SOUZA, Felipe Alexandre Silva de
*
https://orcid.org/0000-0001-6576-9011
RESUMO: A Guerra Civil Grega (1943-1949) foi
o choque armado entre a monarquia helênica,
apoiada pela Grã-Bretanha e pelos EUA, e o
movimento de guerrilha liderado pelo Partido
Comunista Grego (KKE). Embora o conflito
tenha se encerrado oficialmente em 1949, com
a derrota dos comunistas, seus efeitos
reverberariam pela Grécia durante o decorrer
de todo o século XX. As dificuldades de
reconciliação, as batalhas pela memória, as
tensões e os corriqueiros episódios de
repressão e violência, promovidos e/ou
encorajados por sucessivos governos
autoritários, dificultaram consideravelmente o
empreendimento de avaliações críticas da
guerra civil dentro da própria Grécia,
enquanto no exterior o debate era em grande
medida influenciado pelo contexto da Guerra
Fria. Pretendemos fazer um balanço dos
debates historiográficos acerca da guerra civil
e mostrar como as principais correntes
interpretativas tradicionalismo,
revisionismo, pós-revisionismo sofreram
injunções da situação política grega a partir de
1950 e da disputa bipolar entre EUA e URSS.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra Civil Grega;
Guerra Fria; Historiografia.
ABSTRACT: The Greek Civil War (1943-1949)
was the armed clash between the Hellenic
Monarchy, supported by Britain and the USA,
and the guerrilla movement led by the Greek
Communist Party (KKE). Although the conflict
officially ended in 1949 with the Communists
defeated, its effects echoed in Greece
throughout the 20th Century. The hardships
over reconciliation, the battles over memory,
the tensions and customary acts of repression
and violence, promoted and/or encouraged by
successive authoritarian governments, made it
notably difficult to critically evaluate the civil
war inside Greece, while the debate worldwide
was greatly influenced by the Cold War. We
intend to review de main historiographic
tendencies of Greek Civil War interpretation
traditionalist, revisionist, post-revisionist
and emphasize how the historiography was
impacted by Greek political history from 1950
onwards and by the dispute between USA and
USSR.
Keywords: Greek Civil War; Cold War;
Historiography.
KEYWORDS: Greek Civil War; Cold War;
Historiography.
Recebido em: 12/03/2021
Aprovado em: 19/04/2021
* Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp-FFC), Marília-SP, doutorando do
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ.
Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail:
felipedesouza1988@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
No oitavo dia de maio de 1945, os Aliados acataram a rendição incondicional da
Alemanha e a Segunda Guerra Mundial na Europa foi oficialmente encerrada. Depois
disso, segundo a memória social europeia, o continente teria se estabilizado
politicamente, renascido economicamente e se redimido moralmente abandonando a
repressão e a violência. De acordo com o otimismo da narrativa dominante, é como se o
período subsequente ao Dia da Vitória fosse um marco zero que teria possibilitado um
recomeço às gentes europeias (LOWE, 2017). Esse ponto de vista, ao tratar a Europa
constituída, como todo continente, de uma miríade de diversidades como um bloco
monolítico e ao dar um fim abrupto a um evento do porte e da complexidade da Segunda
Guerra Mundial, escamoteia o fato de que em 1945 “[...] a Europa era um continente que
vivia à sombra da morte da devastação.” (KERSHAW, 2016, p. 472) Entre 1945 e 1949,
muitos europeus se viam às voltas com o caos e a violência legados pela guerra; Mark
Mazower caracterizou esse período como
uma paz brutal
:
Como conflitos de tal intensidade poderiam se encerrar repentinamente em
1945? A rendição alemã é uma demarcação conveniente para historiadores, mas
não é muito mais do que isso. De fato, é uma demarcação enganosa, porque
sugere o fim de uma época e o início de outra. Na verdade, não houve um Ano
Zero, [não houve] uma ruptura demarcada entre [uma] guerra quente e [uma]
guerra fria [...]. (MAZOWER, 2000b, p. 213)
Para Lowe (2017), a Europa de 1945-1949 era um
continente selvagem
, assolado
pela destruição da infraestrutura (transportes, comunicações e redes bancárias) e pelo
colapso das instituições, pela fome, pela miséria e pelo alastramento de doenças, pela
violência dos atos de vingança e dos rescaldos de ódios étnicos, pelas multidões de
desalojados e despatriados que vagavam por terras calcinadas buscando voltar a lares
que talvez não mais existissem. Kershaw (2016) lembra que o progresso e a estabilidade,
que, grosso modo, caracterizaram a história política e econômica europeia na segunda
metade do século XX, não eram de forma alguma previstos em 1945. Em parte, isso se
deve ao fato de que, nos países ocupados pela Alemanha nazista (
e.g.
França, Ucrânia,
Noruega, Grécia), a Segunda Guerra Mundial constituiu “[...] uma experiência
primordialmente
civil.” (JUDT, 2008, p. 27, grifo do autor) Nesses países, o combate
militar teria sido predominante apenas no início e no final do conflito; durante a maior
parte de seu decorrer, “[...] a guerra foi caracterizada pela ocupação, repressão,
exploração e pelo extermínio, em que soldados, tropas de assalto e policiais dispunham
das rotinas e das vidas de milhões de prisioneiros.” (JUDT, 2008, p. 27-28) O
estabelecimento de organizações de resistência às forças de ocupação, seu choque com
os colaboracionistas e, em alguns casos, disputas e desentendimentos entre grupos de
resistência rivais engendraram lutas civis que tiveram grande impacto no pós-guerra.
A Guerra Civil Grega
foi emblemática. Emblemática dos conflitos civis que
surgiram imbricados à Segunda Guerra Mundial e do
continente selvagem
que essa
guerra legara. Uma vez que o conflito grego é pouco abordado nos estudos brasileiros de
história contemporânea, é pertinente fazer uma recapitulação sintética do conflito e de
seus antecedentes, a começar pelo momento em que os gregos foram acometidos pelos
desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. O governo helênico era chefiado pelo
general Ioannis Metaxas, um ditador que recebera apoio de George II, Rei dos Helenos,
ao galgar o cargo de primeiro-ministro com o objetivo de suprimir as atividades do
Partido Comunista da Grécia (
Kommounistikó Kómma Elládas
KKE). Embora vários
aspectos de seu governo se assemelhassem ao fascismo italiano, Metaxas se mantinha
neutro na guerra, e via com apreensão os movimentos do Eixo nos Balcãs desde que o
exército italiano ocupara a Albânia em abril de 1939. No dia 28 de outubro de 1940,
Emanuele Grazzi, ministro italiano em Atenas, exigiu que Metaxas permitisse a livre
passagem de soldados italianos por território grego, parte do qual seria ocupado no
avanço ao Mediterrâneo Oriental a fim de atacar as posições britânicas na região. O
Oxi
Não
do ditador fez com que os gregos adentrassem a guerra ao lado da Grã-
Bretanha (BEEVOR, 2008).
Embora inicialmente as forças italianas tenham sido repelidas, em abril de 1941 a
Grécia foi ocupada por tropas alemãs, búlgaras e italianas. A
Wehrmacht
adentrou
Atenas ao dia 27. Enquanto operativos militares britânicos empreendiam a retirada do rei
George II e de um pequeno gabinete de ministros do território nacional, articulavam-se
nas montanhas movimentos para fazer frente à ocupação. A nove de setembro de 1941,
oficiais republicanos de centro fundaram a Liga Nacional Republicana Grega (EDES:
Ethnikós Dimokratikós Ellinikós Sýndesmos
). Alguns dias depois, a 27 de setembro, o
Partido Comunista (KKE) lideraria a fundação da Frente de Libertação Nacional
(EAM:
Ethnikó Apeleftherotikó Métopo
), que a 22 de maio de 1942 estabeleceria sua ala
armada, o Exército de Libertação do Povo Grego (ELAS:
Ellinikós Laïkós Apeleftherotikós
Stratós
). Devido à experiência acumulada do KKE em operar na clandestinidade, as
organizações EAM/ELAS não demoraram a ultrapassar a EDES e se estabeleceram como
os maiores e mais poderosos movimentos de resistência.
Durante a luta contra a ocupação, animosidades nasceram entre a EDES e as
organizações EAM/ELAS, na medida em que ambas buscavam a hegemonia na
resistência e competiam pela libertação e subsequente controle de territórios, em meio a
acusações tuas de colaboracionismo e desconfiança quanto aos interesses de longo
prazo de uma e outra. Em 1943, as duas organizações entraram em conflito armado.
Grosso modo,
o núcleo comunista que liderava a EAM temia que a EDES (a despeito da
autodenominação republicana) apoiasse o retorno da monarquia autoritária; os homens
da EDES, por sua vez, acreditavam que o KKE utilizaria a força do ELAS para impor uma
ditadura comunista quando a ocupação fosse encerrada. Pesquisadores de diferentes
perspectivas consideram o choque entre EDES e EAM/ELAS o início da guerra civil
grega, que teria se desenrolado em três etapas clivadas por períodos de ausência de
choques abertos.
1
A primeira fase, iniciada em 12 de outubro de 1943, é caracterizada
fundamentalmente pelos conflitos entre as organizações EAM/ELAS e EDES, e se
encerra a 29 de fevereiro de 1944, quando as duas organizações assinam o Acordo de
Plaka e suspendem as hostilidades. O cessar fogo foi concretizado com a mediação de
agentes da Executiva de Operações Especiais da Grã-Bretanha (
Special Operations
Executive SOE
), que se encontravam em solo grego para auxiliar e articular as
operações de guerrilha com o intuito de causar o máximo possível de danos às forças de
ocupação. Paralelamente, o
Foreign Office
britânico (secretaria de relações exteriores),
em conduta apoiada pelo primeiro-ministro conservador Winston Churchill, fornecia
apoio político à monarquia helênica no exílio.
Em outubro de 1944, os invasores batem em retirada. Na esteira da libertação, o
governo grego constituído em exílio em torno do rei George II e do primeiro-ministro
Georgios Papandreou retorna à Grécia, apoiado política e militarmente por Churchill.
No dia 3 de dezembro daquele ano, a polícia grega entra em conflito com membros e
simpatizantes da EAM que se manifestavam em Atenas contra um decreto
governamental de desarmamento das organizações de resistência. Abre-se a segunda
fase
do conflito, na qual se digladiam as organizações EAM/ELAS e o Governo de
1
Cf., a título de exemplo, Woodhouse (2013) e Gerolymatos (2016). É necessário registrar que o conceito de
três fases da guerra civil grega, que adotamos em nossas reflexões, não é unânime. De modo geral, o
debate público tende a considerar guerra civil apenas o período 1946-1949, enquanto os ocorridos entre
1943 e 1945 são interpretados fundamentalmente como efeitos da Segunda Guerra Mundial que acabaram
por criar o contexto para o conflito civil de 1946. Essa perspectiva também é encontrada na academia (
e.g.
Close, 1995). Ademais, o conceito de três frases apresenta problemas, dentre os quais um dos mais graves
talvez seja certa incidência na teleologia retrospectiva. Segundo Mazower (2000a), interpretar os choques
entre EDES e as organizações EAM/ELAS no momento da ocupação e a
Dekemvriana
como estágios do
mesmo conflito pode sugerir, ainda que implicitamente, uma ideia de
fatalidade
, como se cada episódio
necessariamente concatenasse o seguinte em uma linha reta sem possibilidades alternativas. Embora esse
risco de fato exista, a pertinência da ideia de três estágios a nosso ver supera suas inconveniências.
Considerar a guerra civil no recorte de 1943 a 1949 (adotando, portanto, a tese das três fases) permite
maior ênfase às complexidades do conflito os choques entre organizações de resistência, a intervenção
ostensiva britânica em 1944/1945, o processo de reorganização dos quadros do ELAS no DSE , ao passo
que, em certa medida, estabelecer o marco inicial em 1946 poderia elidir essas questões.
Unidade Nacional grego. Embora o desencadeador imediato do conflito tenha sido a
questão da desmobilização da guerrilha, suas causas mais profundas se relacionavam às
suspeitas, por parte da EAM, de que o novo governo estabeleceria uma ditadura de
direita. Da parte do governo, temia-se que os comunistas tentassem promover uma
revolução violenta. As tropas britânicas intervieram em defesa do governo heleno, e o
combate se encerrou a 12 de fevereiro de 1945, quando a EAM reconheceu a derrota no
Acordo de Varkiza; esse estágio da guerra civil é conhecido como a
Dekemvriana
(os
eventos de dezembro
, em grego).
Em março de 1946, depois de mais de um ano de perseguição de esquerdistas por
parte de grupos de extrema direita com a anuência tácita ou explícita do governo,
ex-membros do ELAS se reorganizaram no Exército Democrático Grego
(DSE:
Dimokratikós Stratós Elládas
), e, no último dia do mês, atacaram uma delegacia de
polícia na vila de Litochoro, matando os policiais em plantão e iniciando a terceira fase
da guerra civil. Em março de 1947, o governo britânico do primeiro-ministro trabalhista
Clement Attlee anuncia que a Grã-Bretanha não teria mais condições financeiras de
apoiar o governo grego. Ao décimo segundo dia daquele mês é proclamada a Doutrina
Truman, a ser empreendida pelo presidente americano Harry S. Truman,
comprometendo os Estados Unidos da América a ocupar o espaço que seria deixado
pelos britânicos. A 16 de outubro de 1949, a Rádio Grécia Livre, administrada pelo KKE,
anuncia a rendição do DSE, encerrando a guerra civil.
John Sakkas (sd), entre outros, pontua que ao longo da segunda metade do século
XX e do início do século XXI, estabeleceram-se três vertentes principais de
interpretação da Guerra Civil Grega: a
ortodoxa
ou
tradicionalista
, iniciada no final da
década de 1940; a
revisionista
, que surge no início dos anos 1950 e toma força nos anos
1970; finalmente, no final do século XX toma corpo uma profusão de trabalhos muito
diversos entre si, comumente denominados
pós-revisionistas
. Pretendemos, neste artigo,
fazer um balanço dessas linhas historiográficas, refletindo a respeito de como o pós-
guerra grego e a Guerra Fria, no plano internacional, impactaram as discussões sobre o
conflito civil dos anos 1940.
A vertente
tradicionalista
O chamado tradicionalismo foi inaugurado por Christopher Woodhouse, estudioso
britânico da Antiguidade Clássica que, na Segunda Guerra Mundial, ingressara nas forças
armadas de seu país, tornando-se membro da SOE e chefe de uma missão militar na
Grécia entre 1943 e 1944. Em 1948, antes do encerramento da guerra civil, Woodhouse
publicou
Apple of discord
, a primeira análise de fôlego sobre o conflito. Em 1976, o autor
retomaria as teses de seu primeiro livro, de forma ampliada e mais profunda, em
The
Struggle for Greece
(2002).
Woodhouse (2002, p. 50-53 e 345-350) considera positivamente as intervenções
britânica e americana na Grécia; sem elas, talvez o país helênico tivesse passado por
destruição e sofrimento prolongados. Em sua perspectiva, os líderes do KKE, que tinham
preeminência sobre as organizações EAM/ELAS, consideravam a luta contra a ocupação
uma tarefa apenas secundária. Sem deixar de considerar o esforço contra as forças do
Eixo e os empreendimentos positivos realizados pelos comunistas nas áreas libertadas
(
e.g.
o estabelecimento de redes de auxílio social, a implantação do voto feminino e de
programas educacionais para populações até aquele momento assoladas pelo
pauperismo), o autor afirma que a prioridade da EAM seria utilizar a força da frente
antifascista para tomar o poder e estabelecer uma ditadura nos moldes bolcheviques,
colocando a Grécia sob a esfera soviética. Dessa forma, a agressividade para com a
EDES depreenderia da necessidade de eliminar grupos resistentes rivais que pudessem
se opor ao projeto em longo prazo dos comunistas.
A tese da positividade das interferências vindas de Londres fica clara quando
Woodhouse contextualiza a longa duração da “[...] doutrina da supremacia britânica no
Mediterrâneo [...]” (WOODHOUSE, 2002, p. 348), dentro da qual os formuladores de
políticas britânicos pensavam a Grécia. Por conta desse quadro estratégico que visava
garantir a segurança e a continuidade do Império Britânico,
Até 1947, o governo britânico, com escassa preocupação a respeito de
formalidades constitucionais, apontava e dispensava primeiros-ministros
gregos. Experts britânicos ditavam a política econômica e financeira, a política
exterior e de defesa, a política jurídica e de segurança e as políticas trabalhistas
[da Grécia]. (WOODHOUSE, 2013, p. 349)
No entanto, assegura o autor que o poder britânico, “[...] embora nem sempre
sábio [...]” (WOODHOUSE, 2002, p. 349), sempre era utilizado “[...] de forma benevolente
[...]” (WOODHOUSE, 2013, p. 349). Fica claro, portanto, que a Grã-Bretanha intervinha na
Grécia, em parte, para proteger seus interesses imperiais em larga escala. Todavia, para
Woodhouse, essa intervenção seria fundamentalmente bem-intencionada e benéfica.
Essa argumentação adquire sentido diante de sua avaliação dos líderes comunistas das
organizações EAM/ELAS: “Eles [os comunistas gregos] queriam, segundo eles próprios,
destruir um sistema social, não um país ou um estado. Eles consideravam necessário
esmagar as bases [da sociedade], mesmo que para isso a brutalidade e a falta de
escrúpulos fossem necessárias.” (WOODHOUSE, 2002, p. 53)
A obra de Woodhouse é uma mescla de trabalho historiográfico, elaborado a partir
da análise rigorosa de fontes, principalmente britânicas, e texto memorialístico, uma vez
que o pesquisador participou ativamente de boa parte dos eventos abordados, tendo
circulado entre as lideranças da EDES e das organizações EAM/ELAS. Sua interpretação
foi a mais aceita entre os pesquisadores durante as décadas de 1950 e 1960,
influenciando trabalhos em perspectiva similar. Dentre esses, vale a pena destacar a
pesquisa de George Kosoulas sobre a história do KKE, publicada em 1965. Analisando o
partido desde a sua fundação até o encerramento da guerra civil, esse autor afirma que a
organização teria passado por um processo de bolchevização nos anos 1920, quando
ocorreu sua filiação à III Internacional, o que teria fornecido as bases ideológicas para
um projeto revolucionário a ser implantado na Grécia. Os homens do KKE teriam tentado
tomar o poder em três ocasiões cada uma tendo como resultado o desencadeamento
de uma fase da guerra civil , mas esses empreendimentos teriam sido frustrados pelos
britânicos e, indiretamente, pela falta de apoio do próprio Stálin (KOSOULAS, 1965, p. 2-
30).
A ampla aceitação da interpretação inaugurada por Woodhouse não se devia
apenas à inegável qualidade de seu trabalho e das obras de muitos de seus sucessores,
mas também ao contexto da época. O tradicionalismo imputava às organizações
EAM/ELAS, de forma geral, e ao KKE, em particular, a reponsabilidade pela guerra civil e
pelo sofrimento infligido ao povo heleno. Em contrapartida, o governo grego e seus
apoiadores britânicos e americanos teriam desempenhado papel primordialmente
reativo, buscando conter e neutralizar os impulsos autoritários dos comunistas. Em
plena Guerra Fria, essa perspectiva era, de modo geral, agradável aos círculos
conservadores e dominantes do bloco ocidental, do qual a Grécia, membro da OTAN
desde 1952, fazia parte.
Na própria Grécia, era ínfimo o espaço para a circulação de argumentos opostos
ao tradicionalismo. Derrotada a guerrilha em 1949, cerca de 60 mil guerrilheiros se
exilaram nos países do bloco soviético; e o governo centrista do primeiro-ministro
Nikolaos Plastiras, buscando construir uma base ampla de apoio, empreendeu tímidas
tentativas de reconciliação nacional, baseadas no slogan
esquecimento e anistia
: a lei
marcial foi suspensa, penas de morte foram comutadas e prisioneiros políticos forma
libertados. Essa relativa boa vontade não durou: em 1952, o partido de direita
Reagrupamento Grego (
Ell
ī
nikòs Synagermós
ES), liderado pelo marechal de campo
Alexandros Papagos, venceu as eleições. Instaurou-se um governo militarizado e
autoritário, pautado por um anticomunismo ferrenho transformado em ideologia oficial
de Estado e empenhado na cassação e perseguição de militantes e ex-militantes,
considerados inimigos internos (CLOGG, 2017). Essa política teria continuidade com
Konstantinos Karamanlis, líder da União Nacional Radical (
Ethnik
ī́
Rizospastik
ī́
Én
ō
sis
ERE) e sucessor de Papagos a partir de 1955. É significativo o fato de que naquela época
o conflito fosse comumente designado não pela expressão
guerra civil,
mas por
symmoritopólemos
guerra de bandidos
, termo que remeteria não apenas a uma
insurreição fracassada, mas a uma ação de criminosos (as organizações EAM/ELAS)
(SIANI-DAVIES; KATSIKAS, 2009).
O clima instaurado pelos governos de Papagos e Karamanlis es diretamente
relacionado ao fato de que a maioria dos pesquisadores que citaremos desenvolveram
suas reflexões e carreiras fora da Grécia. Embora até a segunda metade da década de
1960 a Grécia fosse oficialmente uma democracia parlamentar, David Close (2002)
pertinentemente descreve a realidade do regime como
democracia controlada.
As forças
armadas e a polícia empregavam milhares de espiões e grupos ilegais de justiçamento
constituindo uma rede não-oficial, de legalidade duvidosa, que viria a ser conhecida
como “estado das sombras”, “para-estado” ou, em grego,
parakratos.
O alcance e a força
do
parakratos
se tornariam evidentes durante as eleições legislativas de 1961, quando o
partido União de Centro (
Enosis Kentrou EK
), de oposição, foi derrotado. Grupos
vigilantes e milícias de vilarejo operavam em diversas regiões, fraudando cédulas e urnas
e forçando eleitores, por intermédio de ameaças e agressões, a votarem no ERE de
Karamanlis. O meio acadêmico não ficou imune ao estado precário da democracia grega;
discussões rigorosas e livres foram uma impossibilidade nas instituições de ensino
superior helênicas até a segunda metade da década de 1970.
A vertente
revisionista
Em 1952, enquanto a visão ortodoxa/tradicionalista se consolidava, Leften
Stavrianos publicou
Greece: american dilemma and opportunity
. Tal como Woodhouse,
Stavrianos oferece uma história geral da guerra civil grega levando em conta as questões
internacionais; entretanto, a perspectiva é divergente. A crise grega teria sido causada
não pelo movimento comunista, mas pela violência perpetrada por grupos de direita,
muitos dos quais compunham o Governo de Unidade Nacional apoiado pela Grã-
Bretanha. Dessa forma, as direitas gregas e os britânicos deveriam ser responsabilizados
pela guerra civil, ao passo que os sujeitos das organizações EAM/ELAS, acuados, teriam
sido obrigados a pegarem em armas. As ações dos guerrilheiros teriam sido
fundamentalmente reativas, motivadas pela necessidade de sobrevivência diante das
injunções exercidas pelos seus oponentes ideológicos apoiados por potências
estrangeiras (STAVRIANOS, 1952, p. 26-41).
Stavrianos menciona Woodhouse em diversas ocasiões, destacando o papel que
o tradicionalista pioneiro desempenhou como militar na guerra civil grega. Sua descrição
não é lisonjeira e deixa implícito que Woodhouse estaria longe de ser um analista
objetivo:
Woodhouse [...] era um jovem aristocrata com altas conexões sociais, um típico
produto das escolas públicas britânicas
2
suave, elegante, estudara os
clássicos, um conversador brilhante. Em Oxford, era conhecido por seus pontos
de vista fortemente direitistas. Na Grécia ele atuou mais a partir de convicções
políticas do que considerando questões militares. Ele viu na EAM o mais
perigoso inimigo de seu país [a Grã-Bretanha]. (STAVRIANOS, 1952, p. 92).
A análise de Stavrianos a respeito da guerrilha comunista diverge em muito das
considerações de Woodhouse. Para Stavrianos, por exemplo, as ações dos guerrilheiros
melhoraram as condições de vida das áreas em seu poder, o que teria gerado uma
construção de legitimidade popular. A conduta das organizações EAM-ELAS estaria em
consonância com as aspirações do povo:
A EAM começou como uma organização de resistência, mas, inevitavelmente,
no curso da resistência, efetuou uma revolução política e social. Isso ocorreu
nas mentes do povo. [...] Durante os anos da ocupação, eles [o povo]
perceberam quem estava pronto para liderá-los contra os alemães [...]. Não é
difícil imaginar o que se passava na mente de um camponês depois que ele
tenha servido por um ano ou dois em uma corte popular ou em algum comitê de
vila [organizado pela guerrilha]. Ele deixaria de se manter submisso perante
juízes e políticos locais. [...] Em vez disso, ele passaria a vê-los como parte da
velha ordem que ele estava determinado a derrubar. (STAVRIANOS, 1952, p. 89-
90)
Além disso, Stavrianos examina a interferência britânica de forma mais
detalhada. Em sua análise, não há benevolências e boas intenções, apenas os frios
cálculos de conjuntura e considerações imperiais de longa duração:
A Grécia está imbricada no Mediterrâneo oriental. [...] E a estratégia para o
Mediterrâneo Oriental é a estratégia do Império Britânico [...]. No Mediterrâneo
Oriental está o Canal de Suez, a veia jugular do Império. estão os campos de
algodão do Egito e as vastas reservas de petróleo do Iraque, do Irã e da Arábia.
O Mediterrâneo Oriental era também uma tradicional área de tensões entre a
Rússia e a Grã-Bretanha. (STAVRIANOS, 1952, p. 92-93)
Manter uma Grécia amigável era necessário para que a hegemonia do Império
Britânico no Mediterrâneo permanecesse intacta. Stavrianos é o precursor da corrente
que, por contraposição às interpretações abertas por Woodhouse, é considerada
2
Note-se que, apesar do nome, as escolas públicas britânicas eram privadas, caras e altamente elitistas.
revisionista
. Elemento fundamental do revisionismo é a reavaliação negativa das
intervenções britânica e americana. Em contrapartida, as organizações EAM/ELAS e a
liderança do KKE tendiam a ser vistas como legítimas, atentas às aspirações da maioria
explorada e miserável pelos gregos. Sua aspiração seria nada mais do que uma Grécia
verdadeiramente independente. Em grande medida, esses anseios teriam sido destruídos
pela insistência britânica a apoiar elementos reacionários que acatariam as necessidades
estratégicas de Londres. Dentre os pesquisadores dessa linha, vale mencionar Heinz
Richter (1987, p.179-188) e seu estudo da documentação do KKE. Mesmo considerando as
lacunas próprias das fontes, Richter argumenta que os registros indicam de forma
consistente que os comunistas não planejavam tomar o poder à força. Destaca-se,
porém, que as melhores pesquisas não eximem os comunistas de críticas, como podemos
constatar no próprio Stavrianos e na pesquisa de John Iatrides (1972, p. 3-57) sobre a
Dekemvriana
(a segunda fase da guerra civil), na qual as responsabilidades são
distribuídas entre os britânicos, as organizações EAM/ELAS e o Governo de Unidade
Nacional grego.
A conjuntura internacional das décadas de 1960 e 1970 contribuiu para um
crescente interesse pelo revisionismo. A intervenção militar dos EUA no Vietnã, muito
questionada principalmente a partir de 1968, acabou por ecoar, em muitos intelectuais,
as ações britânicas e americanas na Grécia (MAZOWER, 1995). Tome-se, por exemplo, o
ensaio de Todd Gitlin, publicado em 1969, abordando principalmente as ações britânicas
e americanas no país helênico em 1947. A correlação é explícita: “A Grécia foi o Vietnã da
década de 1940 num sentido mais do que metafórico. Foi o primeiro grande campo de
batalha da repressão anticomunista.” (GITLIN, 1969, p. 168).
Em 1967, enquanto a história grega era debatida na Europa Ocidental e na
América do Norte, um golpe de estado em Atenas alçou ao poder a
troika
dos coronéis
Giorgios Papadopoulos e Nikolaos Makarezos e do brigadeiro Stylianos Pattakos. A
Revolução de 21 de Abril
como seus perpetradores denominavam o golpe inaugurou
uma ditadura justificada pela necessidade de conter o avanço do comunismo e defender
os valores heleno-cristãos frente à decadência da modernidade ocidental. O regime
militar caiu em 1974, quando o governo grego, então chefiado pelo brigadeiro Dimitrios
Ioannidis, se lançou diante de uma tentativa de depor o presidente do Chipre, o
arcebispo Makarios III. A interferência motivou a entrada do exército turco em território
cipriota, a fim de neutralizar avanços gregos naquele país que muito era objeto de
disputa entre Atenas e Ancara. O fracasso da aventura de Ioannidis foi o golpe final para
a dissolução da combalida ditadura dos coronéis (CLOGG, 2017). A reabertura política
criou o ambiente propício para que gestos de conciliação fossem empreendidos de forma
consistente; e a guerra civil finalmente passou a ser discutida de forma mais aberta em
meio à sociedade grega. A conjuntura aberta pela queda dos coronéis, somada à abertura
de arquivos até então inacessíveis a pesquisadores, contribuiu para a multiplicação de
pesquisas acadêmicas nas instituições de ensino superior helênicas. Não demoraria para
que o volume crescente de produções revisionistas tornasse essa corrente hegemônica
(SAKKAS, sd).
O recuo do autoritarismo anticomunista que corroía a política helena desde os
anos 1950, o crescente protagonismo de atores políticos mais progressistas e a
reavaliação blica da guerra civil tornaram possível perceber, no início da década de
1980, a construção de uma nova memória do conflito. Nas eleições legislativas de 1981, a
campanha vitoriosa do Movimento Socialista Pan-Helênico (
Panellenio Sosialistiko
Kinema
PASOK) reivindicou a herança das tradições e os valores da EAM. Quando o
PASOK assumiu o poder, sob liderança de Andreas Papandreou, permitiu a repatriação
dos refugiados políticos da guerra civil e concedeu pensões a veteranos da resistência
inválidos e funcionários que haviam sido demitidos em expurgos políticos do serviço
público. A nova memória, ao apresentar as organizações EAM-ELAS reabilitadas e
idealizadas como protagonistas patrióticas dos heroicos dias de resistência contra a
dominação estrangeira, tinha clara afinidade com a interpretação revisionista, que por
isso extrapolou a recém conquistada preeminência no campo acadêmico grego e
emplacou suas teses no debate público. Isso fica evidente na forte reação negativa
causada na Grécia pela publicação, em 1983, de
Eleni
, livro autobiográfico do jornalista
greco-americano Nicholas Gage a respeito da execução de sua mãe por homens do ELAS,
por tentar impedir que crianças de sua vila fossem sequestradas pelos guerrilheiros
(SAKKAS, sd). Por outro lado, no ano anterior, a emissora televisiva estatal ERT exibira
com boa aceitação o documentário
Memória dos anos 40
(
Mnimi ’40
), que defendia, sem
qualquer nuance, as posições revisionistas. Segundo Richard Clogg (2018), a embaixada
britânica em Atenas chegou a registrar protesto formal diante da narrativa do
documentário, que elevava a Grã-Bretanha ao posto de pior inimigo da Grécia durante a
guerra superando os nazistas e afirmava que os britânicos teriam utilizado o país
helênico como isca em uma tentativa de causar um choque entre Alemanha e URSS.
O
pós-revisionismo
O encerramento da década de 1980 e o início dos 1990 trouxeram não apenas
desmonte da União Soviética, mas também o arrefecimento das paixões políticas na
Grécia (SAKKAS, sd). Marco significativo dos novos ares foi a decisão do primeiro-
ministro Tzannis Tzannetakis de retirar dos documentos governamentais o termo
symmoritopólemos/guerra de bandidos
e substituí-lo pelo neutro
emfýlios pólemos
guerra civil
(SIANI-DAVIES; KATSIKAS, 2009).
Por sorte se multiplicaram, no final do
século XX, abordagens menos militantes, menos taxativas, menos influenciadas pela
atmosfera da Guerra Fria. Afastando-se das questões acerca das forças políticas que
deveriam ser responsabilizadas pela guerra civil, as novas pesquisas priorizavam novos
ângulos e diversificavam as fontes e as metodologias (SAKKAS, sd).
Uma nova geração de pesquisadores, utilizando uma abordagem interdisciplinar
e diferentes prioridades de pesquisa, utilizaram estudos locais, história oral e
métodos antropológicos em conjunto a formas mais convencionais de história
política e social para abordar questões ignoradas pelos pesquisadores mais
antigos. Como as pessoas respondem à repressão? Por que elas escolhem
participar da resistência ou das unidades colaboracionistas? Que formas de
poder emergem sob um estado enfraquecido? Em que medida os grupos étnicos
reagem de forma politicamente coerente à conjuntura da guerra civil? (SAKKAS,
sd, p. 6)
O volume editado por Mark Mazower,
After the war was over
, publicado em 2000,
oferece uma variedade de pesquisas ilustrativas da nova onda de estudos. Dentre os
temas abordados, encontramos a execução de colaboracionistas pelas organizações
EAM/ELAS na Grécia setentrional; as memórias da ocupação búlgara na Macedônia; as
memórias da comunidade judaica de Salônica; as celebrações nacionalistas; os efeitos
psicológicos e mnemônicos nos refugiados que se encontravam separados de suas
famílias. Fica claro, pela diversidade de temas, recortes, perspectivas, metodologia e
fontes, que os trabalhos que surgiam a partir de fins do século XX não constituem, em
comparação ao tradicionalismo e ao revisionismo, um
corpus
propriamente homogêneo.
No entanto, de forma geral, eles têm em comum uma postura distinta das argumentações
tradicionalistas e revisionistas. Tomemos como exemplo, na coletânea de Mazower, o
artigo de Stathis Kalyvas sobre o chamado
terror vermelho
3
,
cujo objetivo do autor é
problematizar a noção revisionista segundo a qual apenas os esquerdistas teriam sido
vítimas de violência.
A emergência e a dominação de tal visão não surpreende. Por um lado, a derrota
em uma guerra civil tende a ser total; logo, apoiadores do lado derrotado sofrem
de forma desproporcional. De fato, a maior parte das descrições da violência
sofrida pelos apoiadores da Esquerda foca no período imediatamente posterior
ao fim da ocupação geralmente descrito como o período do “terror branco”
(1945-1947), ou na fase final da guerra civil (1947-1949) e suas consequências.
Por outro lado, referências ao terror da esquerda, tão abundantes como vagos,
tornaram-se uma arma no arsenal ideológico da direita grega. O colapso, em
1974, da hegemonia ideológica da direita apagou todas as referências ao terror
3
Terror vermelho
é como se denominam, em seu conjunto, os atos de violência (execuções, sequestros,
requisições forçadas de bens, extorsões, roubos e ameaças) praticados pelos homens da EAM durante a
ocupação nazista.
da esquerda. A pesquisa histórica acadêmica tem sido marcada pela tendência a
minimizar o terror esquerdista de uma variedade de maneiras sutis e implícitas
incluindo a escolha de um vocabulário tendencioso. Riki van Boeschoten, por
exemplo, chama a violência da EAM de “violência revolucionária” e a violência
da direita de “terrorismo”. Ademais, as raras referências ao terror esquerdista
são tipicamente seguidas de explicações que se apressam a caracterizá-lo como
limitado, insignificante ou casos de exceção. (KALYVAS, 2000, p. 143)
Baseado em coletas de história oral, memórias e outros tipos de evidências,
Kalyvas defende que, na região examinada (o nordeste do Peloponeso), a violência e a
intimidação, inclusive a prática de assassinatos, se tornaram um processo contínuo,
planejado e centralizado pela EAM, que buscava o terror para atingir seus objetivos. Tão
importante quanto a conclusão específica de sua pesquisa, é a seguinte afirmação do
autor:
Minha meta não é contribuir para um debate partidário e sem sentido sobre
crueldade comparada: é claro que todos os lados fizeram uso do terror. [...]
[Mas] o foco no terror vermelho é necessário por duas razões: primeiramente,
para equilibrar as perspectivas, e em segundo lugar, porque a exploração
completa da natureza da violência durante a guerra civil grega requer uma
análise comparativa dos usos do terror por todos os atores políticos. Embora
nossa compreensão da violência direitista, especialmente durante a ocupação,
seja amparada por pesquisas recentes, o mesmo não pode ser dito a respeito da
violência esquerdista. (KALYVAS, 2000, p. 143)
As pesquisas do final do século XX e do início do século XXI eram caracterizadas
pela rejeição do maniqueísmo e do impulso de defender um ou outro lado;
posicionamentos muito comuns ao tradicionalismo e ao revisionismo, ainda que ambas
as vertentes apresentem pesquisas rigorosas. Em outra ocasião, Kalyvas e Nikos
Marantzidis, discutindo as novas tendências de estudo, sintetizaram da seguinte forma
as suas contribuições:
[...] a resistência [contra o Eixo] e a guerra civil não foram eventos autocontidos
e apartados, mas coexistentes um com o outro; de fato, a resistência foi uma
forma de guerra civil que incorporou as rupturas internas da sociedade grega. A
guerra civil não foi apenas um conflito entre dois campos ideológicos bem
definidos e entrincheirados, [tampouco] uma guerra entre o Bem (EAM/ELAS) e
o Mal (a Direita); terror e violência não eram um privilégio de um único grupo, e
a coerção era um fator importante, dentre outros, na construção do apoio à
EAM. Pesquisas históricas devem evitar esquemas interpretativos de larga
escala que não sejam amparados por amplas e detalhadas evidências; o foco nas
elites e na intervenção externa diz pouco a respeito da política a nível das
massas; a partir do pós-guerra a crise na Grécia foi antes de tudo uma questão
doméstica, [e] a prioridade deveria residir em estudos locais baseados em ampla
pesquisa de campo e nos arquivos locais. (KALYVAS; MARANTZIDIS, apud
SAKKAS, sd, p. 7)
Observe-se que os novos estudos tendiam, ostensivamente, a criar mais atritos
com os lugares comuns revisionistas do que com a ortodoxia; isso não é de se espantar,
dada a hegemonia revisionista dos anos 1980 e 1990. Nesse sentido, além de Kalyvas, vale
a pena citar Iatrides, cujos trabalhos dos anos 1970 mencionamos anteriormente como
exemplo de revisionismo. Em artigo publicado em 2005, embasado em documentos
recém disponibilizados e aproximando-se dos pós-revisionistas, Iatrides pondera:
À luz das evidências, é razoável concluir que nos anos 1940 o KKE foi um
partido genuinamente revolucionário, determinado a tomar o poder na primeira
oportunidade, de preferência por meios políticos, mas pela força armada se
necessário. Em retrospecto, seria ingênuo esperar outra coisa de um partido
estalinista, como era o KKE desde os anos 1930, especialmente quando
desdobramentos domésticos e internacionais, na Europa oriental e alhures,
incluindo o rápido avanço das forças soviéticas, pareciam abrir o caminho para
uma vitória comunista. Em vez da via do compromisso e da coalizão que os
partidos comunistas francês e italiano buscaram brevemente depois da guerra,
o KKE provavelmente optaria pelo modelo tchecoslovaco. (IATRIDES, 2005, p.
19)
A despeito das colisões evidentes com os revisionistas não à toa os estudiosos
ligados à esquerda foram os mais vocais críticos de tais pesquisas, acusando-as de
despolitizar a guerra civil (SAKKAS, sd) , esses novos estudos, por vezes, pareciam
resgatar antigas teses tradicionalistas. Mas de fato não se tratava de um retorno às
interpretações tradicionais/ortodoxas. A apreciação crítica dos planos, estratégias e
ações das organizações EAM/ELAS de forma alguma implicavam em reabilitações das
forças de direita e tampouco da intervenção das potências estrangeiras. Isso fica claro,
por exemplo, em David Close (2002), que destaca o
terror branco
uma
vendeta da
direita
cometido contra esquerdistas em 1945 e 1946 pelas forças policiais gregas
diretamente financiadas e treinadas pela Grã-Bretanha. Segundo Close (2002, p. 16-43),
essa onda de violência, prisões arbitrárias, perseguições, torturas e assassinatos,
praticada por agentes da lei, com auxílio de gangues criminosas e organizações de
extrema-direita, teria contribuído para a escalada que resultou no embate de 1946. A
tendência a evitar interpretações binárias torna pertinente a forma como a nova onda de
estudos passou a ser conhecida em seu conjunto, a despeito de numerosas diferenças no
tocante a temas, abordagens, metodologias e fontes: pós-revisionismo (SAKKAS, sd).
Nos últimos anos, a maioria das pesquisas a respeito da guerra civil tem levado
em conta as propostas do pós-revisionismo, mesmo em trabalhos nos quais posturas
pós-revisionistas não são explicitamente reivindicadas. Sendo assim, destaquemos três
autores cujas perspectivas se caracterizam por uma avaliação não maniqueísta da
participação das potências na guerra.
John Sakkas, em
Britain and the Greek Civil
(2013), traz uma visão sofisticada da
intervenção britânica no conflito grego, examinando o impacto que a política para a
Grécia teve em diversas instâncias da população britânica imprensa, organizações
sindicais e partidos de oposição. A principal qualidade da pesquisa de Sakkas, em relação
às tendências tradicionalistas e revisionistas, é a ênfase no fato de que a Grã-Bretanha
não é um bloco monolítico que opera simplesmente como mantenedor da liberdade (na
visão tradicionalista), ou como vetor imperialista (na interpretação revisionista). Ao
contrário, o autor indica que a intervenção na Grécia foi um processo complexo e
contraditório, parte integrante de intricadas lutas políticas que se desenrolavam em
várias dimensões, nas quais colidiam diferentes percepções do que deveria ser a política
externa de Londres e o que ela deveria defender.
Loukianos Hassiotis, no artigo
The Dekemvriana through the eyes of British
soldiers
(2015), também traz as complexidades das percepções dos britânicos em relação
à forma como seu governo agia na Grécia. Analisando correspondências e textos
memorialísticos, Hassiotis mostra como os soldados britânicos que lutavam contra às
organizações EAM/ELAS expressavam visões contraditórias em relação às ações que
empreendiam em solo grego.
Se, por um lado, os registros indicam que parte dos
combatentes era favorável à política do governo e hostis aos membros do Parlamento
que criticavam a intervenção, por outro, fica claro que um número considerável de
integrantes do exército interpretava a guerra de forma ambígua. Não eram raros casos de
soldados claramente críticos às ordens que eram obrigados a seguir.
André Gerolymatos, em
An international civil war
(2016),
faz uma narrativa geral
da Guerra Civil Grega, primando pela história política e militar e analisando como o
conflito na Grécia se entrelaçava ao declínio do Império Britânico e ao advento da
Guerra Fria. Quando se refere às ações do Reino Unido, Gerolymatos enfatiza as
contradições entre duas agências britânicas: a SOE, que auxiliava os movimentos de
guerrilha, incluindo as organizações EAM/ELAS, com vistas a causar o máximo possível
de danos às forças do Eixo; e o FO, que seguia as diretrizes de Churchill e apoiava
George II Rei dos Helenos com o objetivo em longo prazo de assegurar um governo grego
amigável que se incorporasse às necessidades estratégicas de Londres no Mediterrâneo.
Considerações finais
Em síntese, podemos dizer que, embora as vertentes tradicionalistas e
revisionistas tendam a chegar a conclusões distintas, ambas primam fundamentalmente
por uma história de caráter político e diplomático, e apresentam foco, fontes e métodos
muito semelhantes. Os escopos de análise normalmente são colocados nos centros de
decisão governamental de Atenas, Londres, Moscou e Washington. Com isso,
acompanhamos, por meio dessas pesquisas, como os líderes políticos, nos governos
britânicos, na Casa Branca e no Congresso americano, no Kremlin soviético, na cúpula
de dirigentes do KKE e no Parlamento Helênico, calculavam seus passos e tentavam
exercer influências ao mesmo tempo em que lidavam com as pressões de seus
oponentes. Tratava-se, portanto, do que poderíamos chamar de
histórias vistas de cima
:
a população grega de modo geral e o engajamento dos povos americano e britânico nos
debates acerca do conflito eram mencionados de forma apenas secundária nessas
pesquisas.
Como é de praxe em histórias de ênfase política e militar, tradicionalistas e
revisionistas fundamentavam suas pesquisas em documentos diplomáticos, minutas de
reuniões de gabinete e relatórios de forças armadas, dentre outras fontes do gênero.
Essas duas perspectivas tendiam a enfatizar, dentro das questões políticas, a
participação das potências na guerra civil. Tal ângulo era balizado pela questão da
responsabilidade. Resumidamente,
a grande questão a ser respondida era: a que governo
e/ou força política deveria ser imputada a responsabilidade pelo desencadeamento da
guerra civil? Em outras palavras: de quem seria a culpa pelo sofrimento do povo grego e
quem deveria ser “absolvido?”
A maior diferença entre as duas linhas de análise está, como vimos, na resposta a
essa questão. Nenhuma das tendências negam que a Grã-Bretanha interferiu na Grécia
movida, ao menos em parte, pela necessidade de preservar interesses estratégicos em
longo prazo, relacionados à continuidade da hegemonia do Império Britânico. No
entanto, os tradicionalistas consideram as ações britânicas fundamentalmente
benévolas, por imperfeitas que fossem, e justificadas diante da verve autoritária do KKE,
que teria um plano de derrubar violentamente o governo de Atenas e estabelecer uma
ditadura bolchevique na nação helênica. Por outro lado, os revisionistas criticam as
influências de Londres com base na tese de que a guerrilha seria uma expressão legítima
de vontade popular; os britânicos estariam, portanto, negando aos gregos o direito à
autodeterminação.
Fica claro que as pesquisas tradicionalistas e revisionistas, colidentes em suas
conclusões, tendem a ser afetadas por julgamentos morais e clara politização, o que nos
leva a algumas considerações gerais sobre a disciplina histórica. No ofício do historiador,
a busca pela objetividade
deve ser problematizada (LE GOFF, 2014). Não o fato
histórico é reconstituído pelo pesquisador a partir de documentos que não o
inocentes, como também não há separação completa entre o objeto do conhecimento e o
sujeito que pretende construir o conhecimento, e nesse sentido devemos atentar para as
relações entre passado e presente (SCHAFF, 1995; LE GOFF, 2014). O filósofo italiano
Benedetto Croce (apud SCHAFF, 1995) defendia que a pesquisa histórica é, em maior ou
menor medida, uma projeção do pensamento contemporâneo ao passado. Ao se lançar
ao conhecimento, o historiador não consegue se depreender totalmente das questões
políticas, culturais e epistemológicas do tempo em que vive, e é inevitável que essas
questões estejam presentes nos resultados de seus estudos, ainda que de forma
implícita. Segundo Le Goff,
Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda história
é contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e
responde, portanto, a seus interesses, o que não é inevitável como legítimo.
Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e presente.
Compete ao historiador fazer um estudo “objetivo” do passado sob sua dupla
forma. Comprometido na história, não atingirá certamente a verdadeira
“objetividade”, mas nenhuma outra história é possível. (LE GOFF, 2014, p. 53)
As injunções do presente sobre as reflexões acerca do passado ficam
particularmente evidentes em sociedades que passaram por traumas caracterizados pela
violência entre seus membros, tais como as guerras e os governos autoritários.
Analisando como as sociedades sul-americanas e europeias construíram representações
das ditaduras e guerras de seu passado (os regimes civis-militares do Cone Sul, os
regimes pró soviéticos da Europa Oriental e a Segunda Guerra Mundial), Bruno Groppo
(2015) constata que nesses países é comum a elaboração de narrativas desprovidas de
complexidades e contradições e organizadas de forma simplista em torno de categorias
mobilizadas sem atenção a nuances, tais como vítimas, resistência, algozes e
colaboradores.
Fenômeno semelhante pôde ser verificado no Brasil em 2014, quando
transcorreram 50 anos do golpe de 1964. Naquela ocasião, Daniel Aarão Reis pontuou
que “grande parte da sociedade brasileira preferiu demonizar a ditadura [...] e celebrar
novos valores democráticos [...]” (AARÃO REIS, 2014, p. 7), como se o país tivesse
sido, “[...] pura e simplesmente, subjugado e reprimido por um regime ditatorial
denunciado agora como uma espécie de força estranha e externa.” (AARÃO REIS, 2014,
p. 7-8) De maneira que, em uma “[...] arquitetura simplificada, muitos se confortavam
com raciocínios polarizados. Opressão e Liberdade. Ditadura e Democracia. Repressão e
Resistência.” (AARÃO REIS, 2014, p. 8) Note-se que em 2018, apenas quatro anos após
Aarão Reis publicar suas reflexões, o cenário era consideravelmente diferente: no
contexto da ascensão de Bolsonaro à presidência da República, tornaram-se comuns
aceitáveis e desejáveis as reinterpretações positivas da ditadura civil-militar.
As interpretações tradicionalista e revisionista da Guerra Civil Grega são
ilustrativas dessas tendências verificadas no Brasil, nos demais países do Cone Sul e na
Europa Oriental. Como nos exemplos citados acima, a memória social construída no pós-
guerra civil grego após a derrota da esquerda e em contextos de governo autoritários
(1950-1967) e de uma ditadura escancarada (1967-1974) primava pela representação de
uma sociedade supostamente agredida por hordas comunistas felizmente vencidas. Após
a abertura democrática, e principalmente a partir da vitória dos socialistas em 1981, a
narrativa dominante promoveu uma reabilitação das organizações EAM/ELAS. Em tons
idealizados, as guerrilhas passariam a ser vistas como grupos heroicos que tentaram
defender a Grécia das intervenções das potências estrangeiras e dos herdeiros da
violenta monarquia de direita. Esses processos de memória contribuíram para a
notoriedade da tendência historiográfica tradicionalista e, posteriormente, da vertente
revisionista.
A maior diferenciação nas interpretações da Guerra Civil Grega está, de fato, não
entre tradicionalistas e revisionistas, mas entre tradicionalistas e revisionistas de um
lado e os chamados pós-revisionistas de outro. O deslocamento da história política para
histórias tendentes ao social e ao cultural, o abarcamento de outros tipos de fontes
com destaque para as coletas de história oral , as propostas de outros objetos e
ângulos de pesquisa (a participação das mulheres na guerra, as tensões étnicas, as
construções de memória, etc.) e a transferência para segundo plano da questão das
responsabilidades devem muito à suavização das polarizações que marcavam a política
grega até a década de 1990. O pós-revisionismo também é filho de seu tempo. Observe-
se que, feitas as devidas abstrações referentes às especificidades temáticas, as propostas
pós-revisionistas são válidas para qualquer estudo que pretenda respeitar as nuances
próprias da disciplina histórica. Ainda assim, no que toca à guerra civil grega, essas
perspectivas passaram a ser discutidas e defendidas amplamente cerca de cinco décadas
depois do encerramento da guerra. Essa demora se explica, em âmbito local, pela
conturbada história política da Grécia na segunda metade do século XX, que inviabilizou
discussões acadêmicas sérias, e, em termos mais amplos, pelo contexto da Guerra Fria
que eivou o debate internacional de binarismos motivados pela necessidade de fazer
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