Recebido em: 06/06/2014
Aprovado em: 19/11/2014
Que samba é esse: as disputas pela autenticidade
do samba
What samba is this: the disputes over the authen-
ticity of samba
MILANI, Vanessa Pironato
1
Resumo: O samba, desde o local de seu nascimento até seus pais fundadores, foi
sinônimo de controvérsias em nossa produção bibliográfica, contando com trabalhos de
memória, de historiadores, músicos, sociólogos, entre outros, o que não lhe impediu de
receber a alcunha de símbolo nacional. Desta maneira, o presente artigo busca refletir
sobre as disputas que ocorreram para se tentar estabelecer qual seria o “verdadeiro”
samba e como perpassaram a produção historiográfica nacional, especialmente
entre as décadas de 1920 a 1980. Período que contempla tanto o início das questões
supracitadas quanto o da influência da consolidação da indústria cultural na nossa
sociedade para os discursos sobre a autenticidade do samba. Partimos do pressuposto
de que tais disputas foram muito mais construções de jornalistas e/ou críticos musicais
que buscaram estabelecer determinadas memórias a respeito do samba, do que dos
próprios sambistas, muitas vezes apartados deste cenário.
Palavras-chave: samba; produção bibliográfica; autenticidade.
Abstract: Samba, since the local of their birth to their founding fathers was synonymous
1. Graduada em História – Mestranda - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e
Letras de Assis - UNESP - Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-
900, Assis, São Paulo - Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: vanessapironato@yahoo.com.br
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of controversy in our bibliographic production, counting with writings about memory,
historians, musicians, sociologists, among others, which did not prevent it from receiving
the nickname national symbol. Thereby, this article seeks to reflect on the disputes
that occurred to try to establish what was the “true” samba and how these permeate
the national historiography production, especially between 1920 and 1980 period that
includes both the onset of issues above as the influence of the consolidation of cultural
industry in our society to discourses on the authenticity of the samba. We assumed
that such disputes were much more constructions of journalists and / or music critics
seeking to establish certain memories about the samba, than the own sambistas often
away of this scenario.
Keywords: samba; bibliographic production; authenticity.
Introdução
Tratar de samba (carioca) é caminhar em solo ainda movediço, devido às inúmeras
controvérsias, iniciadas desde o seu surgimento, na década de 1920 – algumas das
quais perduram até hoje – em torno desse gênero musical que se tornou o símbolo de
nossa brasilidade. Essas controvérsias foram e ainda são (embora de maneira diminuta,
se comparadas com as anteriores) motivadas por disputas de memória, buscando-se
estabelecer quem foram os pais fundadores do samba, quando e onde teria surgido e
quais suas “reais” características que o diferenciariam dos demais gêneros musicais
presentes na cena musical brasileira. Portanto, a questão do ritmo, de seu lugar de
origem, juntamente com o grupo social a qual o samba pertenceria, estariam na pauta
das disputas pelo estabelecimento de um ‘verdadeiro’ samba. Ademais, a consolidação
e expansão do rádio, bem como a gravação em disco, são outros fatores que deram
margem aos impasses em torno do samba. Começava-se a questionar a mercantilização
da música, e até que ponto a sua gravação em disco – acessível a uma parcela diminuta
da sociedade –, poderia descaracterizar tal gênero, que até então era realizado nas rodas
e nas escolas de samba, apenas com o intuito de divertir. A influência estrangeira no
samba também não foi muito bem vista por alguns críticos musicais, especialmente José
R. Tinhorão, que se tornará um dos mais ferrenhos defensores da música “tradicional”.
Para alguns, enquanto tal mescla – nacional e internacional - era sinônimo de evolução
musical, com ganhos para o nosso ritmo, para outros isso representava um atraso e a
perda do caráter de autenticidade do samba.
Para tentar traçar os caminhos tortuosos trilhados por esse gênero, utilizaremos
da bibliografia a respeito, dois livros de memória, compostos por crônicas de seus
autores. Trata-se dos livros: Na roda do samba, de Francisco Guimarães (Vagalume) e
Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores2, de Orestes Barbosa,
ambos lançados em 1933 e relançados posteriormente. A utilização de ambas as obras
se justifica pelo fato de que podem contribuir para a reflexão sobre as disputas que
ocorreram para se tentar estabelecer qual seria o “verdadeiro” samba em nossa produção
historiográfica. E, apesar de não se tratar de obras historiográficas propriamente ditas,
por não se utilizarem dos métodos próprios da investigação histórica, as memórias,
2. Para tais livros serão utilizadas as versões digitais, disponíveis respectivamente em: <www.acade-
miadosamba.com.br/memoriasamba/bibliografia/pdf/Livro-NaRodadoSamba-FranciscoGuimaraes.pdf>
e <http://academiadosamba.com.br/memoriasamba/bibliografia/pdf/Livro-OSamba-OrestesBarbosa.
pdf>. Acesso em: 01 dez. 2013.
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tanto de Vagalume quanto de Orestes Barbosa, foram utilizadas e ressignificadas por
autores que escreveram posteriormente e que, distante dos anos iniciais do samba,
dispunham apenas das memórias daqueles que vivenciaram o universo desse gênero
musical para construírem suas próprias narrativas. Ademais, como afirma José Geraldo
Vinci de Moraes (2005, p. 10), analisar as obras desses pioneiros no assunto sobre a
música popular brasileira, em especial sobre o samba, “é o primeiro passo de um esforço
investigativo mais amplo e imperioso para criar substrato historiográfico crítico que
possivelmente permitirá uma melhor compreensão da música popular para além das
mistificações usuais”.
Portanto, analisando o período em que estavam escrevendo, tendo como
parâmetro as problemáticas de sua época, esses dois autores irão balizar as demais
discussões, realizadas posteriormente. Com o passar do tempo, novos nomes se
destacaram, tendo como mote para suas análises outras questões, porém, sempre
buscando estabelecer uma “autenticidade”, “tradicionalidade” e “pureza” para o samba.
No entanto, os critérios para tais definições sofreram mudanças ao longo do tempo,
como procuraremos demonstrar ao longo deste artigo.
Esses debates, iniciados nas décadas de 1920 e 1930, serão reverberados nas
épocas seguintes, com outros personagens, que serão muitas vezes “herdeiros” dos
pensamentos de Vagalume e/ou de Orestes Barbosa. Aqui nos interessa, especificamente,
os que ocorreram durante as décadas de 1920 e 1980. Período que contempla tanto o
início das questões supracitadas quanto o de influência da consolidação da indústria
cultural na nossa sociedade. Fato que reverberará nos discursos acerca da autenticidade
do samba, levando-se em consideração a diferenciação entre a arte em si e a mercadoria
– que seria a arte transformada em mero produto da indústria cultural.
Surge o samba e, com ele, as disputas
No início do século XX, mais precisamente em 1916, na cidade do Rio de Janeiro,
a Biblioteca Nacional somava mais um registro musical em seu acervo. Tratava-se da
canção intitulada “Roceiro, de Ernesto dos Santos, o Donga. No ano seguinte, ela seria
gravada pela Casa Edison, com o título de “Pelo Telefone”, recebendo a indicação de
“samba” no selo de seu disco (FRANCESCHI, 2002, 265-268). Até então, o impasse se
daria quanto à verdadeira autoria da canção, registrada como samba, pois se questiona
a sua composição individual por Donga, juntamente com Mauro de Almeida. Alegava-se
que a referida composição teria sido coletiva, realizada na casa da Tia Ciata – mãe de
santo, cuja casa tornou-se um reduto da música popular. Assim, inicialmente o samba
teria nascido da coletividade, do que se tocava nas rodas de música. Nessas rodas, tudo
era feito de improviso, com cada participante fazendo um verso, tocando um instrumento
e, assim, iam nascendo as canções que posteriormente seriam denominadas de samba.
Seu caráter estava ligado ao modo de se fazer e de tocar, ou seja, de modo coletivo, em
festas religiosas e não necessariamente ligado a suas características rítmicas.
Em seu período inicial, isto é, entre os anos de 1916 a 1930, pode-se citar, como
protagonistas do samba, Sinhô, conhecido como “O Rei do Samba, Donga, Heitor dos
Prazeres e Pixinguinha – todos vindos de camadas baixas da sociedade. Nesse período,
ainda havia muita relutância em se aceitar as manifestações culturais que não fossem da
elite civilizada, dividindo-se as produções em eruditas e em populares, ou popularescas
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– termo utilizado para rebaixar tais produções em detrimento das realizadas pela e para
a elite. Nessa época, a questão em torno do samba que estava em voga era a de sua
consolidação na sociedade. O ritmo – de influência africana e realizado majoritariamente
por negros das classes baixas - buscava a aceitação da sociedade ainda regida por
costumes e práticas discriminatórias e racistas.
É conhecida a crítica que Rui Barbosa proferiu no Congresso Nacional a respeito
de Catulo da Paixão Cearense que, a convite da primeira dama, Nair de Teffé, teria
tocado com seu violão, no Palácio do Catete, o que na época conhecia-se como maxixe.
No entanto, não podemos ser extremistas e dizer que não havia contato entre as artes
ditas populares e as eruditas, pois o próprio fato de a primeira dama convidar um músico
da camada baixa da sociedade demonstra que, mesmo sendo diminuta, a relação entre
a elite e a plebe acontecia. Nesse sentido, Vianna (2002, p.46-47) afirma que “nem
Rui Barbosa detestava a música popular brasileira [...] nem o governo de Hermes da
Fonseca foi o primeiro a introduzir os ritmos nacionais nos palácios”, demonstrando
assim que não houve muita novidade no feito da primeira dama, ao chamar um músico
das camadas baixas da sociedade para se apresentar para a elite carioca3.
Quando a década de 1930 se inicia, um grupo de jovens do bairro do Estácio,
liderados por Ismael Silva, Bide, Marçal, entre outros, funda a Deixa falar, primeira escola
de samba. No que diz respeito ao samba do Estácio, pode-se dizer que ficou conhecido
como o “verdadeiro” samba urbano carioca, não mais influenciado pelo maxixe, como
nos primeiros sambas, caracterizando-se por seu estilo mais ritmado, visto que fora
feito para acompanhar os desfiles carnavalescos. Recebeu este nome em decorrência
de seu lugar de origem, o bairro do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. A invenção rítmica
da Turma do Estácio teria efeito sobre os novos sambistas que surgiam em diversos
locais, sendo caracterizada como “um terremoto de efeito prolongado [que] abalou, de
alto a baixo, a música popular brasileira”, segundo Adalberto Paranhos (2003, p. 84).
Dentro desse efeito, um dos compositores mais singulares foi Noel Rosa. Apesar de
ser de Vila Isabel, bairro de classe média do Rio de Janeiro, Noel se identificaria com
o novo jeito de se fazer samba e seria um elo entre bairros distintos, bem como entre
diferentes segmentos sociais, transitando muito à vontade entre os sambistas do Estácio.
Ademais, o grande bamba do supracitado bairro, o compositor Ismael Silva, seria um
dos grandes parceiros musicais de Noel Rosa, selando de vez a parceria Estácio-Vila
Isabel (PARANHOS, 2003, p. 88). Assim, o samba, que até então era realizado somente
por negros, em sua maioria de classe baixa, passou a fazer parte também do gosto de
brancos de classe média, como por exemplo, Noel Rosa – ex-estudante de medicina,
Ary Barroso e Mário Reis – estudantes de direito, entre outros. O ponto que se colocou
inicialmente, sobre a afirmação deste gênero musical em nossa sociedade deixava de
figurar nos debates e abria-se para outras assertivas.
Sob a justificativa de se fazer uma música que pudesse acompanhar os foliões no
carnaval, os jovens do Estácio criaram um novo jeito de se tocar o samba, mais ritmado,
ideal para quem quisesse aproveitar o carnaval pulando e “sambando”4. A partir daí, as
3. O autor Hermano Vianna (2002) trabalhou essa questão da integração das artes das elites com as da
plebe, demonstrando como essas interações sempre existiram, e que o gosto pelo samba não se deu
como um “mistério”, mas foi um longo processo, que contou com membros da elite e da classe baixa da
população carioca.
4.Para mais informações e detalhes sobre esse grupo, ver Cabral (2011, p. 25-59), Sandroni (2001), Diniz
(2012), Paranhos (2003), entre outros.
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disputas a respeito de qual seria o “verdadeiro” samba se avolumaram, tanto entre os
artistas quanto entre os críticos especializados em música popular. Fato que se verifica
na famosa conversa entre Donga e Ismael Silva, na qual explicitam a ideia do que seria o
“verdadeiro” samba, diante da pergunta de Sérgio Cabral, reproduzida por José A. Fenerick:
[...] Sérgio Cabral, segundo consta teria proposto a “clássica” pergunta: qual o
verdadeiro samba?, e os sambistas assim responderam:
DONGA – Ué, o samba é isso há muito tempo: ‘O chefe da polícia/pelo
telefone/mandou me avisar/que na Carioca tem uma roleta para se brincar’.
ISMAEL SILVA – Isto é maxixe.
DONGA – Então o que é samba?
ISMAEL SILVA – ‘Se você jurar/que me tem amor/eu posso me regenerar/Mas
se é/para fingir mulher/A orgia assim não vou deixar’
DONGA – Isso não é samba, é marcha (CABRAL apud FENERICK, 2005, p. 225).
Aqui, as disputas se balizavam pela diferenciação entre o samba feito pelo pessoal
do Estácio e aquele com influências rítmicas do maxixe que predominou durante as
primeiras composições do gênero. Ademais, sua função na sociedade também era
diferenciada. Enquanto o samba-amaxixado era feito mais para ser ouvido e tocado, o
samba do Estácio foi pensado para acompanhar os foliões durante o carnaval, enquanto
pulavam, dançavam e desfilavam. Assim Ismael define o novo jeito de tocar:
Quando comecei, o samba não dava para os agrupamentos carnavalescos
andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava para
andar. Comecei a notar que havia essa coisa. O samba era assim: tan tantan
tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí, a gente
começou a fazer um samba assim:
Bum bum paticumbumprugurundum...
Nem tudo que se diz se faz
Eu digo e serei capaz
De não resistir
Nem é bom falar
Se a orgia se acabar (CABRAL, 2011a, p. 269).
Outros fatores que deram margem às disputas em torno do samba foram a
consolidação e a expansão do rádio na sociedade e a gravação em disco. Apesar de
estar presente no Brasil desde a década de 1920, o rádio só alcançaria alto status
perante a nossa sociedade e aumentaria o número de seus ouvintes, a partir dos anos
1930, quando o então presidente da República, Getúlio Vargas assinou os Decretos-
Lei que liberavam a veiculação de propaganda publicitária nas rádios, o que até então
era proibido, ficando a cargo de Sociedades – grupos de pessoas que financiavam as
transmissões radiofônicas, ainda de forma experimental.
Com o feito do presidente, as rádios puderam melhorar suas estruturas de
funcionamento, com melhores equipamentos e, com isso, aumentar o alcance de suas
transmissões, que se tornaram mais organizadas, com programação definida. O espaço
dedicado à divulgação da música popular brasileira era amplo, sendo o Programa do Casé,
um dos grandes expoentes dessa nova fase do rádio, já comercial. Assim, as inovações
tecnológicas, como o microfone e as gravações elétricas, contribuíram na produção da
então incipiente indústria fonográfica, fazendo com que novos cantores surgissem no
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cenário musical, os quais, mesmo não tendo tanto alcance vocal, conquistaram sucesso
no rádio. Aos poucos, as gravações foram transformando o caráter da música, ou seja,
ela deixava de ser uma experiência não comercial, feita apenas para divertimento, em
rodas de amigos, ou em manifestações religiosas, para tornar-se um produto comercial,
inserida no ideal capitalista de vendagem/lucro.
A presença de tal gênero nas rádios passou a ser questionada pelos críticos mais
ferrenhos da modernização da sociedade. Esses críticos estavam ligados ao pensamento
tradicionalista e muitas vezes conservador, pois desejavam que a música, os cantores
e intérpretes se mantivessem fora do circuito mercadológico das artes. A produção
musical deveria voltar-se para a cultura popular e nossas raízes e não ser ditada
pelas regras da indústria cultural. Nessa fase dos debates acerca da autenticidade do
samba, seus compositores mantiveram-se praticamente afastados, ficando a cargo dos
especialistas em música popular brasileira e/ou jornalistas disputarem e definirem as
características que determinariam o que seria o “autêntico” no samba.
Nas rádios, o samba era majoritariamente divulgado por intérpretes que não
pertenciam ao inicial mundo do samba, ou seja, o morro. E é neste período, dentro da fase
de expansão do rádio, que surgem os conhecidos “comprositores”, ou seja, intérpretes
de sucesso e que tinham amplo acesso aos meios de divulgação da música – rádio e
disco -, como Francisco Alves, Mário Reis, ente outros, mas que não compunham. Para
garantir a gravação de sucessos, esses “comprositores” muitas vezes subiam o morro
em busca de ‘parcerias’ em composições de sambistas que não estavam inseridos
no mundo da indústria cultural, nem tinham dimensão mercadológica de sua arte e a
conscientização profissional. Tais características são explicitadas em uma entrevista de
Cartola, apresentada por Sérgio Cabral, que narra o episódio:
Numa tarde de 1929, Cartola estava em seu barraco, no Morro de Mangueira,
quando um primo o procurou para comunicar que, lá embaixo, o cantor Mário
Reis o esperava para negociar a compra de um dos seus sambas.
– Comprar um samba meu? Pra quê? – queria saber Cartola, para quem
comprar um samba era como comprar o vento, a chuva, qualquer coisa, enfim,
que jamais seria comercializada.
O primo convenceu-o de que o visitante estava disposto a comprar o samba e
Cartola teria de fixar o preço. “Quanto vou pedir?”, perguntou o compositor.
“Será que 50 mil-réis está de bom tamanho?”, especulou. O primo achou barato
demais e sugeriu que pedisse 500 mil-réis, quantia que Cartola jamais viria em
toda sua vida. Acabaram entrando em acordo, fixando o preço do samba em
300 mil-réis, com o qual o cantor Mário Reis concordou imediatamente. O
samba chamava-se Que infeliz sorte e foi gravado por Francisco Alves sem o
menor sucesso (CABRAL, 2011b, p. 25-26).
No excerto acima, explicita-se como muitos sambistas permaneciam apartados
do mundo da indústria fonográfica, ou seja, ainda não tinham noção de que sua arte
poderia ser gravada, vendida e lhe render algum lucro. Os meios de comunicação, quando
surgiram, eram praticamente restritos aos artistas da cidade e, portanto, de classe média.
Aos demais, especialmente os moradores do morro, restava, muitas vezes, o isolamento
ou então a venda de suas composições, como no caso supracitado. Foi paulatinamente
que estes sambistas conseguiram espaço nas mídias, mas sem a mesma notoriedade que
seus pares que se destacaram especialmente na chamada Época de Ouro do rádio.
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Francisco Alves também foi um dos intérpretes que subia o morro atrás de
composições que poderiam fazer sucesso em sua voz. Foi ele quem fez um acordo com
Ismael Silva de gravar todas as composições deste sambista, desde que entrasse como
parceiro. O acordo foi aceito e muitas das composições de Ismael viraram sucesso por
intermédio de Chico Alves. No entanto, este foi reconhecido em vida e quando morreu foi
lembrado, homenageado, enfim, colheu todos os louros da glória, enquanto que aquele
não teve o merecido reconhecimento, embora gravado por importantes intérpretes,
tanto da época do rádio quanto da MPB, como Mário Reis, Ciro Monteiro, Gal Costa,
Nara Leão, além do já citado Francisco Alves. Ismael Silva pouco foi lembrado e teve o
destino da grande maioria dos sambistas negros dos morros, morreu pobre e sem fama,
sendo que, somente posteriormente recebeu o reconhecimento merecido, com shows
em sua homenagem e até mesmo uma estátua, no Largo do Estácio, em frente à Escola
de Samba Estácio de Sá, onde aparece tocando violão.
Dessa maneira, se antes o samba não tinha se firmado na sociedade como gênero
musical, estando, em sua fase inicial, ainda ligado às questões religiosas, festas etc., na
década de 1930 ele vai se firmando como um gênero musical, segundo José A. Fenerick
(2005, p. 93). Ademais, desde os anos de 1930, era tido como “um denominador comum
da propalada identidade cultural brasileira” (PARANHOS, 2003, p. 81) e se tornara
importante elemento musical enfocado pelo debate sobre o nacional/popular.
É dentro desse cenário que se lança o primeiro livro que tentava estabelecer a
“paternidade” do samba. Trata-se da obra Na roda do samba, de Francisco Guimarães
(Vagalume). Embora seja um livro composto por crônicas, ele se destaca no presente
artigo, pois foi um dos iniciadores do debate acerca de qual seria o “verdadeiro”
samba, além das análises de Vagalume perpassarem os trabalhos posteriores. Ao longo
de sua obra, o autor buscou defender aquilo que ele acreditava ser o “verdadeiro”
samba. Assim, em meio às disputas entre o samba-amaxixado e o samba do Estácio,
e com o surgimento de mídias capazes de divulgar amplamente este gênero musical,
descaracterizando sua forma inicial de produção, Vagalume buscou estabelecer, por
meio de suas memórias, uma ideia de samba, a qual deveria pautar o imaginário da
população contemporânea ao seu trabalho e também as posteriores. Segundo Dmitri
Cerboncini (2011, p. 43-44), “Vagalume almejava definir com precisão o nascente samba,
o que o levou a classificar como samba ‘puro’ o dos morros e ‘desvirtuado’ o das rádios”.
Os alvos desse autor seriam o rádio e a incipiente indústria fonográfica, os quais, para
ele, seriam os responsáveis pela “morte” do “verdadeiro” samba. Para Vagalume, o que
se produzia nesse período tinha apenas o rótulo de samba, mas era na verdade um
“arremedo de samba” (GUIMARÃES, 1933, p. 34).
Essa desclassificação, que se inicia contrapondo um “bom” ao “mau”, o “autêntico”
ao “não autêntico” samba, decorre muito do processo de mercantilização que se instaurou
na década de 1930. Tal processo incitou diversos sambistas a comporem o quadro de artistas
do rádio e também a gravarem seus discos. Segundo José. A. Fenerick (2005, p. 161)
A expansão da indústria fonográfica, ocorrida com o surgimento da gravação
elétrica, necessitava de uma ampliação da produção, uma vez que o consumo
se expandia rapidamente. Nesse sentido, a busca de novas “matérias primas”
se fazia necessária. Sambistas oriundos das comunidades negras, como
Donga, Sinhô, Pixinguinha, João da Baiana, e outros que habitavam a Cidade
Nova, o Catumbi e demais localidades organizadas em torno dos terreiros das
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Tias Baianas, ou músicos provenientes da emergente classe média, quando
não do proletariado mesmo, como Carmem Miranda ou um Francisco Alves,
foram os primeiros a se profissionalizarem e atuarem nesses novos meios de
comunicação.
Percebe-se com tal descrição que, mesmo aqueles compositores elogiados por
Vagalume, por manter a “pureza” do samba, como o “grande Mestre, (d) o saudoso, (d)o
inolvidável [sic] – (d)o Immortal [sic] SINHO!” (GUIMARÃES, 1933, p. 31), também se curvaram
ao sistema moderno de produção e divulgação de música, os quais estavam imbricados
com a indústria fonográfica. No entanto, mesmo que seus “ídolos” fizessem parte dessa
indústria, eles ainda estariam ligados a um passado “puro, à “autenticidade” da música,
diferentemente dos novos artistas que surgiam juntamente com a produção mercadológica.
Nessa direção, Vagalume se preocupava em enaltecer o passado, onde estaria o “verdadeiro
samba e a felicidade, como deixa claro no trecho de seu livro, em que afirma:
[...] este volume deve representar gratas recordações de um tempo feliz;
reminiscências [sic] de um passado alegre, risonho, cheio de esperanças no
futuro e que se acham desfeitas nos dias que correm. Nós, os daquella [sic]
época, somos os desilludidos [sic] de hoje (GUIMARÃES, 1933, p. 23).
A crítica de Vagalume era voltada aos artistas que surgiram já envolvidos com o
rádio e com a produção de disco e que entendiam a música somente como possibilidade
de lucro. Por isso, Francisco Alves, grande comprador de composições, foi duramente
julgado por Vagalume, assim como Lamartine Babo, Ary Barroso etc. (FERNANDES,
2010, p. 51). Começava-se, portanto, a questionar as modernas produções do samba,
amparadas pelos setores midiáticos. As análises e críticas iniciadas por Vagalume
incitam críticos musicais, jornalistas e músicos a escreverem sobre a mesma temática
de autenticidade e ‘tradicionalidade’ do samba, formando semelhantes conclusões a que
chegou Vagalume. Ou seja, a de que o samba ‘puro’ e ‘tradicional’ era aquele que estava
apartado dos modernos meios de comunicação, como o rádio.
Caso lapidar de tal situação é o do jornalista José R. Tinhorão, o qual também não vê
com bons olhos a expansão dos meios de comunicação e direciona suas análises críticas
a eles e de quem deles fizer uso. Segundo o pesquisador, os “programas de calouros” das
rádios eram os que alcançavam maior representatividade popular. Por isso que muitos
artistas, especialmente os negros, de camadas menos abastadas da sociedade, buscavam
seu lugar no rádio, especificamente em tais programas visto que, se conseguisse fazer
parte do quadro artístico de alguma emissora radiofônica, o artista conseguiria ganhar o
suficiente para sua sobrevivência, além de se firmar perante o público ouvinte (TINHORÃO,
1981, p. 56-63). No entanto, prossegue Tinhorão (1981, p.63):
Com o fim dos programas de calouros, a participação das camadas mais
pobres da população passou a circunscrever-se exclusivamente, ao papel de
público de programas de auditório das televisões, onde o povo é levado ao
papel irrisório de claque comandada, a serviço dos interesses dos animadores
e patrocinadores.
No excerto acima, o pesquisador se refere aos programas televisivos de
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auditório, pois o rádio, com o avanço da TV, viu sua importância diminuída no universo
da comunicação social. No entanto, havia programas em que o popular tinha espaço
participativo, como o de Silvio Santos, Chacrinha, Flávio Cavalcanti. Contudo, não
tinham mais o objetivo de alçar os calouros ao mundo profissional, como outrora
ocorria no rádio e sim, limitavam-se à diversão e ao entretenimento. Tinhorão (1981,
p. 157) considera que com o surgimento da TV, houve um progressivo afastamento das
camadas populares dos setores midiáticos. Daí o direcionamento de suas críticas para
esses modernos meios de comunicação – o rádio e também a televisão, que surgia no
cenário nacional, na década de 1950.
Ao lado de Francisco Guimarães (Vagalume), outro personagem tornar-se-ia
importante nesse cenário de disputa sobre qual seria o “verdadeiro” samba, mas com
outras problemáticas: o jornalista, escritor, poeta e compositor Orestes Barbosa, que
lançou no mesmo ano que Vagalume, 1933, seu livro de crônicas intitulado Samba:
sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Apesar de o livro de Barbosa
também ser de memória e de crônicas, sua perspectiva é diferente da defendida por
Guimarães e também contribuiu para trabalhos posteriores. Enquanto este estava
preocupado com questões de “autenticidade”, Barbosa se preocupou em afirmar a
“carioquice” do samba. Após o prefácio, inicia seu texto afirmando “O samba é carioca”
(BARBOSA, 1933, p. 12). Posteriormente, afirma novamente, “O samba é carioca [...].
Não é, entretanto, necessário sair do Brasil, para provar que o samba é carioca, e por
isso mesmo venceu a valsa, e tem quasi [sic] liquidado o fox importação...” (BARBOSA,
1933, p. 21). Outra diferença entre ambos é que Barbosa, ao contrário de Vagalume,
demonstra sua preferência pelos cantores e compositores do rádio (FERNANDES, 2010,
p. 58)
5
. Assim, ambos os trabalhos evidenciam o início das disputas que ganhariam as
páginas de nossa produção bibliográfica, a partir da década de 1930. Desde então, os
trabalhos foram realizados por autores distantes temporalmente do surgimento do
samba, porém, muitos deles se utilizaram das ideias de Vagalume e/ou Orestes Barbosa
para elaborarem suas teses sobre a “autenticidade” do samba.
A expansão da comercialização do samba
Se as características destacadas anteriormente permearam as questões
da autenticidade do samba nas décadas de 1920 e 1930, nas duas seguintes era o
nacionalismo que ganhava ênfase. Os anos 1940 e 1950, portanto, chegavam juntamente
com o nacionalismo empenhado pela política varguista, o que irá reverberar nas
produções musicais, bem como nas críticas a elas. Como afirma Fernandes (2010, p.
130), nessa época surgem os críticos especializados nas produções populares urbanas,
desenvolvendo seus trabalhos nas instituições dedicadas a essas manifestações, tais
como as rádios, gravadoras, revistas e periódicos. Nesta fase, a questão do nacional-
popular estava em voga e a distinção entre uma “boa” e “má” canção, no caso específico
do samba, ganhava novas roupagens. O samba então é inserido nos debates em
torno da identidade nacional. A questão agora era direcionada para as influências
estrangeiras, as quais descaracterizaria a autenticidade do samba, segundo críticos
ligados ao pensamento ‘tradicionalista’. A Bossa Nova, surgida no final dos anos 1950,
5. Para mais detalhes sobre a diferença de pensamento entre Francisco Guimarães (Vagalume) e Orestes
Barbosa ver: FERNANDES, Dmitri. A inteligência da música popular: a “autenticidade” no samba e no
choro, sobretudo as páginas 55-60.
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era um dos alvos das críticas elaboradas, especialmente por José R. Tinhorão. Para esse
pesquisador, a influência do jazz presente em muitas das composições bossanovistas,
descaracterizaria o samba “tradicional”, feito nos moldes nacionais, a partir de nossas
raízes musicais. Apesar de não negar a qualidade de tais produções, não via com bons
olhos a mescla entre ritmos nacionais e internacionais. Suas críticas estavam voltadas
para a questão da “tradição”, a qual conferiria o caráter autêntico às produções.
A influência e a presença de músicas estrangeiras nos meios de comunicação, em
especial nas rádios, durante as décadas de 1940 e 1950, fugiam ao ideal nacionalista e
folclorista de muitos pesquisadores, em especial jornalistas, os quais estavam engajados
na defesa de um ideário nacionalista. Esse contexto “tornou-se fonte de preocupação
para um conjunto de homens da imprensa, dado o temor pela internacionalização e perda
de referenciais para a cultura nacional”. A vantagem desses “homens da imprensa” é
que tinham nos meios de comunicação – rádio, jornal, revistas -, um meio para difundir
seus ideais (NAPOLITANO; WASSERMAN, 2000, p. 174).
Diante das mudanças que ocorriam no período de 1940 a 1950, as disputas
em torno do samba ganhavam corpus devido à racionalização e internacionalização
que invadiam as atividades musicais da época (FERNANDES, 2010, p. 130). Por conta
dessa característica mais comercial da música, que ganhava cada vez mais destaque
nas décadas supracitadas e da invasão de ritmos estrangeiros, os críticos do período
tendiam a uma análise sobre a “autêntica” música, voltada para o passado, para o
“folclorismo” – termo que seria reinante na década de 1950. Segundo Eliandro Kienteca
(2012, p. 2), os folcloristas defendiam que a identidade nacional não poderia receber
influências estrangeiras e que nossa música deveria balizar-se pela Época de Ouro, em
que estariam as “raízes” musicais brasileiras.
Ademais, no início dos anos 1940, o mote político também balizava as novas
questões sobre o samba. Diante da política trabalhista empreendida por Getúlio Vargas,
durante o ‘Estado Novo’ (1937-1945), o samba, caracterizado por sua temática da
malandragem e antitrabalho, recebeu especial atenção do governo, representado pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). O samba deveria, portanto, ser “domado
e, mais que isso, atraído para o raio de influência governamental”, como afirma Paranhos
(2011, p. 73). No entanto, Paranhos (2011, p. 61) demonstra que a ideologia do trabalhismo
apesar de defendida pela política getulista, esteve longe de alcançar o resultado preterido
pelo governo entre a população, especialmente entre os sambistas. O mesmo autor
aponta vários casos de sambas que direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente,
continuaram tratando da malandragem em seus versos e em suas interpretações.
Assim, tanto a ideia relacionada ao nacionalismo quanto às questões políticas, ligadas
à valorização do trabalho, perpassaram e influenciaram as produções historiográficas a
respeito do samba. Ademais, a ‘carioquice’ do samba, defendida por Orestes Barbosa,
de uma maneira ou de outra, está ligada à anti-internacionalização da música popular
brasileira, ressaltada nos trabalhos dedicados à temática musical evidenciando que a
produção memorialística se firmou nos trabalhos historiográficos a partir dos anos 1930.
Além disso, na questão política, percebe-se como os sambistas que estavam ‘afinados’
com as ideias do governo é que se destacaram e perduraram no imaginário social, do qual
Ary Barroso, com “Aquarela do Brasil”, é exemplo lapidar, ao contrário de Wilson Batista,
que cantou explicitamente a malandragem, com versos como: “eu tenho orgulho em
ser tão vadio”, em sua composição Lenço no Pescoço (1933) e ficou apartado do grande
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público, morrendo pobre e esquecido, sendo apenas lembrado majoritariamente por sua
suposta briga musical com Noel Rosa. E apesar de Wilson Batista ter se “regenerado”,
na composição O Bonde São Januário (1937), cantando “Quem trabalha/É quem tem
razão/Eu digo/E não tenho medo/ De errar”, o mote de suas composições continuou ser
a malandragem, de uma forma mais velada, como em Acertei no Milhar (1940), no qual
descreve um sujeito que, ganhando uma boa quantia de dinheiro afirma que não irá mais
trabalhar, mas, ao final da canção tudo não passa de um sonho e o sujeito, desconcertado
pela realidade, deve se levantar para ir ao trabalho.
Ainda no período de 1940 a 1950, as assertivas do radialista Henrique Foréis
Domingues, conhecido como Almirante e do jornalista Lúcio Rangel, é que se
destacaram. Segundo Marcos Napolitano e Maria Wasserman (2000, p. 172), nos anos
1940, os autores que estavam preocupados com a questão da autenticidade do samba
viam lacunas na obra de Mario de Andrade
6
a respeito da música brasileira. Buscando
algo a mais para alicerçarem seus estudos, um conjunto de intelectuais, formado
por radialistas, jornalistas e criadores musicais, almejou consolidar um pensamento
historiográfico a respeito da música popular urbana.
Assim, como afirma José Geraldo Vinci de Moraes (2005, p. 5-6), pelo fato desses
‘profissionais da mídia’, estarem envolvidos na produção radiofônica e fonográfica e,
muitas vezes estarem diretamente com os artistas, eles parecem ter recebido uma
“espécie de credenciamento automático para estabelecer a seleção dos ‘fatos dignos’ de
registro, a ordenação causal e temporal dos eventos”. Como uma espécie de detentores
da memória dos autores que trataram pioneiramente da música popular brasileira,
especificamente do samba, estes personagens da mídia construíram seus trabalhos
balizados pelas memórias dos pioneiros e deram sequência às discussões a respeito da
autenticidade do samba.
O ápice desse feito de profissionais da mídia foi a criação, por Lúcio Rangel
e Pérsio de Moraes, no ano de 1954, da Revista de Música Popular, tendo como
intuito combater a crescente mercantilização do rádio, buscando assim resgatar o
que denominavam de “autêntica” música brasileira. No que se refere ao samba, essa
“autenticidade” estaria na característica não mercadológica das produções, nas quais
os sambistas manteriam a “pureza” das composições brasileiras. Aqui, o mote já está
mais voltado para as questões econômicas do que sociais e rítmicas, como se colocava
nas primeiras décadas dos debates acerca da autenticidade do samba.
Na trilha desses pensamentos, em 1962, ocorre o I Congresso Nacional do Samba,
que daria origem a um documento denominado Carta do Samba, redigido por Edison
Carneiro, um dos mais engajados no pensamento folclorista. A Carta se inicia deixando
claras suas intenções:
Esta carta, que tive a incumbência de redigir, representa um esforço [sic]
por coordenar medidas e práticas e de fácil execução para preservar as
características tradicionais do samba sem, entretanto, lhe negar ou tirar
espontaneidade e perspectivas de progresso (CARNEIRO, 1962, p. 3).
Desse congresso participaram, além do próprio Edison Carneiro, Ary Barroso,
6. A obra a que se refere Marcos Napolitano é: ANDRADE, Mário. Ensaio sobre música brasileira. São
Paulo: Livraria Martins, 1962.
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Aracy de Almeida, Almirante, Donga, Sérgio Cabral, entre outros intelectuais e artistas,
sempre preocupados com questões envolvendo as origens, as características e o futuro
do samba, ameaçado, na opinião deles, pela crescente mercantilização das produções
musicais. Como bem afirma a carta, eles aceitavam que o samba se modernizasse, mas
não poderia perder suas características “tradicionais”. Para tanto, era preciso que as
novas composições se ligassem aos sambistas “de raiz”, das décadas de 1920 e 1930, e
que não sofressem influências estrangeiras. Nesse ponto, a Bossa Nova sofreu duras
críticas de folcloristas, nacionalistas, que a acusavam de estrangeirismo, característica
que não condizia com o pensamento tradicionalista desses críticos. Dentro dessa
linha de raciocínio, outros dois nomes importantes são Ary Vasconcelos e José Ramos
Tinhorão, cujos principais alvos de críticas são a mercantilização da música e a Bossa
Nova, por receber influências estrangeiras.
Quando José Ramos Tinhorão lançou seu livro, na década de 1960, ele surgiu
nos meios midiáticos como uma figura polêmica e sem ‘papas na língua’, inclusive
para criticar ícones musicais até então intocáveis, como Chico Buarque, Paulinho da
Viola e a turma da Bossa Nova. Formado em jornalismo e direito, tornou-se um dos
mais influentes críticos e pesquisador da história da música popular brasileira. Ficou
conhecido por suas apreciações mordazes ao que ele considerava os ‘assassinos’ da arte
“legítima”. Para ele, cada década possuía seu ‘assassino, o qual deveria ser combatido,
para não deixar que a arte ‘verdadeira’ sucumbisse. Na década de 1940, sua apreciação
se voltou à americanização e à internacionalização da música. Na década seguinte, seria
a vez da Bossa Nova e da crescente mercantilização da arte receberem a atenção de
Tinhorão. Nos anos 1960, são os sambas “de participação” ou “de protesto”, como ele
chamaria, que mereceriam sua atenção, assim como o sambão-joia, na década de 1970.
Por fim, voltou-se contra o pagode, surgido nos anos 1980 (FERNANDES, 2010, p.248).
Durante a década de 1970, as assertivas sobre o samba estavam imbricadas ao
momento econômico, cultural e político por que passava o Brasil. No quesito econômico,
vivíamos o chamado ‘milagre econômico, idealizado e subsidiado pela ditadura militar,
que geria o Brasil desde 1964, após o golpe de Estado sofrido por João Goulart. Tal período
permitiu que a nossa economia crescesse e um mercado consumidor fosse consolidado.
A indústria cultural, em seus diversos ramos, se fortalece em nosso país. Assim, segundo
Ortiz (2006), podemos falar em indústria cultural, apenas quando se há um público já
consolidado para consumir os produtos lançados por ela e isso só teria ocorrido no Brasil
na década de 19707. Por isso, afirma que, neste período, com a consolidação da indústria
cultural brasileira, o popular é redefinido como aquilo que era mais consumido e, assim,
a noção de popular sofreu uma inflexão, passando a englobar a aprovação pelo consumo,
bem como ocorrera o fortalecimento da dicotomia entre trabalho cultural e expressão
política. Segundo o mesmo autor, o caráter nacional da produção cultural era também
redimensionado, sendo a identidade nacional redefinida em termos mercadológicos. A
cultura nacional-popular era reinterpretada para cultura de mercado-consumo, o que
acarretaria uma estandardização (no sentido adorniano) das produções musicais, ou seja,
a qualidade artística do que era lançado no mercado passava a ser contestada. No que se
7. Embora a indústria cultural e seus diversos ramos – editorial, fonográfico, televisivo, etc. -, fossem
perceptíveis nas décadas anteriores, é somente na de 1970 que forma-se um sólido mercado de consu-
midores, com uma população apta e possibilitada de consumir. Fato que, para Ortiz (2006), é importante
para a manutenção da lógica da indústria cultural – de obtenção de lucros e manutenção do status quo
da sociedade, entre outros.
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refere ao samba, um dos casos expoentes é do “sambão-joia”, que não consegue se firmar
no gosto de muitos críticos musicais (ORTIZ, 2006, p.161-164).
A separação ente a arte em si, que Adorno chama de obra de arte, e a mercadoria,
que seria essa obra transformada em mero produto, um produto da indústria cultural,
foi desenvolvida e trabalhada por Adorno e Horkheimer. Tal concepção parte da noção
de que o capitalismo cultural, o qual teria padronizado as manifestações culturais,
seria o responsável pela constante perda de qualidade das obras de arte. Perda que
estava relacionada com a falta de liberdade dos artistas em suas criações, pois deveriam
seguir as fórmulas de sucesso impostas pelo mercado. Apesar da visão radical dos dois
pensadores alemães, visto não enxergarem alternativas diante da transformação das
artes em mercadorias, suas assertivas ainda se fazem importantes para pensarmos a
produção musical e sua relação com os negócios da indústria cultural.
Esse termo foi empregado pela primeira vez na obra de ambos os pensadores
supracitados, denominada Dialética do esclarecimento, de 1947. Nela, substituíram
a expressão cultura de massa para indústria cultural com o intento de acabar com a
passividade que gira em torno da ideia de cultura de massa, qual seja, de que esta brota
no meio das massas, pertencendo unicamente a elas (ADORNO, 1999, p. 20). Portanto, o
termo cunhado por ambos os autores, traz a noção de uma arte que não pertencia mais
às massas, tratava-se de um ramo da atividade econômica, organizado industrialmente
nos moldes dos grandes conglomerados característicos do monopolismo capitalista
(DUARTE, 2003, p. 50). Com a expansão do capitalismo, suas práticas mercantis e
o processo de industrialização alcançam até mesmo a cultura, transformando-a em
mercadorias culturais. Segundo as ideias defendidas por Adorno e Horkheimer, nessa
etapa a arte perderia sua característica autônoma, visto que, sendo um produto
da indústria cultural, passa a ser feita como na organização fabril, de uma forma
padronizada, sem possibilidades de uma manifestação individual do sujeito, tanto na
arte quanto na fábrica, em suas palavras: “as mercadorias culturais da indústria se
orientam pelo princípio da sua valorização, e não pelo seu próprio conteúdo e da sua
forma adequada” (ADORNO, 1999, p. 21).
As consequências dessa padronização da arte seria sua baixa qualidade, pois
não seria possível abrir-se para o novo, o inovador, já que a indústria cultural e no
caso da música, a indústria fonográfica, não desejava arriscar investir em algo que
não gerasse cifras bem maiores do que aquelas que foram investidas nos artistas. Por
isso, a repetição de fórmulas que já deram certo e de fácil aceitação pelo público –
em sua maioria sem conhecimento e técnica musical e sem a audição apurada para
avaliar a qualidade daquilo que lhe é oferecido – é amplamente explorada pela indústria
cultural, em todos os seus ramos (música, cinema, televisão etc.). A indústria cultural
lida também com o mecanismo psicológico ao lançar seus produtos no mercado, no
caso da música, ao ser tocada sempre no rádio, o ouvinte assimila que aquilo é um
sucesso (ADORNO, 1986, p. 135). Ela também seria a responsável pelo enfraquecimento
do processo produtivo-cultural, visto que, como afirma Francisco Rüdiger (2004, p.
26) “A criatividade social não é suprimida, mas posta na dependência e explorada pelos
esquemas mercantis. Por um lado, a capacidade inventiva das pessoas mais e mais se
submete às diretrizes desses últimos”.
Rodrigo Duarte (2003, p. 51) analisando os pressupostos de Adorno e Horkheimer,
afirma que o argumento dado pela indústria cultural de que é oferecido ao público aquilo
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que ele próprio deseja, justificando assim a repetição de seus produtos e a padronização
característica dos mesmos, é falso, pois na realidade coloca-se à disposição produtos
que estão em confluência com as necessidades da indústria cultural e de seu sistema de
exploração. Segundo os próprios filósofos frankfurtianos:
Os padrões resultariam originariamente das necessidades dos consumidores:
eis por que são aceitos sem resistência. Na verdade, isso é o círculo de
manipulação e necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema
concentra-se cada vez mais densamente (ADORNO e HORKHEIMER apud
DUARTE, 2003, p.51).
Além da padronização dos produtos oferecidos na sociedade pela indústria
cultural, a característica econômica é outro fator que diferencia a obra de arte da
mercadoria cultural. Enquanto aquela é feita sem muitas perspectivas econômicas,
visando mais especificamente o ideal de autonomia da arte, o qual “nunca pode ser
completamente realizado, mas existe enquanto um princípio diferenciador sob o ponto
de vista da intenção com que um e outro construto é [...] produzido ou criado” (DUARTE,
2003, p. 116-117), a mercadoria cultural visa estritamente o lucro, a rentabilidade,
comercializando os objetos estéticos. A mercantilização, segundo os teóricos de tal
pensamento, ocorreria no momento em que a arte perde sua autonomia e passa a ser
produzida em função das leis de mercado, as quais estariam amparadas pela expansão
e fortalecimento do capitalismo. Suas críticas não estão voltadas aos próprios meios
de comunicação – rádio e cinema, especialmente, pois eram os dois elementos que
vigoravam na época em que o texto fora concebido –, mas sim, aos usos que se faziam de
tais meios. Eles, segundo Rodrigo Duarte (2003, p. 8), amparado pela teoria adorniana,
seriam utilizados para a manutenção do status quo, a qual garantiria os lucros, bem
como os privilégios. Assim, como afirma Rüdiger (2004, p. 26) “A produção cultural,
noutros termos, deixa de ser sinônimo de criações artísticas e literárias, englobando a
partir de então o conjunto da atividade econômica”.
Ademais, para os pensadores alemães, a música popular, em contraposição ao
que eles chamam de ‘música séria’, que seria a erudita, serviria apenas para distração
das massas que, exauridas pelo trabalho das fábricas, desejavam abster-se de qualquer
esforço, tanto físico quanto psicológico, em seu momento de lazer. Adorno assim
define a música popular:
Ela induz ao relaxamento porque é padronizada e pré-digerida. Sendo
padronizada e pré-digerida serve na psicologia familiar das massas, para
poupar-lhes esforço dessa participação (mesmo de ouvir ou observar), sem o
qual não pode haver receptividade à arte (ADORNO, 1986, p.136).
Outra possibilidade de análise da diferença entre a arte e a mercadoria, é o
trabalho de José Miguel Wisnik (2005), o qual diferencia dois tipos de produção musical:
a industrial e a artesanal. Segundo esse autor, a industrial se desenvolveu nos anos
1970 em decorrência do crescimento das gravadoras e das empresas de rádio e TV,
já a artesanal compreende os poetas-músicos que criam uma obra individualizada,
diferente da padronizada pelo mercado (WISNIK, 2005, p. 25). O modelo industrial-
capitalista seria o responsável por conferir traços de mercadoria à canção, que tem
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por característica a estandardização, ou seja, sua linguagem subordina-se aos padrões
uniformizados de vendagem, estabelecidos pela indústria cultural (WISNIK, 2005, p.
28). Wisnik acredita que o desenvolvimento do capitalismo conferiu às mercadorias um
caráter essencialmente mercantil, posto que o lucro é um fim ao invés de ser um meio.
Durante a década de 1970 e 1980, as críticas dos agentes envolvidos se direcionariam,
então, para essas produções massificadas, estandardizadas, sem vínculo com a “pureza” dos
áureos tempos da nossa música, localizados nas primeiras décadas do século XX, segundo a
grande parte dos críticos musicais. No caso do samba, os compositores ligados ao chamado
‘sambão-joia’, como Benito di Paula, Luiz Ayrão, Agepê, Luiz Américo e outros, foram os
que mais sofreram com as assertivas de diversos críticos musicais, especialmente daqueles
que se ligavam ao pensamento ‘tradicionalistas’. Segundo Adélcio C. Machado (2011, p.
18) “Numa produção ligada à indústria cultural, cujo principal intuito é o de gerar lucros,
começava a se manifestar uma concorrência pelo reconhecimento propriamente artístico”.
O mesmo pesquisador demonstra como a classificação de um sambista em determinado
estilo é fluida e varia de crítico para crítico. O exemplo analisado é o de Martinho da Vila
que, para Tárik de Sousa, Sérgio Cabral e Aramis Millarch, é um legítimo representante
do samba ‘tradicional’, ou ‘autêntico’. Para Gilberto Vasconcellos a produção artística do
supracitado sambista representava o segmento identificado com o ‘sambão-joia’. O crítico
Aramis Millarch, analisando as produções de Antonio Carlos, Jocafi e Benito di Paula, muda
de opinião com o tempo. Inicialmente teceu elogiosas análises sobre os referidos artistas,
posteriormente passou a criticá-los, devido às suas produções terem caído na repetição,
ou seja, na “padronização. Com tal mudança, Adélcio (2011, p. 57-59) afirma que o que
pautava as análises do crítico eram as questões referentes à “padronização”, enquanto que
as de Tárik se ligavam à “tradição” e Gilberto Vasconcellos tendia para a “despolitização”.
Portanto, aponta três referenciais que se colocavam na avaliação da produção musical: a
“despolitização”; a “tradição” (ou a “autenticidade”) e a “padronização. Segundo Adélcio,
com a ampliação do mercado na década de 1970, foi preciso segmentar a produção apara
atender a demanda de novos consumidores, com isso:
[...] era necessário criar um rótulo que pudesse separar o “bom” samba, aquele
dos compositores ligados à “tradição” deste gênero como Cartola e Nelson
Cavaquinho ou ainda de compositores universitários de classe média que a ele
aderiram como Chico Buarque e João Bosco, do “mau” samba, padronizado,
despolitizado e massificado, o “samba de gravadora” segundo Margarida
Autran ou, mais usualmente, o “sambão-joia”, segundo Vasconcellos e outros
críticos musicais do período (MACHADO, 2011, p.56).
O samba foi, portanto, assim como outros gêneros musicais, objeto de disputas
pela sua memória, buscando estabelecer quais seriam os “autênticos” sambistas e seus
legítimos sucessores. Na medida em que ocorria uma racionalização da sociedade e as
produções musicais aumentavam, tanto em questão quantitativa quanto em personagens
envolvidos em sua realização, os conflitos de opiniões a respeito do que invadia o
mercado também cresciam. E como explicitado no excerto acima, a separação de um
“bom” samba do “mau” fez parte das análises de muitos críticos da música, tentando
assim, legitimar um artista em detrimento de outro. Presentes na grande mídia, críticos
e jornalistas divulgavam suas apreciações e acabavam por estabelecer suas ideias
perante a sociedade e muitas vezes é a ideia que perdura no imaginário social. Assim,
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percebe-se como a historiografia está repleta de conjecturas referentes à autenticidade
do samba, às quais foram iniciadas pelos trabalhos de dois autores que contaram com
suas memórias e vivências no mundo do samba para escreverem seus livros.
Conclusão
Ao analisar as disputas pela “autenticidade” do samba e as representações que
dele foram feitas ao longo dos anos, pode-se perceber que, na grande parte dos critérios
de qualificação deste gênero, perpassaram o ideal de algum jornalista e/ou crítico
musical. Estes sempre defenderam a manutenção da “pureza”, da “tradição” do samba,
independentemente da mercantilização da música. Para eles, era possível encontrar nos
novos artistas que despontavam nesse mesmo mercado musical, a marca da “tradição”
do passado glorioso, como no caso apresentado, de Martinho da Vila.
om a crescente mercantilização da música, verifica-se uma mudança na direção
das disputas pelo qual seria o samba “autêntico”. Se inicialmente os debates se dirigiam
à sua definição rítmica (se era amaxixado ou não), bem como sua função na sociedade
(feito para ouvir e dançar ou para desfilar no carnaval), e foram empreendidas pelos
próprios sambistas (Donga e Sinhô especialmente, e os sambistas do Estácio), que
lutavam por um lugar ao sol no meio musical. Posteriormente, tais disputas ganharam
novos contornos, seguindo as mudanças que ocorriam na sociedade e aos poucos os
sambistas foram se afastando desses debates, cada vez mais reservados para aqueles que
detinham espaço nos meios midiáticos. Muitos críticos musicais e jornalistas passaram
a definir o que entendiam como samba “puro, “tradicional” e excluir aqueles que não
se encaixavam em seus critérios de avaliação. Como apresentado anteriormente, isso
variava de um crítico para outro, cada um estabelecia seus pontos de vista.
Classificações quanto aos aspectos de “autenticidade”, “pureza”, “tradicionalidade”,
presentes nas análises de nossa historiografia, foram, portanto, fruto de construções
elaboradas por críticos musicais e jornalistas seguindo seus ideais. Muitas vezes, suas
análises estavam também em confluência com o momento político e/ou econômico em
que estavam escrevendo. Assim, quando o debate político era regido pelo nacionalismo,
foi o critério da nacionalidade que permeou a “autenticidade” do samba e quando éramos
governados pelos militares, a questão da “despolitização”, destacada por Adélcio era
o que predominava. E na época do “milagre econômico” e consolidação do mercado
consumidor, era a “padronização”, “mercantilização” que ganhava as páginas escritas
pelos críticos e jornalistas. Na década de 1960, tivemos uma manifestação dos próprios
artistas em favor do samba “autêntico, com o I Congresso Nacional do Samba, que daria
origem a um documento denominado Carta do Samba, documento no qual expressava as
ideias dos organizadores do Congresso. Neste evento, houve a participação de muitos
críticos e jornalistas, além dos músicos. Portanto, o predomínio nos debates ficava
no meio midiático, com os profissionais que neles estavam envolvidos. Além disso,
as disputas que se encontram na historiografia, buscando estabelecer o “verdadeiro”
samba e suas características, demonstram que estavam em confluência com os debates
que ocorriam na sociedade. E apesar dos personagens e os pontos de julgamento entre
um “bom” e “mau”, “autêntico” e “inautêntico” samba sofrerem inflexões ao longo do
tempo, as disputas ainda de uma maneira ou de outra, guardavam certa ligação com a
ideia difundida pelos iniciadores desse debate – Vagalume e Orestes Barbosa, fosse para
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tomá-las como base de suas análises ou para se contrapor a elas. Mas, a questão é que,
depois de tais publicações, o debate não poderia ser feito sem passar pelas discussões
dos pioneiros desta questão.
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