Recebido em: 03/03/2015
Aprovado em: 19/04/2015
O Jornal do Commercio e as representações
sobre a Argentina na crise do Brasil Império (1870-
1889)
The Jornal do Commercio and the representations
of Argentina in the crisis of Brazilian Empire (1870-
1889)
RAMOS, Paula da Silva
1
Resumo: Durante os anos de crise do regime monárquico, a despeito das visões
negativas que caracterizavam, majoritariamente, o discurso brasileiro sobre a Argentina,
foi possível observar uma leve inflexão nas representações a respeito da república
platina. Este artigo visa apresentar mais um elemento acerca dessa discussão, por meio
da análise do Jornal do Commercio. Tal proposta articula-se em torno do estudo da
construção da identidade nacional, dos embates ideológicos e do processo político em
curso no Brasil e na Argentina entre os anos de 1870 e 1889.
Palavras-chave: Brasil; Argentina; Imprensa; Representações.
Abstract:
During the years of the monarchy crisis, despite the negative views that mostly
characterized the Brazilian discourse on Argentina, could be observed a slight change in the
representations of the Argentine Republic. This article presents one more element about this
discussion, through the analysis of the Jornal do Commercio. This proposal is structured around
1. Mestre em História. Doutoranda - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e
Letras de Assis - UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100,
CEP: 19806-900, Assis, São Paulo - Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: ramosps.his@gmail.com
O Jornal do Commercio e as representações sobre a Argentina na crise do Brasil Império (1870-1889)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 143-158, jan.-jun., 2015.
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the study of the construction of national identity, ideological clashes and the ongoing political
process in Brasil and Argentina between the years 1870 and 1889.
Keywords: Brazil; Argentina; Press; Representations.
Império, identidade nacional e a outra América
É consenso entre os historiadores que, durante a monarquia, a maior parte dos
textos políticos brasileiros expunha uma visão bastante negativa sobre os países hispano-
americanos. Além de questões pragmáticas, como a manutenção da escravidão, os
conflitos relacionados à delimitação das fronteiras, as discordâncias quanto à navegação
dos rios internacionais, o pequeno fluxo comercial e a opção pelo regime monárquico,
elementos simbólicos são fundamentais para a compreensão dessa perspectiva, que
colocava o Brasil “de costas para a América” (PRADO, 2001, p. 128). Nesse sentido,
ganham particular significado a análise das representações produzidas por políticos
e homens de letras brasileiros sobre as repúblicas do continente, nas quais aparecem
as elaborações a respeito da própria identidade brasileira, construída no embate de
interpretações sobre as nações vizinhas, com destaque à Argentina.
O processo de emancipação brasileiro foi sui generis. A transferência da Corte
portuguesa para o Rio de Janeiro foi, em parte, responsável por uma independência
realizada sob os auspícios do príncipe português radicado na colônia, posteriormente
convertida em Império. Tais eventos contribuíram para dividir, simbolicamente, o
continente, uma vez que a legitimação do Estado nacional brasileiro se manteve, durante
quase todo o século XIX, com base no princípio dinástico, enquanto a identidade das
demais nações americanas se dava pela ruptura com o Antigo Regime. De acordo com
Luis Claudio Villafañe Santos (2004, p. 28):
(...) se a ideia de civilização propagada pelas elites brasileiras era, estranhamente
compatível com a escravidão e a exclusão da maioria da população do corpo
político da nação, a adoção do nacionalismo e da cidadania como fonte de
legitimidade do Estado era potencialmente explosiva em uma sociedade
fracamente integrada regionalmente e com uma população composta em
grande parte por escravos.
Assim, de um lado encontravam-se os descendentes da monarquia portuguesa,
inscritos no contexto da Restauração conservadora em curso na Europa, e, de outro,
o restante dos países americanos, imbuídos de fervores republicanos e liberais que os
aspiravam em direção oposta à do Brasil (CORRÊA, 2000, p. 37).
Durante o período monárquico, a situação brasileira contrastava com a dos países
hispano-americanos, que se fragmentaram após as guerras de independência e foram
perpassados por conflitos entre interesses locais e centralistas. A configuração política
das repúblicas foi marcada por disputas entre projetos antagônicos e a dificuldade
quanto à sobreposição de uma das vertentes causou instabilidade interna por décadas.
No caso argentino, por exemplo, a unificação definitiva do país ocorreu apenas em
1861 e os conflitos armados derivados de disputas políticas só cessaram em 1880. Esse
processo foi interpretado pelas elites imperiais como expressão da anarquia, desordem
e barbárie que caracterizavam o regime republicano, enquanto o Império era retratado
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como modelo de estabilidade e unidade.
Os interesses do Império brasileiro, na região do Prata, se manifestaram por
meio de políticas efetivas de intervenção - relacionadas à província Cisplatina, à aliança
contra o governo argentino de Juan Manuel de Rosas e, posteriormente, à Guerra do
Paraguai - e pela veiculação de imagens que foram centrais para a justificativa dessa
mesma política. Dessa forma, construiu-se uma visão que ressaltava o papel do Brasil
como defensor da ordem e símbolo de um projeto civilizatório em contraposição às lutas
oligárquicas, divisionistas e a cultura caudilhesca das repúblicas platinas (AZEVEDO;
GUIMARÃES, 2000, p. 331-332). Essa interpretação se cristalizou no Brasil ao longo do
século XIX, tornando-se primordial nas representações do “outro”, ao ser adotada em
discursos políticos, textos de jornais e como base de toda a escrita da história que se
pretendia científica naquela conjuntura.
Assim, a exaltação da singularidade e supremacia da monarquia no contexto
americano se fez presente em compêndios, manuais e nos programas do Colégio
Imperial Pedro II - que desde sua fundação em 1837, passou a ser o padrão de referência
da política educacional brasileira e responsável pela formação das elites intelectuais do
país (AZEVEDO, 2005, p. 62-63) - e na produção intelectual empreendida pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Fundado em 1838, o IHGB, possuía uma preocupação
própria da primeira metade do século XIX, articular cientificidade e questão nacional,
com o objetivo de formular a gênese da nação (GUIMARÃES, 1988, p. 15), uma vez que o
que estava em jogo, para além do passado, era a produção de um sentido para o futuro
da comunidade nacional, que lesse, no passado, um certo destino possível e garantisse
coesão social para o presente (GUIMARÃES, 2002, p. 190).
De acordo com Maria Lígia Prado (2001, p.129), “a repetição continuada dos
mesmos argumentos contribuiu para a constituição de um imaginário – que acabou por
forjar uma memória coletiva – sobre a outra América, dissociando-a, separando-a do
Brasil”. Contudo, a crise do regime monárquico, acentuada a partir de 1870, impulsionou
discussões que questionavam, entre outros aspectos, a inserção brasileira no continente
e as relações mantidas com as repúblicas vizinhas.
A campanha republicana e as representações sobre a Argentina.
As últimas décadas do século XIX, no Brasil, foram marcadas por dissensões
e pela insatisfação política. As sucessivas dissoluções da legislatura entre os anos
de 1868 e 1889 evidenciavam aos opositores do regime as contradições do “suposto”
parlamentarismo brasileiro e recrudesceu a crítica ao poder pessoal do monarca
(HOLANDA, 2005, p. 80-82). Além dos descontentamentos no seio dos partidos
políticos tradicionais, fundou-se, no Rio de Janeiro, e em outros pontos do país, o Clube
Radical. Este, por sua vez, durou pouco mais de dois anos, pois, em dezembro de 1870,
após um período de discussões, seus membros decidiram fundar o Clube Republicano
do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, os clubes radicais de São Paulo e Minas Gerais,
e posteriormente os demais espalhados pelo país, também passaram a intitularem-se
republicanos, acompanhando de perto os acontecimentos da capital imperial.
O Manifesto Republicano, do mesmo ano, embora não se aprofundasse no
estudo da realidade econômica e social do Brasil, sinalizava o intuito de uma maior
identificação com as repúblicas do continente, sintetizado na célebre frase “somos da
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América e queremos ser americanos”. Naquela conjuntura, a monarquia sofria críticas
que, em última análise, contrariavam um traço fundamental da identidade nacional, pois
refutavam a premissa da superioridade brasileira frente aos vizinhos.
As tensões político-ministeriais, somadas às dificuldades econômicas derivadas
da Guerra do Paraguai (1864-1870) e a imposição de reformas sociais relacionadas à
questão escravista, tiveram grande impacto no campo do debate político, caracterizando
esse período como a fase mais rica do Império no que se refere à produção de textos
políticos, fossem conservadores, reformistas ou radicais (CARVALHO, 2009, p. 31). A
ativa participação política, por meio da imprensa, inseriu-se no contexto mais amplo
do movimento político-intelectual surgido no Brasil nos anos 1870. Os membros dessa
geração, marginalizados pelas principais instituições imperiais, como as cátedras das
faculdades, o parlamento e os partidos imperiais - embora os republicanos Prudente de
Moraes e Campos Sales tivessem adentrado ao parlamento na condição de deputados
- buscaram formas alternativas, não institucionalizadas, de associação política e de
manifestações públicas, tais como passeatas, comícios, banquetes e associações.
Exprimiram-se também por meios de livros e artigos de jornal. Ainda que atuassem
em um espaço público incipiente, por estarem circunscritos a uma diminuta população
alfabetizada e restrita aos centros urbanos, os membros do movimento de 1870 fizeram
da imprensa o seu palanque (ALONSO, 2002, p. 277).
Nessa conjuntura, a despeito da visão negativa preponderante nos discursos
acerca dos países americanos, vozes dissonantes se fizeram ouvir, a exemplo do jornal
republicano A Província de São Paulo (posteriormente intitulado O Estado de S. Paulo).
Devido as suas convicções ideológicas, o periódico paulista encontrava na Argentina
qualidades não evidenciadas pela voz oficial e mostrava uma visão alternativa de acordo
com seus objetivos político-partidários, enfatizando aspectos positivos e propondo
novas interpretações para os embates políticos e a fragmentação do seu território, além
de retratá-la como um exemplo a ser seguido pelo Brasil. Entre o ano de 1875, data de
sua fundação, e 1889, quando chegou ao fim o regime monárquico brasileiro, A Província
de São Paulo criticou, repetidas vezes, a política nacional dirigida àquela república,
afirmando que, embora os políticos e a imprensa monarquista objetivassem retratá-la
como um território anárquico, a realidade salientava seus progressos (RAMOS, 2013).
As representações sobre a Argentina realizadas por este órgão de imprensa
republicano articulavam-se à sua campanha de oposição ao governo imperial. Os artigos
de opinião sobre o país vizinho sempre culminavam com críticas severas à monarquia e
a seleção de notícias privilegiava a pujança da economia, decorrente de investimentos
estrangeiros, os incentivos à imigração e o ensino laico, temas relacionados aos
pressupostos liberais professados pelo periódico.
Em consonância com essa análise, este artigo visa apresentar mais um elemento
acerca das representações brasileiras sobre a Argentina nas últimas décadas do século
XIX, por meio da análise do Jornal do Commercio. Assim, objetiva-se discutir como um
órgão de imprensa de caráter conservador e monarquista, radicado na capital imperial,
posicionou-se frente à conjuntura política, econômica e social Argentina, aos debates
em torno da crise do regime monárquico e ao movimento republicano. Tal proposta
articula-se em torno do estudo da construção da identidade nacional, dos embates
ideológicos e do processo político em curso no Brasil e na Argentina entre os anos de
1870 e 1889.
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A imprensa é entendida, nesse trabalho, como fonte e objeto de pesquisa, ou
seja, como um agente de intervenção na vida social e não apenas como veiculo de
informações, transmissor imparcial dos acontecimentos, isolado da realidade política
na qual se insere (CAPELATO; PRADO, 1980, p.XIX). Assim, procuramos discutir,
além do conteúdo propriamente dito, os elementos que permearam o discurso do
Jornal do Commercio sobre a Argentina e que são essenciais à compreensão de seus
posicionamentos, tais como as inclinações políticas do proprietário e colaboradores, a
diagramação, materialidade e recursos técnicos do jornal, a interlocução com os outros
periódicos, tanto brasileiros, quanto argentinos e a relação entre as pautas do impresso
e o debate político em curso no cenário nacional
2
.
Convergências e rivalidades: a Argentina por meio do Jornal do
Commercio.
Fundado em 1827 pelo francês Pierre René François Plancher de La Noé, o Jornal
do Commercio era considerado um dos órgãos de imprensa mais importantes da Corte
imperial ao final do século XIX
3
. Ligado à classe latifundiária, o periódico declarou,
em seu primeiro número, ser exclusivamente dedicado aos “senhores negociantes”,
restringindo-se, a princípio, a assuntos mercantis. Em 1828, o título do jornal passou
a refletir suas incursões pelo território do político, adotando, por um curto período, o
nome Jornal do Commercio, Folha Comercial e Política. No ano de 1832, Plancher decidiu
voltar para França e por esse motivo vendeu a empresa a Junius Villeneuve. Depois da
morte de Junius, o Jornal pertenceu ao seu filho Júlio Constâncio de Villeneuve. Este,
por sua vez, tinha trânsito fluido no Paço Imperial, sendo, inclusive, condecorado com
o título nobiliárquico de Conde (SILVEIRA, 2014, p. 216) – o periódico permaneceria sob
o controle da família Villeneuve até o ano de 1890.
Sob a administração da família Villeneuve e direção do francês naturalizado
brasileiro François Picot, o diário esteve alinhado com o que havia de mais moderno na
imprensa mundial (SILVEIRA, 2014, p. 216). Em 1836, passou a ser impresso em um prelo
mecânico importado da França, o primeiro instalado na América Latina, proporcionando
um aumento significativo em sua circulação. Em 1871, após a aquisição de impressoras
rotativas, sua tiragem atingiu a cifra de 15 mil exemplares diários, número bastante
expressivo para a época e, em 1874, publicou as primeiras notas telegráficas distribuídas
pela agência de notícias Havas no Brasil.
Quanto à sua inclinação política, o Jornal do Commercio era um dos poucos
jornais não partidários existentes no Brasil, ele “era antes informativo que de opinião,
mas tendia ao compromisso com as instituições, adotando um tom moderadamente
conservador, em sintonia com o espírito do Império” (ALONSO, 2002, p.277). Porém,
segundo Nelson Werneck Sodré (1999. p. 189), sua estreita ligação com o poder
monárquico e o caráter conservador, o aproximava do que poderia se chamar de
jornalismo oficial. A diagramação do Jornal, que contava com oito colunas distribuídas
em páginas de 58,5 cm de largura e 98 cm de altura (SILVEIRA, 2014, p. 216), facilitava a
2. Sobre a metodologia referente à utilização da imprensa como fonte/objeto de pesquisa ver: (LUCA,
2005); (BUSETTO, 2008); (ZICKMAN, 1981).
3. No ano de 1889, o Jornal do Commercio era considerado pelo jornalista francês Max Leclerc, corres-
pondente no Rio de Janeiro de um jornal parisiense, um dos dois grandes jornais da capital do país, sendo
o outro A Gazeta de Notícias. Cf. (LEAL; SADRONI, 2001. p. 2877).
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publicação de documentos divulgados pelo governo imperial. Um elemento importante
em sua composição era a prática de publicar, por vezes na íntegra, os atos do Executivo
e os debates parlamentares por meio das seções, “Parte Oficial”, “Assembleia Geral” e
“Câmara dos Senhores Deputados”. A estreita relação com o governo central também
se manifestava nos editoriais, pois, em diversos momentos, o periódico teceu elogios às
instituições brasileiras e manifestou o desejo de continuidade monárquica:
(...) registremos um fato que encheu de júbilo a família imperial, e foi acolhido
com a maior satisfação pelo país inteiro: o nascimento do príncipe do Grão-
Pará (...) representante de um princípio, a garantia de conservação das
sábias instituições a cuja sombra tem o Brasil realizado progressos, senão
rápidos, ao menos constantes e estáveis (Retrospecto do ano político de 1875:
Brasil. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 1, 11 jan. 1876).
Contudo, devemos matizar o caráter oficial assinalado por Sodré, pois, ainda que
possuísse clara tendência monarquista, o Jornal não se absteve de questionar, ainda
que em um tom moderado, alguns aspectos da política imperial, discutindo temas como
a reforma eleitoral, a separação entre Estado e Igreja, a instrução pública, a demasiada
tutela estatal na economia e a onipotência do Executivo. Além de criticar de maneira
mais enfática a permanência da escravidão e a apatia do governo no tocante ao estímulo
à imigração europeia.
As pautas do jornal demonstravam as reflexões em torno da crise política,
econômica e social, que afligiu o país nas últimas décadas do século XIX, bem como
o diálogo e/ou as divergências em relação ao posicionamento de órgãos de imprensa
de oposição. O Jornal do Commercio aderiu a uma vertente reformista, pois, apesar de
julgar necessário mudanças quanto aos rumos da nação, reiterava que, em teoria de
governo, o regime monárquico era o que havia de melhor.
Durante as décadas de 1870 e 1880, o diário combateu o que chamou de “vozes
isoladas” (Retrospecto político do ano de 1875: Brasil. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, p. 1, 11 jan. 1876), compostas pelos partidários do republicanismo e “admiradores
do desconhecido” (Retrospecto político do ano de 1881: América. Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, p. 1,24 jan. 1882), afirmando que suas considerações se perdiam sem
eco no país ao propagarem as “incontáveis vantagens de uma forma de governo mais
simples” (Retrospecto político do ano de 1875: Brasil. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,
p. 1, 11 jan. 1876), demonstrando, assim, sua posição frente ao debate político deflagrado
naquela conjuntura. Ainda que julgasse a campanha republicana um movimento sem
expressão, o periódico fluminense achou por bem desqualificá-la em vários momentos,
em uma clara manifestação de desconforto e oposição à publicidade de tais ideias.
É importante destacar que a Argentina esteve presente em várias pautas de
discussões durante a crise do regime monárquico, principalmente por meio da imprensa,
que se utilizava das notícias referentes à república vizinha para criticar ou exaltar as
ações do governo brasileiro. De acordo com José Maria Bello (1969, p. 56-58), o país
platino se constituiu em um modelo para os organizadores da república brasileira,
posto que era mais curta a distância entre brasileiros e argentinos do que entre
brasileiros e norte-americanos, também utilizados como paradigma dos benefícios da
adoção do republicanismo, uma vez que aqueles descendiam do mesmo tronco étnico,
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assemelhando-se quanto à crença religiosa e hábitos, reagindo, pois, de maneira análoga
aos aspectos nacionais, principalmente o econômico. O já citado jornal A Província de
São Paulo utilizou, em larga medida, o exemplo argentino para depreciar o Império,
enaltecendo os números da economia, da imigração e da instrução pública, devedores,
segundo o periódico, da forma de governo adotada por aquele país.
A divulgação dos acontecimentos políticos e econômicos internacionais se tornou
mais constante no Jornal do Commercio a partir da utilização do serviço telegráfico.
Contudo, as notas dividiam espaço com resenhas de periódicos estrangeiros, obtidas
via paquete, e com as cartas dos correspondentes residentes nos países de interesse,
que, apesar da defasagem temporal, explicitavam as impressões políticas dos jornalistas
e rompiam com a pretensa imparcialidade desse órgão de imprensa
4
.
Assim, as seções “Exterior” e “Retrospectos Políticos”, nas quais eram publicados
tais comentários, constituíram-se nos principais objetos dessa análise. A Europa contava
com maior espaço nas seções. Inglaterra, França, Portugal, Itália, Espanha, Alemanha,
Áustria e Rússia eram alguns dos países apresentados regularmente aos leitores. No
continente americano, apenas Estados Unidos, Argentina e Uruguai contavam com o
serviço dos correspondentes, o que demonstra a relevância de tais países no concerto
das nações americanas para os dirigentes do diário fluminense.
As representações do Jornal do Commercio sobre a Argentina podem ser
divididas em duas fases. Até meados de 1879, sobressaíram-se as declarações
negativas e a utilização das imagens pré-concebidas em relação ao país platino. Em
momentos isolados, porém, notamos certa polifonia, responsável por notas pontuais
que vislumbravam uma melhor sorte para aquela nação e suas relações com o Brasil. O
tom pessimista do periódico, na década de 1870, inseria-se no contexto dominante dos
escritos brasileiros sobre as repúblicas do continente, que tinham por característica um
discurso depreciativo ao enfatizar a suposta anarquia e desordem que caracterizavam o
regime republicano. Também contribuíram para essas assertivas, os desentendimentos
em torno da demarcação das fronteiras entre os dois países e os reflexos da grave
crise econômica argentina iniciada no ano de 1873. Além das históricas rivalidades
geopolíticas, que desde as independências encaminhavam as ações para a afirmação
da supremacia brasileira na América do Sul e desqualificava as pretensões argentinas
nesse mesmo sentido.
As declarações do periódico expressavam, também, sua postura frente à oposição.
O Jornal do Commercio se mostrou preocupado com a repercussão que o movimento
republicano ganhou na Argentina. De acordo com o correspondente radicado em
Buenos Aires, as publicações de grupos contrários ao governo faziam os argentinos
acreditarem que o Império estava ameaçado de dissolução e que mal poderia conter
aquele partido. Seus receios pautavam-se nos supostos planos de guerra contra o Brasil
formulados naquele país, apoiados, sobretudo, na ideia de que poderiam encontrar
apoio nos partidos republicano e liberal. Parte da imprensa platina, de acordo com o
diário, aderiu a essa perspectiva (Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos
Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 2, 18 ago. 1875).
Contudo, um hiato ocorreu entre novembro de 1876 e abril do ano seguinte,
4. Infelizmente, não foi possível mapear quem eram esses funcionários devido à inexistência de arquivos
sobre eles, mas, por meio da leitura atenta de suas cartas, foi possível interpretar suas inclinações polí-
ticas e, de certa forma, a repercussão de suas opiniões na capital imperial.
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quando houve a substituição do correspondente em Buenos Aires, por outro, mais
simpático àquela república. Em sua primeira carta, o novo colaborador deixou claro o
caráter da abordagem que pretendia seguir e a distinção dessa com a que era realizada
até então:
Em primeiro lugar, nada tenho de comum com os correspondentes que o Jornal
tem mantido ultimamente nas duas margens do Prata. Esta declaração era
necessária para não assumir a responsabilidade do que outros tenham dito.
Creio mesmo que dissentirei desses correspondentes na maneira de encarar
as relações do Império com seus conterrâneos do Sul (Correspondência do
Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p.
2, 08 nov.1876).
Afirmou, também, que reconhecia que existiam prevenções entre o Brasil e a
Argentina, mas que em lugar de fomentá-las, dando publicidade a pequenos incidentes
ou manifestações de jornalistas patriotas, iria combater com todas as suas forças
as possíveis desavenças, mostrando que eram ilógicas, anacrônicas e, sobretudo,
prejudiciais ao progresso dessa parte da América. Declarou que as relações entre os
dois países eram as melhores possíveis e que não havia nenhum motivo de desacordo,
porém, advertiu o Império para que cuidasse melhor de sua imagem naquela localidade,
uma vez que os fatos mais honrosos e importantes para o país eram ali ignorados.
Também criticou a incoerência e o intervencionismo da política brasileira dirigida à
região platina (Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, p. 2-3, 08 nov. 1876).
Nos anos seguintes, novas mudanças ocorreram na publicação. Em maio de
1877, as noticias argentinas passaram a ser dadas pelo correspondente em Montevidéu,
que acumulou a função de veicular os eventos das duas margens do Prata, retomando
o discurso negativo. Em 1878, o Jornal do Commercio voltou a contar com um
correspondente em Buenos Aires, sem maior alteração na linha de análise. Em meados
de 1879, porém, ocorreu uma inflexão nas opiniões do jornal, demarcando uma nova
fase nas representações do diário fluminense acerca da república vizinha. A inclinação
política do novo correspondente e o encaminhamento das discussões em torno da crise
brasileira são fundamentais à compreensão do discurso do periódico nessa fase, uma
vez que as notícias provenientes do país vizinho eram utilizadas como contraponto
para o debate de temas prementes no Brasil, tais como a imigração, os investimentos
estrangeiros na economia, o desenvolvimento do setor de transporte, a instrução
pública e o sistema político.
Em 18 de julho de 1879, o diário declarou que a república vizinha crescia e se
desenvolvia de maneira excepcional. Se três anos antes o país havia sofrido com a
profunda crise comercial, naquela conjuntura, a situação era bem diversa, pois a renda
pública crescia rapidamente, o crédito na Europa se firmava, o comércio e a indústria
se animavam com solidez e o intenso ingresso de imigrantes dava vigoroso impulso às
obras do país, principalmente às ferrovias. Assim, para o jornal, era justo dizer que o
governo argentino atuava com uma previdência pouco comum e uma energia quase
heroica (Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, p. 2-3, 18 jul. 1879).
A partir de então, os retrospectos políticos referentes à Argentina destacaram, ano
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após ano, a prosperidade e a paz que nação desfrutava. Segundo o periódico fluminense,
desde que começou a haver governo regular na República – após intermitentes guerras
civis que durante vários anos paralisaram o desenvolvimento da produção nacional e
das forças industriais – o trabalho e a paz não cansavam de fecundar os recursos do
país e, a imigração, atraída tanto pela riqueza do solo como pela amenidade do clima,
aumentava rapidamente. A situação comercial tendia a transformar-se e a indústria,
ampliando-se dia a dia, produzia um grande número de artigos para o consumo do país
que antes eram pedidos exclusivamente ao velho continente (Retrospecto político do
ano de 1882: Estados do Rio da Prata. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 1, 20 jan.
1883). No ano de 1887, a expansão econômica argentina também foi alvo de uma série
de reportagens, com o objetivo de mostrar que aquele país progredia com “verdadeiros
passos de gigante” (Questões econômicas: A expansão argentina. Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, p. 02-03, 05 set. 1887).
As disputas pelo poder na Argentina, que por vezes culminaram em conflitos
armados, constituíam-se em uma crítica frenquente nas representações brasileiras
sobre a república vizinha. Nos primeiros cinquenta anos de vida independente
da República, dois projetos políticos antagônicos disputaram espaço no país. Os
federalistas, grosso modo, expressavam os interesses provinciais em contraposição aos
esforços de hegemonia de Buenos Aires, que era representada pelos unitários. Assim,
enquanto os primeiros eram favoráveis à livre navegação dos rios, à divisão igualitária
das rendas alfandegárias e a adoção de medidas protecionistas, a fim de favorecer as
manufaturas nacionais, os segundos desejavam assegurar o monopólio de Buenos Aires
sobre o transporte de mercadorias por vias fluviais, a retenção das rendas aduaneiras
para esta província e o livre comércio. Devido à indefinição quanto a um projeto que
pudesse prevalecer em todo o território nacional, predominou na Argentina, naquela
conjuntura, uma ordem fragmentária, de inspiração federalista, na qual cada província
se estruturava em torno de membros das elites locais, os chamados caudilhos.
No ano de 1862, após décadas de conflitos entre partidários das duas vertentes,
foi eleito o primeiro presidente argentino após a unificação do país. Com Bartolomé
Mitre, a Argentina teve lançadas as bases do Estado nacional e do modelo econômico
primário-exportador, consolidado nos anos seguintes. Contudo, até o ano de 1880, os
processos eleitorais na República culminaram em conflitos armados, motivados pelas
divergências de interesses entre Buenos Aires e as demais províncias.
A eleição de Domingo F. Sarmiento, em 1868 - que deu início a uma série de quatro
presidentes provindos de províncias do interior - renovou antigas rivalidades e muitos
políticos, entre eles Bartolomé Mitre, consideraram este fato uma ameaça à posição
especial conferida a província bonaerense. Em 1874, a sucessão presidencial originou
um novo conflito. Após a vitória de Nicolás Avellaneda, candidato governista, Mitre
e seus correligionários alegaram fraude e apelaram para as armas, sendo derrotados
pelas forças nacionais, comandadas pelo general Julio A. Roca. Ao final da rebelião, o
conselho de guerra decidiu pelo fuzilamento dos rebeldes, mas Avellaneda se colocou
contra a sentença, dando início, em seu mandato, a uma política de pacificação interna.
Em 1880, com a proximidade de uma nova disputa eleitoral, surgiram novas
apreensões. A contenda centrou-se nas figuras de Julio A. Roca e do governador da
província de Buenos Aires, Carlos Tejedor. A tensão entre os dois candidatos e seus
respectivos grupos de apoio já se manifestava desde o ano de 1879, com o crescente
O Jornal do Commercio e as representações sobre a Argentina na crise do Brasil Império (1870-1889)
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armamento das milícias provinciais. O ponto culminante se deu pela divergência
quanto ao destino das novas terras obtidas por meio da Campanha do Deserto
5
. Para
conservar a lealdade das províncias do interior, Avellaneda e Roca propuseram colocar
as novas terras sob a jurisdição nacional e, posteriormente, reparti-las aos veteranos
da campanha, excluindo, assim, pessoas influentes da região portenha. Tejedor, por sua
vez, pretendia incorporar os novos territórios à província de Buenos Aires. A ascensão
política de Roca alarmava esta província que via ameaçada sua tradicional hegemonia.
A situação se deteriorava na medida em que se aproximavam as eleições.
Confirmado o triunfo de Roca, Tejedor se rebelou. A guerra civil se estendeu até meados
de 1880, com a derrota definitiva desse. O processo foi concluído apenas em setembro
daquele ano, quando o Congresso sancionou a lei de federalização da cidade de Buenos
Aires, separando-a da província e convertendo-a em capital federal da República. Outras
medidas foram tomadas no sentido de destituir a província de seu status privilegiado
tais como a abolição do seu exército permanente e o fim da autorização para a emissão
de dinheiro. Em consequência desses acontecimentos, iniciou-se a construção de uma
nova sede do poder provincial, a cidade de La Plata, fixada a cerca de 50 quilômetros
da antiga.
Em 1880, o triunfo do governo nacional - com a vitória eleitoral e militar de
Júlio A. Roca -, foi apontado como a conclusão da estruturação do Estado nacional
argentino (DONGHI, 1980; 1982; TERÁN, 2009). A federalização da cidade de Buenos
Aires e a obtenção do monopólio da força legítima pelo governo central puseram
fim a um conflito recorrente desde a independência. Além disso, as sanções de leis
laicas de educação e de registro civil colocaram o controle da população sob exclusiva
responsabilidade estatal. No plano econômico, a participação da Argentina na divisão
internacional do trabalho como produtor de bens primários, a apropriação de territórios
até então ocupados por indígenas e os investimentos estrangeiros, sobretudo no setor
de transportes, propiciaram um enorme crescimento ao país que se tornou, naquela
década, o mais próspero da América Latina.
A necessidade de mão de obra impulsionou as políticas de incentivo à imigração
e o fluxo, que já era grande, atingiu cifras ainda maiores, alavancando todos os setores
produtivos do país. No início de 1880, cerca de 50 mil imigrantes ingressavam no país
anualmente, ao final do decênio, esse número chegou a quase 300 mil (BERTONI, 2001,
p. 19). Embora a presidência de Júlio A. Roca não tenha representado uma ruptura em
relação ao período anterior, a mensagem governamental, difundida por meio do jornal
La Tribuna Nacional, afirmava que a Argentina havia entrado em uma “nova era”,
identificada com o progresso econômico e social (ALONSO, 1997).
O tema da imigração foi objeto de especial interesse por parte do Jornal do
Commercio. Por ser favorável à substituição do trabalho escravo pelo livre no Brasil,
o diário fluminense considerava o escasso número de imigrantes que adentravam ao
Império um problema crucial. Por esse motivo, criticava os ineficazes esforços para
atrair uma corrente imigratória na proporção necessária e para a alocação dos recém-
chegados. Para corroborar essa assertiva, apresentava, comparativamente, os dados
da Argentina, elogiando a campanha daquele governo para fomentar a introdução de
5. A Conquista do Deserto, ou Campanha do Deserto constitui-se em ações militares que buscaram
essencialmente, expulsar os índios da região localizada ao sul de Buenos Aires de modo a incorporar as
terras da região.
RAMOS, Paula da Silva
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“braços estrangeiros” no país, as repartições dedicadas à recepção e alojamento dos
mesmos e, principalmente, os benefícios econômicos propiciados por aquela população.
Na perspectiva apresentada pelo periódico, a imigração era a chave do desenvolvimento
da República Argentina e o meio pelo qual aquela nação aumentava seus produtos e
construía seu legítimo progresso.
Quanto às relações exteriores entre Brasil e Argentina, coexistiam pressões
contraditórias. A situação econômica e a importância política da região eram responsáveis
pela atuação dos estadistas dos dois lados da fronteira no sentido de conjurar os perigos
de guerra. No entanto, as rivalidades tradicionais se traduziam em constantes tensões
entre as duas nações, agravadas, naquela conjuntura, pelas divergências quanto à
questão de Palmas, território disputado por várias décadas entre os governos brasileiro
e argentino, pelo armamentismo dos dois países e por antigas concepções geopolíticas.
Sobre esse último ponto podemos destacar a avaliação do governo brasileiro sobre a
possibilidade do restabelecimento das fronteiras do antigo Vice Reinado do Prata, que
constituiria um grande Estado rival, bem como os temores argentinos sobre a expansão
territorial do Brasil (CERVO, 1981).
Apesar desse cenário, de acordo com o correspondente, nos anos 1880, as
relações entre o Brasil e a Argentina se encontravam em ótimo estado, “à exceção
das acostumadas notícias, das fantasias acesas que veem a cada instante um conflito.
Divergindo da abordagem anterior, o diário considerou a “mania de ver no horizonte
um futuro confronto com o Brasil”, uma prática que não valia a pena ser mencionada,
pois essas declarações eram divulgadas quando os jornais não tinham outros assuntos
(Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, p. 02, 18 out. 1887).
Para o periódico, o comércio pautava o verdadeiro sentido da civilização moderna
e, em nome desse, ambos os governos deveriam abandonar antigas prevenções.
Segundo o Jornal do Commercio, “não se compreende que dois países ricos, grandes e
poderosos, vivendo de vida própria, tenham por esses tempos de progresso, um pelo
outro uma antipatia absurda e estúpida e sem motivo certo” (Correspondência do Jornal
do Commercio: Montevidéu. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 02, 15 jun. 1881). Em
um olhar retrospectivo das relações entre os dois países, o correspondente em Buenos
Aires destacou a nova fase, marcada pela superação dos antagonismos tradicionais e o
desejo de prosperidade mútua:
Há vinte anos não se sabia o que era esta classe de afetos. Entre o Brasil e a
república Argentina havia antagonismo. Certa prevenção tradicional como que
era sustentada desde a época da conquista e afastava a ponto tal as duas nações
uma da outra, que se tinha como popular qualquer guerra que se anunciava.
Quanta diferença entre esses tempos e os que atravessamos! [...] A civilização
aproxima ambos os países, fez com que se conhecesse, se estudassem,
conhecessem o fundo do barbarismo que existia nesses sentimentos hostis
e se interessassem pela sorte e prosperidade recíproca (Correspondência do
Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p.
2, 07 ago. 1885).
Em 3 agosto de 1888, o periódico publicou um artigo na seção “Publicações a
pedido”, intitulado “Interesses entre o Brasil, os Estados Unidos e as Repúblicas do
O Jornal do Commercio e as representações sobre a Argentina na crise do Brasil Império (1870-1889)
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Prata” (Interesses entre o Brasil, os Estados Unidos e as Repúblicas do Prata. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, p. 3, 03 ago. 1888), no qual o autor anônimo afirmou que as
repúblicas vizinhas estavam para o Brasil, no sentido comercial, no mesmo nível que os
Estados Unidos e, portanto, mereceriam especial atenção. Por esse motivo, aconselhou
as autoridades responsáveis a estreitarem esses laços comerciais por meio da extinção
dos direitos de importação da farinha, um dos principais produtos argentinos, medida
que seria benéfica a ambos os países, pois aumentariam as trocas comerciais e resultaria
no barateamento do pão para os consumidores brasileiros.
O novo cenário econômico argentino e o contraste em relação à situação brasileira
suscitaram discussões na imprensa a respeito dos diferentes sistemas de governo que
regiam ambos os países. Assim, o Jornal do Commercio enfrentou o desafio de noticiar
o desenvolvimento econômico daquela nação e ao mesmo tempo conter a propaganda
republicana, que apresentava a Argentina como um modelo de organização política.
Dessa forma, apesar da significativa guinada a uma perspectiva mais positiva em
relação àquele país, durante os meses que antecederam as eleições de 1886, a política
argentina foi alvo de declarações críticas. Tais considerações se relacionavam às posições
ideológicas do periódico e à desconfiança mantida por ele quanto ao funcionamento
do regime republicano. Referindo-se aos ataques pessoais entre os candidatos que
disputavam a presidência, declarou que, em meio à grandiosa prosperidade adquirida
pela Argentina, o país via se escancararem os abismos que se julgavam cobertos pelo
bom senso e o patriotismo. O diário retratou a campanha como uma babilônia eleitoral e
salientou a tendência para o arbítrio que constituía a política naquele sistema de governo
(Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, p. 2, 08 dez. 1885).
Concomitante à análise desse processo, ocorreram diversas discussões sobre
a natureza do regime político adotado por aquele país, demonstrando a preocupação
nutrida pelo órgão de imprensa em afirmar sua adesão à monarquia, ainda que
reconhecesse o desenvolvimento alcançado pelo vizinho. Segundo o jornal, o sistema
republicano na América do Sul estava baseado em uma ficção, pois o povo não elegia,
de fato, os seus representantes:
A preocupação que os perseguem (os governantes), inuindo sobre
os seus atos, é a de suprir, por meios articiais, a eleição popular. Foi
assim que os governos zeram para si eleitores, reunindo a volta de si
quantidade tal de elementos, que lhes seja quase impossível sair-se mal.
A repetição desses atos zeram com que o povo se convencesse de que
são os governos que elegem e não ele (Correspondência do Jornal do
Commercio:Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 2, 17
jun.1885).
Para o periódico, a liberdade, tão exaltada entre os defensores do regime, não
existia de fato, pois a máquina eleitoral servia apenas para dar legitimidade a um
sucessor previamente escolhido pelo governo. A irregularidade desses atos era a
fonte das revoltas que se estabeleciam em períodos fixos, sob o pretexto da eleição do
novo presidente da república. Em outro momento, o jornal afirmou que os estadistas
argentinos ignoravam as regras da ciência política, governavam de forma arbitrária e
não respeitavam os legisladores eleitos pelo povo.
RAMOS, Paula da Silva
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 143-158, jan.-jun., 2015.
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Todavia, a regularidade com que se deu a transição entre os governos de Julio A.
Roca e Juarez Celman deu novo ânimo à inclinação positiva do diário para com o país
vizinho. As considerações depreciativas ficaram circunscritas ao período eleitoral e se
ligavam ao posicionamento do Jornal do Commercio em relação à crise da monarquia. As
representações sobre a Argentina foram utilizadas naquele contexto como parâmetro
para a discussão nacional sobre a adequação da forma de governo, do sistema de
trabalho e das relações econômicas.
O periódico enalteceu a postura do presidente Júlio A. Roca que, ao final do seu
mandato, “tranquilo, sereno no meio dos ataques mais violentos, continuava com toda a
calma o seu caminho, preparando-se para descer do alto posto e entregar as rédeas do
poder ao seu sucessor”, pois a transição do poder efetuada sem revolução demonstrava
que o país estava realmente no caminho do progresso (Correspondência do Jornal do
Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 02, 01 mai. 1886). Na
nova conjuntura, mesmo tratando de temas delicados como o caudilhismo, aspecto da vida
política e cultural argentina, fortemente utilizado no Brasil para depreciar o país vizinho e
enraizado como símbolo da “barbárie” nas construções negativas dirigidas à República, a
abordagem seguiu um percurso distinto do apresentado na década anterior. Ao relatar o
surgimento de um movimento caudilhista na província de Corrientes, o correspondente
assegurou que aquele levante se findaria rapidamente, pois os novos tempos não permitiam
que um caudilho organizasse elementos que pudessem abalar a paz.
O diário também noticiou diversas manifestações de cordialidade entre as duas
nações. As declarações argentinas diante do anúncio da enfermidade de D. Pedro
II, em 1885, foram consideradas uma evidência do “progresso moral e intelectual
da República”. De acordo com o correspondente, além de um telegrama dirigido
ao governo brasileiro, vários “homens, tanto velhos, quanto jovens demonstraram
verdadeiro sentimento afetuoso para com a pessoa do monarca” (Correspondência do
Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 2, 07 ago.
1885). Em 1887, as negociações para a resolução via arbitramento do litígio fronteiriço
referente ao território de Palmas contribuíram para a paz e cordialidade entre os dois
países. Em 1889, após a assinatura do tratado que acordava a submissão dessa região
ao arbitramento norte-americano, o correspondente elogiou a iniciativa do IHGB que,
apreciando devidamente a importância desse para a solução pacífica da questão, resolveu
conferir os títulos de presidente e sócio honorários do Instituto, respectivamente, ao
então presidente argentino Juarez Celman (1886-1890) e ao seu ministro de negócios
estrangeiros, Henrique Moreno. Em 1888, por ocasião do aniversário da revolução
de maio, – movimento que deu início ao processo de independência na região do Rio
da Prata – o periódico declarou que como “intérprete dos sentimentos do país”, não
deixaria passar a “gloriosa data de 25 de maio sem erguer cordial saudação à nação
argentina, aos seus filhos ilustres que a tornaram independente e aos que têm sabido
mantê-la grande e forte na senda da liberdade e do progresso” (Jornal do Commercio –
25 de maio. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p.1, 25 mai. 1888).
A abolição da escravidão ecoou favoravelmente no país vizinho. As declarações e
manifestações populares e das autoridades, em decorrência desse evento, culminaram
na visita de uma comissão da imprensa fluminense à cidade de Buenos Aires, inclusive
com a presença de um representante do Jornal do Commercio.
De acordo com o
correspondente, o povo argentino, “pela grandiosa manifestação com que recebeu a
O Jornal do Commercio e as representações sobre a Argentina na crise do Brasil Império (1870-1889)
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notícia da total libertação dos escravos e pela recepção inolvidável feita aos jornalistas
fluminenses”, demonstrava um sentimento de amizade e fraternidade para com o
Brasil, apesar dos germes de discórdia e de ódio que alguns procuravam semear
(Correspondência do Jornal do Commercio: Buenos Aires. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, p. 2, 15 jan.1889).
Em suma, constata-se que, na década de 1880, houve um processo de
reformulação das representações em relação ao país vizinho em alguns setores da
imprensa brasileira. A despeito das construções negativas, enraizadas no imaginário
nacional, acerca das repúblicas do continente, circularam manifestações elogiosas em
relação à nação platina, bem como um apelo ao estreitamento de laços entre os dois
países. Ainda que com ressalvas quanto ao regime político argentino, o crescimento
econômico e populacional, o abrandamento das disputas internas e as negociações das
pendências externas foram exaltados pelo Jornal do Commercio.
A partir de então, as considerações do periódico sobre a república vizinha
seguiram duas orientações. A primeira, circunscrita ao período eleitoral, caracterizou-
se pelas criticas referentes ao funcionamento do republicanismo, demonstrando
o posicionamento desse órgão de imprensa no debate em torno da crise do regime
monárquico brasileiro. Por outro lado, o entendimento de que o fortalecimento das
relações comerciais se constituía no objetivo primordial de uma nação que aspirava
ao progresso encaminharam o discurso do periódico a um tom conciliador e de ajuda
mútua, responsável por declarações cordiais, elogiosas e que ressaltaram os benefícios
da convergência entre os dois países.
As reflexões do Jornal do Commercio acrescentam novos elementos à discussão
historiográfica acerca das representações brasileiras sobre a Argentina durante a
monarquia, na medida em que adiciona nuances às interpretações que ressaltam a
tônica do afastamento e das rivalidades. As declarações favoráveis provindas de um
órgão de imprensa de cunho conservador, alinhado ao Império e que contava com
grande prestígio e circulação no meio intelectual brasileiro são significativas, pois
expressaram o início de uma reconfiguração na construção simbólica a respeito do país
vizinho. Destaca-se, também, o efeito multiplicador dos artigos desse jornal no cenário
nacional, uma vez que seus textos eram reproduzidos pelas publicações das províncias
brasileiras (SILVEIRA, 2014, p.220).
Com o advento da República, no ano de 1889, novas manifestações nesse sentido
ocorreram no Brasil. De acordo com Kátia Gerab Baggio (2008, p. 436), nas primeiras
décadas republicanas, as visões sobre a Argentina foram, paulatinamente, agregando
símbolos de modernidade e progresso, a ponto desse país tornar-se “um modelo de
desenvolvimento e organização econômico-social para o Brasil nos inícios do século
XX”. Todavia, os contornos dessa inflexão começaram a se desenhar anos anteriores,
ainda durante a vigência do regime monárquico, ou seja, desde o início do processo de
modernização argentina, no ano de 1880.
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