DAMASCENO, Natália Abreu*
https://orcid.org/0000-0003-0808-5953
RESUMO: Este artigo analisa os papéis
atribuídos a
experts
e cientistas na cooperação
técnica dos Estados Unidos destinada à
América Latina no início da Guerra Fria. A
reestruturação do cenário internacional que
consagrou a liderança mundial dos EUA e uma
noção ampliada de segurança promoveu o
auxílio técnico a elemento permanente da
política externa de Washington. Nesse
contexto, a produção acadêmica de cientistas
sociais e economistas, e a atuação de médicos,
agrônomos e técnicos afins chancelaram a
condução de projetos de modernização para a
América Latina afinados com o processo de
consolidação da hegemonia estadunidense na
região. A fim de observar diferentes níveis de
atuação de
experts
e cientistas no
empreendimento da cooperação técnica
estadunidense, formulamos três categorias
que delimitam funções identificadas na
documentação examinada: teóricos,
elaboradores e técnicos de campo. A partir
dessas categorias, apuramos a importância da
produção de diagnósticos e soluções para o
“subdesenvolvimento” latino-americano do
pós-guerra no âmbito do
Institute of Inter-
American Affairs
e do Departamento de
Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Cooperação técnica;
Experts
; Cientistas.
ABSTRACT: This article discusses the roles of
experts
and scientists in United States’
technical cooperation projects in Latin
America during the early Cold War. Amongst
global changes, in which US’ international
leadership was earmarked, a larger conception
of national security set technical assistance as
a permanent element in Washington’s foreign
policy. In this context, the ideas of economists
and social scientists, and the job of
agronomists and technicians alike helped put
forward modernization projects attuned to the
process of consolidation of American regional
hegemony. Aiming at observing experts and
scientists’ performance levels, we have
created three analitical categories which
demarcate different functions performed:
theorists, formulators and field technicians.
Out of these, we analysed the importance of
the production of ‘diagnosis’ and ‘solutions’ to
Latin American ‘underdevelopment’ during the
post war in the Institute of Inter-American
Affairs
and the
State Department.
KEYWORDS: Technical cooperation; Experts;
Scientists.
Recebido em: 20/07/2021
Aprovado em: 08/10/2021
* Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, doutoranda do Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC. Bolsista Capes.
E-mail: abreunatalia00@gmail.com. Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A contingência do pós-Segunda Guerra Mundial produziu um contexto de
internacionalização do debate sobre desenvolvimento (RIST, 2008). Na Europa devastada
pela guerra, o debate gravitava em torno de formas de recuperar a indústria, reconstruir
cidades e redirecionar a economia para tempos de paz. Nas colônias e ex-colônias na
África e na Ásia, a projeção de caminhos de soberania e modernização das antigas
estruturas coloniais estava na ordem do dia. Em instituições como a ONU, por exemplo, a
discussão sobre “desenvolvimento”
1
ganhava força mediante o incentivo à construção de
laços de cooperação internacional capazes de sustentar uma ordem mundial mais
harmônica. Nos recém-fundados Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), as iniciativas de promoção
ao “desenvolvimento” eram vistas sob o signo da expansão da circulação do capital.
No caso da América Latina, o debate sobre cooperação internacional para a
dinamização das economias periféricas havia ganhado maior impulso desde a
Conferência do Rio de Janeiro (1942), que instituiu o rompimento do hemisfério com o
Eixo e instigou os primeiros acordos bilaterais de cooperação técnica entre os Estados
Unidos e países latino-americanos (THE INSTITUTE, 1949). Passada a guerra, grande
parte dos governos da América Latina ansiava pelo estreitamento de laços com os EUA a
fim de fazer avançar seus planos de “desenvolvimento” econômico e social.
Após as experiências de auxílio técnico a países latino-americanos coordenadas
pelo
Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
2
(OCIAA) durante a guerra, a
produção de diagnósticos a respeito dos principais problemas socioeconômicos das
diferentes regiões do mundo e a elaboração de soluções por meio do compartilhamento
de conhecimento cnico pautaram as discussões sobre “(sub)desenvolvimento” entre
certos
policymakers
de Washington. Com o anúncio do Ponto IV, em 1949, as
formulações sobre desenvolvimento e auxílio técnico ganharam uma dimensão prática
sistematizada, uma vez que este programa delegou ao Departamento de Estado a
coordenação e estendeu o alcance de programas de auxílio - antes destinados apenas à
1
Seguindo a linha de pensamento de autores como Gilbert Rist (2008) e Arthuro Escobar (1995),
entendemos que desenvolvimento é um conceito em disputa. Portanto, nosso artigo busca desnaturalizar o
termo como um conceito auto-evidente. Por isso, utilizamos aspas a fim de enfatizar a polissemia da
palavra “desenvolvimento”, rejeitando pretensões de universalidade e indicando se tratar de uma acepção
atrelada ao capitalismo liberal estadunidense.
2
O
Office for Inter-American Affairs
, antes chamado de
Office for Coordination Of Commercial And
Cultural Relations between the Americas
(OCCCRA) e, em seguida de
Office of the Coordinator of Inter.
American Affairs
(OCIAA), foi uma agência governamental dos EUA dedicada a promover a solidariedade
latino-americana ao esforço de guerra estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial. Criada em 1940 e
extinta em 1946, após mudanças sucessivas de nome e pequenas alterações em seus aspectos
administrativos, essa agência era dirigida por Nelson Rockefeller e coordenava atividades de cooperação
econômica, política e cultural como parte da Política de Boa Vizinhança (VALIM, 2017).
América Latina - a todo o então chamado “Terceiro Mundo”
3
, requentando e
mundializando as elaborações sobre “(sub)desenvolvimento” e cooperação técnica nos
Estados Unidos (MACEKURA, 2003).
Segundo Arthuro Escobar (1995), as noções de desenvolvimento e
subdesenvolvimento monopolizaram as análises e percepções sobre a realidade social de
forma global, fosse em planos projetados e implementados por governos de países do
Terceiro Mundo, em instituições internacionais como a ONU e o BIRD ou nos estudos de
experts
e cientistas das mais diversas áreas. Para o autor, entre os anos de 1945 e 1955
foi constituído um “aparato extremamente eficiente de produção de conhecimento e
exercício de poder sobre o Terceiro Mundo”
4
que sob o revestimento científico dos
estudos de economistas, cientistas políticos, sociólogos e acadêmicos de áreas afins,
normatizou formas de produzir, pensar e organizar a sociedade em detrimento da
desqualificação de outros modos de vida. Conforme exploraremos mais adiante, a
classificação do mundo de acordo com o nível de desenvolvimento” de seus países
produziu “[...] novos arranjos de saber e de poder, novas práticas, teorias, estratégias e
assim por diante.” (ESCOBAR, 1995, p. 9, tradução nossa)
5
que ampararam o lançamento
de programas de assistência atrelados aos interesses hegemônicos das potências
ocidentais.
Ao analisarmos um corpo documental referente a essas discussões sobre a
cooperação técnica voltada para o Terceiro Mundo e, em especial, para a América
Latina, a proeminência de
experts
e cientistas na fundamentação, no planejamento e na
condução de programas de auxílio técnico nos chamou a atenção. Com o objetivo de
apurar a contribuição de cientistas acadêmicos e o papel atribuído a profissionais
técnicos nos programas de cooperação técnica de fins dos anos de 1940 e início da
década de 1950, formulamos três categorias de análise que nos permitem investigar três
diferentes níveis de atuação de
experts
e cientistas em tais programas. São elas: os
teóricos, os elaboradores e os técnicos de campo.
Antes de iniciarmos a exposição de nossa investigação, faz-se necessário
explicitar alguns aspectos das escolhas metodológicas feitas em nossa análise. Em
3
Neste artigo, adotamos a expressão “Terceiro Mundo”, frequentemente utilizada nas fontes consultadas,
como um recurso de escrita com a finalidade didática de estabelecer um diálogo mais direto entre a nossa
análise a as formas de classificação do mundo empregadas pelos agentes estudados. Entretanto, esta
terminologia não corresponde à nossa percepção da realidade. “Terceiro Mundo” é um termo datado e
atrelado às discussões sobre (sub)desenvolvimento que são objeto da nossa investigação e com as quais
não compactuamos.
4
[No original]: “an extremely efficient apparatus for producing knowledge about, and the exercise of
power over, the Third World” (ESCOBAR, 1995, p. 9).
5
[No original] “[...] produce new arrangements of knowledge and power, new practices, theories,
strategies, and so on.” (ESCOBAR, 1995, p. 9)
primeiro lugar, embora não lancemos mão da perspectiva culturalista de Ricardo
Salvatore (1998), nosso trabalho dialoga com a ideia deste autor de que uma espécie de
“empreendimento do conhecimento” foi usada para legitimar o projeto expansionista dos
Estados Unidos durante e após a Segunda Guerra Mundial. Considerando a
interdependência entre fatores e interesses políticos, econômicos, tecnológicos,
culturais etc., noção explorada por Salvatore (1998), entendemos que
experts
, cientistas
e técnicos atuaram também como mediadores de práticas e da produção de
conhecimento sobre a América Latina que a tornavam “legível” por
policymakers
e
investidores estadunidenses. Assim, ao fazermos esse breve exercício de investigação de
diferentes níveis de atuação desses profissionais, evidenciamos que a assistência técnica
significou não apenas a entrada de capital estrangeiro e tecnologia no continente latino-
americano, mas foi também uma modalidade de autoridade sobre a região, que
estabeleceu dinâmicas reveladoras de complexas conexões entre conhecimento e poder.
Em segundo lugar, as categorias analíticas a serem trabalhadas a seguir (teóricos,
elaboradores e cnicos de campo) são abstrações elaboradas com o intuito de organizar
a interpretação das informações dispostas nos documentos analisados. Elas não
correspondem a classificações feitas pelos agentes estudados, tampouco representam as
únicas funções exercidas por
experts
e cientistas nos programas de cooperação técnica.
Entretanto, a identificação desses três níveis de atuação profissional nos auxiliou a
compreender a polivalência e a responsabilidade atribuída aos técnicos e acadêmicos em
questão, para além da mera execução de seus ofícios.
Em terceiro, esta investigação, que faz parte de uma pesquisa de doutorado de
tema mais amplo, foi estruturada a partir da análise de fontes como relatórios
produzidos pelo
Institute of Inter-American Affairs
(IIAA), órgão responsável pelos
programas de cooperação técnica na América Latina; artigos publicados em um dossiê
sobre cooperação técnica no proeminente periódico acadêmico chamado
The Annals of
American Academy of Political and Social Science
escritos por economistas,
antropólogos, cientistas políticos e outros cientistas da época dedicados ao debate sobre
desenvolvimento e políticas internacionais de auxílio; e discussões (re)produzidas no
âmbito do Departamento de Estado sobre auxílio técnico a países periféricos.
Por fim, em quarto lugar, cabe sinalizar que o recorte temporal em questão tem
como ponto de partida o ano de 1949, quando discussões sobre desenvolvimento e
cooperação cnica foram mobilizadas no meio intelectual, no legislativo e no executivo
dos Estados Unidos após o anúncio do programa Ponto IV no discurso inaugural do
presidente Harry Truman. Utilizando o andamento do Ponto IV como fio condutor,
estipulamos o ano de 1954 como o limite do nosso recorte, uma vez que após este
período, a administração da cooperação técnica passou por transformações
significativamente diferentes do que havia sido projetado nos anos iniciais do programa.
Feitas estas considerações preliminares, partiremos para uma breve exposição de
alguns dos nexos que atrelaram os programas de auxílio técnico voltados para a América
Latina aos objetivos dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Após mapear caminhos
para entender a importância política, econômica e estratégica da cooperação técnica,
exploraremos, a partir das três categorias analíticas previamente mencionadas, algumas
formas pelas quais
experts
e cientistas fizeram parte do empreendimento da assistência
técnica a países latino-americanos e dos seus objetivos para a política externa
estadunidense.
Auxílio técnico para a América Latina: uma estratégia de Washington em plena Guerra
Fria?
O pós-1945 foi marcado pela consagração dos Estados Unidos como uma potência
econômica e militar de primeira ordem. Após séculos de predominância europeia no
cenário internacional, os EUA prosperaram e atravessaram um período de expansão do
capitalismo com altos índices de crescimento industrial, superávit em suprimentos
alimentares, amplas reservas financeiras e com a mais extensa máquina militar do mundo
mesmo após o desarmamento do pós-guerra (LEFFLER, 1994). Acompanhando o boom
do capitalismo mundial, os anseios estadunidenses por livre mercado e livre circulação
de dólares foram favorecidos em acordos e instituições multilaterais que asseguravam
tanto objetivos de segurança, quanto de expansão econômica dos Estados Unidos no
sistema internacional. Nesse sentido, arranjos como o Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (GATT), o Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca (TIAR) e instituições
como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Organização dos Estados
Americanos (OEA), todas estabelecidas na segunda metade da década de 1940,
chancelaram a liderança mundial estadunidense e sua intervenção em diversos contextos
nacionais e regionais (AYERBE, 2002).
Apesar do clima de expansão do capitalismo liberal estadunidense e de
consolidação de interesses hegemônicos em nível global, as disputas por esferas de
influência com a União Soviética e certas tendências estatizantes em países europeus e
latino-americanos, despertaram preocupações em Washington. Em 1947, Truman se
pronunciou não apenas contra o modelo soviético, mas também contra capitalismos com
direção e planejamento estatal e afirmou que estes eram uma ameaça à economia
mundial. Portanto, na visão do presidente, era preciso que o “sistema americano” de
economias abertas se espalhasse por todo o mundo (WOOD, 1994).
No contexto doméstico dos EUA, existia um medo concreto de desemprego e de
uma nova recessão no pós-guerra. Diante de tais receios,
policymakers
acreditaram que
o aumento das exportações e um estímulo ao consumo nas economias estrangeiras
seriam um antídoto. Portanto, a fim de garantir acesso a matérias-primas estratégicas e
essenciais para a indústria estadunidense, bem como mercados consumidores para sua
produção em expansão, intervir em países periféricos de modo a tornar suas economias
mais receptivas ao dólar e às demandas dos EUA se tornou um imperativo na política
externa de Washington (WILLIAMS, 1966).
Além disso, em tempos de acirrada disputa ideológica e geopolítica contra o
comunismo, o capitalismo liberal estadunidense, percebendo-se ameaçado por outros
tipos de ideologias e ordenamento social, se autoproclamou o melhor sistema para
atender às demandas por melhorias de vida ao redor do mundo. Deste modo, “[…]
acreditando ser o arquétipo da sociedade moderna e tecnológica e um pilar do
liberalismo […](EKBLADH, 2010, n.p., tradução nossa)
6
, os Estados Unidos se lançaram
ao mundo como um modelo a ser seguido distribuindo promessas de “desenvolvimento”
que fossem representativas do
American way
e antagônicas ao modelo soviético.
Um relatório produzido em 1951 pelo
International Development Advisory Board
(IDAB), órgão consultivo do programa Ponto IV e dirigido à época por Nelson
Rockefeller, teceu argumentações elucidativas a respeito do papel de políticas de
cooperação técnica para alcançar os objetivos de segurança e de expansão da economia
estadunidense. Segundo Rockefeller, autor do prefácio, a fim de garantir a paz mundial,
era preciso transformar sociedades “subdesenvolvidas” de modo a garantir a prevalência
“da lei e da ordem”. Sob seu ponto de vista, um jeito barato e eficiente de fazer isso era
por meio da expansão da produção e da dinamização das economias periféricas
estimulando novos negócios, mais empregos, novas escolas e hospitais sob um modelo
de gestão importado dos Estados Unidos que atrelava a produção e os mercados locais
às demandas estadunidenses. Para o IDAB, esse esforço passava também pela luta
contra a fome, as doenças e o analfabetismo nos países do Terceiro Mundo, a fim de
garantir uma mão-de-obra produtiva e laços de cooperação entre as nações não-
comunistas e assim garantir segurança contra o suposto “imperialismo soviético”. De
acordo com essa perspectiva, o desenvolvimento nos moldes do capitalismo liberal era a
chave para a paz mundial, a contenção do comunismo, para o acesso a mercados e
6
[No original] “[…] believing itself the archetype of modern technological society and a pillar of liberalism
[…](EKBLADH, 2010, n.p.)
matérias-primas e para o alinhamento do mundo “subdesenvolvido” ao bloco capitalista
(INTERNATIONAL, 1951).
O relatório sustenta ainda que, no ano de 1950, 56% de todas as importações dos
EUA vieram de áreas periféricas e que devido à alta demanda estadunidense, era preciso
aumentar a produção. Para tanto, a cooperação técnica para o aprimoramento da
produção agrícola, por meio da introdução do uso de fertilizantes, técnicas de drenagem
e medidas afins, seria uma forma de garantir esse fluxo contínuo de materiais. De modo
semelhante, 73% das importações de materiais estratégicos para a produção militar dos
Estados Unidos vinham do Terceiro Mundo. Por isso, fazia-se necessário o investimento
técnico em prospecção e técnicas de exploração de minerais nessas regiões
(INTERNATIONAL, 1951).
Para o historiador Melvyn Leffler (1994), no caso da América Latina, as investidas
estadunidenses de auxílio técnico guiadas por demandas econômicas e de segurança “[…]
não era[m] um resultado do deterioramento das relações Soviético-Americanas, mas uma
evolução natural da Doutrina Monroe […]
7
8
(LEFFLER, 1994, p. 22, tradução nossa), que
havia sido acentuada nos anos da guerra devido à ameaça do Eixo ao hemisfério e por
conta de novos imperativos tecnológicos. Isto é, os esforços para a cooperação técnica
com a América Latina tratava-se da continuação de um plano “[…] para a preservação e
fortalecimento da solidariedade hemisférica depois da guerra.”
9
(BETHELL;
ROXBOROUGH, 1994, p. 307, tradução nossa)
Analisando relatórios da CIA do final dos anos de 1940, Luiz Fernando Ayerbe
afirma que
A preocupação dos Estados Unidos em relação à América Latina no início da
Guerra Fria se concentra especialmente nas posturas nacionalistas de alguns
governos e movimentos que visualizam uma perspectiva eqüidistante da
influência do país como base para qualquer política de afirmação nacional. A
maior preocupação é com a disponibilidade dos recursos naturais da região em
caso de uma guerra com a União Soviética e a eventualidade de um boicote de
governos, sindicatos e demais movimentos, em que a infiltração de idéias
antiamericanas possa ser decisiva. (AYERBE, 2002, p. 81)
7
Ficou conhecido como Doutrina Monroe o anúncio de 1823, feito pelo presidente estadunidense James
Monroe, que expressava uma preocupação em blindar todo o continente americano do colonialismo
europeu. Também conhecida como a doutrina da “América para os americanos”, a Doutrina Monroe,
adotada como uma importante diretriz da política externa dos Estados Unidos para o hemisfério, teve
como corolário posturas expansionistas estadunidenses diante da América Latina, fossem pela via militar,
fossem pela via econômica. Dessa maneira, a premissa de fechar o continente para a intervenção européia
veio acompanhada do entendimento da América Latina como um quintal, como uma espécie de “esfera de
influência natural” para os EUA (LIVINGSTONE, 2009).
8
[No original] “[…] was not a result of deteriorating Soviet-American relations but a natural evolution of
the Monroe Doctrine […]” (LEFFLER, 1994, p. 22).
9
[No original] “[…] for the preservation and strengthening of hemispheric solidarity after the war.”
(BETHEL; ROXBOROUGH, 1994, p. 307).
Desta maneira, o propósito dos programas de assistência técnica para a América
Latina estava atrelado ao combate a condições adversas ou “ideias antiamericanas” que
fossem empecilhos para a entrada e saída de capital estadunidense sobretudo o capital
privado -, e obstáculos para os planos de Washington de segurança hemisférica
notadamente as convulsões sociais por reformas ou projetos políticos nacionalistas e à
esquerda (BETHEL; ROXBOROUGH, 1994). Assim, podemos dizer que em meio a um
contexto de profundas demandas no orçamento do governo dos EUA, com a
reconstrução da Europa e o aparelhamento das chamadas “zonas de risco” da Guerra
Fria, a cooperação técnica se estabeleceu como uma forma barata e eficaz de
manutenção da tutela de Washington sobre a América Latina.
De acordo com um registro produzido no âmbito do Departamento de Estado, a
assistência técnica não deveria ser confundida com um programa de ajuda financeira. Sob o
programa Ponto IV, o auxílio técnico teria caráter eminentemente educacional e faria
investimentos pontuais em infraestrutura a fim de favorecer investidores privados
estadunidenses (POSSIBLE, 1949). A
Act for International Development
(1950), lei que sancionou
o Ponto IV, definia que a cooperação técnica consistia no lançamento de
[…] programas para intercâmbio internacional de conhecimento técnico e de
técnicas desenvolvidas para contribuir com o desenvolvimento balanceado e
integrado dos recursos econômicos e das capacidades produtivas das áreas
economicamente subdesenvolvidas. (ACT, 1955, p. 118, tradução nossa)
10
.
Ou seja, tratava-se de um programa de direcionamento de produção e de recursos
(naturais, estratégicos, humanos etc.) por meio do compartilhamento de
know how
e de
intercâmbios.
No mês de dezembro de 1949, uma publicação do
Office of Public Affairs
, setor do
Departamento de Estado dos EUA, afirmou que a necessidade fundamental das áreas
“subdesenvolvidas” do mundo era o “[...] melhoramento na educação, saúde e métodos
agrícolas, a fim de garantir um povo enérgico e capaz.”
11
(DEPARTMENT, 1949, n.p,
tradução nossa). Ancorado em avaliações de programas de cooperação técnica
considerados bem-sucedidos na América Latina dos anos da Segunda Guerra Mundial,
esse mesmo documento asseverava que o
10
[No original] “[…] programs for international exchange of technical knowledge and skills designed to
contribute to the balanced and integrated development of the economic resources and productive
capacities of economic underdeveloped areas.” (ACT, 1955, p. 118)
11
[No original] “[...] improvement of education, health, and agricultural methods, to assure more energetic
and able people” (DEPARTMENT, 1949, n.p)
Desenvolvimento em geral requer um processo complexo de mudança social e
econômica que demanda um longo e paciente esforço, mas que mesmo
relativamente poucos experts com um equipamento moderado podem obter
resultados rápidos na agricultura, a partir do ensino de técnicas como
terraceamento e o uso de fertilizantes, e assim fazer a roda do progresso girar.
(DEPARTMENT, 1949, n.p, tradução nossa)
12
Desse modo, no escopo deste programa, a cooperação técnica compreendia
“projetos econômicos, de engenharia, de medicina, educacionais, agrícolas, de pesca, de
pesquisa mineral e fiscal, de demonstração, treinamento e outros similares [...]” (ACT,
1955, p. 118, tradução nossa)
13
. Ou seja, do ensino sobre práticas de higiene e controle de
epidemias à formação de quadros para a administração pública em países latino-
americanos, a assistência técnica para a região foi pensada para produzir efeitos a longo
prazo, direcionando as demandas latino-americanas por desenvolvimento e
modernização para o alinhamento com os interesses dos Estados Unidos.
O empreendimento da cooperação técnica nos moldes do Ponto IV foi possível
graças um consenso construído ao longo do século XX a respeito da tecnologia como um
meio e um fim para o processo de desenvolvimento econômico, social e político. Nesse
sentido, a tecnologia era buscada não apenas pelos seus benefícios materiais, mas pela
sua capacidade de trazer transformação social. Assim, a construção de redes de esgoto,
por exemplo, era entendida como muito mais que um investimento filantrópico. Era vista
como uma engrenagem de um processo em que a sociedade beneficiada teria ganhos
imediatos, como a menor incidência de doenças, mas também - mais a longo prazo - se
convenceria das benesses do modelo capitalista liberal dos Estados Unidos e adequaria
seu ordenamento político e econômico aos moldes estadunidenses (EKBLADH, 2010).
Para Nils Gilman (2003), estas ideias estiveram na base do que ele chamou de
“consenso sobre desenvolvimento do período do pós-guerra”, no qual o nexo entre
conhecimento e poder se manifestava a partir da crença de que a transferência de
tecnologia e a expansão econômica seriam soluções mais convenientes e eficazes para
quadros de escassez que a redistribuição de capitais e recursos. Nessa perspectiva, os
entusiastas do auxílio técnico estrangeiro entendiam que
experts
e cientistas ofereciam
soluções técnicas para problemas sociais, políticos e econômicos, baseados na crença de
que o aconselhamento de “economistas profissionais treinados em teoria
12
[No original] “Development in general rquires a complex process of social and economic chage which
takes long, patient effort, but even a relatively few experts with moderate equipment can get rapid results
in agriculture, through teaching such techniques as contour planting and use of fertilizer and so set the
wheel of progress in motion” (DEPARTMENT, 1949, n.p).
13
[No original] “economic, engineering, medical, educational, agricultural, fishery, mineral and fiscal
surveys, demonstration, training and similar projects [...]” (ACT, 1955, p. 118).
macroeconômica, representava o melhor jeito de aliviar a pobreza transitória e crônica
de grande parte da população do mundo.”
14
(GILMAN, 2003, p. 40).
De fato, as elaborações científicas de economistas, antropólogos, cientistas
políticos e sociais foram fundamentais para a existência dos programas de auxílio
técnico. Na condição do que chamamos neste estudo de teóricos da cooperação técnica,
vejamos a seguir de que forma esses profissionais não apenas produziram diagnósticos
gerais sobre o “subdesenvolvimento”, mas também emprestaram ao empreendimento da
assistência cnica estrangeira a credibilidade científica, alinhavando os projetos de
auxílio aos propósitos de Washington.
O “desenvolvimento” como panacéia nos discursos científicos dos teóricos
Quando tratamos de elaborações de diagnósticos e de soluções para o
“subdesenvolvimento” é necessário ter em mente que por mais desinteressado, técnico e
fundamentado em análises científicas que seja um projeto de auxílio técnico, este estará
sempre inserido em uma estrutura ideológica mais ampla (EKBLADH, 2010). Portanto,
vale ressaltar que as noções de desenvolvimento e de subdesenvolvimento não são
autoevidentes, mas eram termos em disputa que estavam sendo elaborados no contexto
do pós-guerra. Nesse sentido, torna-se evidente a necessidade de entender projetos de
desenvolvimento a partir das premissas de seus formuladores, pois pensar sobre as
elaborações desses teóricos da cooperação técnica é uma forma de desnaturalizar a
narrativa do “desenvolvimento” buscando a textura do político que se encontra
subjacente ao discurso técnico.
Segundo Gilbert Rist (2008), a primeira vez que o adjetivo “subdesenvolvido” foi
utilizado em um texto de ampla circulação foi no discurso inaugural de 1949 do
presidente Truman, em que ele anunciou o programa Ponto IV. Usado como sinônimo de
“economicamente atrasado” o uso do termo demarcou ajustes na percepção das relações
entre países mais industrializados e países mais agrários. Para Rist (2008), surgia uma
nova dicotomia (desenvolvido/subdesenvolvido) que pressupunha um potencial de
transformação diferente da dicotomia estática de (ex)colonizado/colonizador. Nesse
esquema de percepção que se desenhava, o “desenvolvimento” era vislumbrado e
exposto como um caminho possível que os países “subdesenvolvidos” ainda não tinham
percorrido.
14
[No original] “professional economists trained in macroeconomic theory, represented the best way to
relieve the transitory and chronic poverty of much of the world’s population.” (GILMAN, 2003, p.40).
Essa mudança de percepção foi acompanhada da adoção de novos parâmetros de
observação da realidade social. Neste período em que as definições de modernização e
desenvolvimento ainda eram imprecisas, as ciências sociais e políticas passavam por
reformulações. De acordo com Packenham (2015), as fronteiras disciplinares entre
Ciência Política, Sociologia, Antropologia e Psicologia ficaram turvas ao passo que as
ciências sociais aplicadas, em geral, foram se revestindo de métodos, critérios e
marcadores cada vez mais técnicos que atendiam a uma pretensão de apreensão objetiva
da realidade. Desta maneira, a partir de indicadores “apurados objetivamente” como
taxa de alfabetização, de natalidade/mortalidade, dados sobre hábitos nutricionais e de
saúde etc.- grandes temas vinham sendo discutidos a partir das preocupações dos países
industrializados.
Num esforço de caracterização dos países menos industrializados, o especialista
em Relações Internacionais, editor da revista
Pacific Affairs
, Owen Lattimore (1950)
entendia por subdesenvolvidos aqueles em que havia “deficiências” nas formas de
transporte, distribuição e consumo, isto é, cujas estruturas de produção e escoamento
eram difíceis de mecanizar. Nessa perspectiva, o “atraso econômico” era explicado
principalmente por fatores ligados à capacidade produtiva e comercial. Além disso,
Lattimore (1950) sustentava que projetos de auxílio técnico a países do Terceiro Mundo
precisavam lidar com um fator complicador oriundo do passado colonial de muitos deles:
mesmo os mais capitalistas dos habitantes das regiões subdesenvolvidas possuíam
receios em relação ao capital estrangeiro, por medo de que este retirasse das mãos dos
nativos novamente o controle de seu país.
Diante disso, é interessante observar como o passado colonial dos países
periféricos foi aventado como um obstáculo a ser contornado e não como uma
explicação estrutural para o “subdesenvolvimento”. Portanto, para superar o empecilho
das resistências à entrada irrestrita de capital privado, Lattimore (1950, p.4, tradução
nossa) defendia que os países receptores dos programas de auxílio técnico precisavam -
além de suporte tecnológico e de treinamento [...] ser convencidos desde o começo de
que o capital americano terá não mais que uma recompensa justa pelos serviços
contribuídos para o país em que opera”
15
.
O geógrafo John K. Rose (1950) endossou a compreensão de que o
subdesenvolvimento era um problema essencialmente econômico sem buscar uma
compreensão de suas raízes. Para Rose (1950), entre os elementos definidores desta
15
[No original] “[...] be convinced from the beginning that Ameri- can capital is getting no more than a fair
reward for services contributed to the country in which it operates.” (LATTIMORE, 1950, p.4).
condição socioeconômica estavam a baixa renda
per capta
, o baixo investimento
industrial, baixo consumo de comida, baixo uso de energia mecânica, o grande
crescimento demográfico, os altos índices de analfabetismo e a precariedade em
instalações de saúde e de educação. Destarte, sob seu ponto de vista, a superação do
subdesenvolvimento dependia da disponibilidade de recursos passíveis de serem
explorados e do aumento da produção por meio de tecnologias conhecidas que
pudessem transformar índices socioeconômicos e demográficos. Segundo ele, contanto
que os recursos explorados fossem abundantes e tivessem demanda tanto interna
quanto externa seria “[...] razoável dizer que a área, independente de seu status presente,
independente da pobreza ou riqueza do seu povo, não é subdesenvolvida em termos de
seu potencial em relação ao mundo econômico atual” (ROSE, 1950, p. 10, tradução
nossa)
16
.
Num mundo ainda influenciado por ideias malthusianas
17
, preocupado com a
disponibilidade de terras cultiváveis e com o esgotamento de fontes de matérias-primas
essenciais para a expansão da indústria, Rose (1950) atrelava o desenvolvimento à
exploração ampliada e bem-sucedida de recursos comercializáveis, perpetuando um
modelo agrário-exportador que, ao longo da história, fracassou muitas vezes em trazer
melhorias efetivas aos países periféricos. Entretanto, segundo Rose (1950), o
subdesenvolvimento o era uma questão de falta de capital e de tecnologia, mas
também de falta de uma força de trabalho qualificada e de bom gerenciamento de terras
e recursos. Para sanar esses problemas, o auxílio técnico, por meio de programas de
capacitação, treinamento e demonstração, era indicado.
Em seu artigo intitulado
Needs and resources of the Brave New World
, Rose
(1950) se questionava até que ponto a cultura de um país era transferível para outro,
porém, entendia que não existia desenvolvimento com culturas diversas, era preciso
abandonar as tradições para modernizar-se. Esse ponto foi trabalhado pelo antropólogo
Gordon Bowles (1950) no artigo
Point Four and Improved Standards of Living
. Para
Bowles, a adequação das culturas dos países do Terceiro Mundo aos padrões
construídos de modernização deveria ser feita por meio de um processo educacional. Por
isso, o auxílio técnico deveria se voltar também a ensinar aos povos “subdesenvolvidos”
o significado das liberdades individuais e as vantagens de fazer as coisas de uma forma
16
[No original] “[...] reasonable to say that the area, regardless of its present status, regardless of the
poverty or richness of its people, is not underdeveloped in terms of its potential in relation to the present-
day economic world.” (ROSE, 1950, p. 10)
17
As ideias malthusianas referem-se ao pensamento do economista britânico Thomas Matlhus (1766-
1834), que fez projeções teóricas a respeito da desproporcionalidade entre o crescimento demográfico e a
disponibilidade de recursos e matérias-primas.
nova e mais “eficiente”. Na visão de Bowles (1950), a ruptura de barreiras culturais em
nome do progresso seria possível caso fosse mostrado às sociedades atrasadas” o
caminho para a felicidade e plenitude capacitando corpos e mentes para a modernização.
Assim, conforme sustenta Salvatore (1998), a invocação do conhecimento autorizava
intervenções tanto econômicas, políticas e técnicas quanto morais e culturais, que não
raro, reforçavam-se mutuamente. Para teóricos como Bowles, a cooperação técnica
parecia se assemelhar a uma missão civilizadora, cujo objetivo era “ocidentalizar” vidas.
Autor de elaborações mais pragmáticas, Thorsten Kalijarvi (1950), um especialista
em Relações Internacionais e assessor do Comitê de Relações Internacionais do Senado
dos Estados Unidos, entendia a cooperação técnica mais sob as lentes da necessidade de
derrubar barreiras para a entrada de capital estrangeiro que de derrubar barreiras
culturais. Na perspectiva de Kalijarvi, a cooperação técnica oferecia benesses em pelo
menos duas vias: em uma deveria “fluir a assistência necessária para construir o poder
produtivo de dois terços da população do mundo”, em outra deveria “[…] fluir o recém-
descoberto poder de compra das áreas assistidas e também os bens que elas podem
produzir.”
18
(KALIJARVI, 1950, p. 5, tradução nossa).
Essa visão de Kalijarvi (1950) influenciou e era influenciada pela ideia de que a
solução para o subdesenvolvimento estava no aumento da produção, numa lógica em que
mais era necessariamente equivalente a melhor. Forjada no cerne de relações de poder,
essa noção estabelecia que o crescimento não era uma escolha, mas uma necessidade,
questionando ordenamentos sociais fora do domínio da lógica do capitalismo liberal
estadunidense, deslegitimando os que se beneficiavam da ordem social preexistente e
encobrindo, sob o discurso técnico-científico, o caráter assimétrico e o potencial
corrosivo desses modelos exógenos de modernização e dinamização das economias
(RIST, 2008).
Além disso, conforme atestam Rose (1950) e Bowles (1950), uma pretensa
universalização dos anseios por desenvolvimento, como se esse modelo proposto fosse a
única forma de alcançar melhores padrões de vida ou como se todas as sociedades
desejassem as mesmas coisas. Tal discurso de poder, chancelado pelo método científico
de seus formuladores, instituía que o desenvolvimento era uma demanda universal, mas
não transcultural, de forma que crenças religiosas, práticas de saúde e relação com a
natureza ligadas a tradições locais fossem deslegitimadas e classificadas como
obstáculos para o progresso (RIST, 2008).
18
[No original] “[...] flow the assistance necessary to build the productive power of two-thirds of the
world’s population [...] flow the new-found purchasing power of the assisted areas and also the goods they
can produce.” (KALIJARVI, 1950, p.5)
Como nas elaborações citadas até aqui, muitas outras nuances e até mesmo
dissensos sobre a relação entre “(sub)desenvolvimento” e cooperação técnica. Contudo,
de maneira geral tributárias do
mindset
da Guerra Fria e das características das ciências
sociais e políticas à época, grande parte dos teóricos da cooperação cnica lançavam
mão de um misto de determinismo econômico, sociológico e psicológico que confluía
para uma projeção ideal de desenvolvimento: a difusão de sociedades anticomunistas,
pró-americanas, economicamente produtivas, politicamente estáveis e, quando possível,
democráticas (PACKENHAM, 2015).
Dados os limites no escopo deste artigo, embora haja diversos outros pontos
passíveis de serem explorados a respeito das formulações acadêmicas da época sobre
(sub)desenvolvimento, partiremos para a nossa próxima categoria de análise, os
elaboradores da cooperação técnica. Chamamos aqui de elaboradores aqueles que
lançaram um olhar especializado sobre questões mais práticas relativas ao
funcionamento dos programas de auxílio técnico. Foram entendidos como elaboradores
da cooperação técnica assessores que discutiram aspectos administrativos e
modalidades de financiamento, que diagnosticaram problemas e propuseram soluções
amparadas por avaliações especializadas ou que se dedicaram a levantar informações a
respeito dos povos receptores do auxílio a fim de tentar adequar o programa à realidade
social encontrada.
Antes de prosseguirmos, vale ressaltar novamente que essas categorias são
abstrações feitas com o objetivo de sistematizar níveis de atuação de
experts
e
cientistas, de modo que nada impede que um mesmo profissional ou uma mesma
publicação ocupe mais de uma categoria ao mesmo tempo.
Elaboradores da cooperação técnica: forjando e avaliando modelos de assistência
No bojo do impulso às políticas de modernização do Terceiro Mundo, o
Departamento de Estado, com o apoio de fundações privadas dos Estados Unidos,
promoveu o aperfeiçoamento do treinamento de oficiais diplomáticos e da formação de
acadêmicos para aumentar sua capacidade de pesquisa. Mediante o financiamento de
instituições como a Fundação Rockefeller e a Fundação Carneggie, cursos na área de
Relações Internacionais em universidades prestigiadas como Yale, Harvard e Princeton
foram favorecidos. À medida em que campos de estudo ligados à Ciência Política,
Economia e Relações Internacionais começavam a se revestir de métodos científicos
positivistas de análise social e a gerar resultados particularmente efetivos para o uso de
policymakers
, a importância de intelectuais tecnocratas voltados para a elaboração de
políticas de governo foi reforçada (PARMAR, 2012).
Segundo Inderjeet Parmar (2012), a construção de “comunidades epistêmicas” nos
Estados Unidos e nos países assistidos foi fundamental para o empreendimento da
cooperação técnica. De acordo com Parmar (2012, p.20, tradução nossa), as
comunidades epistêmicas” organizavam-se em “redes de especialistas com uma visão de
mundo comum sobre relações de causa e efeito relacionadas ao seu domínio de
expertise, e valores políticos comuns sobre o tipo de políticas aos quais eles devem ser
aplicados”
19
. Comumente incorporados ao
stablishment
, esses
experts
, via de regra, eram
importantes agentes na consolidação de paradigmas políticos dentro do Departamento
de Estado (PACKENHAM, 2015).
Ao tratar de arranjos administrativos necessários para viabilizar as iniciativas
estadunidenses de cooperação técnica, Hanson Haldore (1950), diretor executivo do
Interdepartmental Committee on Scientific and Cultural Cooperation
do Departamento
de Estado, relatou que a inserção de políticas para o avanço tecnológico e científico na
política externa tornava necessária a incorporação de especialistas e agências
especializadas em temas específicos para além do corpo diplomático dos Estados Unidos.
Para ele, a crescente importância do auxílio técnico nos assuntos internacionais agregou
atribuições adicionais a várias agências, de forma que muitas delas passaram a ter
escritórios técnicos para assuntos específicos como pesquisa agrícola, mineração,
construção de estradas, melhoria de portos, meteorologia, mapeamento hidrográfico,
finanças públicas, administração de pessoal, aviação civil, educação, saúde, entre outros.
Desta maneira, as ciências sociais e aplicadas emergiram naquele contexto como
um empreendimento racional de engenharia social voltada para a modernização. A
credibilidade de tais formulações a partir de métodos científicos reconhecidos foi tal que
qualquer outro caminho para o desenvolvimento alternativo à incorporação e
reprodução das ideias desses intelectuais nas esferas política, econômica e cultural dos
países receptores de auxílio técnico era considerado um caminho de radicalismo que
atrasaria o processo de modernização. De modo semelhante, a “Oposição à política
externa dos EUA era, portanto, vista como baseada na emoção, ignorância ou
nostalgia,”
20
(PARMAR, 2012, p. 99, tradução nossa) ou ainda como posicionamentos
oriundos de preconceitos, ansiedades ou sentimento de inferioridade.
O aparelhamento do Departamento de Estado e o fortalecimento dos consensos
em torno dos caminhos para o desenvolvimento” do mundo periférico estabeleceu uma
19
[No original] “networks of specialists with a common world view about cause and effect relationships
which relate to their domain of expertise, and common political values about the type of policies to which
they should be applied.” (PARMAR, 2012, p.20).
20
[No original] “Opposition to U.S. foreign policy, therefore, was seen as based on emotion, ignorance, and
nostalgia,” (PARMAR, 2012, p. 99).
base técnica que fundamentava toda a sorte de aspectos do auxílio técnico a partir de
avaliações de especialistas mesmo que muitas delas fossem generalistas e carecessem
de um trabalho empírico que as sustentassem adequadamente. Vamos a alguns
exemplos.
Willard Thorp, um economista que ocupou diversos cargos administrativos e de
pesquisa em empresas privadas e no governo, que à época ocupava o posto de
Secretário Assistente para Assuntos Econômicos, dissertou em março de 1950 sobre os
objetivos do Ponto IV. Em sua argumentação, ele enfatizou uma relação de causa e efeito
que entrelaçava todos os pontos de estrangulamento das economias de países
“subdesenvolvidos” e defendeu um modelo de cooperação técnica em que diversos
projetos fossem conduzidos simultaneamente num mesmo país.
A saúde é ruim por falta de comida, mas a produção de comida é baixa devido à
falta de corpos fortes e desprovidos de doença. Educação é necessária para
difundir melhores técnicas, mas baixa produtivdade torna impossível gastar um
tempo precioso nas escolas. Capital é necessário para comprar melhores
equipamentos, mas sem equipamento tudo o que é produzido deve ser utilizado
cotidianamente. Doença e nutrição minam a energia e vigor, porém energia e
vigor são necessários para superar os obstáculos do desenvolvimento. (THORP,
1950a, p. 23, tradução nossa)
21
A explicação de Thorp (1950a) caracterizava o desenvolvimento como um
processo lento, acumulativo e repleto de contradições, mas que para dar certo dependia
de estabilidade política e da receptividade nos países envolvidos. Levantando esse rápido
diagnóstico que entrelaçava fatores complexos numa relação simples, Thorp (1950a), na
condição de economista incorporado ao governo e intimamente ligado ao Ponto IV,
chancelava o modelo administrativo de cooperação do programa, que foi aprovado pelo
Congresso em maio daquele mesmo ano. Criado para oferecer aos países receptores
auxílio cnico na modalidade projeto a projeto, com iniciativas pontuais em diversos
setores funcionando independentes e com ampla participação dos ministérios locais, o
modelo de assistência do Ponto IV encaixava-se harmonicamente nas elaborações de
Thorp.
Isso não significa que Thorp não enxergava problemas no Ponto IV. Entretanto,
conforme pode ser evidenciado no seu artigo
Practical Problems of Point Four
, publicado
21
[No original] Health is poor for lack of food, but food production is low for lack of strong bodies and
freedom from disease. Education is needed to spread improved techniques, but low productivity makes it
impossible to spend precious time in schools. Capital is needed to purchase better equipment, but without
equipment all that is produced must be used for day-to-day living. Disease and malnutrition sap energy
and vigor, yet energy and vigor are needed to overcome the obstacles to development.” (THORP, 1950a, p.
23)
em julho de 1950, os principais obstáculos para a assistência técnica eram atribuídos à
falta de cooperação ou a “deficiências” nos países receptores.
Um país subdesenvolvido tem um governo subdesenvolvido. Com isso eu quero
dizer que falta um sistema eficaz de serviços civis para selecionar e treinar
pessoal, falta um controle eficaz de orçamento, falta uma política fiscal
eficiente, falta uma estrutura governamental que claramente distribua
responsabilidades entre os ministérios. Sem esses conceitos de governo
eficiente, um país subdesenvolvido tem uma deficiência inicial em conduzir seus
próprios planos de desenvolvimento econômico. (THORP, 1950b, p. 97, tradução
nossa)
22
Tal percepção oriunda da rejeição a ordenamentos sociais alheios aos padrões
empresariais de eficiência dos Estados Unidos endossou, entre outras coisas, as
intervenções técnicas também na administração blica de países “subdesenvolvidos”.
Nesse sentido, entendia-se ser preciso ordenar, ensinar países latino-americanos a
cuidar de seu próprio desenvolvimento do “jeito certo” e “eficiente”, de modo que as
políticas dos EUA pudessem continuar as mesmas apesar de maiores esforços serem
exigidos para aliviar possíveis resistências locais às “soluções” propostas, e para
melhorar a compreensão dos motivos estadunidenses para as intervenções técnicas.
(PARMAR, 2012). Deste modo, pouco se questionava os princípios norteadores ou os
métodos aplicados nas políticas de auxílio estadunidenses. Quando algo não ocorria
como esperado, logo era lembrado que
experts
e cientistas estavam lidando com
sociedades avessas ao progresso, com povos de “hábitos exóticos” e “percepção
limitada” sobre muitos temas (HUNT, 2009).
Simon Hanson, consultor do Departamento de Estado para assuntos econômicos
relativos à América Latina, reforçou essa compreensão ao afirmar que as políticas de
superação do subdesenvolvimento empreendidas por governos latino-americanos
expressavam uma ‘visão curta’. Segundo Hanson, O problema real é persuadir governos
a reconhecer a prioridade que o progresso tecnológico deve ter em seus pensamentos e
em seus orçamentos [...]”
23
(HANSON, 1950, p. 69, tradução nossa). Crítico das restrições
impostas ao capital estrangeiro por governos como o Brasil, Argentina e Uruguai,
Hanson interpretava medidas de proteção da economia interna como resistência ao
progresso.
22
[No original] An underdeveloped country often has an underdeveloped government. By this I mean that
it lacks an effective civil service system for selecting and training personnel, it lacks an effective budgetary
control, it lacks a sound fiscal policy, it lacks a governmental structure which clearly divides responsibility
among the ministries. Without these concepts of efficient government, an underdeveloped country has an
initial handicap in carrying out its own plans for economic development.” (THORP, 1950b, p. 97)
23
[No original] “The real problem is to persuade governments to recognize the priority which technological
progress must assume in their thinking and in their budgeting [...]” (HANSON, 1950, p.69)
No que diz respeito ao financiamento dos projetos de auxílio técnico, Michael
Heilperin, economista acadêmico e consultor em diversas agências do governo, lançou
mão da sua perspectiva ultraliberal, tributária da escola austríaca de Ludwig von Mises,
para defender a supremacia do capital privado estadunidense na cooperação cnica. De
acordo com Heilperin (1950), envolver fortemente o capital privado no Ponto IV era
essencial para a manutenção da livre iniciativa dentro dos EUA. Além disso, ele
considerava que o investidor estadunidense era o único capaz de injetar quantias
massivas de capital necessárias para fazer prosperarem as iniciativas de auxílio técnico.
Portanto, em sua visão, o papel de Washington na cooperação técnica com a
América Latina era o de promover o maior uso possível de capital privado, pressionando
governos latino-americanos a fazerem concessões ao capital estrangeiro e protegendo
os investidores de eventuais riscos. De fato, ao longo do andamento dos programas de
auxílio técnico atrelados ao Ponto IV e voltados para a América Latina, a agência federal
responsável pela condução da assistência, o
Institute of Inter-American Affairs
, e o
próprio Departamento de Estado agiram como intermediários dos interesses do capital
privado impondo condições às políticas econômicas latino-americanas para que a
assistência técnica pudesse ser prestada.
No empreendimento da cooperação técnica para a América Latina no pós-guerra,
que abarcou desde teóricos sobre desenvolvimento, avaliadores dos modelos possíveis
de auxílio cnico até uma vasta gama de
experts
em áreas específicas como agricultura,
saúde, educação e mineração, é preciso compreender que inexistiram fluxos lineares e
rastreáveis de poder que nos permitam apurar precisamente a influência de cientistas e
experts
sobre
policymakers
e vice e versa. Isso quer dizer que explorar as ideias
trabalhadas por esses especialistas em periódicos não implica num esforço em apreender
o alcance ou a aderência às ideias de teóricos e elaboradores, mas trata-se de uma
constatação do alinhamento entre formulações providas de um verniz científico e as
motivações políticas e econômicas de Washington.
Por isso, não necessariamente uma decisão era tomada no âmbito diplomático
porque um autor assim defendeu em uma publicação, tampouco determinado tipo de
pensamento era elaborado cientificamente porque o Departamento de Estado manipulou
a produção acadêmica. O que está em questão na nossa análise são os diferentes veis
de atuação de
experts
e cientistas, fosse na formulação, na difusão de promessas e
projetos de “desenvolvimento” para a América Latina ou na sua condução
in loco
conforme veremos a seguir.
“Agentes da boa vontade” em terras latino-americanas: o trabalho dos técnicos de
campo
O auxílio técnico prestado à América Latina sob o Ponto IV foi operacionalizado
pelo mesmo sistema empregado na região nos tempos da Segunda Guerra Mundial.
Coordenada pelo
Institute of Inter-American Affairs
, agência estatal que sucedeu o
extinto OCIAA, a assistência técnica se estruturou principalmente por meio de um
sistema chamado de
servicios
. Os
servicios
eram um arranjo de cooperação bilateral, no
qual escritórios eram estabelecidos dentro dos ministérios dos países latino-americanos
a fim de planejar e conduzir, com responsabilidade compartilhada entre os EUA e o país
receptor, projetos de auxílio técnico em áreas específicas. Desse modo, no caso da
execução de um projeto de drenagem do solo, por exemplo, era instalado um escritório
do IIAA no Ministério da Agricultura do país receptor e as atividades eram coordenadas
pelo chefe da equipe de campo enviada dos Estados Unidos geralmente um
expert
sênior na área designada e pelo ministro local correspondente (OUTLINE, 1952).
A equipe de campo era composta por não mais de dez técnicos, cujos salários,
despesas de viagem, acomodação e locomoção eram pagos pelo próprio IIAA. A
especialidade desses
experts
eram as mais diversas. Em um programa voltado para a
saúde, por exemplo, uma equipe de campo poderia incluir técnicos como médicos,
engenheiros, técnicos de laboratório, higienistas industriais, administradores de
hospitais, enfermeiras, educadores da saúde, gestores de negócios, mas também
secretários bilingues, encanadores, engenheiros elétricos,
experts
em perfuração e assim
por diante. Em junho de 1951, estimava-se que havia 110 técnicos do IIAA empregados
na área da saúde em todos os países da América Latina juntos (PUBLIC, 1952).
Segundo o IIAA, o formato de auxílio dos
servicios
tinha o objetivo principal de,
com o envio de apenas alguns
experts
, difundir o uso de técnicas que os latino-
americanos pudessem aprender e ensinar posteriormente a
trainees
locais. Isto posto, ao
longo dos anos do programa, dados mostram a progressiva diminuição de técnicos
estadunidenses trabalhando nos
servicios
ao passo que o número de técnicos latino-
americanos empregados crescia. Portanto, para o IIAA, esse sistema tinha o trunfo de
tornar inevitável a cooperação diária entre oficiais, técnicos e administradores de ambos
os países. Assim, seria mais do que apenas prestar consultoria ou aconselhamento, seria
perpetuar a um custo baixo nos países receptores modos de fazer e de viver a partir da
educação, em um processo de fazer conjuntamente atividades como planejamento,
financiamento, administração e direção (THE INSTITUTE, 1949).
Por conseguinte, os agentes desse processo educativo eram idealizados como
agentes da “boa vontade” e do estreitamento dos laços entre as nações latino-
americanas e os Estados Unidos. Para o
Public Health Service
dos Estados Unidos, “[...]
cada indivíduo representa o governo dos Estados Unidos nas mentes de todas as pessoas
locais com quem ele trabalha [...]” (PUBLIC, 1952, p. 50, tradução nossa). Dessa maneira,
a conduta inadequada de um técnico de campo podia
“[...]causar mais danos ao
relacionamento bilateral [...]” (PUBLIC, 1952, p. 50, tradução nossa)
24
ao ofuscar as
benesses do programa de
servicios
, pois, segundo o IDAB, os programas de assistência
técnica para as áreas “subdesenvolvidas” deveriam ser um símbolo da parceria dos EUA
com esta região e “ao mesmo tempo o maior instrumento para alcançá-la.”
(INTERNATIONAL, 1953, p.2, tradução nossa)
25
.
Além de “agentes da boa vontade”, os técnicos de campo também eram vistos
como desbravadores de problemas e possibilidades na América Latina. Documentos do
IIAA apontam que entre as vantagens do sistema de
servicio
estava o fato de que ele
possibilitava que o pessoal do IIAA conhecesse mais intimamente os problemas latino-
americanos. Ainda, dentre os planos declarados do
Institute
estava não apenas resolver
problemas diagnosticados, mas explorar novas possibilidades e abrir novas frentes de
atuação e investimento. Isto é, o trabalho dos técnicos consistia na linha de frente de
uma iniciativa que visava não apenas educar, treinar e capacitar pessoas, mas também
acessar informações a respeito dos recursos disponíveis e das limitações dos países
receptores, bem como viabilizar empreendimentos de exploração, que conforme a
documentação consultada, favoreciam principalmente a iniciativa privada dos Estados
Unidos (THE INSTITUTE, 1949) (BLACK, 1953).
Somado ao planejamento e condução de projetos técnicos como construção de
redes de esgoto, introdução de técnicas de cultivo, construção de estradas, treinamento
industrial e educação rural, os
servicios
exerciam também a função de recrutar
trainees
e estudantes para receberem bolsas de estudos, participarem de treinamentos e fazerem
intercâmbios em universidades e institutos nos Estados Unidos. De acordo com um
relatório do IDAB, iniciativas como essa tinham o objetivo de longo prazo de
“[...]mobilizar energias da pequena mas rapidamente crescente minoria educada nestes
países para a causa da liberdade, paz e conquistas construtivas.” (INTERNATIONAL,
1953, p. 4, tradução nossa)
26
. No ano acadêmico de 1952-1953, 3618 estudantes latino-
americanos foram enviados aos Estados Unidos para participar de cursos de instituições
24
[No original] “[...] each individual represents the United States government in the minds of all the local
people with whom he works [...] cause more damage to the bilateral relationships [...]” (PUBLIC, 1952, p.
50).
25
[No original] “at the same time a major instrument for its accomplishment,” (INTERNATIONAL, 1953,
p.2).
26
[No original] “[...] mobilize the energies of the small but rapidly growing educated minority in these
countries for the cause of freedom, peace and constructive achievement.” (INTERNATIONAL, 1953, p. 4).
estadunidenses em campos significativos para a assistência técnica como engenharia,
medicina, educação, saúde pública etc. (FOREIGN, 1954).
Tais esforços, dos quais participavam tanto o governo quanto a iniciativa privada
dos Estados Unidos, eram motivados pela ideia de que multiplicar
experts
e cientistas na
América Latina era uma forma de direcionar “o seu [dos experts e cientistas latino-
americanos] idealismo, as suas energias e patriotismo para a liberdade ao invés da
escravidão, para a paz e amizade com o Ocidente ao invés do ódio cego anti-Ocidente
[...]” (INTERNATIONAL, 1953, p. 4, tradução nossa)
27
. Em seu estudo sobre grandes
corporações filantrópicas que comumente faziam parcerias com Washinton na condução
e financiamento de programas de assistência técnica, Parmar (2012) interpreta esse
propósito de multiplicar
experts
e cientistas no sub-continente latino-americano por
meio dos intercâmbios, como uma poderosa ferramenta de construção de redes sólidas
entre as elites de vários países com vistas a conquistar apoio para a política externa dos
EUA destinada à América Latina.
Nessa perspectiva, para o IDAB, o papel desse corpo de cnicos dedicados a
atividades educacionais, assim como todo o empreendimento da cooperação técnica, era
visto como o de uma “estrela-guia” capaz de convencer “grupos decisivos” das
sociedades latino-americanas da necessidade moral de resistir ao comunismo e das
benesses materiais do capitalismo liberal (INTERNATIONAL, 1953). Conforme o esquema
de pensamento expresso na retórica do IDAB, de todas as partes da política externa dos
EUA, a cooperação técnica era a que ia mais além da mera “contenção” ao comunismo,
pois “libertava” os homens da opressão das doenças e da ignorância para prepará-los
para assumir as responsabilidades dos “homens livres”.
Considerações Finais
Até meados da primeira metade do século XX, o olhar ocidental para a pobreza
estava condicionado “pela crença de que mesmo que os ‘nativos’ pudessem ser de
alguma forma esclarecidos pela presença do colonizador, não havia muito o que se fazer
a respeito da sua pobreza porque não havia sentido no seu desenvolvimento econômico.”
(ESCOBAR, 1995, p.22, tradução nossa)
28
. A capacidade das (ex) colônias do mundo
periférico de conduzir seu próprio desenvolvimento por meio da ciência e da tecnologia
27
[No original] “their idealism, their energies and patriotismo towards freedom rather than enslavement,
towards peace and friendship with the West rather than blind anti-Western hatred [...].” (INTERNATIONAL,
1953, p.4).
28
[No original] by the belief that even if the ‘natives’ could be somewhat enlightened by the presence of
the colonizer, not much could be done about their poverty because their economic development was
pointless.” (ESCOBAR, 1995, p.22).
era percebida como quase nula. Como visto, a partir da dicotomia
desenvolvido/subdesenvolvido difundida no pós-guerra, a pobreza do mundo periférico
foi lida como um elemento diagnosticável e administrável por meio da exportação de
soluções especializadas, e a produção de diversas áreas do conhecimento acompanhou
essa inquietação.
Na mais nova superpotência do pós-guerra, os Estados Unidos, passou-se a
pensar em termos de tutela da pobreza de forma a adequá-la às demandas por matérias-
primas e por mercados de uma indústria em expansão. Os povos pobres passavam,
então, a serem entendidos como povos assistidos ou subdesenvolvidos, isto é, passíveis
de percorrer, sob orientação devida, um caminho percorrido pelos países
industrializados. Em tempos em que o debate sobre os caminhos para o desenvolvimento
estava na ordem do dia, o estabelecimento de padrões ocidentais alinhados ao
capitalismo liberal estadunidense como referência para os processos de modernização
em diversas partes do mundo pautou promessas de uma vida melhor, de crescimento
econômico e de um ordenamento social harmônico. E, conforme vimos, cientistas e
experts
fizeram parte desse processo de criação do subdesenvolvimento, bem como do
fomento da promessa de desenvolvimento sob o capitalismo liberal estadunidense.
Essa breve análise da atuação de cientistas e
experts
no empreendimento de
cooperação técnica de Washington voltado para a América Latina nos permitiu acessar
formas pelas quais o discurso científico e técnico amparou e operacionalizou práticas de
auxílio. Ao observar três níveis de atuação organizados em três categorias analíticas - os
teóricos, os elaboradores e os técnicos de campo da cooperação técnica pudemos
discutir de maneira um pouco mais específica a importância e o papel atribuído a
cientistas e
experts
nessa empreitada e acessar camadas da tensa relação entre
conhecimento e poder.
Lançando o nosso olhar para os teóricos pudemos evidenciar como formulações
amplas sobre o (sub)desenvolvimento definiram, universalizaram e homogeneizaram o
Terceiro Mundo de forma a-histórica, pavimentando o caminho para intervenções em
uma América Latina vista como aprisionada em sua própria tradição e por isso faminta,
doente, analfabeta e oprimida. Com a chancela dos índices socioeconômicos e
demográficos, as intervenções técnicas na região foram postas como uma demanda
importante.
Examinando os elaboradores da cooperação técnica, observamos o modo pelo
qual posturas paternalistas e ambições pragmáticas dialogavam com a elaboração dos
problemas e das soluções para o “subdesenvolvimento”. as nossas análises sobre os
técnicos de campo constataram o seu papel atribuído de linha de frente da missão
civilizadora respaldada por esquemas de percepção técnico-científicos. Por meio do
compartilhamento de
know-how
, das práticas de demonstração e treinamento, os
técnicos de campo eram os agentes promotores, em terras latino-americanas, das ideais
e expectativas dos Estados Unidos para a região de maneiras compatíveis com demandas
sociais cientificamente auferidas. Afinal, era preciso abrir mercados e convencer a
América Latina de que apenas a via do capitalismo liberal seria capaz de oferecer uma
vida de prosperidade, segurança e um ordenamento social digno de sua inserção no
mundo moderno.
Referências
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In:
UNITED States House Committee on Foreign Affairs. Miscellaneous Publication, v.1,
83rd Congress. Washington: Government Printing Office, 1955.
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Estados Unidos e América Latina
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