RICARDI, Alexandre *
https://orcid.org/0000-0003-3306-605X
RESUMO: Apresentamos a primeira parte da
trajetória dos transportes públicos em Lisboa,
cuja similaridade com outras cidades se deu
pelo protagonismo do bonde à tração animal e
elétrico no serviço de transporte de pessoas,
bens e mercadorias, necessidade premente
com o crescimento industrial e o adensamento
urbano do século XIX. A
Carris de Ferro
monopolizou o serviço por 148 anos, desde
1873 com os
americanos,
tramways
à tração
animal, e depois com os
eléctricos
, a primeira
carreira com carros invisivelmente propelidos
correu a 31 de agosto de 1901. A urgência pelo
serviço levou a Câmara Municipal a se ocupar
da concessão já em 1834 e ora trazemos a
história das companhias criadas com
dificuldade. O marco final desse período de
intermitência é exatamente a criação da
Carris
de Ferro
, celebrada pela população e ainda
hoje a concessionária do serviço em Lisboa.
PALAVRAS-CHAVE: companhias de serviços
públicos; bondes; Lisboa; transporte público.
ABSTRACT: We present the first part of the
trajectory of public transport in Lisbon, whose
similarity to other cities is given by the
protagonism of the trams with animal and
electric traction in the transport service of
people and goods, pressing need with the
industrial growth and urban density in the 19th
century. The
Carris de Ferro have
monopolized the service for 148 years, since
1873 with the Americans, tramways with
animal traction, and then with electric cars,
the first tram with invisibly propelled cars ran
on August 31, 1901. The urgency for the service
led the City Council to take care of the
concession as early as 1834 and now we bring
the history of the companies created with
difficulty. The final mark of this period of
intermittence is precisely the creation of
Carris de Ferro,
celebrated by the population
and still the service concessionaire in Lisbon.
KEYWORDS: utilities; tramways; Lisbon;
urban transport..
Recebido em: 16/07/2021
Aprovado em: 08/10/2021
* Mestre e Doutor em História pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. E-mail:
alexandre.ricardi@alumni.usp.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A história dos transportes públicos coletivos em Lisboa que pode ter seu início
fixado em 1834 é significativa por ter sido protagonizada por uma mesma companhia por
cerca de 148 anos, desde seu surgimento em 1873! A
Companhia Carris de Ferro de
Lisboa,
mais lembrada como
Carris
ou
Carris de Ferro,
é a concessionária do serviço na
cidade, primeiro com os
americanos,
como ficaram popularizados os
tramways
movidos
à tração animal. Depois de 28 anos explorando essas linhas com força animal
implantaram os
eléctricos
com a inauguração da primeira carreira com carros
invisivelmente propelidos a 31 de agosto de 1901 (CASTRO, 1956, p. 109).
Verdade que nem sempre geriu o monopólio que deteve da atividade, uma
holding
de capital britânico, a
Lisbon Electric Tramways
, arrendou as carreiras por cerca de 40
anos no começo do século XX, tendo sido a artífice da eletrificação da rede. Disso
decorreu parte substancial e estimulante de sua história, assim como a rivalidade dos
concorrentes, as relações com a Câmara Municipal e os lisbonenses, a discordância com
a saída do país do enorme lucro proporcionado. As relações oscilaram da excitação com
o serviço, visto como modernizador e essencial para os lisbonenses, ao
descontentamento com as falhas que ocorriam, habituais para esse tipo de serviço, e a
frustração com a riqueza que ia lhe sendo arrancada. Outro ponto original de sua história
é sua fundação ter acontecido em 1872 no Rio de Janeiro, feito de dois irmãos lusitanos,
Francisco Maria e Luciano Cordeiro de Sousa e sócios, com os trilhos assentados em
Lisboa em 1873 e a sede transferida para a Europa em poucos anos.
Visto o longo trajeto da companhia de serviços públicos, o que oferece
dificuldades ímpares ao historiador, do estágio investigativo em 2016 no
Instituto
Universitário de Lisboa
(ISCTE) resultou farto material, assim como a redação em três
partes, que ora trazemos a parte I. Remontamos então ao período mais recuado no
tempo, chamado de o tempo das bisarmas, cerca de 40 anos, quando não havia oferta de
americanos
e os lisbonenses sofriam com o serviço intermitente. Foi quando surgiu a
primeira concessão de serviços de transporte público em Lisboa, com serviço
descontínuo, oneroso para a maior parte da população e de qualidade questionável.
São os primórdios do serviço, de 1834 até a fundação da
Companhia Carris de
Ferro de Lisboa
em 1873, após curto período de desorganização. A documentação
contábil é rara, mas é período rico em documentos de natureza informativa e descritiva,
compilados em dois encadernados pelos engenheiros Silva Bastos e António Paes de
Sande e Castro. A partir dessas fontes primárias toda a bibliografia sobre o tema, que
citamos adiante, se baseou. O pesquisador é levado então a analisar e reconstituir os
fatos relacionados à vida cotidiana das companhias que atuavam em cidade que ia se
adensando com consequente demanda por serviços para movimentação de pessoas,
bens e mercadorias.
Na parte II, a ser revisada e publicada, abordamos o período em que a
Carris
começou a oferecer o serviço de transportes urbanos sob trilhos de ferro,
tramways
movidos à tração animal, os
americanos,
desde 1873 até cerca de 1901, quando as linhas
estavam arrendadas, tendo sido a eletrificação da rede feita pela
Lisbon Electric
Tramways
. Na virada do século, com a efervescência política e cultural e maior
circulação de diários e
magazines
, a
Carris
era louvada por alguns, que lembravam dos
sucessos ao fazer as parelhas vencerem as difíceis ruas da colinosa Lisboa e estrear o
desejado serviço.
Contudo, aborrecia outros, passando a sofrer forte pressão para a atualização do
sistema. O cheiro e a sujeira, a lentidão dos
americanos
e os preços onerosos eram tidos
como atraso para Lisboa, havendo premência em dotar a
Carris
com a tecnologia mais
adiantada e eficaz da eletricidade. A concorrência e a pressão por serviços de transporte
público mais baratos, limpos e eficientes levaram a
Carris
a adotar a tração elétrica em
1900, mas somente através do arrendamento à
holding
britânica citada acima.
Na parte III, também a ser revisada e publicada, iniciamos pelo arrendamento da
rede à
Lisbon Electric Tramways
em 1900 a 1910, com a República, observando a
atuação do operariado e o papel das paralisações do trabalho a partir de então. Com a
monarquia estavam submetidos ao código civil de 1866, com penas de prisão de um a seis
meses para grevistas. Compunham, porém, parcela maior dos consumidores dos serviços
de transportes coletivos urbanos, com peso relevante na geração das receitas e quase
nenhum espaço de reclamar aos patrões por melhorias no trabalho. É verdade que
podiam ser ouvidos como cidadãos pela Câmara, mas na República é necessário primeiro
organizar sua capacidade para se tornarem conscientes de seus deveres e direitos civis.
Os operários passaram a ter voz também como consumidores, de forma
incipiente, como no nascedouro, visto a dificuldade de serem ouvidos pelos
monopolizadores dos serviços públicos. Claro que não defendemos que ao raiar da
República os consumidores eram ouvidos sem entraves pelas companhias de serviços
públicos. Contudo, eram o integrante que precisava ser considerado, sendo também
eleitores com direitos que, apesar da repressão, acabaram aprendendo a utilizar. Em
Portugal, o regicídio pôs fim à monarquia e a República inaugurou um dos períodos mais
conturbados da história lusitana, com o novo regime tendo de enfrentar inúmeros
obstáculos para se consolidar, com a oposição dos monárquicos. Por isso, por enquanto,
a história da
Carris
após esse período não foi contemplada pela investigação, visto as
implicações políticas de um dos mais importantes serviços públicos em cidade que
procurava se modernizar rapidamente.
Ampla e destacada bibliografia têm discorrido sobre a influência dessa companhia
de transporte público nas evoluções dos dois últimos séculos, com o advento da
revolução industrial, suas consequências, a urbanização e adensamento populacional
decorrentes. Não são eventos exclusivos de Lisboa, outras cidades tiveram experiências
semelhantes e algumas adotaram soluções paradigmáticas que se tornaram referência,
como as reformas urbanas do Barão Haussmann em Paris entre 1852 e 1870, modelo para
várias cidades corrigirem suas deficiências. Ou como a primeira rede de
tramways
elétricos implantada em 1888 em Richmond, Virgínia, EUA, com 30 carros e 19
quilômetros de percurso construída por Frank J. Sprague, modelo para as cidades que
rapidamente procuraram implementar a novidade.
1
Para nosso estudo foram tomadas três referências no tema dos transportes
públicos coletivos e as relações com a urbanização em Lisboa. Maria Amélia da Motta
Capitão em
Subsídios para a história dos Transportes Terrestres em Lisboa no século
XIX
, de 1974, destaca o advento dos
americanos
em Lisboa e traz informações relevantes
sobre a criação da
Carris
. O segundo, de 1982,
Os Transportes Públicos de Lisboa entre
1830 e 1910,
é de António Lopes Vieira do
Gabinete de História Econômica e Social
do
Instituto Superior de Economia
. Com introdução de Vitorino Magalhães Godinho, Vieira
compõe diálogo relevante para a história dos transportes públicos coletivos tendo como
referência o trabalho de Motta Capitão, se batendo com algumas de suas afirmações.
Para ambos, a infraestrutura de transportes promoveu a expansão e
transformação de Lisboa em grande centro industrial e econômico, a começar pelas
ferrovias na primeira metade do XIX. Na cidade, os caminhos de ferro metropolitanos
foram indispensáveis, tendo precedido ao seu desenvolvimento concreto, instrumento da
urbanização ou seu rebento? Vieira adverte também sobre outras questões com tanta ou
mais influência no alargamento urbano que preexistiu à rede de transportes públicos,
como a estrada de circunvalação, uma expansão artificial, aparentemente de caráter
arrecadatório, dos limites de Lisboa.
Antes de citar o terceiro, devemos notar que na coleta da documentação primária
a dois arquivos devemos especial agradecimento, o
Arquivo Municipal do Arco do Cego
e
o
Museu da Companhia Carris de Ferro de Lisboa,
que guarda seu acervo histórico
.
No
Arco do Cego
encontramos material de caráter oficial farto e bem organizado,
principalmente ofícios e decisões da Câmara Municipal e de companhias de serviços
1
Para as reformas de Haussmann ver Benchimol (1992). Para Richmond, ver Robbins (1995).
públicos a partir dos anos de 1890. No
Museu da Carris
em Lisboa pode ser encontrada a
documentação de quase toda sua trajetória e as principais referências bibliográficas. Os
relatórios anuais, escrituras e acordos com a Câmara nas concessões que firmou, os
mapas da rede em suas diversas fases, assim como recortes dos diários de épocas
variadas que foram consultados.
2
É onde a terceira das referências está, relevante para a investigação do tema em
Lisboa, que toma-se como fonte primária, visto o ineditismo do que traz à luz e a
extemporaneidade zelosa em tornar públicos os documentos que, muitos, viriam a
desaparecer. De 1956,
A Carris e a expansão de Lisboa. Subsídios para a História dos
Transportes Colectivos na Cidade de Lisboa,
de Antônio Paes de Sande e Castro, robusto
relatório datilografado em 5 volumes de antigo engenheiro da
Carris
, nunca publicado.
De indiscutível valor que versa sobre a história da companhia
,
se ressentindo de uma
apreciação editorial mais acurada.
Podemos citar ainda a série em três volumes, lançada em 2006 pela
Academia
Portuguesa de História
e pela
Carris
,
História da Companhia Carris de Ferro de Lisboa
em Portugal
, 1850-1901, de 1901-1946 e de 1946-2006. Com coordenação de Manuela
Mendonça e textos de Antônio Ventura, Francisco Santana e Antônio Pedro Vicente, é
obra riquíssima em ilustrações, farta em informações e análises sobre o tema. Aborda
conjuntamente a situação econômica e política de Portugal ao longo do século 19, a
relação de Lisboa com os transportes, a expansão urbana e seu crescimento
populacional.
Da jornalista e olisipógrafa Marina Tavares Dias,
História do eléctrico da Carris
,
produção bilíngue de 2001 em comemoração ao centenário da tração elétrica em Lisboa.
Engrandecida com seleção feita a partir do acervo fotográfico da companhia, traz dados
significativos sobre sua história e a relação com a colinosa capital portuguesa. Mostra
como a movimentação dos lisbonenses, de bens e mercadorias de uma vasta região
econômica de Portugal foi tremendamente facilitada pelo empreendimento. Olisipo é o
maior porto comercial do país e proporciona grande riqueza.
De Eduardo Cintra Torres,
Cem Anos a Ranger nas Calhas. Antologia de textos e
fotografias de Lisboa com eléctrico dentro,
de 2001, com extensa seleção de fotografias
que nos remetem a uma Lisboa de cem anos atrás, não tão diferente da atual visto ser
cidade bem preservada. Começava a ter contato com a tecnologia que dinamizou a
2
Agradecemos o auxílio prestado por Vasco Almeida, responsável pela consulta ao material no
Arquivo
Municipal do Arco do Cego
, assim como dispensamos também os mais sinceros agradecimentos à
curadora Susana Esteves da Fonseca que nos franqueou o acesso ao acervo da
Carris
. A investigação foi
realizada em 2016.
movimentação de pessoas, bens e mercadorias quando a cidade crescia a ritmo
acelerado. Entremeada com textos de autores portugueses, como Eça de Queirós, Álvaro
de Azevedo, Albino Forjaz de Sampaio, Carlos Malheiro Dias, Raul Brandão entre outros,
traz as impressões e eventos que envolveram os
tramways
e os lisbonenses, a relação
cotidiana dos passageiros com os eléctricos.
Lembramos ainda do opúsculo de nove páginas de Silva Bastos de 1952,
50 anos
de Tracção Eléctrica em Lisboa. Pequena História dos Transportes Coletivos
, uma
sucintíssima introdução ao tema também tomado como fonte primária. Serve de
norteador para adentrar a história dos transportes públicos de Lisboa e como exórdio,
uma homenagem ao autor parece, no exemplar de Sande e Castro citado. Seguindo o
tema da investigação sobre os transportes públicos, confirma que a necessidade e
urgência de viação acelerada na capital portuguesa veio
pari passu
com a iminência da
vida moderna, acelerada pelo capitalismo industrial e financeiro no século XIX.
A ideia se espraiou, outras cidades demandaram companhias de serviços públicos
eficientes como importante indutor de riqueza social, industrial e cultural. Esse ânimo na
produção de riqueza provinha, naquele momento, em aplicar a eletricidade na
movimentação dos carros que levavam passageiros, bens e mercadorias. Os carros iam
invisivelmente propelidos diziam, contribuiam para melhor organização, mantendo ruas e
passeios bem cuidados, redes atualizadas, coletando grande lucro com o serviço.
Seguindo linha desenvolvida desde o mestrado, devemos refletir sobre sua
pujança, como o lucro pode ser exportado quase todo para fora de um país e como se
conformou enquanto os trabalhadores-consumidores viviam em condições precárias. O
objetivo da análise perpassa por mostrar como um lucro que cresce sempre, cresceria
ainda mais se o trabalho fosse melhor protegido e bem pago, mas talvez esteja baldado
pela escassez de fontes para o primeiro período lisbonense e pela necessidade em
sermos breves (RICARDI, 2013; 2019).
As companhias de serviços públicos surgiram com potencial de lucratividade por
ser a condição do monopólio imprescindível, concessão pública dada pela comunidade
através da administração municipal. Apesar dos altos custos para se implantar as redes,
seja de
carris
, água e esgotos ou eletricidade, os lucros eram substanciais. O retorno foi
garantido, uma vez que os munícipes vão utilizar as redes a preços razoáveis, pelo
menos deveria ser assim. Ampla bibliografia tem mostrado que essa condição é
recomendada na concessão dos serviços pelos entes blicos, mas que nem sempre
deveriam ser os lucros apropriados apenas por acionistas, tratando-se de riqueza social,
melhor seria beneficiar de fato a comunidade. Conhecer a história dessas companhias de
serviços públicos talvez possa ser um primeiro passo para repensarmos seu papel no
desenvolvimento das sociedades.
Por fim, agradecemos com saudades ao professor Nuno Luís Madureira que nos
recebeu na pesquisa no
Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE), pela orientação,
contribuições na investigação, as valiosas indicações bibliográficas e pela primeira
leitura do texto produzido com anos de atraso por culpa do aluno que terminava o
doutorado. Ao
ISCTE-IUL
por receber tão bem o pesquisador, oferecendo espaço de
trabalho organizado e suprido de ferramentas como bibliotecas. Por mais que estejamos
tecnológicos, livros físicos ainda são muito procurados em pesquisa científica.
Ao meu orientador na pós-graduação em histórial social na Universidade de São
Paulo, professor Gildo Magalhães, o agradecimento pela associação e intercâmbio com
universidades estrangeiras, o que mostra sua ampla visão como educador e cientista,
permitindo que parte da pesquisa de doutorado se desenrolasse no estágio no
ISCTE-
IUL
, muito proveitoso. Eventuais imprecisões e falhas no texto que ora trazemos são
naturalmente de responsabilidade do autor.
Os primórdios
A história dos transportes públicos coletivos em Lisboa tem como marco o ano de
1834 com o privilégio concedido à
Companhia de Carruagens Omnibus de Lisboa
,
fundada com capital de 40 contos de réis, 400 ações de 100 mil réis, e com estatutos
aprovados a 13 de abril de 1836. E ainda que o termo de concessão tenha se perdido nas
brumas do tempo, e na organização falha dos documentos históricos, o marco é dado
pela administração oficial como o primeiro privilégio concedido para oferecer aos
munícipes serviço público de transportes melhor regrado, anseio modernizador das
cidades no século XIX. Assim, não se atrasou Lisboa nesse quesito, visto que os centros
urbanos na Europa e nas Américas organizaram esse tipo de transporte mais ou menos
por esse período, primeira tentativa de estabelecer um transporte para todos”
(CASTRO, 1956, p. 8).
Apesar dessa fundação ser a data comemorativa, existiram iniciativas pregressas,
primeiros sinais da ideia de transportes coletivos urbanos, período marcado por
escassez documental para mais adequada reconstituição. Em 1629, Pedro Afonso e o
estalajadeiro francês Oleans [sic] colocaram em serviço quatro carrões para sete
passageiros, um ao lado do cocheiro, que durou pouco mais de uma década. Em 1789,
surgiram as cadeirinhas de Clemente Vasques, em número de cem, transporte não
coletivo evidentemente, existindo até o final do século XIX.
De data incerta é o serviço de seges, também transporte não coletivo, espécie de
carruagem empoleirada sobre duas grandes rodas e puxada por dois cavalos. Em
História
do Eléctrico da Carris
interessante imagem desse modelo que é a sege “moderna” de
padrão inglês, com caixa mais larga, pintada, envernizada, sobre quatro molas e dois
cavalos. A sege lusitana era puxada somente por um ou dois cavalos, com sistema
amortecedor rudimentar e delas Vasco Callixto deixou uma descrição: “[...] bamboleante
caixa estreita, resguardada à frente por duas cortinas de oleado, alcandorada sobre duas
grandes rodas e puxada por dois cavallos”. (MENDONÇA, 2006b, p. 13-4, 94)
.
Nesse tipo de transporte dois inconvenientes eram sentidos: o estribo
posicionado muito alto, dificultando o acesso aos passageiros, e os solavancos violentos
sentidos no seu interior devido ao tamanho das rodas. Desse serviço ficaram eternizados
o seu condutor, o boleeiro, com seu pico chapéu bicórnio, paramentado com niza,
colete, calções pelo meio da perna e enormes botas e a sua tabela de preços que Júlio
César Machado refere que eram um mito, uma fantasia, pois nunca era vista (DIAS, 2001,
p. 14).
Conhecidas como “seges de semicírculos” eram oferecidas em seis itinerários,
além de outros tipos de carros como carruagens para quatro passageiros, caleches
inglesas para seis e carrões para até dez passageiros. O serviço de seges era de natureza
turística e não de transporte urbano tendo sobrevivido anúncio no
Diário de Governo
de
abril de 1849 desse serviço e outros tipos de transporte que atendiam ao público envolto
em atividades lúdicas. Nesse caso era serviço de aluguel de transporte para poucas
pessoas, com preços que a maioria não podia pagar, critério importante que precisava
ser melhorado se existisse mesmo a pretensão modernizadora, não sendo transporte
público urbano coletivo (MENDONÇA,
2006b, p. 92-94).
É, contudo, a citada concessão de 1834, de Luís Francisco Castinel e Aristides
Rousseau Fleury de Barros, que inaugura o transporte público coletivo, quando
procuravam suplantar em Lisboa o serviço de seges, carrões, carruagens e calexe inglês,
ineficientes, insuficientes e onerosos. Em 1835, repassaram a concessão para a
Companhia de Carruagens Omnibus
de Manuel Caetano Viana, Bartolomeu L. Martelli,
Francisco A. Ferraz, Vitor Jorge e Augusto X. da Silva, que tinha o príncipe Fernando de
Saxe-Coburgo-Gota como sócio honorário. Em regime de monopólio, os estatutos foram
aprovados em 1836, expirando em 1840, renovado até 1845 e depois por mais duas vezes,
por dez anos, reforçando o sentimento de que o anseio por um serviço público de
transportes melhor regrado seria preenchido.
O maior apuro para a companhia foi vencer os difíceis caminhos da colinosa
Lisboa, desafio que a tecnologia suplantaria como veremos, com exceção da Baixa,
quase todos os bairros são praticamente intransitáveis à tração animal. Tavares Dias
lembra que, “as calçadas eram íngremes e [as] ruelas estreitas nos bairros tradicionais,
esquinas apertadas, piso impróprio e sinalização inexistente [...]” (DIAS, 2001, p. 20)
,
sendo mais atraente explorar as carreiras para as zonas mais afastadas do centro ou fora
da cidade. A confirmar, as principais linhas que seguiam para longe: Belém, Poço do
Bispo, Lumiar, Sete-Rios, Benfica e Carnide, que eram as mais lucrativas.
Mesmo assim, a
Companhia de Carruagens Omnibus
não
teve vida tão efêmera e
o aspecto de seus carros a teria eternizado, de forma acerbamente crítica, poucos eram
os depoimentos positivos, um do
Jornal do Comércio
(Lisboa, 1853-1911) está citado a
frente. O serviço era caro demais, os
omnibus
verdadeiros mastodontes a embaraçar as
ruas de Lisboa e troçavam ser preciso testamento antes de circular neles. A autora
Tavares Dias exibe uma imagem desses enormes carroções (2001, p. 17) que recebiam
ainda outros epítetos como “bisarmas, arca de Noé puxada por quatro cavalos, veículos
feios e incômodos, onde os passageiros iam empremidos como sardinhas, “mal feitões,
desairosos e pantafassudos [...]” (CASTRO, 1956, p. 8). À época, Fialho de Almeida
ironizava: “esta imensa máquina que era uma aplicação da nau de Vasco da Gama ao
trânsito das ruas, movia-se sobre quatro pequeninas rodas, puxadas por uns franzinos
cavalos idealmente magros como Sara Bernhardt...” (BASTOS, 1952, p. 6; VIEIRA, 1982, p.
57).
As cocheiras ficavam na rua do Crucifixo, na Baixa-Chiado, e os escritórios,
celeiros e armazéns na atual Praça do Município. Silva Bastos informa que os famosos
ómnibus
são de 1837 e podiam transportar ao mesmo tempo quinze pessoas dentro e
três na almofada. O acesso era feito pela porta traseira, única, sob estribo, trazendo
apuros e aborrecimentos vários. Por cima deles ia o cocheiro,
espendurado como um
corvo
, em assento de ferro, e completa, “[...] ia pelas ruas cascalhando ferragens, numa
estrupida de cadeias que batiam, vidros soando rachado, siflos de chicotada e
imprecações de estrebaria”. (BASTOS, 1952, p. 6).
Outras versões sobre o
omnibus
trazem capacidade para doze passageiros em
dois bancos de frente um para o outro, o cocheiro em cima e um sota na parelha da
frente. Na troça popular, quem entrasse podia encomendar a alma a Deus e se mulheres
com saias de crinolina sentassem próximas à saída, tomavam três lugares, ninguém saía
do carro! Dizia-se que o gigante passava rente aos prédios e arrancava varandas,
molestava telhados, mas daquela altura que “[...] majestosa perspectiva de casarias
esparsas, o rio espanejando enseada num azul de lhamas cintilantes - a Torre de Belém,
o Castelo, a Serra de Palmela”. (BASTOS, 1952, p. 7). Sande e Castro traz outra pertinente
descrição desses
omnibus
com detalhamento e gracejo da lavra de lio César Machado,
escritor que registrou a rotina de Lisboa no século XIX:
[...] omnibus pequenos, igualmente feios, igualmente incómodos. Voltavam-se de
vez em quando, o que não deixava de ser pitoresco; iam pelas ruas cascalhando
ferragens, cadeiras que batiam, vidros soando a rachado, estalidos de
chicotadas e imprecações de estrebaria. A sua lotação era de 12 passageiros
dentro e quatro na boleia. Lisboa para se ver livre dos outros, inventara que os
cavalos tinham sarna; e, agora, destes dizia que, antes de os tomar, era
prudente fazer testamento. (BASTOS, 1952, p. 7; CASTRO, 1956, p. 8; DIAS,
2001, p. 18).
Com essas chalaças eram frequentes as reclamações sobre sua lentidão, tomando
muito tempo nos trajetos, mas não de seus atrasos, pois a pontualidade oitocentista era
muito condescente, diziam. A 17 de Outubro de 1855, o
Jornal do Comércio
lamentava que
no dia 14 passado uma viagem de Lisboa a Belém teria durado quatro horas, sendo
possível fazê-la em 53 minutos com gado melhor cuidado. Lembrou ainda que era a
carreira mais interessante, por ser a mais rentável, e que o circuito seria viável em meia
hora. Finalizava, porém, com simpatia com a companhia, lembrando
que os diretores
jamais deixaram de atender convenientemente aos rogos dos lisbonenses (DIAS, 2001, p.
17).
Sobre a receita da
Companhia de Carruagens Omnibus
, para o ano de 1858 da
carreira de Belém, Motta Capitão afirma terem sido 7.006 viagens, transportando
107.088 passageiros, com renda de 12:852$000 réis. Se, grosso modo, julgarmos 365 dias
de funcionamento, difícil certificar os dias exatos em que circulou, são cerca de vinte
viagens por dia, pouco menos de 300 passageiros/dia. Os números são bastante
divergentes com os apresentados por Vieira que traz que entre 1854 e 1858 a receita da
carreira de Belém foi de 20 contos de réis, caindo para 19,7 para o período entre 1858 e
1863 (MOTTA CAPITÃO, 1974, p. 25; VIEIRA, 1982, p. 76).
Acompanhando Vieira, podemos cotejar a receita dessa linha, a mais lucrativa,
com as demais que o autor também apresenta: para o primeiro período a carreira para o
Lumiar teve uma receita de 6,8 contos de réis; Poço do Bispo, 2,4 contos de is e
Oeiras, 4,9 contos de réis. Apenas uma carreira lucrativa, porém, não sustentaria
empreendimento que alcançasse toda a cidade, ficando o serviço de transporte blico
reduzido e limitado. Eram ainda exploradas as carreiras para Sintra e Mafra desde os
anos 1840; para Oeiras, 1851; Carnide, 1852; Loures, 1862 e Cascais, 1863 (VIEIRA, 1982,
p. 73). Ao analisarmos somente a partir dos números absolutos, falta o coeficiente de
despesas de cada linha, as mais lucrativas eram as que seguiam próximas às margens do
Tejo, em terreno plano, e as linhas que levavam aos lugares mais distantes.
Em 1864, Lisboa atingiu a marca de 190 mil almas e tornou-se urgente um serviço
de transporte público coletivo mais eficiente e barato. Ainda assim, a
Companhia de
Carruagens Omnibus
apresentou movimento deficitário, sem pagar dividendos desde
1862. Para Vieira, isso era devido à Estrada de Circunvalação, finalizada em 1852, imagem
abaixo, que teria levado a diretoria a modificar as linhas para aproveitar o que achavam
ser vantagem. Entre 1859 e 1863 criaram duas linhas: Praça do Município - Santa
Apolônia e Rato Santo Apolônia, além de uma temporária de aluguéis, que
representaram 9,38% das receitas anuais do tráfego nesse período. As linhas médias e
longas representaram 19,66% e as que iam além ou ao longo da Estrada de Circunvalação,
70,96% das receitas anuais, o que indicaria que a estratégia teria afetado as receitas, pois
as carreiras longas eram também as de maior custo por légua percorrida.
Imagem 1 - Limites da cidade de Lisboa (1850 - 1910)
Fonte: VIEIRA, 1982, p. 41.
Priorizando essas linhas de média e longa distância, conclui Vieira, instituindo as
carreiras redondas para os limites da cidade, que pareciam mais lucrativas e menos
estropiavam o gado, acabaram levando ao declínio contábil. Assim, a companhia não teria
aproveitado o aumento de circulação de pessoas, bens e mercadorias em Lisboa,
principalmente a ligação do lado oriental e industrial com a estação ferroviária de Santa
Apolônia, consequência do crescimento urbano. Não à toa, essa foi a primeira linha que a
Carris de Ferro
explorou em 1873 e o primeiro trecho eletrificado pela
Lisbon Electric
Tramways
em 1901 (VIEIRA, 1982, p. 67-69).
Assim, em uma primeira fase, a companhia explorava as linhas que ligavam Lisboa
às áreas de entretenimento, passeio e produtoras de cereais, frutas e legumes, como
Mafra, Loures e Oeiras, se justificando a ênfase nas carreiras longas. Em segunda fase,
os custos de exploração com essas carreiras chegaram a quase 90% das receitas de
tráfego, enquanto a transformação que Lisboa vinha sofrendo não era bem aproveitada
em linhas entre a parte industrial, as porções oriental e ocidental. Outras críticas seriam:
capacidade gerencial inábil, excesso de empregados, descontrole nas rotinas
administrativas e encomendas descabidas como 5 novas carruagens em 1863 quando a
extensão do monopólio não estava assegurada.
Em março de 1864, após dois anos sem dividendos como citado, a assembleia de
acionistas formou comissão com três integrantes para possíveis soluções, produzindo o
Parecer para conhecer os motivos que deram logar ao estado pouco prospero da
companhia e avaliar se ella deve continuar ou ser dissolvida
.
Para a recuperação
financeira, aconselhavam: redução ou supressão de linhas longas como Mafra e Sintra,
criando outras dentro da cidade, inclusive pelo Rato, evitando linhas cujos carros
ficassem embaraçados fora de Lisboa e a criação de uma sede em Belém para a linha de
ocidente. Em 1865, porém, a partir das carreiras mantidas, parece que a companhia
não
seguiu as recomendações feitas pela comissão.
A 24 de fevereiro de 1865 ocorreu o que teria determinado o fim da
Companhia de
Carruagens Omnibus
, sua verdadeira causa, na versão tradicionalmente aceita trazida
por Sande e Castro. Um incêndio destruiu a maior parte dos carros, os 27 cavalos e as
cocheiras na Praça do Município, expondo sua debilidade financeira, sem recursos para o
reinvestimento. A estratégia da diretoria, porém, privilegiando as linhas longas, de custos
mais pesados, é que indicaria a verdadeira razão do fim.
Seria possível obter o empréstimo, 30 contos de réis segundo Vieira, reconstruir
as instalações, renovar o material rodante e manter as carreiras se a situação contábil
fosse boa. A conjuntura econômica de Portugal na época e a proeminência dos
administradores reforçam a impressão. As tarifas eram consideradas muito altas e o
serviço inconstante, com as classes mais desfavorecidas da população sem condições de
uso mais frequente, o que poderia ajudar na recuperação financeira se tivesse aumento
no número de usuários.
E ainda, a partir de 1855, a
Companhia de Carruagens Omnibus
decidiu-se por
comprar mais cavalos do que muares, o que, para Vieira, teria aumentado mais os custos
de manutenção. O gado cavalar comprado em França tinha custo maior de conservação,
acima dos equinos espanhol e português, também mantidos em grande proporção, outro
fator de deterioração contábil, afora que mais exigentes do que os muares, conforme
vemos na tabela 1, que Vieira compilou a partir da análise do Parecer para conhecer os
motivos que deram logar
...
citado anteriormente.
3
Tabela 1 - Aquisição de gado pela
Companhia de Carruagens Omnibus
(entre 1835
e 1863)
Origem
França
Espanha
1. Gado CAVALAR, número de cabeças de
gado
142
63
Custo total, em contos de réis
26,7
7,8
Custo médio por cabeça em milhares de réis
187,8
124,6
Custo médio de manutenção anual, em milhares
de réis
83,1
38,7
2. Gado MUAR, número de cabeças de
gado
8
225
Custo total, em contos de réis
1,1
38,5
Custo médio por cabeça em milhares de réis
140,9
171,1
Manutenção anual, em milhares de réis
22,9
34,1
Fonte: VIEIRA, 1982, p. 77.
A companhia levou 6.978.289 passageiros em 27 anos de existência, uma média de
258.455 passageiros por ano, 708 passageiros/dia. Vieira lamenta a insuficiência de
documentação para melhor avaliar a exploração da rede como a causa que teria sido
mais fundamental para a sua ruína que não o incêndio, que teria sido apenas o golpe de
misericórdia para a
Companhia de Carruagens Omnibus
. Silva Bastos informa que os
ómnibus
desapareceram oficialmente das ruas de Lisboa em 1865 por não ser mais
possível cumprir o privilégio concedido em 1834.
Nos parece que uma soma de fatores foi determinante: 1. prejuízo com a perda do
gado e das cavalariças em 1865; 2. lentidão da diretoria diante das deficiências que a
contabilidade vinha apontando; 3. dificuldades em aumentar o movimento com tarifas
elevadas e serviço irregular; 4. incapacidade de perceber potenciais linhas em áreas mais
rentáveis na cidade. A transformação com aumento populacional e concentração
industrial apresentou pressões e desafios, estimulando a movimentação de pessoas, bens
e mercadorias, e a necessidade de serviços públicos melhor organizados, como
transporte, águas e esgotos, gás, força e luz.
3
Prof. Nuno Luís Madureira chama atenção para o fato de que o gado cavalar tem maior poder de tração
do que o gado muar, demonstrando que pode haver equívoco no argumento apresentado.
Com o anseio modernizador no século XIX, como dissemos, era tarefa da
administração oficial que deveria preparar a cidade para oferecer aos munícipes serviço
melhor regrado, com capital privado ou público. Sem melhores perspectivas, com muitas
reclamações e acusada de favorecer quem pudesse pagar por bilhetes caros, em 1865
a
Companhia de Carruagens Omnibus
teve o serviço suspenso e o monopólio revogado
no ano do incêndio. É sua, porém, a primazia por ter iniciado o transporte público
coletivo em Lisboa.
Muitas companhias, serviço intermitente
Depois do incêndio em 1865 e o fim da
Companhia de Carruagens Omnibus
parecia que um ambiente favorável à competição iria incentivar outras companhias a
explorarem o serviço de transporte público coletivo em Lisboa. Existiram em número
considerável nos anos seguintes, mas não atingiram a amplitude da antiga companhia.
Entre as primeiras, a
Companhia de Carruagens Lisbonnenses
cujos estatutos estavam
registrados desde agosto de 1852, oferecendo carruagens para aluguel. Os diretores,
Antônio E. de Carvalho, Vicente Marques, Mateus V. Dinis e Ascenso de Serpa Azevedo
adquiriram terreno do palácio dos marqueses de Niza para os edifícios da empresa.
Vieira exibe tabela com as tarifas aplicadas pela companhia em 1865 (VIEIRA, 1982, p.
65).
Com estação no Largo de São Roque, oferecia serviços para Dafundo, Ajuda,
Calhariz, Benfica, Carnide, Carriche, Ameixoeira, Charneca, Portela e Olivais e, por até
um dia inteiro na cidade, um
char-à-bancs
para 9 pessoas por 9 mil réis. Entre as
carruagens mais procuradas, os
coupês
, as caleches, os landaus, para casamentos,
teatro, batizados, bailes, para o Passeio Público do Rossio e ainda serviços especiais para
Sintra, Mafra ou Ericeira, Cascais e Queluz ou Belas. Sua decadência financeira logo foi
observada em razão, segundo os diretores, dos altos preços do gado e forragem, da
concorrência e da crise política e financeira do país. Procurou ampliar seus serviços com
o transporte em cortejos fúnebres, persistindo até quase o século XX (CASTRO, 1956, p.
8).
De 1864 são os carros do Florindo, pequena companhia que explorava os
arrabaldes de Lisboa, quando eram cerca de mil os veículos de transporte ao dispor dos
lisbonenses, predominando os de uso individual, período de descontinuidade do serviço.
Com carros fechados, montados sobre quatro grandes rodas de carroça, puxados por
parelha com três cavalos e pintados de encarnado, os carros do Florindo faziam sucesso
em linhas como São Julião da Barra Largo do Pelourinho e Oeiras Belém, seguindo
posteriormente até Cascais (MENDONÇA,
2006b, p. 98).
Consta que era bastante apreciada pela qualidade do atendimento e seus veículos,
asseados e pontuais, tornando-se incômodo concorrente para a
Companhia de
Carruagens Omnibus
. A companhia de José Florindo de Oliveira começou a sentir
maiores apuros com a criação de caminho de ferro entre Pedrouços e Cascais em 1889, o
que retirou parte considerável de sua clientela. O transporte a vapor por trilhos era mais
barato, mais seguro e mais confortável do que os movidos a tração animal. A companhia,
porém, sobreviveu até a segunda geração e o filho, de mesmo nome, vendeu à
Carris de
Ferro
os 26 animais e os seis carros que ainda circulavam em 1892, marcando o fim dos
carros do Florindo, com a imagem de um reproduzido em
História da Companhia Carris
(MENDONÇA, 2006b, p. 98).
As pequenas companhias de transporte não coletivo continuaram a surgir e
Lisboa passou vários anos sem serviço que atendesse satisfatoriamente o público. Entre
elas estava a companhia dos
char-à-bancs
, veículos menos pesados, abertos com dois
bancos de costas para a rua, cobertos por tejadilho com cortinas de lona grossa e suja
que eram fechadas para proteger da chuva, sol e poeira. Com estação no Largo do
Pelourinho, levavam cerca de oito pessoas. Também os chamados trens de praça, antigas
seges para aluguel, procurados por serem ligeiros. Com serviço a qualquer hora, eram
facilmente achados, com preços mais baixos, com serviço também a noite, “[...] desde a
uma da madrugada até ao romper da aurora” com tarifas que eram duplas em relação às
do dia (CASTRO, 1956, p. 8).
A privação de transporte blico coletivo, porém, pretendia-se terminada à 31 de
janeiro de 1870 com a inauguração do
Larmanjat
entre Arroios e Lumiar, alcançando
Benfica e Sintra. A companhia foi fundada pelo engenheiro francês Jean Larmanjat (1826-
?), convidado por João Carlos Vicente de Saldanha Oliveira e Daun (1790-1876), o duque
de Saldanha, e pelo marquês de da Bandeira (1795-1876), presidente do ministério à
época, para organizar seu sistema de transporte em Portugal. O duque de Saldanha
tornou-se uma espécie de eminência parda do empreendimento, cuidando para que as
concessões para as carreiras solicitadas fossem celeremente providenciadas pela
burocracia (MENDONÇA,
2006b, p. 98-99).
As linhas e os carros ficaram conhecidos popularmente como
larmanjat
e o
período como a ‘curta era do
Larmanjat’
, com a implantação de interessante inovação.
Tratava-se de caminho de ferro monotrilho constituído pelo carril central, com duas
passadeiras de madeira pregadas em travessas com tarraxas de ferro, a locomotiva
dotada de roda central assentada sobre o carril também central e as carruagens com
rodas laterais nas passadeiras. A locomotiva era movida a vapor e havia vagões de 1ª, 2ª e
classes. Duas figuras desse comboio são exibidas na obra
História da Companhia
Carris
(MENDONÇA, 2006b, p.103 e 109).
A inovação entusiasmou os lisboetas de início, euforia que logo esfriou, pois, o
sistema era considerado barulhento demais. Silva Bastos diz que [...] morreram à
nascença pois na sua inauguração, a máquina teve que ser puxada por moços de fretes,
entre estrepitosas gargalhadas dos muitos convidados, que mesmo assim teriam comido
e bebido à saúde da concessionária daquela inconcebível traquitana”. (BASTOS, 1952, p.
7). A viagem dos
Larmanjats
durava entre 50 e 60 minutos e até o rei D. Luís (1838-1889)
seguiu no comboio a 5 de fevereiro de 1870.
Havia duas estações terminais, uma na Rua de Arroios e outra no largo Santa
Bárbara, e estações de parada como a do Arco do Cego, do Campo Pequeno e nos dois
extremos do Campo Grande, mas foi preciso linhas de carruagens para transporte do
Rocio e do Terreiro do Paço para essas regiões. Como, na época, eram pouco habitadas e
afastadas do centro de Lisboa o serviço ligaria as duas pontas soltas: “[
...
]
para ir até lá o
viajante metia-se, em frente da casa 121 da Rua das Portas de Santo Antão, num char-
à-bancs do Silvestre que, por quatro vinténs, fazia o serviço”. (CASTRO, 1956, p. 9)
.
O frenesi sentido com o
larmanjat
arrefeceu e foi notado pela diretoria que
estabeleceu as carreiras para Sintra e Torres Vedras, um erro esses serviços para fora
de Lisboa, o mesmo cometido antes pela
Companhia de Carruagens Omnibus,
segundo
Francisco Santana. No campo político, a última ‘saldanhada’ havia sido malsucedida e o
Duque expiou doce exílio como embaixador em Londres.
4
Ficou abalado o apoio político
que o francês Larmanjat recebia, afetando a obtenção de créditos não especulativos.
Para expandir as linhas, capitais mais vultosos eram necessários e, após a mediação de
Albert Grant, conhecido usurário inglês, foi fundada a
Lisbon Steam Tramways Company
Limited
em julho de 1871, que ficou mais conhecida pelo nome de
Companhia dos
Tramways a Vapor
(MENDONÇA, 2006b, p. 100)
.
Para Vieira, revelando certo pendor nacionalista, foi apenas mais um investimento
fraudulento e especulativo com a aristocracia e a realeza sacrificando o país e o povo
aos interesses ingleses, mas era diferente dos demais que rebentavam à época por não
envolver capital público. Negociatas, vigarices e corrupção traziam instabilidade política,
ameaças ao patrimônio público, carência orçamentária e aumento da dívida pública.
Todavia, o investimento foi firmado e a carreira para Sintra foi lançada a fevereiro de
4
Golpe militar conservador de 19 de maio de 1870 dirigido pelo Duque de Saldanha, que exigiu do rei D.
Luís I a demissão do gabinete do Duque de Loulé. O próprio Saldanha assumiu a direção do Governo e com
oposição de todos os partidos políticos, foi derrubado em apenas 100 dias e substituído pelo gabinete de Sá
da Bandeira.
1873, tomando 1h55m, e para Torres Vedras, cerca de cinco horas, desde setembro do
mesmo ano.
Os lucros com as novas linhas não foram suficientes para cobrir as pesadas
despesas e, mesmo com mais uma concessão obtida pelo duque, a carreira Lisboa -
Cascais que não chegou a ser implantada
,
a situação começou a perigar. Um aporte de
30 mil libras foi feito pelos acionistas em fevereiro de 1874 para a
Lisbon Steam
Tramways (City Extension)
, que, reunida à existente, exploraria a nova linha. Desde
novembro de 1873, porém, a concorrência da
Carris de Ferro
com os americanos,
tramways
à tração animal, não permitiu sucesso para o
Larmanjat
. Os americanos se
tornariam o marco definidor para a nova fase, a administração municipal procurava
reorganizar o serviço e suprir o anseio modernizador dos lisbonenses. Além disso, outros
contratempos, como descarrilamentos e elevação das tarifas, auxiliaram no desdouro do
Larmanjat
(VIEIRA, 1982, p. 90, 119).
Logo os acionistas tentaram a liquidação da sociedade em Londres para
resguardar seus capitais de um desastre financeiro, mas a liquidação foi resolvida em
1877. As carreiras estavam interrompidas desde 1875 e foram obtidas 11.600 libras com a
venda do patrimônio em hasta pública. Após as dívidas serem quitadas, um tostão sequer
dos investimentos foi recuperado pelos acionistas e o duque de Saldanha falecido em
1876, acabou poupado do embaraço maior ao final da vida por ter participado de
empreendimento inculpado de burlista.
Voltando a 1870, surgiu companhia com nome que era conhecido dos lisbonenses,
criada por Joaquim José Ferreira como
Companhia de Carruagens Omnibus.
Não se
tratava da mesma citada anteriormente, dissolvida em 1865 depois do incêndio, e
oferecia as carreiras Pelourinho - Arco do Cego por 60 réis e Pelourinho - Lumiar por
120 is. Por curto tempo uma linha para Campolide, com aluguéis de carros para
festividades e recreio. Muitas outras companhias se multiplicaram e Motta Capitão
refere mais quatro empresas de
ômnibus
que exploravam diferentes linhas, geralmente
pequenas para constituir um serviço regular e integrado para a cidade inteira, Nestor
Vital cita mais três.
Muitas se notabilizaram entre os lisbonenses como a empresa do Luís Salazar, os
carros do Simplício, a
Companhia de Carruagens Antoine Ripert
, os choras da
Empresa
Eduardo Jorge
, sendo que algumas delas foram absorvidas pela
Carris de Ferro
em seus
primeiros anos. Havia ainda os carros do Ganga, do Morgado, do Benjamin, empresa com
um carro de ex-funcionário da
Carris de Ferro
, do Moita, do Leal, do José Luís de
Oliveira, A. Gomes & Irmão, Souza & Filho. Muitas tiveram sobrevida, se concentrando
em oferecer serviços nos subúrbios de Lisboa, visto a demora com que a
Carris
integrou
toda a cidade (MENDONÇA, 2006b, p. 102).
5
Considerações finais
A história dos transportes públicos coletivos em Lisboa tem sido dividida entre
antes e depois da criação da
Companhia Carris de Ferro de Lisboa
fundada em 1873. O
antes, desde 1834 quando a Câmara Municipal se empenhou em resolver as dificuldades
da cidade com a primeira concessão feita à
Companhia de Carruagens Omnibus de
Lisboa,
como procuramos expor nessa parte I. E o depois, dividido em mais dois tempos,
o debute da
Carris de Ferro
em 1873 com a exploração com carros à tração animal e a
partir do advento dos carros movidos à tração elétrica em 1901, quando as linhas foram
arrendadas à
holding
britânica
Lisbon Electric Tramways,
e que trataremos nas partes II
e III, a serem publicadas
.
Esse primeiro período, entre 1834 e 1873, é marcado pelo serviço irregular e
dispendioso para a maioria da população da
Companhia de Carruagens Omnibus,
o que
de certa forma a teria condenado
.
Sua existência limitada, apesar de longa com três
décadas, e um fim com contabilidade mirrada, foi importante para firmar o serviço ainda
que de forma espraiada, pouco integrando a cidade. Os serviços de transporte de
pessoas, bens e mercadorias se tornavam urgentes com o avançar do século XIX, parte
de um anseio modernizador, com a industrialização e expansão urbana acelerada em
alguns grandes centros. A diretoria da
Companhia de Carruagens Omnibus
pareceu não
conseguir responder aos reclamos por serviço mais eficiente, barato e expandido para
atender uma Lisboa com essas necessidades iminentes.
Ao não aproveitar as linhas em que as receitas poderiam aumentar tornou
possível a outras pequenas companhias a ocupação desses espaços, que atenderam à
demanda crescente, ainda que jamais tivessem alcançado o tamanho da
Companhia de
Carruagens Omnibus
. Com o fim dessa pequena gigante, as companhias menores
proliferaram durante período em que o serviço foi intermitente ou desassistido por
concessionárias mais bem organizadas, cerca de oito anos. Muitas dessas companhias
5
Sande e Castro cita meio de transporte importante para cidade com a conformação geográfica de Lisboa,
mas que não é nosso objeto de estudo: “Outro transporte, utilizado em grande escala, era o fluvial; havia
vapores que tinham a sua estação no aterro do Caes do Sodré; saiam, de meia em meia hora dali para
Belém, custando a viagem meio tostão indo na ré e só um pataco indo na proa; isto de dia, porque à noite o
preço era único: três vinténs. Os vapores faziam escala em Alcântara para onde os preços se reduziam,
respectivamente a 30 réis e a um vintém; mas esta paragem cessava na época da feira de Belém, no verão,
o grande chamariz dos lisboetas.” (SANDE e CASTRO, 1956, p. 9). Os inúmeros ascensores instalados pela
cidade também são tecnologia que marcaram a história do transporte público em Lisboa.
menores tornaram-se um estorvo para a consolidação da
Carris de Ferro
que logo em
seus primeiros anos teve que absorvê-las, após alguns conflitos.
Para alguns autores, a infraestrutura de transportes teria proporcionado a
expansão e transformação de Lisboa em grande centro industrial e econômico, a
começar pelas ferrovias na primeira metade do XIX, precedendo então essa
transformação. Silva Bastos observa que os terrenos e as edificações eram valorizados,
surgiam novos bairros e novos logradouros onde antes eram terrenos baldios. Vieira,
porém, adverte que a estrada de circunvalação teria firmado tanta ou mais influência no
alargamento urbano do que as redes de transportes públicos. Essa estrada, que pode ser
vista na imagem 1, teria sido uma expansão artificial feita pela Câmara, aparentemente de
caráter arrecadatório, dos limites de Lisboa.
Essa infraestrutura incipiente então ganhou solidez quando a
Carris
inaugurou o
serviço com os americanos, quando as relações passaram da excitação com o serviço,
tido como modernizador e essencial para os lisbonenses, ao descontentamento com as
falhas que ocorriam, como afirmamos. Mais à frente, com os elétricos, entrado o
século XX, viria também a frustração ao verem os lucros sendo exportados, lembramos
que a rede foi arrendada a uma
holding
de capital britânico.
Uma rede modernizada e eficiente de transportes públicos resultava em
circulação mais rápida e fácil de pessoas, bens e mercadorias, ensejando planos de
desenvolvimento de caminhos e vias, fundamental no século XX. Sande e Castro,
concordando com Silva Bastos, lembra que em Lisboa se abriam ruas e avenidas, surgiam
bairros, preparava-se o plano geral de esgotos, abria-se concurso para a iluminação
pública, entrando a capital portuguesa em período áureo de desenvolvimento, ainda que
tudo feito com dinheiro emprestado “em condições, por vezes, bem onerosas” (SANDE e
CASTRO, 1956, p. 34-37).
Isso parece demonstrar que a viação sobre carris na capital portuguesa veio em
simultâneo com a iminência da vida moderna, acelerada pelo capitalismo industrial e
financeiro no século XIX. Parece demonstrar também que a Câmara Municipal de Lisboa
respondeu à necessidade blica pelo serviço. As companhias de serviços públicos
surgiam então com potencial de lucratividade por serem objeto de monopólio, como
concessão pública cedida pela municipalidade e a organização inicial da
Carris
teve que
enfrentar a recente multiplicação de empresas que procuravam cobrir o serviço com o
fim da
Companhia de Carruagens Omnibus
.
Acervos pesquisados
Acervo Municipal do Arco do Cego
.
Acervo do Museu da Carris
.
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