Faces da História, Assis/SP, v.8, n.1, p.12-18, jan./jun., 2021
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Editorial v. 8, n. 1
História em tempos de suspeição
do conhecimento científico
O desprezo da verdade histórica patenteou-se em toda a parte.
Digo em toda a parte porque os exemplos que vêm
espontaneamente ao espírito são os dos Estados totalitários [...]
Mas as democracias ocidentais não estão isentas de mácula. Basta
pensar no recurso a calúnias incontroladas, por parte dos
‘caçadores de bruxas’, nos Estados Unidos, ou, entre nós, nas
mentiras balbuciantes que são os ‘desmentidos oficiais’ dos nossos
ministros. O recurso a eles tornou-se tão normal que acabamos
por ver nisso uma mera figura de retórica e uma praxe! Nesse
mundo transtornado, que lugar resta para a História? Não passa
de um jogo de máscaras no armazém dos acessórios dos
comediantes da Propaganda. Podemo-nos dar por felizes quando
eles não vão ao ponto de fabricar integralmente uma história que
sabem que é falsa. Na melhor das hipóteses, vêem no
conhecimento do passado um repertório de incidentes pitorescos,
de paralelos ou de precedentes úteis a invocar. (MARROU, 1975, p.
11-12).
[...] apesar da relevância das novas formas de comunicação, o meio
mais eficaz de disseminação continua sendo o antigo, ou seja, o
encontro com as pessoas. Argumentou-se que ‘a transferência de
conhecimento realmente valioso de um país para outro ou de uma
instituição para outra não pode ser facilmente obtida pelo
transporte de cartas, periódicos e livros: ela requer o movimento
físico dos seres humanos’. Em suma, ‘as ideias circulam por aí
dentro das pessoas’. (BURKE, 2016, p. 114).
A
Faces da História
tem o imenso prazer de tornar público mais um número, não
sem lançar aos seus leitores, de saída, uma questão para refletir: qual o lugar reservado
ao conhecimento histórico em nossos dias? Embora não tenhamos resposta imediata e
muito menos definitiva para a pergunta, nossa pretensão é compartilhar a dúvida que
nos inquieta. Os artigos aqui publicados são prova de que pretendemos lançar pistas
para instigar o debate e ajudar a encontrar possível solução sobre tema tão urgente o
que, em mesmo nível de necessidade, se relaciona aos dez textos do dossiê deste volume,
qual seja,
História Ambiental do Brasil Republicano:
políticas ambientais, historiografias e
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mundo natural
, que conta com uma apresentação sobre o assunto. Este número também
apresenta sete manuscritos na Seção de Artigos Livres, um texto nas Notas de Pesquisa,
seção inaugurada no número anterior (v. 7, n. 2) e que é destinada exclusivamente a
graduandos e graduados, além de uma resenha e uma homenagem ao historiador francês
Marc Ferro (
in memorian
).
Os sete textos da seção de Artigos Livres estão organizados por afinidades
temáticas, a saber, dois sobre as questões indígenas no período colonial; três trabalhos
que se valem da imprensa para suas análises e dois artigos que destacam problemas do
campo político em suas reflexões. Em complemento, os autores e autoras aprofundam
qualitativamente suas discussões ao apresentar seus posicionamentos teóricos e
revisitar as historiografias que dialogam com os seus objetos, o que orienta
didaticamente o público leitor no entendimento desses debates.
A abertura desta seção se pela contribuição de Paulo Robério Ferreira Silva
com o trabalho intitulado
A guerra esquecida: os Anaió e os colonizadores na Guerra dos
rbaros,
no Sertão do Rio São Francisco, entre 1684 e 1688
. O autor nos apresenta um
conflito que permaneceu esquecido até o começo do século XXI. Nele podemos ver a
resistência dos nativos
Anaió
em guerra contra o governo colonial brasileiro, fato que
resultou no violento extermínio de milhares de vidas. Por meio de uma revisão sobre a
Guerra dos Bárbaros (1651-1720), Silva nos demonstra os argumentos para tal
esquecimento e realiza análise sobre as possíveis motivações desse confronto, além de
refletir sobre as contribuições desses povos para a construção da nossa cultura nacional
ainda em formação , mesmo à custa de tamanha violência colonial.
Laura Oeste, em
Lugares sociais das mulheres e das famílias indígenas na região
platina (século XVIII),
destaca
a participação das mulheres indígenas, em resistência aos
violentos processos de aprisionamento por agentes coloniais espanhóis. As várias
questões levantadas pela autora dizem respeito ao que se dava com as mulheres
capturadas por colonos e como esses aprisionamentos influenciavam os grupos
familiares, os discursos dos agentes coloniais e quais as estratégias utilizadas pelos
indígenas para enfrentar a situação de violência.
Ao adentar os trabalhos sobre imprensa, em
Sociabilidades e discursos na
configuração social do Diário dos Campos, Ponta Grossa (PR) 1907-1921,
Isaias Holowate
apresenta o processo de formação de um periódico paranaense, idealizado pelo
comerciante Jacob Holzmann e pelo jornalista Hugo dos Reis. O autor analisa as redes de
sociabilidades presentes em Ponta Grossa e promovidas em torno do jornal, a interação
entre seus membros, os debates e ideias que mobilizaram o público local. Por meio da
narrativa do pesquisador, acompanhamos as transformações que se deram entre 1907 e
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1921, principalmente na organização da configuração social do periódico, fato que
garantiu a permanência e a consolidação editorial no período analisado.
A imprensa pedagógica enquanto possibilidade de pesquisa para historiadoras e
historiadores da educação é analisada no artigo de Elisângela Cândido da Silva e José
Edimar Souza.
Em busca do Ruralismo em Caxias do Sul/RS nas páginas do “Despertar”
(1947-1954)
nos mostra a adoção de orientações pedagógicas para a educação em Caxias
do Sul, por meio da circulação deste impresso periódico. Conforme os autores, o
Despertar
cumpriu uma função estratégica na difusão de informações importantes para
as pessoas que viviam no campo, além de valorizar a identidade rural. Essas iniciativas,
promovidas pela Diretoria de Instrução Pública da cidade, também contribuíram para a
condução institucional de práticas escolares, influenciadas pelo que se configurou por
Ruralismo Pedagógico.
Kézia Almeida e Jaison Castro Silva em
Um breve estudo sobre Arnaldo
Albuquerque e a História em Quadrinhos Carcará
analisam a importância do artista
piauiense, principalmente por meio da sua atuação como quadrinista. A revista
Humor
Sangrento
,
de 1977, obra pioneira no estado, foi escolhida pelos autores para destacar o
perfil crítico e transgressor de Albuquerque durante o regime militar. Nela encontramos
a HQ
Carcará
de sua autoria, trabalho que reúne elementos de referência à cultura
regional do nordeste do país, fato que, segundo os autores, organiza a formação de uma
identidade piauiense. Como um estímulo a futuras pesquisas com o uso de HQs, o
público leitor é convidado a participar da interpretação do material analisado a fim de
pensar em novos trabalhos, que podem surgir a partir dessa expansão das possibilidades
desse campo historiográfico.
Finalizando a seção com as temáticas do campo político, em
Autoritarismo e
Centralização: a proposta de federação nacional do anteprojeto da Comissão do
Itamaraty
encontramos os debates acerca da elaboração da proposta constitucional no
Governo Provisório de Getúlio Vargas (1930-1934). O texto de autoria de Leandro Ribeiro
Tonete analisa o anteprojeto uma espécie de documento guia que organizou os
trabalhos da Assembleia Constitucional. O autor identifica as tensões entre os membros
da comissão na adoção do modelo federativo, fato que inibiu a concentração de poder
em detrimento de maior autonomia local. Contudo, o seu destaque está nas propostas de
fortalecimento do Poder Executivo, promovida por agentes alinhados à política varguista.
Por fim, em
A Guerra Civil Grega (1943-1949):
historiografia através da história
,
Felipe Alexandre Silva de Souza nos conduz por um tema timidamente abordado em
nossa historiografia. O autor apresenta o embate armado conduzido pelo Partido
Comunista Grego (KKE) contra o governo oficial, uma monarquia com o apoio de países
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como a Grã-Bretanha e os EUA. Sua contribuição consiste em apresentar ao público
leitor as nuances do conflito, suas divisões internas, bem como uma revisão com as
principais interpretações sobre o ocorrido, dividida em três correntes: as vertentes
tradicionalista, revisionista e pós-revisionista. No alvorecer da Guerra Fria, vemos a
presença de interesses geopolíticos externos e a divisão em três fases da guerra civil que
perduraram até a rendição dos comunistas em 1949.
Na seção Notas de Pesquisa, encontramos o trabalho de Caio Murilo Pereira
intitulado
A igreja, o Estado e o Monumento: algumas considerações sobre as
festividades de inauguração do Cristo Redentor no Rio de Janeiro (1931).
Nele o autor
analisa duas capas do jornal
O
Globo
,
que noticiaram o importante evento na cidade
carioca.
O autor destaca a função do monumento na comunicação de uma mensagem
católica ao país, frente aos efeitos da laicidade proposta pela Constituição de 1891. Nesse
sentido, a imagem do Cristo assumiu a ideia de um bem comum para a sociedade
brasileira, o que colaborou para o reposicionamento político da instituição religiosa.
Na seção Resenhas, vemos a apresentação da obra
Mastodontes
:
a história da
fábrica e a construção do mundo moderno
do historiador estadunidense Joshua Freeman.
O trabalho, de autoria de Vinicius Patrocínio Pereira Costa e intitulado
A Fábrica como
instituição da Modernidade,
ressalta a abordagem central do livro resenhado, qual seja, o
impacto social da instituição fabril no mundo moderno. De proporções mastodônticas,
isto é, gigantescas, vemos a persistência dessas estruturas em nosso presente, com os
seus reiterados problemas.
Na conclusão do número, encontramos uma bela homenagem ao historiador
francês Marc Ferro (1924-2021), que faleceu no mês de abril deste ano. O texto detalhado
escrito respeitosamente pelo professor Paulo Cesar Gonçalves (PPG-História/Unesp),
além de nos apresentar o sentimento de perda deste reconhecido historiador, nos
convida a percorrer a produção de Ferro, realizada ao longo de conturbado momento
histórico, o século XX. Paulo Gonçalves nos conduz por momentos importantes da
biografia do homenageado, além de nos colocar em diálogo com o seu pensamento e
principais escritos, o que bem demonstra seu legado à História.
Os trabalhos que integram as seções de Artigos Livres, Notas de Pesquisa e
Resenha reafirmam a orientação editorial da revista na divulgação de ampla variedade de
temas. Ao longo de oito anos de atividades, vemos que essa preocupação interdisciplinar
permanece e se fortalece a cada exemplar publicado, em que podemos encontrar
diálogos oriundos não apenas da História, mas do campo das Ciências Humanas. Os
textos apresentados ao público demonstram a vitalidade da nossa historiografia em
âmbito nacional, pois divulgam o conhecimento histórico especializado, o que muito
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contribui para a sociedade. Outro ponto de destaque consiste no fato de recebermos
para avaliação trabalhos em diversos estágios de desenvolvimento na Pós-graduação e
Graduação, fato que contribui para a construção de um espaço diversificado de
experiências acadêmicas.
Os textos publicados na
Faces da História
reforçam a busca por um trabalho
historiográfico respeitável, de forma a enfrentar os ataques que a História vem
recebendo desde os tempos de Henri Marrou, cujo livro, citado anteriormente, foi
publicado na França pela primeira vez em 1959, portanto, no cenário do pós Segunda
Guerra, conjuntura em que já se fazia o alerta para os ataques à História. O historiador
francês, que faleceu em 1977, não chegou a presenciar nosso ambiente turbulento, onde
as Humanidades, além das outras ciências, são gravemente atacadas por discursos que
tentam incessantemente substituir a lógica intelectual e acadêmica por pautas
negacionistas e acríticas, ou seja, ideias contrárias à divulgação de saberes sérios e
embasados em dados, rigoroso padrão próprio do campo científico.
Particularmente no caso da realidade brasileira, parece-nos que essa fabricação
de uma falsa história, tão propícia à formação de um cenário angustiante, desanimador e
que, por vezes, traz a sensação de beirarmos a distopia, ficou ainda mais nítida com a
chegada e avanço da pandemia de Covid-19, que ceifou milhares de vidas, além de ter
permitido com que saltassem aos olhos as desigualdades sociais deste país de dimensões
continentais. Sem contar, é claro, a incompetência de grupos políticos e de seus fiéis
aliados, que desprezam a racionalidade e o pensamento plural e crítico, o que
impossibilita um debate ético e cidadão. As questões de ordem política se misturam com
problemas econômicos, sociais, de saúde pública e ambientais, uma vez que o ímpeto da
lucratividade permite que se queira a qualquer custo “passar a boiada”
1
, menosprezando
a importância da natureza para uma vida ecologicamente equilibrada e para a construção
de uma sociedade justa, além de se desprezar os vários e constantes sinais de que na
natureza algo não caminha bem.
O desmatamento intensivo e desenfreado demonstra a inabilidade do ser humano
em viver com a natureza sem destruí-la, o que acarreta a disseminação de doenças (a
pandemia é um bom exemplo), a desregulagem nos níveis de temperatura global,
alteração no ciclo das chuvas, acúmulo de poluição atmosférica (o dia tornou-se noite em
São Paulo, em 2019), degradação dos recursos hídricos, entre tantos outros. Os diversos
problemas ambientais recaem sobre um ponto muito importante da vida em sociedade: a
justiça. A presença de um ambiente marcado pela degradação, pelo descaso dos
1
A esse respeito, é importante conferir o texto de apresentação do dossiê escrito por Roger Domenech
Colácios e Marcio Henrique Bertazi.
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governantes em criar políticas públicas ambientais impedem que se atinja condição de
igualdade social, em que as pessoas possam se livrar das amarras da miséria e da
pobreza.
no que respeita à confecção deste exemplar, de se dizer que a necessidade
do isolamento social, que interrompeu o contato físico tão importante para a divulgação
de conhecimento, como bem lembrou Peter Burke, nos impactou, porque foi preciso
reorganizar a rotina com precisão e submergir com ainda maior profundidade nas telas e
na instantaneidade do
on-line
, além de ter de enfrentar os problemas do cotidiano e as
notícias difíceis. Mas isso, felizmente, não impossibilitou que continuássemos a
desempenhar nossa função, cujo resultado é esse número que vem à luz.
É certo que isso foi possível graças à dedicação e comprometimento de todo o
conselho editorial da revista
Faces da História
, cujos integrantes, não se pode esquecer,
são estudantes de Pós-graduação, que além de desenvolverem suas pesquisas em níveis
de mestrado e doutorado, também se dedicam voluntariamente à minuciosa e difícil
tarefa de editar uma revista científica; aos revisores e revisoras gramaticais (em língua
inglesa e portuguesa), cuja atividade também é voluntária; aos coordenadores do dossiê,
professores Roger Domenech Colácios e Marcio Henrique Bertazi; aos/às pareceristas
de todas as seções, cujas avaliações às cegas permitiram que se mantivesse a apreciação
rigorosa dos manuscritos, pilar imprescindível para a estruturação ética da ciência e
também aos autores e autoras que escolheram encaminhar seus textos à
Faces da
História
e que hoje têm a oportunidade de os verem publicados. Por fim, porém não
menos importante, não poderíamos deixar de agradecer a você, leitor e leitora, quem se
encontra em nosso horizonte e quem, justamente por isso, nos nutre de esperança para
seguirmos com esse aprendizado.
Enquanto o discurso anti-intelectual reverbera com força na sociedade,
continuamos a aprender com a edição de uma revista científica, cujos textos são
comprometidos com o avanço da ciência histórica, uma vez que são frutos de pesquisas
que proporcionam a reflexão e o avanço historiográfico e que objetivam instigar o
público leitor a refletir de maneira densa sobre os mais diversos aspectos do passado.
Tais elementos, não é excessivo lembrar, constituem-se em importantes recursos à
formação de repertório de saberes críticos, que permitem com que nos posicionemos
contra essa época em que “[...] somos convidados a um pensamento sedentário e ao
esquecimento.” (CHAUI, 2006, p. 35).
Os editores e o conselho editorial da revista
Faces da História
dedicam este
número aos/às 512.735 brasileiros e brasileiras que, até o fechamento deste editorial,
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perderam suas vidas em virtude da Covid-19.
2
O agravamento da pandemia não pode ser
esquecido, sobretudo porque houve negligência do poder blico que não investiu na
área da saúde, não apoiou medidas restritivas, o uso de proteções individuais, como a
máscara, o isolamento social, além de não ter contribuído para a segurança econômica
de seu povo. O número de mortes não pode ser tomado apenas como estatística, pois
não se pode esquecer que cada uma dessas pessoas tinha família, amigos, amores e,
portanto, uma história em potencial, que no futuro poderia ser contada nas páginas desta
revista.
Boa Leitura!
Marcela dos Santos Alves
https://orcid.org/0000-0003-4972-386X
Daniel Alves Azevedo
https://orcid.org/0000-0001-8133-3832
João Lucas Poiani Trescentti
https://orcid.org/0000-0002-1801-6882
Referências
BURKE, Peter.
O que é história do conhecimento?
Tradução Cláudia Freire. 1. ed. São
Paulo: Editora Unesp, 2016.
CHAUI, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção?
In
: NOVAES, Adauto.
O
silêncio dos intelectuais
. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19-44.
MARROU, Henri.
Do conhecimento histórico
. Tradução Ruy Belo. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1975.
NOVAES, Adauto. Intelectuais em tempos de incerteza.
In
: NOVAES, Adauto.
O silêncio
dos intelectuais
. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 07-18.
2
Cf. dados disponíveis em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 26 jun. 2021.