Que samba é esse: as disputas pela autenticidade do samba
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 258-275, jan.-jun., 2015.
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Aracy de Almeida, Almirante, Donga, Sérgio Cabral, entre outros intelectuais e artistas,
sempre preocupados com questões envolvendo as origens, as características e o futuro
do samba, ameaçado, na opinião deles, pela crescente mercantilização das produções
musicais. Como bem afirma a carta, eles aceitavam que o samba se modernizasse, mas
não poderia perder suas características “tradicionais”. Para tanto, era preciso que as
novas composições se ligassem aos sambistas “de raiz”, das décadas de 1920 e 1930, e
que não sofressem influências estrangeiras. Nesse ponto, a Bossa Nova sofreu duras
críticas de folcloristas, nacionalistas, que a acusavam de estrangeirismo, característica
que não condizia com o pensamento tradicionalista desses críticos. Dentro dessa
linha de raciocínio, outros dois nomes importantes são Ary Vasconcelos e José Ramos
Tinhorão, cujos principais alvos de críticas são a mercantilização da música e a Bossa
Nova, por receber influências estrangeiras.
Quando José Ramos Tinhorão lançou seu livro, na década de 1960, ele surgiu
nos meios midiáticos como uma figura polêmica e sem ‘papas na língua’, inclusive
para criticar ícones musicais até então intocáveis, como Chico Buarque, Paulinho da
Viola e a turma da Bossa Nova. Formado em jornalismo e direito, tornou-se um dos
mais influentes críticos e pesquisador da história da música popular brasileira. Ficou
conhecido por suas apreciações mordazes ao que ele considerava os ‘assassinos’ da arte
“legítima”. Para ele, cada década possuía seu ‘assassino’, o qual deveria ser combatido,
para não deixar que a arte ‘verdadeira’ sucumbisse. Na década de 1940, sua apreciação
se voltou à americanização e à internacionalização da música. Na década seguinte, seria
a vez da Bossa Nova e da crescente mercantilização da arte receberem a atenção de
Tinhorão. Nos anos 1960, são os sambas “de participação” ou “de protesto”, como ele
chamaria, que mereceriam sua atenção, assim como o sambão-joia, na década de 1970.
Por fim, voltou-se contra o pagode, surgido nos anos 1980 (FERNANDES, 2010, p.248).
Durante a década de 1970, as assertivas sobre o samba estavam imbricadas ao
momento econômico, cultural e político por que passava o Brasil. No quesito econômico,
vivíamos o chamado ‘milagre econômico’, idealizado e subsidiado pela ditadura militar,
que geria o Brasil desde 1964, após o golpe de Estado sofrido por João Goulart. Tal período
permitiu que a nossa economia crescesse e um mercado consumidor fosse consolidado.
A indústria cultural, em seus diversos ramos, se fortalece em nosso país. Assim, segundo
Ortiz (2006), podemos falar em indústria cultural, apenas quando se há um público já
consolidado para consumir os produtos lançados por ela e isso só teria ocorrido no Brasil
na década de 19707. Por isso, afirma que, neste período, com a consolidação da indústria
cultural brasileira, o popular é redefinido como aquilo que era mais consumido e, assim,
a noção de popular sofreu uma inflexão, passando a englobar a aprovação pelo consumo,
bem como ocorrera o fortalecimento da dicotomia entre trabalho cultural e expressão
política. Segundo o mesmo autor, o caráter nacional da produção cultural era também
redimensionado, sendo a identidade nacional redefinida em termos mercadológicos. A
cultura nacional-popular era reinterpretada para cultura de mercado-consumo, o que
acarretaria uma estandardização (no sentido adorniano) das produções musicais, ou seja,
a qualidade artística do que era lançado no mercado passava a ser contestada. No que se
7. Embora a indústria cultural e seus diversos ramos – editorial, fonográfico, televisivo, etc. -, fossem
perceptíveis nas décadas anteriores, é somente na de 1970 que forma-se um sólido mercado de consu-
midores, com uma população apta e possibilitada de consumir. Fato que, para Ortiz (2006), é importante
para a manutenção da lógica da indústria cultural – de obtenção de lucros e manutenção do status quo
da sociedade, entre outros.