SILVA, Paulo Robério Ferreira
*
https://orcid.org/0000-0001-9045-7781
RESUMO: A
guerra esquecida
foi uma etapa da
Guerra dos Bárbaros que passou despercebida
da historiografia até o início do século XXI.
Nos Sertões do Rio São Francisco, próximo, ao
Sul, aos Rios Verde e Carinhanha, digladiaram,
entre 1684 e 1688, os povos nativos Anaió e as
tropas comandadas pelo paulista Matias
Cardoso de Almeida e pelo baiano Marcelino
Coelho. Além de contribuir para justificar que
as Guerras do São Francisco a outra ocorreu
na segunda metade da década de 1670 também
entre Anaió e colonizadores não faziam
parte das Guerras do Recôncavo, como aceito
por alguns historiadores, os efeitos dessa
contenda lançam luzes sobre como os povos
nativos, para além da violência do extermínio,
também participaram da emergência do povo
brasileiro que surgiu com a colonização.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra dos Bárbaros;
Anaió; Colonizadores luso-brasileiros; Matias
Cardoso; Sertão do Rio São Francisco.
ABSTRACT: The “forgotten war” was a stage
of the Barbarian War that went unnoticed by
historiography until the beginning of the 21st
century. In the Hinterland of the São Francisco
River, close, by South, to the Rivers Verde and
Carinhanha, the Anaió native peoples and the
troops commanded by Matias Cardoso de
Almeida and the Marcelino Coelho came into
conflict between the years 1684 and 1688. In
addition to contributing to the justification that
the São Francisco Wars - the other one
occurred in the second half of the 1670s also
between Anaió and colonizers - were not part
of the Recôncavo Wars, as accepted by some
historians, the effects of this dispute shed light
on how the native peoples, in addition to the
violence of extermination, also participated in
the origins of the brazilian people that came
from colonization.
KEYWORDS: War of the Barbarians; Anaió;
Portuguese-Brazilian colonizers; Matias
Cardoso; hinterland São Francisco River.
Recebido em: 20/01/2021
Aprovado em: 19/03/2021
* Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas, Belo Horizonte - MG, doutorando do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Social (PPGDS) da Unimontes, Montes Claros - MG. E-mail:
terradecontato@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A Guerra dos Bárbaros foi uma série de conflitos ocorridos nas Capitanias do
Norte, entre 1651 e 1720, envolvendo diferentes povos nativos e os colonizadores. Até
recentemente, a historiografia considerava apenas os embates que se verificaram no
interior das Capitanias do Ceará, do Rio Grande (do Norte), da Paraíba e do Piauí como
aqueles que podiam receber este rótulo. Ultimamente foram incluídas no rol destas
guerras aquelas sucedidas no Recôncavo Baiano e proximidades, bem como as que
aconteceram no Rio São Francisco. Uma das etapas das Guerras do São Francisco,
deflagrada entre 1684 e 1688, em que digladiaram os povos nativos Anaió e os
colonizadores, permaneceu até o início do século XXI desconhecida, ou, como veremos,
esquecida.
Recuperar aspectos desta
guerra esquecida
contribui para lançar luz sobre os
próprios processos de formação da sociedade brasileira, considerando o lugar e a
importância dos povos nativos. Neste ponto, invocamos uma imagem violenta da
colonização, a qual provocou o extermínio de milhões de pessoas e de milhares de
culturas, também é preciso atentar para a emergência do povo brasileiro que ocorre no
bojo dos processos colonizadores.
Procuro, na primeira parte, enfatizar alguns aspectos da Guerra dos Bárbaros
pertinentes aos seus diferentes momentos. Considero que a
guerra esquecida
, como
defenderei, faz parte de uma etapa particular, as Guerras do São Francisco, no bojo
desse evento. Além disso, dado as pretensões deste estudo, também apresento alguns
aspectos que distinguem duas perspectivas quanto aos tipos de abordagem
epistemológica: a primeira, destaca a centralidade dos colonizadores naquele conflito; a
segunda, por outro lado, prioriza a atuação dos povos nativos.
Na segunda parte, identifico em um importante estudo feito por Pedro Taques
Paes Leme, em meados do século XVIII, que o mesmo não contempla aspectos da
atuação de Matias Cardoso numa guerra contra os Anaió, entre os anos de 1684 e 1689.
Tal evento foi o elemento provocador preponderante que resultou na chamada
guerra
esquecida
. O estudo de Paes Leme, publicado em fins do século XIX, circulou, como
importante referência na historiografia produzida no século XX.
É sobre esta historiografia, em relação à apropriação da pesquisa feita por Paes
Leme, que a terceira parte deste estudo é organizada. Houve uma reprodução acrítica da
lacuna deixada por Paes Leme, o que provocou, inclusive, distorções interpretativas. A
guerra esquecida
só apareceu na historiografia no início do século XXI, por meio de
pesquisas realizadas por dois historiadores.
Na quarta parte, apresento alguns vestígios, por meio de documentos históricos,
que confirmam a guerra entre os Anaió e tropas do paulista Matias Cardoso e do baiano
Marcelino Coelho, entre 1684 e 1688. É bastante interessante as descrições, as quais
exponho sobre estes povos nativos, principalmente, os Anaió pois sabe-se ainda muito
pouco deles. No entanto, antes dessa guerra na segunda metade da década de 1680, nos
Sertões do Rio São Francisco, eles estiveram em contenda com os colonizadores nas
proximidades da foz do Rio Salitre, entre 1674 e 1679. Apenas reforça a tese de que, de
fato, as Guerras no São Francisco distinguiram-se das Guerras do Recôncavo.
Por fim, trago outros aspectos que reforçam as diferenças entre as Guerras do
São Francisco das Guerras do Recôncavo, opondo a classificação feita por Puntoni
(2002, p. 291), o qual incluiu as primeiras como uma das etapas da primeira fase da
Guerra dos Bárbaros. Em corolário, também ressalvo a demanda de estudos que
considerem a pluralidade étnico-sociocultural como um meio de compreenderem melhor
tal como emergiu o povo brasileiro do amálgama de diferentes e inúmeros grupos sociais,
especialmente, a participação dos povos nativos. Este, possivelmente, seja um caminho
profícuo para trazer novas respostas para velhas e novas questões.
A Guerra dos Bárbaros
Na segunda metade do século XVII e nas duas primeiras décadas do século XVIII,
no interior dos Estados do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará, região que hoje
conhecemos como Nordeste, uma série de conflitos entre as populações nativas ali
residentes milhares de anos
1
e os colonizadores luso-brasileiros, com suas tropas,
formadas majoritariamente por flecheiros nativos. Caracterizou Puntoni como Um dos
episódios mais violentos de nossa história […]” (PUNTONI, 2002, p. 13); batizado, desde
aquele período, de Guerra dos Bárbaros. .
Essa intensa contenda, em suas diferentes faces, tem sido apresentada em dois
conjuntos de conflitos: as chamadas
Guerras do Recôncavo
e a
Guerra do Açu
2
. Na
primeira fase, os conflitos ocorreram entre 1651 e 1679; na segunda, entre 1687 e 1720
3
.
1
Conforme Martin (2013, p. 49-84), o homem entrou no continente americano por volta de 50.000 anos
antes do presente (AP). No Nordeste, as datações mais antigas remetem cerca de 48.000 anos AP. Esta
datação, resultado de escavações profundas feitas por Niède Guidon, no Sítio do Boqueirão da Pedra
Furada no Piauí, indicaria que, além do povoamento da América ter ocorrido através da Beríngia, há cerca
de 30.000 anos AP, resultando que o homem teria chegado à América do Sul cerca de 12.000 anos AP,
outras “portas de entrada” teriam ocorrido. A mesma autora diz ainda que escavações em Central, na
Bahia, na depressão sanfranciscana, estas feitas por Conceição Beltrão, teriam localizado artefatos líticos
produzidos pelo homem, que datariam de 200.000 a 290.000 anos AP.
2
Grafa-se também
Assu
.
3
Oliveira (2007, p. 22) reivindica a Guerra aos Pimenteira, no Piauí, ocorrida entre 1770 e 1812, como parte
da Guerra dos Bárbaros.
As Guerras do Recôncavo são reconhecidas em quatro momentos: o primeiro, as
Jornadas do Sertão, entre 1651 e 1656; o segundo, a Guerra do Orobó, de 1657 a 1659; o
terceiro, a Guerra do Aporá, de 1669 a 1673; e a sua última etapa, as Guerras no São
Francisco, de 1674 e 1679 (PUNTONI, 2002, p 291). Quanto à Guerra do Açu, esta teria
contornos de um efetivo enfrentamento ininterrupto entre nativos e colonizadores a
partir do início de 1687. No entanto, conforme Puntoni (2002, p. 124), as animosidades
entre estes dois segmentos se manifestavam desde a década de 1670. Taunay (1936a, p.
14-23), por outro lado, indica que o litígio já se desenrolava de forma ininterrupta desde
1683 e de forma esporádica na década de 1650.
Tais embates envolveram várias etnias nativas, tanto na defesa de seus
territórios, como outras, cooptadas/associadas ao colonizador. Algumas das principais
sociedades nativas que lutaram contra a invasão promovida pelo colonizador luso-
brasileiro foram: os Cariri, os Tairarú, os Icó, os Janduí, os Paiacú, os Payayá, os Ariú, os
Tupin
4
, os Anaió, os Sapuyá e os Maracá. Estes povos nativos do tronco etnolinguístico
Macro-Jê foram denominados pejorativamente, pelos Tupi, de tapuias. Este termo,
apropriado igualmente pelo colonizador
5
, significava, grosso modo, o estrangeiro, o
inimigo, aquele que não possuía costumes semelhantes aos dos povos Tupi e utilizavam
uma língua incompreensível. Os povos Macro-Jê ocupavam tanto o litoral como interior
de boa parte do território brasileiro, incluindo o que hoje é a região Nordeste. Cerca de
1000 anos AP
6
, como informa Martin (2013, p. 202), passaram a dividir este território de
ocupação milenar como os povos nativos do tronco etnolinguístico Tupi-Guarani
7
. Daí
ter originado, entre vários desses grupos, contendas que, durante a Guerra dos
Bárbaros, ainda estavam em voga. O que, em certa medida, explica a predominância de
povos Tupi-Guarani “aliados” aos colonizadores contra estes povos nativos chamados de
tapuias.
Quanto aos colonizadores, foram mobilizadas tropas e recursos oriundos das
capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande, Piauí, Ceará, Bahia e São
Paulo. Sobre estes contingentes, as informações são dispersas, dado, sobretudo, as
diferentes características dos vários momentos deste conflito (PUNTONI, 2002, p. 192-
4
Estes nativos eram do tronco etnolinguístico Tupi-Guarani. Defenderam seus territórios na Guerra do
Orobó.
5
O primeiro registro do colonizador feito sobre os tapuias foi o do padre João de Aspilcueta Navarro, em
uma carta de 24 de junho de 1555 (NAVARRO, 1931, p.148).
6
Antes do Presente.
7
Martin (2013, p. 202) chega a essa conclusão, ao relacionar a ocupação do território aos vestígios
cerâmicos; procedimento recorrente entre pesquisadores. Neste caso, as cerâmicas
Tupiguarani
foram
localizadas, com datações de aproximadamente 1000 anos AP, em posição superior as cerâmicas não-
Tupiguarani, Aratu e Papeba
,
em dois tios, um no atual território da Bahia e outro no Rio Grande do
Norte.
202). A título de exemplo, e dado ter sido Capitão-Mor na
guerra esquecida
, destacarei
alguns aspectos da participação do paulista Matias Cardoso de Almeida na Guerra do
Açu. Primeiro, a sua contratação para a referida campanha militar, feita pelo então
Governador Geral do Brasil, Frei Manuel da Ressurreição, estava alicerçada em
indicações do potentado, Antônio Guedes de Brito e do provedor-mor, Francisco
Lamberto, sob a indicação, deixada em carta, do ex-Governador Geral, Matias da Cunha,;
bem como chancelada pela Câmara de São Paulo. Matias Cardoso, nas últimas décadas
do século XVII, era reconhecido como um dos principais líderes paulistas nas campanhas
de guerra contra os povos nativos. Na condição de Capitão-Mor na Guerra do Açu,
Matias Cardoso mobilizou um grande contingente militar, formado por paulistas e, em
sua maioria, por guerreiros nativos. Estima-se que ele tenha comandado cerca de 1.200
homens naquela campanha, financiada tanto por recursos próprios de Matias Cardoso,
como outros oriundos do Estado colonial brasileiro e de algumas capitanias.
Uma leitura recorrente, feita pela historiografia produzida nas últimas décadas,
tem enfatizado a Guerra dos Bárbaros na perspectiva do avanço colonizador provocado
pela expansão das atividades pecuárias, como mostram, por exemplo, Abreu (1988),
Puntoni (2002), Pires (1990), Magalhães (1935), Silva (2003), Santos (2017) e Pompa
(2001). A este elemento comum, outros aspectos têm sido também destacados, entre
eles: a necessidade de ocupação do território pela Coroa lusitana, por meio do Estado
colonial, tanto em face do reestabelecimento do trono português, ocorrido em 1640,
depois dos sessenta anos em que este esteve anexado à Coroa espanhola, quanto pela
expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654; a exploração e, em certos casos, a
consolidação de domínios dos potentados sobre territórios até então não ocupados; a
ampliação do alcance das chamadas ações missionárias de ordens religiosas e do clero
secular; a ampliação da atuação de grupos particulares, a exemplo dos paulistas,
dedicados à guerra e apreensão de nativos; a exploração de recursos minerais, entre
outros.
Por outro prisma, pesquisas mais recentes têm evidenciado os interesses e
demandas dos povos nativos nestes conflitos, a exemplo dos trabalhos de Pires (1990),
Silva (2003), Monteiro (2001), Silva e Costa (2019) e outros. Se, grosso modo, a partir da
leitura do avanço colonizador pelo Sertão, tem se tratado tais conflitos na perspectiva do
“descobrimento”, da “conquista” e de “processos civilizatórios”, entre outros
qualificadores, diante de resistências” oferecidas pelos povos nativos, para essa outra
vertente, o foco é o protagonismo das sociedades autóctones. Daí o interesse, por
exemplo, pelos (re)arranjos feitos por estas sociedades nativas, dado ao avanço violento
do colonizador sobre os seus territórios. Questões políticas, econômicas, religiosas,
militares, socioculturais, entre outras, têm sido tratadas nestes estudos.
A Guerra dos Bárbaros foi um segundo e decisivo momento de modificação
radical dos processos sócio-históricos das sociedades nativas que habitavam há milhares
de anos o Sertão das Capitanias do Norte. O primeiro, como comentado alhures, foi
provocado pela expansão Tupi-Guarani que, embora tenha ocorrido em maior
intensidade no litoral, também afetou os povos nativos que viviam naquelas plagas.
Quanto aos efeitos da Guerra dos Bárbaros, as alterações estruturais foram ainda mais
decisivas, pois, a partir dali, aqueles territórios passaram a integrar, paulatinamente, a
estrutura colonial luso-brasileira.
A lacuna histórica
A Guerra dos Bárbaros foi tratada até recentemente como sendo apenas os
eventos ocorridos nas Capitanias do Rio Grande, Ceará, Piauí e Paraíba. Pedro Puntoni,
em
A Guerra dos Bárbaros
(2002, p. 13) inseriu neste rol também as chamadas Guerras
do Recôncavo: Jornadas do Sertão; Orobó, Aporá e do São Francisco, ocorridas na Bahia
entre 1651 e 1679.
Os primeiros registros que se têm da Guerra dos Bárbaros na historiografia
brasileira teriam sido feitos por Sebastião da Rocha Pita em sua obra, imortalizada,
História da América Portuguesa
, concluída em 1724 e publicada em 1730. Nela, Rocha Pita
trata do pedido de socorro feito por colonizadores da Capitania do Ceará, dado as
constantes ameaças de povos nativos que habitavam, em grande quantidade, aquele
território e adjacências. A resolução tomada pelo então Governador Geral do Brasil,
Mathias da Cunha, foi depois de reunir autoridades no assunto, inclusive religiosas, de
promover uma intervenção naquelas plagas. Para dar cabo a tal demanda, foram
mobilizados recursos que envolviam tanto o poder colonial quanto forças particulares.
Segundo Rocha Pita, o resultado da referida empresa teria sido “[...]
a quietação que hoje
logra aquella província
[...]” (PITA, 2013, p. 219).
Poucas décadas depois, o tema também foi abordado em outra importante obra do
século XVIII, dessa vez com novas e significativas informações. Trata-se do livro
Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica
de Pedro Taques Paes Leme. Não se tem
a data precisa de sua conclusão. Taunay (1923, p. 58) estima que o autor a escreveu
durante cerca de vinte anos, entre meados das décadas de 1730 e 1750. Em 1755, Pedro
Taques foi a Portugal tentar a publicação em livro de seu vigoroso trabalho de pesquisa.
Sem êxito, volta ao Brasil em 1757. Sua publicação, no entanto, foi feita em edições da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, datadas de 1869, 1870, 1871 e 1872
(LEME, 1869, 1870a, 1870b, 1871a, 1871b, 1872a e 1872b). O que indica que a sua utilização
como fonte vai acontecer a partir do final do século XIX
8
, tornando-se uma importante
referência sobre a presença dos paulistas na Guerra dos Bárbaros.
Em relação à atuação dos bandeirantes do Planalto de Piratininga, Leme (1869,
1870a, 1870b, 1871a, 1871b, 1872a e 1872b) destaca, entre outros, a atuação de Matias
Cardoso de Almeida, um dos principais líderes das empresas que foram criadas para dar
cabo da resistência dos povos nativos ao avanço colonizador. Ressalta, como comentado
anteriormente, como a sua experiência em incursões pelo Sertão e, especificamente,
nesse tipo de conflito (TAUNAY, 1924, 1927, 1928, 1929, 1930 e 1936b), teria sido o
principal motivo para que o mesmo fosse contratado pelo Governo Geral do Brasil para
liderar um novo estilo de guerra, como informado por Ressurreição (1929a, p. 383), a ser
implementado contra os nativos, nas capitanias do Ceará e Rio Grande.
Pedro Taque Paes Leme, no entanto, ao recuperar a trajetória histórica de Matias
Cardoso, não contempla um período que pode ser considerado como um dos mais
significativos de sua atuação no Sertão, como se discutirá
a posteriori
. Trata-se da
guerra promovida contra os Anaió
9
, no Sertão do Rio São Francisco, próximo, ao Sul, aos
Rios Verde e Carinhanha
10
. O autor observa que Matias Cardoso, ao deixar a bandeira de
D. Rodrigo Castelo Branco, após a sua morte no Sertão em 1682, retorna e permanece
em São Paulo até ser convocado para a guerra no Ceará e Rio Grande em 1689 (LEME,
1870a, p. 54). Entretanto, Leme não identificou em sua pesquisa é que, em 1684, Matias
Cardoso foi contratado por Antônio Guedes de Brito, senhor da Casa da Ponte, com aval
do então Governador Geral do Brasil, Antônio de Souza Menezes, para a dita guerra
contra os Anaió, no Sertão do Rio São Francisco; bem como que o mesmo permaneceu
nessa contenda até 1688, e ali foi o responsável por liderar os processos de ocupação
colonial que viriam resultar no primeiro arraial com população sedentária no território
que mais tarde seria parte do Estado de Minas Gerais, como será discutido mais adiante.
Sobre a presença de paulistas no Sertão do Rio São Francisco, o historiador
catarinense Affonso de Escragnolle Taunay, em sua importante e volumosa obra:
História Geral das Bandeiras Paulistas,
ajuda-nos a dimensionar melhor esse fenômeno.
8
É importante destacar que, antes disto, Varnhagem (1975, p. 256) faz menção à Guerra dos Bárbaros nos
Sertões do Ceará e Rio Grande sem, no entanto, dar maiores detalhes do que aquilo que tinha sido
apresentado por Rocha Pita (2013, p. 219).
9
A grafia de etnônimos referentes aos povos nativos obedece aqui à Convenção para a Grafia dos Nomes
Tribais de 1956. Portanto, são escritos como inicial maiúscula e o são flexionados quanto a gênero e a
número (MELATTI, 1999, p. 1). Além de Anaió, também aparecem nos documentos consultados as seguintes
grafias:
Ua Nay
,
Anojeses
, A
yayos.
10
Atualmente estes rios servem de marco divisório entre os Estados de Minas Gerais e Bahia. O Rio Verde
do lado direito e o Carinhanha do lado esquerdo do Rio São Francisco.
Os primeiros desbravadores do Planalto de Piratininga a chegarem ao Vale do Rio São
Francisco teriam sido aqueles da expedição de André Leão, em 1602. O malogro de tal
empresa resultou na decisão de envio de uma nova bandeira no ano seguinte. Liderados
por Nicolau Barreto, estes paulistas alcançaram o curso médio do Rio São Francisco e
atingiram o Rio Paracatu (TAUNAY, 1924, p. 339). É possível, então, admitir que, a partir
daí, o curso médio do Rio São Francisco havia sido palco de ações desses desbravadores
e exploradores.
Quanto a Matias Cardoso de Almeida, não foi localizado, até então, registro do
momento em que o mesmo atinge o curso médio do Rio São Francisco pela primeira vez.
Taunay informa apenas que, ainda menino, Matias Cardoso acompanhava seu pai
11
ao
Sertão, sem precisar exatamente em quais localidades: “Mathias Cardoso mal attinge dez
annos quase mais não sahe do sertão, no arraial
12
paterno.” (TAUNAY, 1929, p. 90). De
certo, sabe-se que Matias Cardoso recebeu, em 1664, Carta Patente para desbravar o
Sertão do Rio São Francisco. Ao comentar sobre este documento, como se na folha 99
do livro de registro n
o
4 da Câmara de São Paulo, no ano de 1664, Pedro Taques Paes
Leme informa que Matias Cardoso “[...] tinha grande experiência, daquelle sertão, e dos
índios gentios delle nas entradas de importância, que tinha conseguido em que
procedera com muito valor e boa disposição, conquistando o barbaro inimigo, que o
deixara domado [...]” (LEME, 1870 apud
TAUNAY, 1930, p. 99).
Essa informação contribui, em grande medida, para sanar alguns aspectos sobre
as recorrentes questões referentes à presença de Matias Cardoso de Almeida (filho) no
que se chama Sertão do Rio São Francisco. Primeiro, em termos absolutos, o Sertão do
Rio São Francisco difere apenas da região de sua foz. Significa, tomando a classificação
atual, os cursos alto, médio e baixo. Esses compõem o território nomeado aqui de Sertão
do Rio São Francisco. Segundo, os paulistas exploraram os cursos alto e médio do Rio
São Francisco desde o início do século XVII; isso significou um longo território entre a
sua nascente e o sumidouro (atualmente as cachoeiras de Paulo Afonso, BA). Desse
modo, não seria possível precisar em quais partes específicas destas plagas Matias
Cardoso atuou (TAUNAY, 1924; 1925; 1927; 1928; 1929; 1930 e 1936b). É possível, no
entanto, especular que o Rio das Velhas tenha sido umas das principais, senão a principal
via de entrada do Vale do Rio São Francisco para os paulistas; considerando a
importância histórica que ganhou ao longo dos séculos XVII e XVIII.
11
Seu falecimento ocorreu em 1656.
12
Conforme Bluteau (1712a, p. 544), Arraial é “[] o alojamento de hum Exercito na campanha.
Um segundo recorte, no entanto, tornaria mais preciso aquilo que neste trabalho
é nomeado especificamente como
Sertão do Rio São Francisco
. Trata-se da criação do
Arraial de Matias Cardoso. Conforme informações de seu filho, Januário Cardoso de
Almeida, este arraial foi instalado, em 1684, primeiramente na barra do Rio Verde (na
divisa dos atuais Estados da Bahia e Minas Gerais), jurisdição da Capitania da Bahia
(ALMEIDA, 1721, p. 1). Logo em seguida, dado aos efeitos de enchentes do Rio São
Francisco, este arraial é transferido para uma localidade alguns quilômetros acima
(atualmente comunidade Arraial do Meio no município de Matias Cardoso, MG). Deste
modo, para este trabalho, o Sertão do Rio São Francisco se refere especificamente ao
trecho compreendido entre os Rios Verde e Carinhanha, ao Norte, e à região em torno da
foz do Rio das Velhas. Note-se, em todo caso, que este recorte arbitrário, justificado para
esta pesquisa, não oblitera o fato de que os cursos alto e médio do Rio São Francisco
tenham sido palco de atuação dos paulistas desde o início do século XVII.
A apropriação da lacuna
Quanto à atuação de Matias Cardoso de Almeida nos Sertões, vetor para se
entender a
guerra esquecida
, a historiografia subsequente reproduziu a lacuna deixada
por Pedro Taques Paes Leme. Da mesma forma, Diogo de Vasconcelos (1904) um dos
mais influentes historiadores do século XX, em sua obra
História Antiga das Minas
Gerais
, publicada pela primeira vez em 1904, orientando-se, possivelmente, pelo texto de
Paes Leme embora não credite a ele a fonte, mesmo tendo feito uso recorrente das
informações extraídas de
Nobiliarquia Paulistana
, também destaca a presença de
Matias Cardoso nas expedições de Fernão Dias e D. Rodrigo Castelo Branco, a partir de
meados da década de 1670 e início de 1680, respectivamente, e depois volta a
mencionar a sua preparação e atuação na guerra dos Sertões do Norte. Não faz
referência à Carta Patente recebida por Matias Cardoso em 1684; condição que permitiu
a guerra contra os Anaió, no Sertão do Rio São Francisco.
Vasconcelos (1904, p. 62) informa que Matias Cardoso deixou São Paulo em 1692
com uma tropa de 600 homens, rumo ao Sertão do Rio São Francisco. Lá, esperaria,
como de fato aconteceu, outra leva de 600 homens, liderados por João Amaro Maciel
Parente. Teriam, ainda segundo este autor, acampado em Morrinhos. Tratava-se,
conforme Santos (2011, p. 6), de um acidente geográfico localizado acima do Arraial de
Matias Cardoso, às margens do Rio São Francisco. O início do povoamento colonial neste
lugar só ocorreu depois de 1696, por iniciativa de Januário Cardoso de Almeida.
De Morrinhos, as tropas lideradas por Matias Cardoso de Almeida marcharam
rumo a um posto de guerra erguido às margens do Rio Jaguaribe, no Ceará.
O historiador Diogo de Vasconcelos enaltece os feitos deste bandeirante paulista:
A guerra durou sete annos, sem tregoas, até que os infelizes selvagens foram
exterminados na maioria, e o resto, que foi de milhares, como rebanho,
partilhado entre os vencedores. O Mestre de Campo, com o seu irmão e fiel
companheiro Manoel Cardoso, arrecadando a multidão, que lhes coube,
fundaram ricas Fazendas de criar no sertão e nunca mais voltaram à patria.
(VASCONCELOS, 1904, p. 64).
O aprofundamento da pesquisa deste importante evento, no entanto, indicou um
desfecho diferente da participação de Matias Cardoso naquele conflito. Além de perder
um filho e ser gravemente ferido, parte de sua tropa ou foi massacrada ou desertou. Do
mesmo modo, por não ser atendido pelo Governo Colonial, conforme o acordo firmado,
Matias Cardoso se viu na iminente necessidade de abandonar aquele território e retornar
às suas posses no Sertão do Rio São Francisco, em 1694, como mostra Studart Filho
(1961, p. 204). Também divergência em relação às datas. Bernardino Vieira Travasco
(1949, p. 125) informou ao conde de Alvor, em 5 de agosto de 1694, que Matias Cardoso
permaneceu no Ceará e Rio Grande durante cinco anos. Isso contradiz os sete anos
informado por Diogo de Vasconcelos. Disso se depreende que a chegada de Matias
Cardoso ao Sertão do Rio São Francisco foi em 1690 e não em 1692.
Em
Expansão Geographica do Brasil Colonial
, obra publicada em 1914, Basílio de
Magalhães, além de destacar a atuação de Matias Cardoso nos confrontos contra os
povos nativos no Ceará e no Rio Grande, na primeira metade da última década do século
XVII, ressalta ainda a sua peculiar presença nos processos de colonização que
aconteceram nos últimos anos daquela década, no trecho médio do Rio São Francisco,
denominado “rio dos currais” (MAGALHÃES, 1935, p. 176). Também não faz menção à
guerra entre os Anaió e as tropas de Matias Cardoso e de Marcelino Coelho, o qual
contribui, dado a penetração de seu trabalho entre historiadores e outros pesquisadores
dedicados a este tema, para manter a referida
guerra esquecida
.
Em outras importantes obras do século XX, também tomadas como fontes
secundárias, as narrativas seguem, em linhas gerais, aquilo que foi produzido
originalmente por Pedro Taques Paes Leme. Com tal característica, Affonso de
Escragnolle Taunay em seu aclamado
História Geral das Bandeiras Paulistas
, tomos VI e
VII (1930 e 1936b), por exemplo, também não trata do conflito entre os Anaió e os
paulistas e baianos. Urbino Vianna, em
Bandeiras e Sertanistas Baianos
, publicado em
1935, mesmo aludindo à existência de uma Carta Patente, concedida em 12 de maio de
1684, pelo Governador Geral do Brasil, Antônio de Souza Menezes, o braço de prata, a
Matias Cardoso de Almeida, dando-lhe o título de Governador e Administrador de todas
as aldeias e nações que reduzir e situar a partir de Porto Seguro até além do Rio de São
Francisco, não indica nada a respeito do conflito neste período derivado nos Sertões do
Rio São Francisco. Vianna, ao contrário, confunde esta Carta Patente com outra recebida
por Matias Cardoso em 1690 (RESSURREIÇÃO, 1935, p. 7-14). Esta última referente à
campanha a ser realizada no Ceará e Rio Grande. Concluiu Urbino Vianna
equivocadamente:
Cinco anos, porém, tinham de decorrer até que a expedição saísse de São Paulo,
vindo por terra, estando em 1690 nas margens do São Francisco, como se
depreende da carta patente de 3 de abril desse ano, assinada por Frei Manoel da
Ressurreição, arcebispo da Bahia, que estava no Governo em substituição a
Mathias da Cunha, vítima da
Bicha.
(VIANNA, 1935, p. 41, grifo do autor).
Em outros estudos que fazem referência a atuação de Matias Cardoso nos
Sertões, a exemplo de Braz (1977), Pires (1979), Franco (1940), Ellis Jr. (1934), Derby (1901)
e Vasconcellos (1944), a contenta entre os Anaió e as tropas deste bandeirante paulista
também não foi enfocada, acentuando a lacuna existente.
As primeiras alusões a este conflito feitas pela historiografia, até onde foi possível
identificar, foram as produzidas por Ângelo Carrara no artigo
Antes das Minas:
conquista e ocupação dos sertões mineiros
, publicado em 2007; e por Márcio Santos em
sua tese de doutorado,
Fronteiras do Sertão Baiano: 1640-1750,
defendida em 2010 e
publicada em livro,
Rios e fronteiras: conquista e ocupação do Sertão baiano
, em 2017.
Tomando como referência documental da época, ambos os textos fazem menção à
guerra dos Anaió contra os paulistas e os baianos a partir de 1684. São informações
ainda incipientes sobre este importante conflito, ainda assim significativas para tornar
mais bem entendidos os processos de colonização do Sertão do Rio São Francisco neste
trecho entre os Rios Verde e Carinhanha, ao Norte, e o Rio das Velhas ao Sul, como
discutiremos em seguida.
A guerra esquecida e os Anaió
Em um dos poucos documentos, localizados até então, a trazer informações sobre
a guerra do Sertão do Rio São Francisco, Januário Cardoso de Almeida, filho de Matias
Cardoso, em carta enviada ao Governador Geral do Brasil, Vasco Fernandes César de
Meneses, o conde de Sabugosa, informa que foi o seu pai quem “[…] destruiu e extinguiu
os bárbaros [anajoses
13
(?)] que impediam o povoar-se este rio de São Francisco […]”
(ALMEIDA, 1721, p.1). Tal evento teve início em 1684, como indicam tanto a Carta Patente
13
Anaió.
que autorizava este conflito, recebida por Matias Cardoso em 12 de maio de 1684, como o
fato de, ainda naquele ano, ser erguido o
Arraial e Rio de São Francisco
o arraial
criado por Matias Cardoso próximo a três aldeias dos Anaió
14
, localizado, primeiramente,
próximo à foz do Rio Verde e depois transferido para uma localidade alguns quilômetros
acima. Este, neste mesmo ano, é incorporado à jurisdição da Capitania da Bahia, como
mostra Januário Cardoso no mesmo documento (ALMEIDA, 1721, p. 1).
Outra referência se em uma declaração prestada pelo padre Paulino Pestana e
Souza, pároco em 1700 na igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, no Arraial de Matias
Cardoso. Diz ele ter ouvido do próprio Matias Cardoso como este, em parceria com
Marcelino Coelho, debelou os Anaió (
Ua Nay
):
[...] por ordem do dito mestre-de-campo (sic) [Guedes de Brito] e [com?]
Marcelino Coelho desinfestar os ditos sertões de gentio bravo ao qual se chama
“Ua Nay
15
, por cuja regência lhe dera o dito mestre-de-campo um grande
prêmio a fim de pagar os gastos para a dita conquista, e no mesmo
descobrimento continuara o coronel Antônio da Silva Pimentel. (CARRARA,
2007, p. 588).
Sobre os povos Anaió, estes são do tronco etnolinguístico Macro-Jê. No período,
também receberam o epíteto de
tapuias
. Ocupavam o território denominado, neste
estudo, de Sertões do Rio São Francisco, cerca de 12.000 anos AP (PROUS, 2006, p.
73-75). No final do século XVII, no momento imediatamente posterior ao fim dos
conflitos com os colonizadores paulistas e baianos, viviam em três aldeias, localizadas
próximo, ao Sul, aos Rios Verde e Carinhanha. Uma delas nas imediações do que hoje é a
comunidade de Vereda, no atual município de Matias Cardoso, MG. Esta, próxima ao
Arraial de Matias Cardoso; as outras se localizavam no que atualmente é o município de
Manga, MG: a primeira próxima à comunidade de Brejo São Caetano (outrora: São
Caetano do Japoré), e a segunda um pouco acima da Tabua, mais próxima do Rio São
Francisco. As informações estão contidas no mapa:
Demonstração dos afluentes do Rio
São Francisco, em Minas Gerais
, confeccionado por autor anônimo depois de 1725, a
partir do mapa de Cocleo produzido na última década do século XVII, como mostra
Santos (2011, p. 2).
Quanto à peleja entre os Anaió e as tropas de Matias Cardoso e Marcelino Coelho,
esta teria durado cerca de quatro anos, ou pouco menos, como é possível deduzir, pois
foi apenas em 1688 que Matias Cardoso retornou a São Paulo em busca de farinha
14
Conforme o Mapa da maior parte da costa, e sertão, do Brasil / Extraído do original do P.
e
Cocleo”.
Mapoteca do Arquivo Histórico do Exército. Sobre as mapotecas 23 e 24.2798.
15
Essa foi também uma das denominações, utilizadas no período, para Anaió.
(RESSURREIÇÃO, 1929b, p. 147) e de famílias para povoar o Sertão. Domingos do Prado
de Oliveira, seu sobrinho, informa em documento de 1713, quando o mesmo tinha trinta
anos de idade e residia no Arraial de Matias Cardoso (atual Arraial do Meio, no município
de Matias Cardoso, MG), que fora por iniciativa do seu referido tio que ele e sua família
foram residir no dito arraial, em 1689 (ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO,
1713, p. 1). Nesse mesmo ano, chegaram ao Sertão do Rio São Francisco mais de 100
famílias paulistas (BIBLIOTECA NACIONAL, 1935, p. 172), dando início à ocupação
colonizadora destas plagas com população sedentária.
Outro evento importante, que contribui para mais bem dimensionar a importância
da
guerra esquecida
nos primeiros processos de ocupação colonial no Sertão do Rio São
Francisco, refere-se à concessão de sesmarias, em 1690, a um grupo de vinte
peticionários paulistas liderados por Matias Cardoso. Além de terem sido doadas
imediatamente à chegada das famílias paulistas ao Arraial de Matias Cardoso ocorrida
em 1689, estas estavam localizadas no território da grande sesmaria de Antônio Guedes
de Brito, na área em que Matias Cardoso exercia a função de “governador e
administrador de aldeias e nações” que fossem por ele reduzidas, conforme a Carta
Patente recebida em 1684. Foram beneficiários: o tenente general Matias Cardoso de
Almeida, o capitão Domingos Soares de Albuquerque, Mateus Furtado, João Cardoso de
Almeida, José de Albuquerque, Matias de Albuquerque, o padre vigário Antonio Filgueira,
Domingos de Figueiredo Calheiros, Manoel de Aguiar da Corte, Pedro de Andrade
Pereira, Francisco Teixeira Cabral, Francisco Martins Pereira, Custódio Barbosa Vilas
Boas, Francisco de Lima Pinto, o capitão Manoel Soares Pereira, o Sargento-mor
Domingos Pires de Carvalho, Domingos Escorcio, João de Almeida, Salvador Cardoso e
Matias Rodrigues (SANTOS, 2017, p. 216).
Sobre a sesmaria de Antônio Guedes de Brito, André João Antonil, no livro
Cultura
e opulência do Brasil por suas drogas e minas,
escrito entre 1693 e 1709 e publicado em
1711, atesta a sua existência, indicando que a mesma se estenderia do Morro do Chapéu
(Bahia) ao Rio das Velhas (atualmente Minas Gerais) e que possuiria 160 léguas de
largura. O tema tem suscitado polêmicas, inclusive foi motivo de contenda entre Isabel
Maria Guedes de Brito, filha e herdeira de Antônio Guedes de Brito e o governo da
recém-criada Capitania de Minas Gerais. Conforme Capistrano de Abreu (
apud
COSTA
FILHO, 1958, p. 146), Antônio Guedes de Brito recebeu em 2 de maio de 1684 a referida
sesmaria do sesmeiro e então Governador e Capitão-mor de Sergipe, Bras da Rocha
Cardoso. Isabel Maria Guedes de Brito, em documento enviado ao Conselho Ultramarino
em 10 de maio de 1720, corrobora com a mesma informação (COSTA FILHO, 1958, p. 122).
Mesmo que se considere, numa possível objeção, que as vinte sesmarias doadas
por Antônio Guedes de Brito, entre os Rios Prado e Doce o primeiro localizado na
divisa dos atuais Estados da Bahia e Minas Gerais, e o segundo na região de exploração
aurífera, próximo a atual cidade de Ouro Preto distantes, portanto, do “palco” da
guerra esquecida
(nas proximidades dos Rios Verde e Carinhanha), seria possível
pressupor que tal determinação tenha sido motivada pelo próprio projeto colonizador
implementado por Antônio Guedes de Brito. Trata-se de um tema ainda pouco explorado,
mas, para efeitos deste estudo, é possível considerar que estes quatro eventos a
doação da maior sesmaria do Brasil a Antônio Guedes de Brito em 2 de maio de 1684; a
Carte Patente de 12 de maio do mesmo ano para atuação de Matias Cardoso em parte
desse território, o que resultou na guerra contra os Anaió; a criação do Arraial de Matias
Cardoso também em 1684; e a doação destas vinte sesmarias tenham relação entre si e
estejam no bojo dos processos de ocupação colonial ocorridos nos Sertões do Vale do
Rio São Francisco a partir da penúltima década do século XVII.
Tanto sobre os conflitos entre os Anaió e os paulistas e baianos ocorridos na
década de 1680, como sobre estes povos nativos, sabe-se ainda muito pouco. No entanto,
tem-se registros de que os Anaió estiveram em contenda com os colonizadores na
década anterior, entre 1674 e 1679, em outro trecho do Vale do Rio São Francisco; mais
precisamente nas proximidades da foz do Rio Salitre (atualmente município de Juazeiro,
BA). Em dois documentos oficiais do período os Anaió foram trados como “empecilhos” à
colonização (BIBLIOTECA NACIONAL, 1929a, p. 73-75; 1929b, p 75-76). Tais
informações, no entanto, podem também ser lidas como reveladoras da força e
belicosidade desses nativos que lutavam para manterem-se livres da submissão ao
colonizador.
Sobre a
Guerra do Salitre
16
, o padre Matinho de Nantes deixou um importante
relato que, se em grande medida mostra a violência promovida pelos colonizadores
contra as populações nativas, também indica a vigorosidade dos Anaió. No início de 1674,
as recorrentes incursões dos Anaió em fazendas da região supracitada passaram a
provocar temor acentuado entre os moradores. Segundo o frei Matinho de Nantes, estes
nativos “Haviam senhoreado todas as fazendas, que chamavam
curralo
, dos dois lados do
rio, numa extensão de cerca de trinta léguas, depois de haver matado os donos e seus
negros, como informei, em número de oitenta e cinco, fazendo todos os dias uma
grande matança de gado.” (NANTES, 1979, p. 51-52).
16
Puntoni (2002, p. 116-120) nomeou este conflito como a
Guerra do São Francisco
. A renomeação para
Guerra do Salitre
, neste trabalho, tem por objetivo evitar qualquer confusão com a
Guerra no Sertão do rio
São Francisco
, aqui indicada como a
guerra esquecida
.
Para dar cabo das investidas dos Anaió contra os colonizadores, foram
mobilizadas, primeiramente, tropas financiadas por Francisco Dias D’Ávila, senhor da
Casa da Torre. Os recorrentes fracassos das investidas contra os Anaió resultaram na
solicitação de ajuda ao governo colonial brasileiro. Este, autorizou o envio de pólvora,
balas e mais homens (nativos) para as tropas dos colonizadores, conforme informado em
carta de 18 de junho de 1676 enviada por Álvaro de Azevedo e Antônio Guedes de Brito a
Antônio Gonçalves do Couto (BIBLIOTECA NACIONAL, 1929c, p. 17). No entanto, o
conflito só arrefeceu em 1679, depois da degola de mais de quinhentos guerreiros Anaió e
o aprisionamento de tantos outros. O padre Matinho de Nantes, que presenciou este
rbaro evento, registrou:
Estava quase sem armas e morto de fome. Renderam-se todos, sob condição de que lhes
poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando-os a entregar as armas, os amarraram e dois
dias depois mataram, a sangue frio, todos os homens de arma, em número de quase quinhentos,
e fizeram escravos seus filhos e mulheres. (NANTES, 1979, p. 53).
O fim da
Guerra do Salitre
em 1679 não significou necessariamente a interrupção
das contendas envolvendo os Anaió e os colonizadores. Apenas seis anos depois, a
pugna volta a acontecer nos Sertões do Rio São Francisco, próximo aos Rios Verde e
Carinhanha. Não é possível, no entanto, dizer que tenha sido um prolongamento da
guerra que aconteceu na década anterior, nem, tampouco, descartar esta possibilidade.
O que se depreende, de antemão, é que as duas guerras dos colonizadores contra os
Anaió caracterizam uma fase distinta do conjunto de eventos belicosos que ficou
registrada como Guerra dos Bárbaros.
Conclusão
A
guerra esquecida
, não contemplada pela historiografia até então, dado que, por
influência da obra de Pedro Taques Paes Leme (1869, 1870a, 1870b, 1871a, 1871b, 1872a e
1872b), também não contemplou as atuações de Matias Cardoso de Almeida entre os
anos de 1684 e 1688 nos Sertões do Rio São Francisco, entre os Rios Verde e Carinhanha,
ao Norte, e o Rio das Velhas, ao Sul, ao ser “resgatada”, provoca de imediato duas
contribuições à história do Brasil em relação ao seu período colonial. A primeira, mostra
que no bojo da Guerra dos Bárbaros, evento que ocorreu nas Capitanias do Norte entre
1651 e 1720, as Guerras do Rio São Francisco distinguiram-se das Guerras do Recôncavo;
esse modo, ao contrário do que defende Puntoni (2002), as Guerras do São Francisco
não fizeram parte das Guerras do Recôncavo. A segunda, traz novas questões que
contribuem para mais bem entender a própria formação da sociedade brasileira a partir
da relação entre os povos nativos e, especificamente, os colonizadores luso-brasileiros.
Quanto às Guerras no São Francisco, em seus dois momentos a Guerra do
Salitre, entre 1674 e 1679 e a Guerra nos Sertões do Rio São Francisco, próximos, ao Sul,
aos Rios Verde e Carinhanha , estas distinguem-se das Guerras do Recôncavo,
sobremaneira, pelos seus motivos. Enquanto estas ocorreram devido às constantes
ameaças dos povos nativos aos colonos que habitavam o Recôncavo Baiano,
constituindo-se um entrave aos processos colonizadores, daí a reação bélica promovida
pelo Estado colonial brasileiro, como o apoio de potentados e outros segmentos da
sociedade colonial, como a igreja católica, aquelas (as Guerras do São Francisco)
estavam diretamente relacionadas à expansão dos domínios dos dois maiores morgados
17
do Brasil, a Casa da Ponte e a Casa da Torre.
Em se tratando, por exemplo, de ocupação territorial, os dois eventos possuem
características bem distintas. As Guerras do Recôncavo estavam diretamente
relacionada à ocupação do Litoral, portanto, às dinâmicas do Estado colonial luso-
brasileiro em sua relação com as elites coloniais locais. Mesmo as “Jornadas do Sertão”,
entre 1651 e 1656, ocorreram em função de demandas por escravizados nativos para
trabalharem na faixa costeira. as Guerras do São Francisco aconteceram em face da
expansão pecuária rumo ao Sertão, realizada a partir de meados do século XVII. Eram,
sobretudo, as atividades econômicas relacionadas à criação de gado
vacum
e
cavallar
que justificavam a colonização do Sertão e, em consequência, fomentavam as guerras
contra os povos nativos.
De outra forma, o conflito entre os Anaió e as tropas de Matias Cardoso e
Marcelino Coelho também trouxe à baila a questão dos efeitos dessas guerras coloniais
nos processos de formação da sociedade brasileira. Um dado ainda pouco explorado,
como de resto este conflito ocorrido nos Sertões do Rio São Francisco, refere-se à
permanência de aldeias Anaió naquela região nas imediações do Arraial de Matias
Cardoso , mesmo depois de encerrada aquela contenda, como mostra o citado mapa
produzido nas primeiras décadas do século XVIII e baseado no mapa do padre Jacob
Cocleo (SANTOS, 2011, p. 2).
O que essa situação indica, não obstante os violentos processos de extermínio
dos povos nativos, ou mesmo de expulsão de seus territórios originários, é que também
17
Conforme Bluteau (1712b, p. 580) significa: “Bem avinculados de sorte que nem se pode alienar, nem
dividir, o sucessor justamente os possuía na mesma forma e ordem que o instituidor tem declarado”. Na
prática, significa uma instituição, reconhecida pelo Estado colonial brasileiro, em que poucas famílias
podiam garantir a sucessão dos seus bens de geração em geração sem a possibilidade de -los
decompostos em partes.
ocorreram outros tipos de movimento que levaram à incorporação, voluntária ou não,
destas sociedades nativas à estrutura nacional em gestação.
Os povos Anaió que sobreviveram à guerra perpetrada pelos colonizadores foram
paulatinamente interagindo com a sociedade que se formava a partir de um complexo
amálgama de grupos sociais distintos, equivocadamente reduzidos àquilo que foi
chamado de matrizes étnico-raciais da nação brasileira: os índios, os africanos e os
europeus. Não em relação às origens, mas quanto às formas de organização
sociocultural, em sentido amplo, estas interações foram marcadas pela pluralidade. Nos
Sertões do Rio São Francisco, os “contatos” envolveram, no bojo do eixo Anaió
vs
.
colonizadores, povos nativos de outras etnias, como os Xacriabá, os Caiapó e outros que
faziam parte das tropas de Matias Cardoso e Marcelino Coelho; colonizadores baianos,
paulistas, portugueses e, possivelmente, de outras capitanias; e povos de origem africana
de origens não identificadas.
Possivelmente, por meio dessa “pluralidade”, que efetivamente caracteriza a
formação histórica da sociedade brasileira, os pesquisadores podem trazer novas
respostas para velhas e novas questões relacionadas ao povo brasileiro que emergiu a
partir da colonização.
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