Faces da História, Assis/SP, v.8, n.1, p. 19 -24, jan/jun., 2021
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Apresentação
História Ambiental do Brasil Republicano: políticas ambientais,
historiografias e mundo natural
Em 1989, diante de uma plateia estarrecida, a jovem indígena Tuíra Kayapó
apontava um facão para o pescoço do então chefe da Eletronorte. O público era formado
por diversos profissionais, populações tradicionais, políticos, jornalistas e outros, e
estavam ali para o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Na ocasião,
discutiam-se os diversos impactos na vida da população ocasionados pela construção de
uma usina hidrelétrica no rio Xingu. O chefe da Eletronorte tentava convencer da
necessidade da obra, Tuíra procurava, ao seu jeito, mostrar o contrário. Três décadas
depois, a Usina de Hidrelétrica de Belo Monte ocupa a paisagem outrora marcada pela
floresta, rio, ocas e animais de muitas espécies (COLACIOS, 2015). A cena é simbólica.
Símbolo da situação do meio ambiente no Brasil, das leis, políticas públicas, dos povos
indígenas, da justiça ambiental e das desigualdades sociais de vários tipos.
Anos antes dessa cena, em 1981, enquanto ainda perdurava a ditadura civil-militar
brasileira, a política ambiental do país ganhava novos contornos. Foi instituída a Política
Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.983), com um peso significativo na perspectiva
desenvolvimentista, nada diferente das ações na área ambiental promovidas até então
pelo governo militar, tal como a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), de 1973,
que por sua inação deu o tom da década do suposto milagre econômico brasileiro e todas
as suas consequências ambientais. No entanto, essa nova política abriu um leque de
instrumentos legais que tencionava, dentre outras questões, a avaliação dos impactos
ambientais e estabelecia padrões de qualidade ambiental.
Além da indígena e seu facão, outra arma foi criada na década de 1980 para conter
o avanço desenfreado das políticas econômicas e das tradições brasileiras: a
Constituição de 1988. Seu artigo n.º 225 tornou-se notório nesse sentido, ao trazer uma
perspectiva de meio ambiente moderna, considerada por muitos como a entrada do
Brasil no mundo civilizado, em termos ambientais. No texto, o meio ambiente era visto
como bem de uso comum do povo, cuja defesa e preservação era de responsabilidade do
poder público e da coletividade. Ou seja, um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
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embora se mantivesse na base da lei o antropocentrismo, que marca toda a história da
legislação brasileira sobre esse assunto (COLACIOS, 2019a).
A legislação brasileira sobre o meio ambiente, ou para o mundo natural,
certamente não surge com a Constituição de 1988. A historiografia ambiental mostrou
a preocupação com os recursos naturais, com os excessos da atividade extrativista, de
caça e do uso da coivara para o plantio, no estabelecimento de reservas florestais, na
expansão das monoculturas e da pecuária (DEAN, 1977, 1989, 1996; PÁDUA, 2004;
FRANCO; DRUMMOND, 2009; FRANCO
et al
., 2012). No entanto, a sistematização ou o
estabelecimento de ações, políticas e leis consideradas modernas só surgiu no Brasil com
a promulgação desta Constituição. A partir daí observa-se a celeridade na criação de
áreas de proteção, em programas de educação ambiental e sua inclusão nos currículos
escolares, na gestão dos resíduos sólidos e, mais recentemente, na política nacional
referente às mudanças climáticas, além de outras muitas políticas nesse sentido.
1
Os
efeitos desta atuação pública colocaram o Brasil como um
player
internacional nas
medidas de proteção ambiental. Ainda que se possa criticar a abrangência e a aplicação
in totum
da legislação brasileira para o mundo natural, os resultados foram visíveis,
embora ainda irrisórios, em termos de território nacional, sobretudo no que respeita à
diminuição do desmatamento, às queimadas na agricultura, ao uso dos solos, às medidas
de saneamento, entre outros.
Ainda assim, muito o que ser feito para o meio ambiente nacional. Embora
tenha existido essa tendência no aprimoramento da proteção estatal ao mundo natural,
este ainda é ignorado em relação aos variados projetos de desenvolvimento que se
acumulam na história do país. uma tradição de que o meio ambiente entre nesses
projetos ora como elemento externo, sendo a melhoria de seus níveis de qualidade como
um resultado das demais variáveis; ora como empecilho, problema, quando o mundo
natural, é visto apenas como recurso, a ser extraído, derrubado, queimado para criar
oportunidade de negócios, sejam áreas de plantio, de ocupação imobiliária, de
especulação ou de pecuária. também uma tradição em se esquecer de que parte
considerável das florestas existentes ainda hoje mantiveram-se dessa forma pela
presença de populações indígenas e tradicionais, que não apenas possuem uma
percepção muito distinta de desenvolvimento e relação com a natureza, mas também são
personagens relevantes na manutenção e aumento da biodiversidade (DIEGUES, 2001;
COLACIOS, 2019b).
1
Dentre elas, podemos elencar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei n.º 9.985 de 2000), a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n.º 12.305 de 2010), a Política Nacional de Educação Ambiental
(Lei n.º 9.795 de 1999), a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei n.º 12.187 de 2009).
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A forma em que está organizado o pensamento ambiental oficial” hoje no Brasil,
o ambiente e estas populações como uma barreira, um empecilho. Sob o governo de
Jair Bolsonaro (iniciado em 2018) a legislação, os programas, políticas e instituições de
fiscalização e controle, tiveram um retrocesso, ou melhor, uma diminuição em amplitude
e eficiência. Sobre o meio ambiente parece ter-se retomado certa ideia opaca de
desenvolvimento econômico. A obscuridade dessa ideia de desenvolvimento está em sua
ineficiência comprovada historicamente. “Passam a boiada” de ações “infralegais” em
nome de um retorno econômico de pouca sustentabilidade temporal, ou seja, a
destruição do meio ambiente nacional em nome da lucratividade imediata, embora não
contínua, que depende de novas áreas degradadas para manter os níveis de ganhos
financeiros. Algo que fatalmente leva à exaustão de todos os ecossistemas dentro do
território nacional em pouco tempo. A degradação do meio ambiente é uma bomba-
relógio que irá explodir em todos nós.
Evidentemente que na sociedade civil organizada há os contrapontos a essa
política destrutiva. Organizações Não Governamentais, comunidades e grupos diversos
(como o Movimento dos Atingidos por Barragens e o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) têm dedicado especial atenção às práticas ambientalmente saudáveis,
a divulgar e ensinar outras possibilidades de produzir alimentos (como a agroecologia), a
promover a coleta seletiva do lixo, hortas urbanas, uso de ciclovias e muitos outros tipos
de ações que contribuem para melhorar a qualidade do mundo em que vivemos.
A história ambiental brasileira, matéria deste dossiê, tem lidado com todos esses
assuntos e outros. O dossiê que apresentamos a seguir está estruturado em três grandes
blocos. O primeiro deles refere-se à bem consolidada discussão da História Ambiental
a partir dos rios. O “protagonismo” da figura do rio aparece de forma mais ou menos
semelhante nos artigos que constituem este bloco. Em
De balseiros a patrulheiros
ambientais: as trajetórias dos pescadores de Porto Ubá no médio rio Ivaí-PR (1930-2020)
,
Simone Quiezi e Gilmar Arruda mostram a proximidade com o rio a partir do horizonte
histórico de pescadores, consolidando a tradição de situar a história dos personagens a
partir da história oral. Assim como vários trabalhos investigando a história de
ribeirinhos, o artigo identifica o violento processo de institucionalização da profissão de
pescador. O trabalho levanta um ponto importante a transfiguração do pescador
(enquanto indivíduo) em patrulheiro ambiental (tangenciando responsabilidades que
deveriam ser do Estado). O artigo também apresenta a correspondência entre o saber
ribeirinho e as trocas culturais com os indígenas que habitavam a região de estudo.
Bruna Leite Figueredo, Raiane Souza Ferreira dos Santos, Eliana Evangelista
Batista e Francisco Alves Ramon do Nascimento, em
Avaliação histórica dos impactos
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ambientais no Rio Cochó decorrentes da expansão da cidade de Seabra BA (1970-2020)
centralizam a relevância do rio no processo histórico. Se no artigo anterior o rio é visto
como o elemento central do estabelecimento dos pescadores, este toma como fio
condutor o rio durante o desenvolvimento da cidade, também a partir do emprego da
oralidade. Finalmente, no último artigo deste bloco,
A cidade e o rio: entre a preservação
e o descaso com o Meia Ponte em Goiânia (1933-2020)
, Fernando da Silva Ribeiro, Maria
de Fátima Oliveira e Giuliana Muniz Vila Verde analisam a emersão da cidade de Goiânia
na esteira da ideia de
progresso
. A contextualização dessa ideia no horizonte da política
varguista aparece também no próximo bloco de artigos. Isso parece evidenciar uma
sintonia da historiografia brasileira que costuma pontuar o contexto varguista como uma
guinada notável para a consolidação da política ambiental brasileira. No artigo, é
oportuna a percepção do abandono de um projeto paisagístico que pretendia colocar o
rio como um
palco paisagístico
da cidade.
O segundo bloco do dossiê está mais relacionado à legislação ambiental. Embora
nenhum deles faça referência à história do tempo presente (como as mais recentes
ameaças à legislação ambiental brasileira e o alinhamento político e econômico ao
neoliberalismo que citamos acima), são artigos que retomam reflexões na gênese e
aperfeiçoamento da política ambiental brasileira. No artigo
1934, um ano decisivo para a
legislação florestal brasileira
Tayla Antunes situa as preocupações preservacionistas do
início do século XX, dando destaque para a relação entre o patrimônio florestal brasileiro
e a identidade nacional no contexto do governo de Getúlio Vargas, uma chave
aparentemente indispensável para compreendermos a possibilidade da promulgação do
Código de 1934. Neste caminho, a autora nos apresenta alguns fatos na consolidação
desta identidade, que vão da atuação de Alberto Loefgren, das Festas da Árvore e do
conceito de
floresta protetora
. Por fim, reconhece que embora tenha sido uma conquista
relevante, a legislação mantinha um interesse econômico pela floresta.
Em
Modernidade formal: a legislação florestal como critério de progresso no
Brasil
Raíssa Orestes Carneiro faz uma combinação da ideia de progresso com a visão
predatória da natureza. O artigo está contextualizado com o anterior e atenção ao
Código Florestal de Pernambuco (juntamente com o do Paraná). Apresenta uma visão
crítica sobre a questão da
conservação
no horizonte da política varguista. Finalmente,
em P
ensamento e legislação ambiental no Brasil (1896-2000)
, Jackson Alexsandro Peres
também procura retomar o surgimento da legislação ambiental no país, preocupando-se
também em estabelecer um marco para falar do direito ambiental, discutindo uma série
de pontos da Política Nacional de Meio Ambiente.
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O terceiro bloco pode ser inserido em miradas mais “experimentais”. E
m Uma flor
furou o asfalto? O Cinturão Verde da cidade de São Paulo como Reserva da Biosfera
(1988-1994)
Carlos Alberto Menarin traça um belo e bem referenciado panorama
histórico do
cinturão
da cidade de São Paulo. É apropriada a reflexão sobre o cinturão
como uma possibilidade de sustentar a cidade, que esbarra, por sua vez, na questão do
regime de propriedade (natureza liberal, portanto). O texto conversa com outros artigos
do dossiê por pensar na Reserva da Biosfera como uma reivindicação social (ou seja, a
sociedade reivindicando o “vácuo” do Estado). A reflexão histórica é interessante ao
estender na linha temporal as sucessivas pressões que foram feitas ao cinturão (mesmo
antes de sê-lo com propósito ambiental).
No artigo
Espaço blico e Natureza: um olhar sobre formação do ambientalismo
como fenômeno público
, Cainã Carneiro Gusmão realiza um balanço de História
Ambiental alinhado com o tema de políticas públicas e o surgimento do ambientalismo no
Brasil. Apresenta as ideias conceituais de ambientalismo de Eduardo Viola e Angela
Alonso e procura dar outra interpretação à gênese do movimento ambientalista, a partir
de Pierre Bourdieu. Para isso, apresenta e faz uma análise do Movimento de Resistência
Ecológica (MORE). No artigo
O discurso do desmonte do licenciamento ambiental no Rio
Grande do Sul
Eliege Maria Fante realiza uma análise do discurso do jornal
Correio do
Povo
no período de 2003 a 2018 no que se refere à flexibilização das políticas públicas
ambientais no Rio Grande do Sul e em que medida o jornal deslocou-se no sentido da
visão hegemônica de setores alinhados ao capitalismo liberal.
Finalmente, em
Trabalhadores rurais africanos e de origem africana e a
africanização do Brasil republicano: balanço e perspectivas
, Denis Henrique Fiuza traz
uma discussão relevante no sentido de revisitar clássicos da Sociologia, Antropologia e
História no horizonte da domesticação de plantas. Consideramos pertinente a menção do
“guardar” territórios africanos do passado africanidades. A revisão feita pelo autor é
importante por trazer à tona que algo a mais do que trabalho braçal foi “capturado” na
África além da escravidão, além da apropriação de corpos africanos, apropriou-se
também seu saber, suas experiências rurais.
Esperamos que os textos deste dossiê contribuam no processo de aprimoramento
crítico da historiografia ambiental do país, demonstrando a relevância do estudo
histórico sobre a relação entre a sociedade e a natureza em um país de altos contrastes,
que apesar de ocasionalmente celebrar sua exuberante biodiversidade, permite que
processos destrutivos a suprimam em políticas desenvolvimentistas ultrapassadas.
Também esperamos que diante do preocupante cenário de desmonte das políticas sociais
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e ambientais à que temos assistido nos últimos anos, esses textos sirvam como
instrumento de não esmorecimento e de luta para a salvaguarda socioambiental do país.
Roger Domenech Colacios
Doutor em História (USP) e professor da UEM
https://orcid.org/0000-0003-2261-3695
Marcio Henrique Bertazi
Doutorando em Ciências da Engenharia Ambiental (USP) e professor substituto da
Faculdade da UnB, Campus Planaltina
http://orcid.org/0000-0003-1317-9989
Referências
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La Roca
,
Local, v. 2, n. 2dr, p. 145-154, mês/mês (abreviado), 2015.
COLACIOS, Roger Domenech. O Leviatã e o mundo natural.
Revista de Fontes
, Local, v.
6, n. 11, p. 64-83, mês/mês (abreviado), 2019a.
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