolução
oposta à revolução cartesiana’”. Bernard Cohen afirma, então, a existência de uma
“contradição”, em Duhem na medida em que ele fala ao mesmo tempo em evolução e
revolução.
Pode-se notar que Cohen comenta mais detalhadamente o contexto da passagem
selecionada, enquanto Fichant faz uma seleção bastante restrita para fazer valer sua
crítica à continuidade que atribui a Duhem. Tanto é verdade que a afirmação de que
“somente hoje nos é permitido extrair e apreciar o sumo das doutrinas que floresceram
no século XVII” (DUHEM, 1992, p. 3), que se segue imediatamente à passagem que ele
cita (“a árvore da ciência cresce com extrema lentidão”), poderia rechaçar as
considerações de que, para Duhem, “o século XVII não é um período particularmente
interessante ou revolucionário”, como afirma Kragh (1989, p. 76). Ora, a referência ao
“sumo das doutrinas que floresceram no século XVII” não é o reconhecimento da
importância desse período para a ciência?
Fichant (1971, p. 84) afirma que a intenção de Duhem historiador” é a de
“estabelecer que os conceitos que honram a ciência moderna foram enunciados,
formados, pré-constituídos na Idade Média”. Em sua crítica, ele mistura passagens de
obras de Duhem, publicadas em momentos distintos. É assim que as passagens citadas
de
L‘évolution de la mécanique,
uma obra publicada em 1903, quando Duhem ainda não
havia descoberto” a ciência medieval, atestam a lenta evolução da ciência no momento
em que ainda partilhava da visão de outros historiadores que concebiam a Idade Média
como um período infrutífero para a ciência. Assim, a noção de continuidade é defendida
em
L‘évolution de la mécanique
, antes de Duhem ter conhecimento da contribuição dos
medievais.
As passagens citadas acima, referentes à metáfora da árvore, são exemplos de um
recorte muito estrito para caracterizar a continuidade. A exemplo das considerações de
Bernard Cohen (1994, p. 562-563) que estranha Duhem falar de “revolução cartesiana”,
“nova mecânica” ou “contra-revolução” nessa obra, outras passagens podem soar
bastante estranhas para o defensor da tese da continuidade.
6
Seleções aleatórias de passagens da obra de Duhem para atestar sua recusa da
ocorrência de revoluções em ciência ou para descaracterizar “a” revolução científica,
aparecem sempre em desconsideração a outras passagens muito próximas que
relativizam afirmações bastante contundentes quanto à desvalorização dos trabalhos dos
cientistas do século XVI e XVII.
A metáfora do ovo ao pintinho
Em diversas passagens de sua obra, Duhem (1989a) afirma que a física
newtoniana é fruto de um germe que teve origem na sica dos gregos. É, portanto, o
resultado de uma evolução, a qual ele compara com o processo evolutivo biológico.
Existe, contudo, em suas imagens metafóricas uma ênfase no resultado, nos frutos, no
desenvolvimento etc., da ciência moderna. Vejamos a que segue:
Quando alguns golpes do bico quebram a casca de um ovo e o pintinho escapa
de sua prisão, a criança pode imaginar que tal massa rígida e imóvel, semelhante
a seixos brancos que ela pega à beira do rio, tomou vida repentinamente e
produziu a ave que corre e pia; mas onde sua imaginação infantil vê uma criação
repentina, o naturalista reconhece a última fase de um longo desenvolvimento.
Ele remonta, pelo pensamento, à fusão primeira de dois microscópicos núcleos
para examinar, em seguida, a rie de divisões, diferenciações e reabsorções
que, lula por lula, construíram o corpo da jovem ave. (DUHEM, 1989a, p.
337).
Quanta diferença entre a visão da criança e a do naturalista! O historiador que
considera apenas os resultados últimos da ciência é ingênuo como a criança que no
ato do nascimento do pintinho, um evento repentino, um milagre. Da mesma forma que a
criança que olha o nascimento da pequena ave e pensa em milagre, por não compreender
o processo de evolução do embrião que levou dias dentro do ovo, o historiador
superficial que olha apenas para as revoluções acredita estar diante de um evento
6
Duhem (1992) fala da “marcha triunfal” (p. 24-25) da física newtoniana; da “nova física” (p. 32).
mágico, por causa da surpresa e intensidade da mudança. O historiador não superficial é
aquele que, como o naturalista, reconhece o longo processo e suas fases de modificações
e configurações. É assim que Duhem, em defesa da continuidade da ciência, se mostra,
antes de tudo, devotado a fazer crer que
[...] a história nos mostra que nenhuma teoria física jamais foi criada
completamente de uma única vez. A formação de qualquer teoria física sempre
derivou de uma série de retoques que, a partir dos primeiros esboços quase
disformes, tem gradualmente conduzido o sistema aos estados mais avançados
[...]. Uma teoria física não é um produto repentino de uma criação; é o resultado
vagaroso e progressivo de uma evolução. (DUHEM, 1989a, p. 337).
A argumentação que se segue à passagem acima e que tem como exemplo a teoria
da gravitação de Newton é uma crítica à história mais antiga da ciência que celebrava
somente os grandes feitos do século XVI e XVII, sem consideração à existência de uma
tradição passada, antiga e medieval. E Duhem recorre a outras imagens de um modo
um tanto irônico e anedótico
O leigo comum julga o nascimento das teorias físicas como a criança julga a
eclosão do pintinho. Acredita que essa fada a que o nome de ciência tocou
com sua varinha mágica a testa de um homem de gênio e a teoria se manifestou,
viva e completa, tal qual Palas Atena emergindo completamente armada da testa
de Zeus. Ele pensa que bastou a Newton ver uma maçã cair em um pomar para
que, de repente, os efeitos da queda dos corpos graves, os movimentos da
Terra, da Lua, dos planetas e seus satélites, as viagens dos cometas, o fluxo e
refluxo do oceano, viessem a se reunir e se classificar nesta única proposição:
dois corpos quaisquer se atraem proporcionalmente ao produto de suas massas
e em razão inversamente proporcional ao quadrado de sua distância mútua.
(DUHEM, 1989a, p. 237-338).
Enquanto a história disponível em seu tempo promovia a exaltação dos grandes
cientistas iniciadores da ciência moderna, como a criança maravilhada pelo nascimento
súbito do pintinho, Duhem defende, na sua reconstituição histórica, a predominância do
trabalho coletivo em ciência. Em termos metafóricos e em suas palavras, poderíamos
dizer que ele faz o trabalho como faz o naturalista, isto é, “reconhece a última fase de um
longo desenvolvimento”, para examinar, “em seguida, a série de divisões, diferenciações
e reabsorções que, célula por célula, construíram o corpo da jovem ave.” (DUHEM,
1989a, p. 337). Em texto posterior, ele sentencia: “Nenhuma descoberta científica é uma
criação
ex nihilo.”
(DUHEM apud Jaki 1991, p. 243). Uma descoberta seria uma
combinação nova de elementos existentes sobre um novo plano. E o que poderia ser
considerado um novo plano no desenvolvimento da teoria da gravitação? Duhem, ao
apresentar uma breve síntese dessa teoria, partindo da ciência helênica com ênfase em
suas lentas metamorfoses durante séculos, afirma: “A revolução copernicana, arruinando
o sistema geocêntrico, inverte os alicerces sobre os quais repousava essa teoria da
gravidade.” (DUHEM, 1989a, p. 342).
A gravitação universal aparece a Duhem como um exemplo privilegiado da
história da ciência para a defesa de que uma hipótese científica não é uma criação súbita,
mas o resultado de uma evolução lenta, para a qual muitos contribuíram. É possível, na
narrativa histórica, acompanhar o desenvolvimento do processo a que passamos a
chamar de física newtoniana”. É importante lembrar que a promoção de trabalhos de
outros cientistas, antes pouco valorizados na história da ciência, que teriam contribuído
para a teoria da gravitação, não aniquila a grandiosidade da obra de Newton para o
progresso científico. Para Duhem (1989a, p. 127), “sua força de espírito é uma das mais
poderosas que a humanidade conheceu.”
7
Assim, se é verdade que Duhem ressaltou o processo evolutivo, lento, gradativo
de desenvolvimento da ciência, se trouxe à luz a participação de cientistas antes
ignorados, se detectou um germe da hipótese da gravitação entre os gregos, é também
certo que reconheceu ter sido com Newton que essa hipótese prevaleceu; que a
mecânica passou a ser newtoniana; que a sica passou a ser uma nova sica. Ou seja,
Duhem defendeu a continuidade da ciência de Aristóteles a Newton, mas também
caracterizou a grande mudança efetuada por Newton na física que se tornou uma nova
física, um processo tido como uma revolução.
A metáfora da Foux
As imagens metafóricas na obra de Duhem, como afirmamos, são abundantes e
bastante exploradas, mas uma especialmente esclarecedora, de seu ponto de vista
sobre o desenvolvimento da ciência em
Les origines de la statique,
obra publicada em
dois volumes em 1905-1906. Para melhor esclarecer sua ideia da continuidade, da
tradição da ciência e a recusa das celebrações exageradas das revoluções, Duhem inicia
sua conclusão a essa obra com uma narrativa ilustrativa que toma mais de uma página.
Aí, em um estilo literário, ele relata a experiência de um turista que contempla o
fenômeno da Foux, a ressurgência do rio Vis nas planícies de calcário, situadas na
comuna de Vissec, na França.
8
É somente após percorrer o calcário ressecado, caminhar
7
Duhem afirma em
Le système du monde
(1988, p. 241) que a hipótese da gravitação triunfará na obra de
Newton; em
L‘évolution des théories physiques
(1987a, p. 219), que a fecundidade da física newtoniana
assegura o triunfo do princípio da gravitação universal. Outros exemplos da exaltação da importância da
obra newtoniana são encontrados ainda em Duhem (1987b, p. 69; 1992, p 25).
8
O rio Vis nasce no Parque Nacional de Cévennes, e percorre por uma paisagem desenhada pelo
escoamento das águas. Chega um certo ponto que o rio Vis começa uma jornada subterrânea, deixando
seu leito seco. Após alguns quilômetros de escoamento por uma rede de córregos subterrâneos as águas
reaparecem repentinamente com força e volume: a Foux. (Ver Villeméjeane, 2002).
com dificuldade entre labirintos rochosos, observar grandes barrancos, rios secos,
traços de antigas torrentes, que o turista encontra repentinamente uma ressurgência de
águas abundantes: a Foux uma enorme massa de água que surge com uma força viva,
num cenário de aridez.
Duhem compara a visão do turista maravilhado, pelo fenômeno da Foux, com a
visão de um historiador da ciência que valoriza e celebra apenas as descobertas e as
novas teorias a partir da Renascença. O historiador olha para a antiguidade grega como o
turista olha para as águas férteis e abundantes no início do curso do rio Vis; vê o período
medieval infértil como o turista vê o leito seco do rio.
A visão predominante na história clássica era de que a ciência helênica tinha
distribuído águas férteis e feito germinar as descobertas admiráveis de Aristóteles e
Arquimedes. Depois, Duhem mantém a imagem a fonte do pensamento grego secou e
o rio ficou seco durante toda a Idade Média. A ciência bárbara desse tempo não foi mais
que um caos em que se amontoaram, numa desordem, os fragmentos desfigurados da
sabedoria antiga, fragmentos ressecados e estéreis aos quais se agarram somente [...] as
críticas pueris e vãs dos comentadores.” (DUHEM, 1991b, p. 278).
Na perspectiva histórica clássica, o conhecimento científico ressurgiria apenas
nos séculos XVI e XVII, com as grandes revoluções científicas modernas, com grande
vigor e glória, como as águas do rio que ressurgem repentinamente com abundância e
força na Foux. Por meio da analogia, Duhem reforça sua argumentação de que a ciência
cresce por um processo contínuo e a crítica aos historiadores que celebram somente os
grandes feitos da revolução científica. Tal como o turista que ignora as fontes que dão
origem a Foux, os historiadores tinham ignorado as fontes da revolução. Como a Foux, a
revolução é um fenômeno compreensível e possível de análise em seu curso gradativo e
contínuo que lhe ocasiona. É assim que Duhem (1991b, p. 279) assinala as fases da
evolução científica, marcada por duas características: “a continuidade e a complexidade”.
Em sua conclusão sobre as origens da estática, Leonardo da Vinci aparece como o
causador de uma “torrente impetuosa” (DUHEM, 1991b, p. 282). E, numa extensão da
metáfora, podemos dizer que, na história da ciência duhemiana, Copérnico, Descartes,
Newton, Galileu, Lavoisier, entre outros, são vistos como homens que modificaram
significativamente o curso das águas do saber humano. Não diminuição do significado
de suas contribuições. O que ocorre é apenas que Duhem contraria a visão dominante
em seu tempo de que esses homens criaram suas teorias repentinamente, sem se
valerem de uma tradição científica e contínua.
Se “revolução” for entendida como a ocasião de uma mudança drástica e
repentina na ciência, como o surgimento de uma nova teoria a partir do nada, não resta
dúvida de que Duhem nega revoluções em ciência. Vale lembrar que, em sua conclusão a
Les origines de la statique,
Duhem endereça uma crítica significativa a Descartes,
acusando-o de uma soberba exagerada que
[...] enganou o mundo. Ela fez tomar o cartesianismo como uma criação
estranhamente espontânea e imprevista. Entretanto, esse sistema quase sempre
era somente a conclusão claramente formulada de um trabalho obscuro,
perseguido durante séculos. O voo gracioso da borboleta de asas cintilantes fez
esquecer o lento e penoso rastejar da humilde e sombria lagarta. (DUHEM,
1991b, p. 286).
9
Pelo rechaço da tradição, Duhem lamenta a visão dos historiadores que
tiveram olhos para os séculos XVI e XVII na constituição de uma história da ciência que
ignorou as contribuições da Idade Média. Daí sua exclamação: “História insensata! No
curso da evolução pela qual se desenvolve a ciência humana, os nascimentos súbitos e os
renascimentos repentinos são muito raros [...]” (DUHEM 1991b, 278-279).
Como se pode notar, na analogia acima, Duhem não nega a ocorrência de
mudanças significativas no curso da ciência; mas afirma que são acontecimentos raros,
como a Foux é uma exceção entre as nascentes. Contudo, quando seus intérpretes
criticam a tese da continuidade, não é da conclusão de
Les origines de la statique
que
citam passagens, mas do prefácio dessa obra, onde se lê
A ciência mecânica e a física, de que se orgulham com razão os tempos
modernos, decorrem, por uma série ininterrupta de aperfeiçoamentos pouco
sensíveis, das doutrinas professadas no seio das escolas na Idade Média; as
pretensas revoluções intelectuais foram, na maioria das vezes, somente
evoluções lentas e longamente preparadas; as supostas renascenças, apenas
reações frequentemente injustas e estéreis; o respeito pela tradição é uma
condição essencial do progresso científico. (DUHEM, 1991a, p. III e IV).
Quando Duhem usa as expressões “pretensas revoluções intelectuais” ou
“supostas renascenças” está questionando os referentes concedidos a essas expressões
pela história clássica, ou seja, a ocorrência de uma mudança brusca, repentina, sem
liames com a tradição. Isso fica evidente na sua conclusão dessa obra, onde encontramos
a metáfora da Foux; mas essa conclusão é completamente ignorada pelos autores que
citam o prefácio da mesma obra para fazer valer suas teses de que Duhem,
invariavelmente, negou a ocorrência de qualquer revolução em ciência. A passagem
acima, extraída do prefácio, é citada integralmente por Fichant (1971, p. 85) para
explicitar o que defende ser a tese duhemiana: não existem revoluções na história da
9
Vale lembrar que Thomas Kuhn (1977, p. xiii), o descontinuísta por excelência, alude ao modo como
Descartes, por exemplo, criou uma maneira de ler os textos que enganou muitos pensadores (inicialmente
o próprio Kuhn), uma forma de lidar com o passado da ciência da qual os próprios cientistas foram vítimas.
ciência. A passagem nos lembra, ainda, Koyré quando assevera que a conclusão de
Duhem sobre a continuidade é enganosa, já que uma revolução bem preparada não deixa
de ser uma revolução (KOYRÉ, 1991, p. 156).
Kragh (1989, p. 16) também cita uma parte
dela para abordar a continuidade como negação de revoluções.
É evidente que Duhem enfatiza a importância da ciência medieval e atenua a
grandiosidade da ciência moderna. Agora, é necessário situar essa afirmação no contexto
de sua obra e no contexto da história da ciência. Devemos lembrar que foi durante a
escrita de
Les origines de la statique
que Duhem se apercebeu da existência de trabalhos
científicos relevantes na Idade Média. Ele explicita, no prefácio a essa obra, sua surpresa
e sua convicção de que ela se mostrava singular em relação a outros escritos históricos
sobre o assunto.
Duhem foi acusado de exagerar na importância dos estudos científicos da Idade
Média por Brenner (1990, p.10; 1997, p. XVIII, XXXVII), Needham, P. (1998, p. 322-323)
Lindberg (2007, p. 358-359) e Grant (1987, p. 34-35), por exemplo. Mas, de que outra
maneira ele podia chamar a atenção para uma perspectiva histórica totalmente contrária
a que então vigorava? Não estavam os historiadores adeptos do descontinuísmo também
exagerando em suas visões históricas, em um momento no qual a ênfase sobre a
revolução estava na ordem do dia?
Pinto de Oliveira (2012, p. 118) comenta a consideração de Kuhn de que Koyré não
realizava plenamente o que se esperava da nova historiografia, na medida em que agia
“como a maioria dos historiadores tradicionais da ciência” que, “sabendo de antemão o
que constitui conhecimento científico, se sentia autorizada a selecionar os trabalhos dos
personagens que estudavam, pinçando as passagens em que parecia haver contribuições
duradouras à ciência”. É digno de nota a consideração kuhniana de que Koyré ataca um
espantalho quando critica Duhem em
L
e
vide et l‘espace infini au XIVe siècle
(Oliveira,
2012, p. 39)
.
Ao que parece, Koyré também pinçou passagens em Duhem para afirmar
uma noção de continuidade que não encontra respaldo em seus escritos no que se refere
à negação de uma ocorrência revolucionária na história da ciência
10
. Porque Koyré
mantinha uma visão da revolução como um evento de completa mutação intelectual, a
visão duhemiana parecia contrapor-se a ela. O reconhecimento de elementos medievais
na ciência moderna modificava a concepção de uma mudança revolucionária, entendida
como evento abrupto. Diz Kuhn:
10
Vale lembrar que Koyré é sempre citado pelos críticos da continuidade duhemiana. Ver, por exemplo,
Fichant (1971, p.86); Kragh (1989, p. 77); Maiocchi (1985, p. 280, p. 276).
Quase um século depois de a Idade Média se ter tornado importante para o
historiador geral, a pesquisa de Pierre Duhem pelas fontes da ciência moderna
revelou uma tradição de pensamento físico medieval a que, em contraste com a
física de Aristóteles, não se podia negar um papel essencial na transformação
da teoria física que ocorreu no século XVII. Muitos dos elementos da física e do
método de Galileu deviam ser encontrados ali. Mas o era possível também
assimilá-la completamente à física de Galileu ou à de Newton, deixando a
estrutura da chamada Revolução Científica imutável, mas bastante estendida no
tempo. (KUHN, 1977, p. 108).
Butterfield (1966, p. 25-26) é outro historiador que chama a atenção para a
mudança da atitude dos historiadores da ciência em relação à Idade Média e à
consequente necessidade de se reanalisar o termo Renascença”, em atenção à
continuação de uma tradição medieval ao invés de uma reação contra ela. Como afirma
Harcourt Brown, a história da ciência
[...] é o produto de historiadores; suas categorias permanecem fluídas enquanto
novas perspectivas e ênfases produzem novas avaliações. [...] Quando o
trabalho de Pierre Duhem, por exemplo, progrediu e foi absorvido, a perspectiva
mudou e muito da ciência do século XVI perdeu seu fascínio [...] (BROWN, 1960,
p. 42).
As considerações de Butterfield e Brown dizem respeito à mudança de visão em
relação à Renascença, mas podem, por extensão, ser aplicadas à revolução científica. Se
é verdade que a visão duhemiana vai contra a concepção da Renascença como um
período de surgimento de produtividade científica após as trevas da Idade Média, para
muitos historiadores, ela também diminuía o mérito dos cientistas do século XVII. Para
Duhem, no entanto, reconhecer a existência de canais aquíferos subterrâneos não
diminui a grandeza e o espetáculo que é a Foux.
A metáfora do edifício da ciência
Em
L‘évolutión de la mécanique,
Duhem faz a seguinte consideração:
Os sistemas mecânicos se sucederam, numerosos e variados; mas nenhum deles
desapareceu sem deixar uma rica herança de ideias novas àquele que o
suplantou. Cada trabalhador concebeu o plano de um edifício e talhou os
materiais para realizar esse plano. O edifício desmoronou, mas os materiais que
serviram para construí-lo figuram em bom lugar no novo monumento. (DUHEM,
1992, p. 345).
Como afirmado acima, essa obra antecede a descoberta duhemiana da ciência
medieval. Em texto ainda anterior (1892), ele analisa uma visão destoante da sua:
Aquele, pois, que percorre apressadamente as obras dos peripatéticos, que se
limita a tratar superficialmente as doutrinas expostas nessas obras, percebe, de
todos os lados, observações estranhas, explicações sem alcance, discussões
ociosas e fastidiosas, numa palavra, um sistema envelhecido, gasto, esfacelado,
cujos contrastes com a física atual saltam aos olhos, sem que se possa nele
reconhecer a menor analogia com nossas teorias modernas. (DUHEM, 1989b, p.
467).
Duhem exibe a diferença de tratamentos históricos que podem ser concedidos na
análise da física aristotélica de modo a antecipar a discussão empreendida por Kuhn com
relação ao equívoco de julgar a obra aristotélica a partir da perspectiva moderna
11
. A
metáfora do edifício, quando empregada na análise da mudança da física aristotélica para
a física newtoniana, permite pensar em dois edifícios distintos, mas que são construções
da mesma ordem ontológica, isto é, são tentativas racionais de conhecer e compreender
a realidade da maneira mais adequada possível. Diz Duhem:
Se despíssemos a física de Aristóteles e da Escolástica da vestimenta científica
gasta e fora de moda que a recobre, [...] ficaríamos espantados com a
semelhança que ela apresenta com nossa teoria física moderna,
reconheceríamos nessas duas doutrinas, duas imagens da mesma ordem
ontológica, distintas porque tomadas de um ponto de vista diferente [...]
(DUHEM, 1989b, p. 471).
Para visualizar a imagem de cada edifício e compreender como ambos participam
de uma mesma ordem ontológica, é necessário analisá-los a partir do contexto histórico
em que foram construídos, as formas de observação disponíveis e os pressupostos
teóricos que lhe serviriam de base. Na análise histórica que empreende, Duhem busca
mostrar que termos como “movimento”, “matéria”, “forma”, “tempo”, “espaço” etc. têm
significados bastante singulares e interdependentes em Aristóteles e como foram
modificados com o avanço científico. Diz Duhem:
A destruição da física peripatética não foi um desmoronamento súbito. A
construção da física moderna não se deu sobre um terreno em que nada mais
resistia. De uma a outra, a passagem se deu por uma longa sequência de
transformações parciais, onde cada uma pretendia somente retocar ou ampliar
algumas partes do edifício, sem nada mudar no conjunto. Mas quando todas
essas modificações de detalhes tinham sido feitas, o espírito humano,
abarcando com o olhar o resultado desse longo trabalho, reconheceu com
surpresa que não restava nada do antigo palácio e que um palácio novo se
erguia em seu lugar. (DUHEM, 1956, p. 3).
11
Kuhn se referiu, muitas vezes, à sua “experiência com Aristóteles”. Veja, por exemplo, Kuhn (2000, p. 59,
275, 278, 292). Além de apresentá-lo à mudança revolucionária, a experiência com Aristóteles o conduziu
da ciência para a história da ciência (KUHN, 2000, p. 292). Relatos dessa experiência são encontrados em
Kuhn (1977, p. IX-X; 2000, p. 26-31) para expor a atitude do historiador em uma nova historiografia da
ciência. A leitura de Aristóteles fez com que ele percebesse uma tradição poderosa e bem sucedida na
física aristotélica e não um amontoado de erros, como fizeram muitos historiadores. Não é porque uma
teoria se tornou obsoleta que ela deixa de ser científica.
A passagem acima é extraída do tomo VII, de
Le système du monde
12
,
quando
Duhem discorre sobre a física parisiense do século XIV. Segundo Duhem, nesse século,
iniciaram-se uma série de modificações que conduziriam a física aristotélica à
destruição. Contudo, isso não ocorreu de forma abrupta e não foi o resultado do trabalho
dos cientistas desse século, como eles supuseram, “por ilusão sincera ou erro
orgulhosamente voluntário” (DUHEM, 1956, p. 3). Essa maneira de ver a passagem da
física aristotélica para a física moderna foi adotada pelos homens nos séculos seguintes,
que se viram criadores e responsáveis pelo renascimento do saber, quando eram apenas
“continuadores e, algumas vezes, plagiários” (DUHEM, 1956, p. 4).
13
Essas afirmações sobre a destruição da física aristotélica são citadas por
Goldstein e Hon (2011) justamente para defender que Duhem teria rejeitado a ocorrência
de revoluções na ciência. Contudo, para admitir essa perspectiva é necessário também
assumir que: (1) a destruição da física aristotélica ocorreu subitamente; (2) que a ciência
moderna começou do nada; (3) que os cientistas do século XVI e XVII foram criadores
destituídos de qualquer herança anterior. Mas, qual historiador da ciência defenderia
hoje teses tão radicais? Se Duhem, desde seus escritos que antecedem a descoberta da
ciência medieval, foi insistente em defender a continuidade da ciência é porque sempre
combateu a noção de revolução, entendida como o surgimento da ciência moderna
ex
nihilo.
Sobre esse ponto, é interessante a consideração de Martin de que a doutrina da
continuidade se tornou controversa por razões que não são claras. Em seu ponto de
vista, ela parece expressar nada mais que observações trivialmente comuns e justa
humildade (MARTIN, 1991, p. 128).
A nosso ver, a metáfora do edifício é bastante elucidativa para falar de mudança
contínua e revolucionária na ciência e indica a dimensão da revolução científica para
Duhem, que a caracteriza de modo inovador face às suas descobertas relativas à ciência
medieval. Ao fim do capítulo IV do primeiro volume de
Le système du monde
, dedicado à
análise da física de Aristóteles, Duhem, depois de se referir a ela como “a mais bela obra
de arte”, afirma:
12
Le système du monde. Histoire des doctrines cosmologiques de Platon a Copernic
é a mais extensa obra
de Duhem, publicada em 10 volumes
.
Quando Duhem faleceu, em 1916, havia deixado manuscritos que,
embora publicados integralmente, não conferem acabamento à obra. Brenner (1990, p. 175), seguindo
indicação de Manville, afirma que, levando-se conta que o décimo volume termina na análise da obra de
Paul de Venise, pode-se julgar, pelo período que faltava estudar até Copérnico, que a obra comportaria
ainda mais dois volumes. Os cinco primeiros foram publicados entre 1913 e 1917 e os demais somente entre
1954 e 1959.
13
Com perspectiva semelhante à Duhem, questiona Crombie (1974, v.2, p. 104): “[...] deve se considerar a
nova ciência do culo XVII como sendo, em último caso, um começo completamente novo, como
quiseram alguns historiadores do passado? A “nova filosofia”, o “ensino experimental físico-matemático”
da antiga Royal Society nasceu sem família anterior, das mentes de Galileu, Harvey, Francis Bacon e
Descartes?”
Da sica aristotélica, entretanto, não restará pedra sobre pedra. A ciência
moderna, para substituir essa física, deverá demolir sucessivamente todas as
suas partes.
Sem dúvida, muitos fragmentos, emprestados do monumento
antigo, serão retomados para construir as paredes do novo edifício; mas antes
de encontrar lugar nesse sistema para o qual eles não tinham sido talhados,
precisarão receber formas totalmente diferentes daquelas que ostentavam
outrora; e, muito frequentemente, será muito difícil reconhecê-los para aquele
que não seguiu o trabalho de retoques sucessivos aos quais foram submetidos.
(DUHEM, 1988, p. 240, grifos nossos).
O trabalho do historiador é reconhecer o processo de mudança contínua que leva
a substituição de uma teoria a outra, o que não o impede de, em uma visão retrospectiva,
constatar a mudança revolucionária. O edifício da ciência moderna é distinto do da
ciência antiga, mas conserva elementos modificados, talhados do edifício anterior. O
observador superficial não encontrará elementos de continuidade; enquanto o
historiador atento ao processo contínuo de desenvolvimento da ciência pode
compreender como se deu a mudança e a construção da ciência moderna. Este é o
trabalho de Duhem historiador: mostrar como do velho passamos a ter um novo edifício
da ciência; mostrar como o primeiro foi erigido e demolido, dando lugar a um novo.
Considerações finais
Schopenhauer (2007, p. 120) afirma que “[c]omparações são de grande valor, uma
vez que remetem uma relação desconhecida a uma conhecida.” Ressalta que, como [...]
uma alavanca tão poderosa, a formulação de comparações surpreendentes e ao mesmo
tempo apropriadas dá mostras de um entendimento profundo.” (SCHOPENHAUER, 2007,
p. 121). E, logo na sequência, retoma Aristóteles: “O mais importante é encontrar
metáforas, pois é a única coisa que não se pode aprender de outros e é um sinal de uma
natureza engenhosa. Para fazer metáforas é necessário reconhecer a igualdade”
(ARISTÓTELES apud SCHOPENHAUER, 2007, p. 121).
Podemos constatar o valor das metáforas na obra de Duhem quando ele remete
uma relação desconhecida a evolução contínua da ciência antiga à moderna a uma
conhecida: a evolução contínua da semente à arvore; ou a do ovo ao pintinho; ou a da
fonte do rio Vis à Foux; ou, ainda, a da construção de um edifício a partir de materiais
disponíveis. A partir das relações metafóricas estabelecidas, em que o reconhecimento
da igualdade de processos que culminam num “produto” admirável, podemos constatar
que Duhem, quando fala da evolução gradual da ciência, não está rechaçando a
grandiosidade dos avanços científicos que culminaram na ciência moderna.
As metáforas da árvore e do pintinho nos permitem compreender o processo de
evolução na ciência, tal como defendido por Duhem. Antes mesmo de descobrir a ciência
medieval, ele advogou em prol da ideia de que as teorias científicas são edificadas
gradualmente; demandam tempo e maturação. A metáfora da Foux nos lembra que as
torrentes de água não surgem por um milagre, mas são explicáveis pelo curso dos rios
subterrâneos, da mesma maneira como contribuições científicas da Idade Média, antes
desconhecidas, deram seguimento para a ciência moderna.
Na caracterização histórica da evolução científica, Duhem constatou mudanças
bastante significativas, que, a partir de um determinado sistema, deram origem a outro,
completamente diferente e incompatível com o anterior. Isso ocorreu com Copérnico em
relação ao sistema aristotélico-ptolomaico; isso ocorreu com a física newtoniana em
relação à aristotélica; ou seja, ocorreu por revoluções.
O que ocorre é que o termo “revolução” tinha um referente bastante distinto no
momento da produção historiográfica de Duhem. Dessa forma, não nos parece
exagerado afirmar que ele acaba por dar início a uma mudança acerca do conceito de
revolução, que ganha tratamento privilegiado nos escritos de Thomas Kuhn, sobretudo
em
A estrutura das revoluções científicas,
obra publicada originalmente em 1962.
Vale lembrar que o significado de “revolução” na historiografia mais antiga da
ciência esteve associado aos feitos de um gênio, cuja capacidade individual permitiu dar
passo de gigante em direção a uma mudança repentina. Os textos da mais antiga
historiografia da ciência são fontes para essa caracterização. A concepção de um
renascimento da ciência, após um período de trevas e barbárie, exibe, em Georgio
Vasari
14
, Burkhardt
15
e Condorcet
16
, citando exemplos clássicos, a imagem de uma Idade
Média de completa nulidade e dormência do fazer e saber humano. Duhem, em
contraposição a essa caracterização, fez presença em um movimento a que Ferguson
(1950) denominou de “a revolta dos medievalistas”, buscando combater uma visão
histórica que julgou injusta e equivocada.
Se é verdade que as teses duhemianas foram matizadas, como apontam alguns
pensadores
17
, é também verdade que a “tese da continuidade”, tal como concebida e
criticada por seus críticos, pode também ser matizada se nos propusermos a avaliar sua
14
Publicada em 1550, a obra de Vasari difundiu a ideia de um renascimento da civilização depois de um
intervalo de barbarismo na história da arte.
15
A obra de Burckhardt (1991),
A cultura do Renascimento na Itália
, apresenta uma mudança brusca na
história da civilização.
16
Condorcet, em
Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano,
apresenta muitas
características da história criticada por Duhem, a começar pela imagem fornecida da Idade Média.
17
Ver, por exemplo, David Lindberg (1978, p. VIII; 2007, p. 358- 359), que afirma que os seguidores de
Duhem, como Anneliese Maier, Marshall Clagett, Lynn Thorndike, elaboraram uma história da ciência mais
detalhada. Beltrán (1995, p. 37) afirma que os seguidores do movimento continuísta reformularam e
matizaram as teses dos primeiros continuístas até que o movimento fosse contestado e cedesse lugar ao
movimento descontinuísta.
obra com mais calma e persistência em seus próprios termos, sem nos intimidarmos
pelas afirmações de pensadores considerados autoridades. Com material historiográfico
que atesta a mudança na escrita da história da ciência, com o distanciamento da
necessidade de combater tradições, é possível uma melhor compreensão da obra
duhemiana. E uma atenção às metáforas por ele elaboradas pode ser uma via profícua
para isso.
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