GUSMÃO. Cainã Carneiro
*
https://orcid.org/0000-0001-6301-3173
RESUMO: O artigo parte de uma análise da
bibliografia sobre o desenvolvimento do
ambientalismo enquanto fenômeno público no
Brasil, que acontece, notadamente, nas últimas
três décadas do século XX. Tomando como
estudo de caso a emergência pública da
questão ambiental na cidade de Niterói (RJ),
propõe uma linha de investigação que, a partir
do estruturalismo genético de Pierre Bourdieu,
integre de forma mais orgânica dimensões
estruturais da configuração estatal moderna
do espaço público com a produção das
subjetividades e da formação de práticas e
ideias ambientais públicas.
PALAVRAS-CHAVE: Natureza;
Universalização; Espaço Público;
Legitimidade; Ambientalismo.
ABSTRACT: This essay examines the
bibliography regarding the development of
environmentalism as a public phenomenon in
Brazil, which has been happening, mainly, in
the last three decades of the 20th century.
Using the public rising of the environmental
issue in the city of Niterói (Rio de Janeiro) as a
case study, the essay proposes an analysis,
based on the genetic structuralism of Pierre
Bourdieu, that incorporates organically the
modern state configuration of the public space
structural dimensions with the production of
subjectivities and the rising of public
environmental practices and ideas.
KEYWORDS: Nature; Universalization; Public
Space; Legitimacy; Environmentalism.
Recebido em: 15/01/2021
Aprovado em: 03/05/2021
* Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, doutorando do Programa de
Pós-Graduação em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ.
Professor de história na rede privada na Escola Espaço e Vida (Teresópolis-RJ). Artigo baseado na
dissertação de mestrado: GUSMÃO, Cainã Carneiro.
O Processo de Institucionalização do Movimento
Ambientalista de Niterói (1980-1991)
: O Público e o Porvir Provável. 2018. 176 f. Dissertação (Mestrado em
História) Instituto de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. E-mail:
gusmao.caina@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
A questão ambiental é uma das mais fundamentais nas sociedades modernas
capitalistas. A produção e o consumo massivos num contexto de globalização econômica,
imperialismo, urbanização e expansão demográfica não têm precedentes na história
humana. Tornou-se imperativo pensar a relação da nossa espécie com as demais
(animais e vegetais), com as paisagens, com os recursos naturais, além, é claro, das
relações de poder entre os próprios humanos. São questões que atravessaram o cerne de
diversas comunidades, movimentos sociais, impactaram muitas áreas do mundo
acadêmico, modificaram estratégias de marketing e venda de setores empresariais,
influenciaram padrões de consumo, políticas públicas, instituições estatais e a política
partidária.
Quando falamos da relação entre humanos e a natureza, as variáveis são muitas e
os recortes são mais do que necessários para que qualquer análise seja possível. Como
construir as análises, por outro lado, é a grande questão. Afinal, os pressupostos e
pontos de partidas estão ancorados em alguns dos debates filosóficos e científicos mais
complexos. Como definir o que é (e, portanto, o que não é) natureza? Como a sociedade
e a consciência humana relacionam-se com a natureza? Seriam esses elementos
dissociáveis do próprio conceito de natureza? O que são “questões ambientais”? O que é
o Estado e qual sua relação com tudo isso? Como pensar essas coisas nos diferentes
lugares e contextos históricos? Como articular capitalismo, urbanização, racismo,
colonialismo, patriarcalismo, Estado, imperialismo, dominação, classe e natureza? É
desejável que tudo isso esteja articulado numa única análise? Que variáveis são
fundamentais, incontornáveis?
Certamente não encontramos resposta definitiva para nenhuma dessas
perguntas, mas caminhos estão sendo pavimentados para que as análises se tornem mais
refinadas: uma tendência para que articulem cada vez mais elementos da realidade e
para que o olhar sobre a sociedade e a cultura seja mais relacional e menos essencialista.
Nas últimas décadas, a história ambiental vem sendo uma das áreas mais
importantes para o avanço dessas reflexões. Descentralizando o olhar da espécie
humana, as análises articulam diferentes áreas do conhecimento e variadas formas de
pensar sobre o objeto de pesquisa. Há um esforço constante de incorporar nas análises a
dinâmica do mundo biofísico, a agência da vida animal e vegetal na constituição da
realidade, sua ligação intrínseca com as sociedades humanas, a relação entre a cultura e
o mundo natural. As possibilidades abertas pela história ambiental são muitas e os
trabalhos, que articulam com qualidade diferentes níveis de análise, vêm se
multiplicando.
Apesar disso, ainda existem lacunas e uma ampla variedade de temas e objetos
que podem ser explorados pela história ambiental brasileira. Esse artigo busca contribuir
para o desenvolvimento de um desses temas ainda pouco investigados pela
historiografia, que é a compreensão, no contexto urbano, do processo no qual a
preservação do meio ambiente se torna uma pauta pública (notadamente a partir dos
anos 1970), redefinindo, em certa medida, a dinâmica das disputas de poder em torno do
espaço natural e do próprio conceito de natureza.
A pergunta que uso como ponto de partida é a seguinte: como determinadas
práticas e ideias sobre a natureza tornam-se públicas? O interesse por essa pergunta
nasce dos estudos sobre o surgimento do ambientalismo enquanto um conjunto de
ideias, valores, organizações e movimentos sociais que, conforme aponta a literatura
sobre o assunto, se torna um fenômeno público a partir da década de 1970 no Brasil. Para
tratar do tema, o artigo seguirá o seguinte curso: uma análise crítica da bibliografia,
apontando as principais questões e linhas analíticas que vêm sendo utilizadas e, num
segundo momento, fazer apontamentos sobre caminhos que podem ser frutíferos para a
compreensão desse fenômeno histórico, tomando como base o estudo da formação do
ambientalismo na cidade de Niterói (RJ) nas décadas de 1970 e, sobretudo, 1980.
De maneira geral, a historiografia ambiental carece de estudos sobre a
consolidação do ambientalismo na esfera pública. Em artigo recente sobre o campo,
A
construção de um país tropical: apresentação da historiografia ambiental sobre o Brasil
,
José Augusto Pádua e Alessandra de Carvalho fazem um levantamento importante sobre
as principais contribuições que têm emergido na história ambiental sobre o país. Seu
balanço da temática do pensamento ambiental e do ambientalismo revela um foco
considerável dos trabalhos em demonstrar como discussões e reflexões sobre a
preservação ambiental e o uso racional dos recursos naturais existiam bem antes das
últimas décadas do século XX embora não enquanto um fenômeno blico de grandes
proporções (PÁDUA; CARVALHO, 2020, p.1330-1331).
Com diferentes recortes, são apresentados trabalhos que analisam debates e
reflexões ambientais que vão desde fins do século XVIII até a primeira metade do século
XX. São apresentados trabalhos de fôlego, como, para citar apenas alguns, o clássico
trabalho do próprio José Augusto Pádua (2002),
Um sopro de destruição: pensamento
político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888
, a análise de Luciana Murari
(2009) sobre a transição da monarquia para o período republicano, em
Natureza e
cultura no Brasil, 1870-1922
, e o sólido estudo
Proteção à natureza e identidade nacional
no Brasil: anos 1920-1940
, de José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond
(2009).
Podemos citar ainda outros trabalhos importantes de história ambiental que
dialogam com a temática ambientalista, mas não desenvolvem a questão da produção
histórica desta enquanto fenômeno público. Nos esforços para pensar as primeiras
mobilizações coletivas na sociedade civil, um investimento interessante no estudo do
ativismo de Henrique Roessler, fundador da União Protetora da Natureza na década de
1950. Trabalhos como
A figueira e o machado: uma história das raízes do ambientalismo
no sul do Brasil e a crítica ambiental de Henrique Roessler,
de Daniel Prado (2011), bem
como o artigo
Henrique Luiz Roessler e a proteção à natureza no Rio Grande do Sul
(19391963)
, de Elenita Malta Pereira (2012), são importantes contribuições para se
compreender um contexto no qual ações públicas ambientalistas começam a desenhar
um novo horizonte político para o ativismo ambiental no país.
Quando nos voltamos para o tema específico desse artigo, vemos que a questão
da emergência dos movimentos ambientalistas e do ambientalismo como fenômeno
público é um território de pesquisa pouco explorado pela historiografia. O historiador
ambiental José Augusto Pádua desenvolveu, ainda em 1991, importante texto que trata do
assunto:
O nascimento da política verde no Brasil: fatores exógenos e endógenos.
Nele,
defende que, embora fatores externos (globalização, aceleração sem precedentes da
circulação internacional de ideias e valores, o avanço do impacto ambiental do
capitalismo em todo o mundo) sejam decisivos na formação do ambientalismo no Brasil,
só podem ser compreendidos na medida em que são apropriados e incorporados à
configuração sócio-histórica do país na época. A influência da política verde europeia se
concretizaria no Brasil num contexto de retorno, com a anistia, em 1979, dos militantes
de esquerda exilados na década de 1960. A redemocratização, o fortalecimento dos
movimentos sociais, a formação de novos partidos políticos, o impacto ambiental das
políticas do período da ditadura militar, a importância da questão ecológica na formação
da identidade nacional brasileira todos esses seriam elementos que moldaram uma
configuração específica do ambientalismo no país. A influência exógena, portanto, não
teria trazido uma ideia nova, alheia à formação material/cultural do país, mas teria dado
um novo sentido a problemas antigos (PÁDUA, 1991, p. 143-144).
Em texto mais recente,
Environmentalism in Brazil: an Historical Perspective
,
Pádua (2012) propõe um olhar mais amplo para o ambientalismo, tomando-o como um
fenômeno moderno (mais do que um resultado recente do avanço do capitalismo urbano-
industrial). Partindo dessa premissa, apresenta uma tipologia de fases do ambientalismo
que iria desde a independência do Brasil, em 1822, até os dias de hoje. Sua análise da fase
do ambientalismo centrado na ação transformativa na esfera pública entre 1970 até 1990
retoma alguns argumentos centrais de seu supracitado artigo de 1991, elencando fatores
exógenos e endógenos que influenciaram a luta ambientalista. Seu diagnóstico, seguindo
a literatura das ciências sociais e da ciência política, foi de que o ambientalismo enquanto
fenômeno blico surge como uma resposta imediata (influenciada pelo ambientalismo
internacional) aos problemas ambientais gerados pelo modelo agressivo de
desenvolvimento industrial no país. Articuladas no âmbito urbano e rural, tanto por
classes médias quanto por classes baixas, as diferentes vertentes da luta ambiental
teriam evoluído de atos de resistência, protesto e conscientização num nível local, na
década de 1970, para um ambientalismo institucionalizado, articulado em redes a nível
nacional e internacional, uma maior projeção nos meios de comunicação e inserção nas
instituições políticas e estatais (PÁDUA, 2012, p.12-15).
O fato é que, em grande medida, os estudos sobre o ambientalismo como
fenômeno público foram mais explorados pelas ciências sociais, notadamente a
sociologia e a ciência política
1
. Nesse sentido, é incontornável um diálogo com as
principais hipóteses formuladas nessas áreas, que fornecem interessantes chaves de
leitura para a compreensão desse processo histórico que mobiliza conceitos e práticas
com uma carga cultural e histórica complexa, tais como natureza, espaço público,
interesse público, movimentos sociais, Estado. Longe de serem neutros e objetivos, são
historicamente condicionados por sistemas de violência e dominação, mas também por
iniciativas de contestação, demanda por justiça social e ampliação da consciência sobre a
natureza e o potencial destrutivo da agência humana. A análise do tema, portanto, é uma
tarefa difícil, aberta a muitos caminhos teóricos e metodológicos diferentes. Para
responder à questão desse artigo, é necessário considerarmos algumas das melhores
tentativas de resposta para, então, avaliar caminhos que possam ser mais bem
explorados.
Análise contextualista e a tese do ambientalismo multissetorial
Uma das linhas de análise mais influentes na historiografia sobre a emergência do
ambientalismo no Brasil enquanto fenômeno relevante na esfera pública foi formulada
pelo cientista político Eduardo Viola. Conhecida como a tese do “ambientalismo
multissetorial”, essa corrente tende a derivar a explicação da formação do movimento
ambientalista e da disseminação das pautas ambientalistas diretamente de elementos
contextuais (a Conferência de Estocolmo, o “milagre econômico” da década de 1970, a
1
Um bom balanço historiográfico sobre esse tema pode ser encontrado no artigo
Ciências Sociais e Meio
Ambiente no Brasil: um balanço bibliográfico,
de Angela Alonso (2002).
Redemocratização, a Rio-92 etc.) e de determinados grupamentos sociais (a classe
média, a sociedade civil, o Estado, os empresários etc.).
O autor se baseia na ideia de Ronald Inglehart de que a evolução material
propiciada pelo capitalismo moderno, sobretudo na segunda metade do século XX, teria
possibilitado a emergência de preocupações e valores pós-materialistas, não mais
atrelados à urgência das necessidades materiais mais imediatas (VIOLA; VIEIRA, 1992,
p.51-53). Esse fenômeno, experimentado de maneira mais intensa pela classe média,
estaria articulado às mudanças objetivas na relação entre a humanidade e a Natureza. Os
efeitos do rápido desenvolvimento econômico capitalista (poluição do ar, das águas,
devastação dos recursos naturais, divulgação de estudos científicos sobre o aquecimento
global, desenvolvimento de tecnologias de guerra com imenso poder destrutivo etc.)
teriam gerado transformações e riscos que passaram a ser percebidos e criticados por
esses grupos imbuídos de novos valores. Isso teria gerado a mobilização de movimentos
ambientalistas em diversas partes do mundo ocidental (destacadamente nos países de
primeiro mundo), que agiriam, através da defesa da natureza e da qualidade de vida
atrelada à sua conservação, no sentido de disseminar valores ambientalistas.
A hipótese seria a de que a progressiva disseminação da preocupação pública com
a deterioração ambiental transformaria o ambientalismo num movimento multissetorial
na segunda metade da década de 1980. Em outras palavras, o ambientalismo seria
tomado como uma “ideia-força” que se disseminaria por diferentes setores da sociedade
pela ação de grupos cada vez mais amplos (ALONSO; COSTA, 2002, p. 8). Nesse
movimento, o discurso ambiental teria deixado de ser monopólio do movimento
ambientalista para tornar-se um sistema público de ideias e valores. A marca central do
ambientalismo gestado entre a década de 1970 e início de 1990 teria sido o confronto na
esfera pública, desencadeado, sobretudo, pelos grupos ativistas de classe média. Estes
teriam, gradativamente, ampliado o diálogo com movimentos internacionais, setores da
mídia, da comunidade científica, de instituições estatais e do empresariado, resultando
numa multiplicação de grupos de diferentes setores sociais alinhados aos discursos e
valores ambientalistas.
Esse processo de “ambientalização” da sociedade seria identificado a partir de
etapas derivadas diretamente do contexto. Um primeiro momento, entre 1970 e início da
década de 1980, marcado por iniciativas de resistência de grupos com pouca repercussão
na opinião pública em função do clima político-cultural repressivo e da força do projeto e
do discurso de desenvolvimento econômico na ditadura (VIOLA; VIEIRA, 1992, p. 55). Um
segundo momento, marcado pela multissetorialização do ambientalismo, pela politização
do movimento com atuação nas arenas político-partidárias no contexto da
redemocratização a da mobilização em torno da Assembleia Constituinte, na segunda
metade da década de 1980. Um terceiro momento, no contexto da Rio-92, marcado pela
consolidação da ideia de desenvolvimento sustentável e pela institucionalização do
movimento a partir do fenômeno das ONGs profissionais atrelado à consolidação de
demandas e iniciativas ambientalistas multissetoriais: incorporação desses valores por
organizações da sociedade civil, a formulação de políticas blicas, novas pautas nos
meios de comunicação, iniciativas empresariais etc.
Nesse sentido, a análise pressupõe uma relação direta, mais ou menos automática,
entre contexto e ação/mobilização coletiva. Surgem valores ambientalistas na arena
pública por causa de um contexto de superação das necessidades materiais imediatas e
de experimentação da poluição e destruição dos recursos naturais; a mobilização
ambientalista deriva do gradual arrefecimento da repressão ditatorial; o movimento se
institucionaliza em função das portas abertas pela redemocratização e da disseminação
multissetorial dos valores ambientalistas. Nessa perspectiva, o processo de
institucionalização do movimento ambientalista é tomado como uma espécie de
desdobramento natural” de conjunturas propícias. Ao negligenciar a relação de fatores
estruturais com a formação cognitiva dos sujeitos, tende-se a cair numa análise
teleológica, em que a disseminação de valores ambientalistas nos diferentes setores da
sociedade é tomada como um processo quase espontâneo de amadurecimento social.
Análise contextualista e a Teoria do Processo Político
Outra corrente que tende a derivar de forma direta o fenômeno do ambientalismo
público dos contextos históricos é representada pela análise da socióloga Ângela Alonso.
Ela se fundamenta na ideia de que a relação entre as estruturas de oportunidade política,
a negociação de frames e estratégias de mobilização explica como a resolução sucessiva
dos problemas de coordenação da ão coletiva resultou numa identidade coletiva
compartilhada do ativismo ambientalista no Brasil (ALONSO; MACIEL, 2007).
Identifica duas dinâmicas que marcam a formação do movimento. A primeira,
seriam as Estruturas de Oportunidade Política (EOP) na qual os ambientalistas se
inseriram. A segunda, as estratégias e relações entre os grupos ambientalistas na
formação de uma identidade coletiva dentro de contextos que favoreceram essa unidade
(ALONSO; MACIEL, 2007, p. 122-123).
Três EOP’s, no pós-1985 e na década de 1990, teriam incentivado e condicionado
os grupos a desenvolverem estratégias e se mobilizarem coletivamente em coalizões,
constituindo a identidade do “movimento ambientalista brasileiro”.
A redemocratização é apontada como uma EOP mais ampla, que incentivou a
organização de grupos de protestos na sociedade civil, encaminhando a conversão de
simpatizantes ambientalistas em ativistas. Nesse contexto, a coordenação da ação
coletiva foi suscitada por duas outras EOP’s, a Constituinte e a Rio-92.
A Constituinte abriu um leque de oportunidades e estratégias
possíveis/disponíveis que levou os grupos ambientalistas a convergir para uma coalizão
de associações, ao invés de um partido, como forma prioritária de apresentar suas
reivindicações na esfera pública.
Finalmente, a Rio-92 teria coagido a coalizão de associações formada na
constituinte a negociar um único frame, cujo significado pudesse ser compartilhado pelo
movimento como um todo. Frames são definidos como “instrumentos cognitivos e guias
para a ação que permitem aos ativistas questionar uma dada situação social antes não
problemática, atribuir responsabilidade a grupos ou autoridades por tal estado de coisas
e apresentar estratégias para alterá-lo.” (BENFORD; SNOW, 2000, apud ALONSO;
MACIEL, 2007, p. 127). São interpretações acerca da conjuntura em que os ativistas
estão imersos, possibilitando transformar descontentamento em mobilização através do
engajamento nas disputas públicas oficiais.
A relação entre os ativistas é vista como o produto de negociações sobre as
formas de ação/estratégias e significados/frames da “questão ambiental”, que se
transformaram na busca dos grupos em facilitar as alianças diante de cenários políticos
cambiantes. Foi adaptando-se às novas EOP’s que os dois frames ambientalistas
inicialmente independentes (socioambientalismo e conservacionismo) convergiram para
o neoconservacionismo por ser o frame que se mostrou mais passível de ser
compartilhado por todos os ativistas ambientalistas, visando uma ampla aliança entre
grupos (nos contextos da Constituinte e da Rio-92). Assim, nas EOP’s decisivas, os
ativistas buscaram superar suas divergências rotineiras para estabelecer uma coalizão
forte, visando incluir a pauta ambiental na agenda blica, sedimentando sua identidade
como “movimento ambientalista brasileiro”.
Sua análise se ancora na relação entre as ações e estratégias conscientes dos
sujeitos e grupos com os contextos nos quais estes estão inseridos, deixando de lado
uma análise sobre a gênese social das ações em sua dimensão estrutural e histórica, que,
em grande medida, envolve um olhar sobre princípios inconscientes incorporados pelos
sujeitos.
Por um olhar relacional
Primeiramente, cabe salientar que os trabalhos analisados acima são de grande
qualidade e identificam variáveis fundamentais para a compreensão do fenômeno do
ambientalismo no Brasil pós década de 1970. Dentre outras contribuições, podemos citar
como exemplo a reconstrução de cenários políticos e institucionais propícios (ou não)
para a mobilização social, o mapeamento da evolução dos movimentos ambientalistas, a
identificação dos discursos e interpretações que produziram sobre a relação humanos-
natureza, a constatação do processo de multissetorialização e publicização dos valores
ambientalistas, a ênfase na importância da compreensão dos conflitos de interesse locais
de determinados grupos para a compreensão dos embates argumentativos nas arenas
públicas. Nesse sentido, o conjunto de reflexões construído por esses autores são
incontornáveis para se falar do tema.
O que quero apontar é a possibilidade (ou a necessidade) de tomar outro caminho
para a construção do objeto de análise que permita um questionamento mais rigoroso de
nossos próprios pressupostos enquanto pesquisadores; que parta de outro ponto de
vista; que desconstrua o objeto naturalizado para reconstruí-lo relacionalmente; que seja
capaz de evitar a substancialização para produzir uma historicização genética.
Assim, se muitas das constatações empíricas desses autores são válidas, a
maneira de analisá-las pode ser problematizada. Partem das seguintes questões: “como o
movimento ambientalista surgiu?”; “como se institucionaliza?”; “qual sua relação com
outros movimentos sociais?”; “qual sua relação com a sociedade civil em geral?”; “qual
sua relação com o Estado?”; “como o movimento se insere no espaço público?”; como
influenciou a opinião pública?” etc. Todas essas questões pressupõem conceitos que são
pouco abordados nas análises, reforçando a essencialização dos grupos e das
visões/categorias que produzem sobre o mundo social.
Quanto aos princípios de uma análise relacional, um belo texto do Erik
Swyngedouw (2001) no qual ele nos mostra um interessante exemplo sobre como a
produção de um copo d’água mobiliza inúmeros processos históricos, sociais,
geográficos, biológicos, químicos e físicos que são, em grande medida, invisíveis para
olhos não treinados para -los. Sua metáfora é a da “cidade num copo d’água”,
apontando para o fato de que, ao abrirmos a torneira para encher um copo,
inconscientemente estamos mobilizando numa rede uma série de relações socioespaciais
que articulam cadeias locais, regionais e globais de circulação de elementos biofísicos e
simbólicos relativos à urbanização, à circulação da água, do capital, de textos,
representações e corpos.
Trata-se de um exercício complexo de dissolução das essências. Assim, o autor
postula a prioridade ontológica e epistemológica do devir enquanto processo histórico
relacional , questionando o olhar substancialista que constrói os conceitos do mundo
social, como “natureza”, “sociedade” ou, mais concretamente, “água”, como reduzíveis a
certas propriedades intrínsecas. A perspectiva relacional nos leva a perguntar: Quais
forças históricas tornaram possível a cristalização de conceitos e valores que enquadram
os fenômenos socionaturais como
ahistóricos
?
De fato, essa perspectiva é o fundamento do que acredito ser a prática científica
das ciências sociais, em sentido amplo. Trata-se de fazer, nos termos de Pierre Bourdieu
(1989, p.19-24), uma análise sociológica de nossos próprios pressupostos (enquanto
pesquisadores inscritos no campo acadêmico e enquanto sujeitos com uma trajetória de
socialização no espaço social, de maneira mais ampla), reconstituindo historicamente as
forças sociais que produzem os conceitos mais cristalizados em nossa percepção do
mundo.
Nesse sentido, me parece limitado falar, por exemplo, que a causa da formação do
movimento ambientalista foi a superação das necessidades materiais imediatas por certa
parcela da população e, simultaneamente, a experimentação da destruição ambiental
sendo ambos os fatores causados pelo avanço do capitalismo industrial. Isso porque,
como já apontado, uma conclusão desse tipo tem que pressupor que uma série de
articulações, motivações e relações práticas seriam derivadas, de maneira mais ou
menos automática, a partir eventos com grande escala temporal e espacial. O contexto é
tomado como uma entidade histórica: reconhece-se sua propriedade histórica de se
transformar no tempo, mas é analiticamente interpretado como uma força superior que
empurra a história para determinados rumos. Pouco faz para enfrentar o desafio teórico-
metodológico de integração entre grandes processos estruturais e as realizações
práticas específicas de sujeitos e grupos.
Não se trata, portanto, de compreender apenas como surgiram os movimentos
ambientalistas, mas de analisar por que chamamos de movimento ambientalista
determinadas configurações grupais e não outras. Também não se trata apenas de
entender a disseminação do ambientalismo e dos movimentos ambientais no espaço
público, mas de compreendermos por que percebemos e nomeamos como públicos
determinados espaços e ações, determinadas organizações e grupos, determinadas
opiniões e enunciados, e não outros. Deve-se pensar por que algumas formas de
perceber e se relacionar com a natureza tornaram-se públicas e outras não; por que
certos grupos têm interesse nas lutas públicas e outros não; quais são as condições de
produção do interesse no espaço público legítimo e nas formas dominantes de
representar e se relacionar com a natureza; quais são as condições sociais para a disputa
de seu sentido. Em suma, trata-se de fazer uma análise histórica dos espaços sociais, das
posições e das disposições incorporadas pelos sujeitos históricos, remontando a
estrutura do espaço social e as possibilidades de engajamento com as lutas públicas
legítimas e com o interesse pela natureza.
Eis o princípio genético de análise. Nega-se o impulso naturalizado de partir do
objeto de pesquisa “movimento ambientalista” enquanto conceito unificado no presente
e projetado no passado, visando analisar suas ações, seus discursos e suas
transformações num processo mais ou menos linear: a militância ambiental teria
começado como resistência contra a destruição da natureza, depois se politizado e
finalmente se profissionalizado. Em vez disso, pergunta-se quais as relações de força
materiais e simbólicas que possibilitaram a naturalização do conceito unificado
“movimento ambientalista”. Assim, ao invés de projetar no passado um conceito
unificado no presente, busca-se decompor geneticamente as relações de força que
constituem esse conceito para, então, reconstruir como essas forças produziram essa
unidade conceitual e sua naturalização. O exercício analítico relacional se ancora,
portanto, na dialética da desconstrução-reconstrução como princípio teórico-
metodológico.
Ambientalismo e o fundamento das lutas públicas
Quando se trata de pensar sobre a formação de um movimento no quadro do
ambientalismo contemporâneo pós década de 1960, os dilemas sobre recorte se colocam
fortemente, dada a multiplicidade de forças históricas que atravessam o processo de
construção desses grupos. Como apontado, parto do pressuposto básico de que existe
uma relação direta e dialética entre as estruturas sociais que organizam a distribuição
dos meios de apropriação de bens a valores sociais escassos (materiais e simbólicos) e os
sistemas de percepção e classificação que se realizam na prática dos sujeitos, dotando o
mundo social de significado (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 7).
O exercício de reconstituição das forças sociais que atravessaram o processo de
formação disso que se convencionou chamar de movimento ambientalista passa,
portanto, pela análise da correspondência entre as estruturas objetivas (espaços de
posição) e os sistemas de classificação dominantes no contexto analisado cidade de
Niterói na década de 1980. Ressalto a importância da palavra “dominante” como
elemento central para a organização das fontes de pesquisa histórica. Isso porque ela
aponta para o fato de que os sistemas de classificação, mais do que princípios cognitivos
de apreensão da realidade com a função de conhecer, tem uma dimensão política central
na organização das forças em disputa no espaço social. Ou seja, sendo as estruturas
cognitivas (disposições) o produto da experiência e incorporação das estruturas
objetivas (espaços de posição), essa correspondência dialética faz com que os padrões
de divisão e percepção que estruturam o mundo social sejam vistos não como o
resultado de lutas históricas entre grupos que buscam impor seus interesses e definições
sobre a realidade, mas como naturais, inevitáveis ou mesmo necessários. Esse olhar
bourdieusiano permite que o pesquisador não se perca na miríade de relações que
atravessam um dado objeto de estudo, oferecendo os critérios analíticos de relevância
segundo uma sociologia do poder simbólico, isto é, dos princípios de legitimação e
reprodução da ordem social.
Dito isso, é fundamental compreender os princípios históricos e sociológicos da
dinâmica do espaço público nas sociedades modernas capitalistas para que seja possível
uma análise do ambientalismo como fenômeno público. As dinâmicas sociais de definição
do que é ou não público devem ser compreendidas como o produto histórico de lutas
sociais entre sujeitos/grupos, visando legitimar seus interesses e representações sobre o
mundo objetivando assegurar o domínio sobre certos recursos materiais e simbólicos.
Nesse sentido, as estruturas dentro das quais essas disputas vão ocorrer variam
imensamente de acordo com a especificidade das configurações históricas. Esse tipo de
perspectiva, criada, sobretudo, para compreender o mundo moderno, induz-nos à
seguinte pergunta: como visões múltiplas sobre o mundo são unificadas? Ou, em outras
palavras, como certas perspectivas e interesses impõem-se como legítimos em relação
aos demais?
Para compreender o conceito de público nesses termos é necessário, em primeiro
lugar, se contrapor à ideia de um espaço público objetivo, em que ocorre a disputa de
valores e opiniões dos diversos grupos sociais. Essa concepção tende a tornar
substância algo que é relação, a idealizar algo que deve ser historicizado. Para evitar esse
equívoco, toma-se o espaço público como o produto das relações e percepções dos
sujeitos, estruturadas por espaços sociais cuja legitimidade é variável e hierarquicamente
relacionada aos centros de poder, com maior capacidade de definição e generalização
das categorias e sistemas de classificação do que é legítimo e do que não é.
Interrogar-se sobre o público é interrogar-se sobre as condições sociais
(simbólicas e materiais) de produção do sentido das relações definidas como públicas em
um mundo social e historicamente constituído. Nesse sentido, pensar o público é tecer
uma análise sobre o interesse
2
(em termos de uma racionalidade prática), a disposição de
2
Bourdieu (1996, p.139-140) define o interesse como a imersão em um jogo social, de forma a reconhecê-lo
como um jogo que merece ser jogado. É o produto de uma relação ontológica entre as estruturas mentais e
as estruturas objetivas do espaço social. Nesse sentido, o interesse se realizaria a partir de um senso
constituir uma dada realidade como centro de interesse dentro de um jogo de
expectativas relacional e dinâmico, apreendido pelos cálculos inconscientes do senso
prático. O interesse é o que confere sentido à existência, levando a que se invista num
jogo e em seu futuro (BOURDIEU, 2007, p. 253-254).
A relação entre as esperanças e as oportunidades é um dos fundamentos da
produção identitária. A condição dos marginalizados é a perda do poder de dar
significado e direção à sua existência, de adequar suas expectativas às oportunidades
sociais. Estes, não tendo poder sobre o jogo social, tendem a jogá-lo segundo as regras
dominantes. A socialização dos dominados produzem aptidões, interesses e esperanças
que nunca estão devidamente adequados aos jogos sociais mais legítimos. O sujeito
dominado tende, assim, à marginalização, realizada através da construção social do
interesse em se inserir nos espaços marginalizados. A identidade dominada existe
sempre em relação à dominante (e vice-versa), de maneira que a definição do ser social é
o produto de uma correlação de forças altamente desigual, quando observamos o mundo
social de maneira mais ampla.
O verdadeiro móvel dos jogos sociais, afirma Bourdieu (2007, p.290), é a “razão
de ser”, a questão da legitimidade de uma existência. Em outras palavras, a “razão de
ser” depende da justificação de uma existência particular em relação ao outro e os
mecanismos de questionamento dessa existência (como a estigmatização que recai sobre
aqueles cuja existência é tida como ilegítima). Assim, o conjunto dos juízos dos agentes
(sobretudo daqueles que detém o poder, a legitimidade de nomear e classificar) elabora o
veredito do mundo social que produz legitimidade e marginalidade simultaneamente. A
produção das identidades é estruturada nesse jogo vital que é a luta simbólica de todos
contra todos, fundada no poder de nomeação/categorização, em que cada um coloca em
jogo o seu ser, a definição de si e de seu valor (BOURDIEU, 2007, p. 290-291). Nesse
sentido, as disputas em torno da construção do que é o público é central no processo de
organização dos espaços sociais e de definição das identidades em termos de sua
legitimidade.
Essa perspectiva nos permite construir um conceito de público fundado na
explicitação das relações de dominação que estruturam a formação histórica dos
espaços sociais. Possibilita pensar por que determinadas concepções do que é blico
são dominantes e porque outras são marginalizadas. Ajuda a refletir sobre a gênese da
definição social do público, escapando de certa visão naturalizada pelo senso comum,
prático: a percepção intuitiva das possibilidades sociais, incorporada a partir da experiência nos espaços
de socialização.
que toma o espaço público legítimo enquanto o único possível e existente, percebido
como uma arena objetiva de debates e mediações de interesses diversos.
Formação de um discurso legítimo sobre a natureza em Niterói (1970-80)
O Movimento de Resistência Ecológica (MORE) formou-se no período de
arrefecimento da ditadura brasileira, a chamada “transição lenta, gradual e segura”.
Constituído por setores da classe média, em grande medida, alheios às lutas contra a
ditadura (institucionais ou clandestinas), o grupo emerge no contexto de multiplicação
dos movimentos sociais em busca de participação política e de atuação local,
notadamente os sindicatos, as associações de bairro, a militância de minorias e
movimentos ambientalistas. A multiplicação dos partidos de oposição a partir do fim do
bipartidarismo, em 1979, gera uma efervescência em termos dos esforços de participação
na política institucional. Ao longo da década de 1980, diversos movimentos sociais foram
se aproximando e se filiando aos partidos políticos, sobretudo os de esquerda -
notadamente o PT (Partido dos Trabalhadores) e o PDT (Partido Democrático
Trabalhista). No caso dos movimentos ambientalistas, o PV (Partido Verde) surge como
uma frente relevante de atuação institucional a partir de 1986 (PÁDUA, 2012, p.465-466).
O Movimento de Resistência Ecológica (MORE) foi fundado em agosto de 1980 e
registrado oficialmente no dia 09/01/1981. Veio a se tornar, sobretudo entre os anos de
1987 e 1989, um dos mais influentes movimentos ambientalistas do estado do Rio de
Janeiro. Chegou a ter mais de dois mil associados
3
, um programa na Rádio Fluminense
FM (chamado “Verde que te quero ver”) e alguns de seus representantes integraram o
programa “Baleia verde” da TVE (TV Educativa), que gerou projeção a nível nacional
4
.
Tiveram participação nos principais debates políticos de âmbito municipal da época,
atuando na disputa pela aprovação da Lei de Uso e Ocupação do Solo de Niterói, da Lei
Orgânica Municipal e do Plano Diretor, além de desempenho decisivo na campanha que
resultou na criação do Parque Estadual da Serra da Tiririca (GUSMÃO, 2018, p. 10-11).
A atuação dos militantes nas arenas públicas legítimas através da mídia, de
mobilizações de rua e de pressão na Câmara dos Vereadores e na Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro foi parte de um processo que culminou no ingresso na vida
partidária e numa trajetória dentro da máquina pública do Estado.
3
Na década de 1980, os movimentos ambientalistas se multiplicaram, assumindo dimensões variáveis. Em
geral, havia um núcleo ativo que oscila entre três e 20 pessoas, e um vasto contingente passivo de filiados
que vai de 50 a 200 pessoas, chegando, no caso das mais extensas, a mais de 1000 pessoas (VIOLA, 1992,
p. 57).
4
Em documentação jornalística da época, o então presidente do MORE, Eduardo Lins, afirma que com a
projeção nos meios de comunicação de massa o movimento passou a receber cartas de todo o Brasil
(GUSMÃO, 2018, p. 10).
De maneira geral, os militantes pertenciam à classe média e alta, tal como reforça
a literatura sobre a configuração social dos movimentos ambientalistas
5
. Ao longo da
década de 1980, entraram no movimento ainda quando estudantes universitários,
dominando cada vez mais um saber técnico, vindo a atuar nos principais fóruns
institucionalizados de debate político-legal de Niterói, chegando participar da
administração pública municipal
6
e, posteriormente, estadual
7
entre 1989 e 1991. A
trajetória dos integrantes do movimento se desdobrou, de maneira geral, com forte
ligação às instituições estatais ligadas ao ambientalismo Assim sendo, o movimento teve
participação relevante nas arenas legítimas da política institucional, nos meios de
comunicação e nas intervenções locais de rua (GUSMÃO, 2018, p. 103-117).
Para compreender como se constrói a retórica e a prática dos integrantes do
movimento é importante compreender a construção social do interesse, das expectativas
e do sentido de sua existência. De maneira geral sem se aprofundar nas especificidades
da trajetória pessoal de cada um é importante perceber que o horizonte de
possibilidades dos militantes analisados é estruturado de maneira razoavelmente
semelhante. Na média, ingressaram em alguns dos espaços sociais prováveis para
pessoas de classe média e alta: frequentaram boas escolas, ingressaram no ensino
superior, possuíam domínio das aptidões linguísticas e comportamentais legítimas. Em
suma, foram socializados em espaços capazes de produzir aptidões valorizadas e
demandadas para se ter acesso aos bens materiais e simbólicos legítimos espaços
privilegiados no mercado de trabalho, nos espaços culturais mais bem avaliados, acesso
aos meios institucionais etc. Assim, desde a infância, a maior parte dos militantes foi
ensinada a reconhecer os espaços legítimos como desejáveis e acessíveis, concebendo o
ensino formal, sobretudo o superior, como um bem necessário (quase incontornável)
para a construção de si enquanto sujeito bem sucedido e capaz de ter um bom
desempenho no mercado de trabalho. Isso também envolve uma miríade de outras
construções sociais, como o conceito de família desejável, de amor, de prestígio pessoal,
de sucesso.
5
Ver: Viola (1992), Hochstetler e Keck (2007), Alonso (2007) e Pádua (2012).
6
Com a nomeação de integrantes do movimento à Superintendência do Patrimônio Natural e Meio
Ambiente, da Secretaria de Urbanismo. Eram então filiados ao Partido Verde, que fizera coligação com o
PDT na eleição de 1988, que elegeu Jorge Roberto Silveira (PDT) e Eduardo Travasos (PV) para os cargos
de prefeito e vice-prefeito, respectivamente (GUSMÃO, 2018, p. 11).
7
Com a nomeação de Axel Grael, fundador do MORE e do MCE, para a presidência do Instituto Estadual
de Florestas, em 1991, o que implicou na integração de outros componentes do movimento ambientalista à
gestão do instituto. A nomeação de Grael foi fruto da coligação do PV com o PDT nas eleições para
governador do Rio de Janeiro em 1990, com a eleição de Leonel Brizola no primeiro turno (GUSMÃO, 2018,
p. 11).
Entretanto, essa análise não explica por si como essas pessoas que
compartilham determinadas experiências e expectativas socialmente estruturadas
vieram a ingressar e a ocupar posições de destaque num movimento ambientalista
contestatório, atuante, criativo, implicando no desenvolvimento de trajetórias singulares
de engajamento que estão longe de ser o padrão na sociedade brasileira urbana. Para
compreender esse processo é importante compreender dois fatores: por um lado, o
interesse na natureza e o sentido a ela atribuído, e, por outro, o interesse nas lutas
públicas e o sentido a elas atribuído.
O movimento analisado se insere num contexto histórico em que se consolida o
paradigma ambiental fundado sobre a ideia da prevalência da ação humana sobre o
mundo biofísico, ou seja, a força e o domínio da humanidade sobre a Natureza (ARNOLD,
1996, p.48-52). No âmbito internacional e nacional se dissemina a ideia de que é
necessário proteger o meio ambiente da ação humana, sob o risco da ameaça ao
equilíbrio da vida no planeta. Em termos mais concretos, os integrantes do movimento
ambientalista narram suas primeiras experiências de socialização com a natureza sempre
em termos da experimentação dos espaços naturais destinados ao lazer e à suspensão do
ritmo da vida urbana. A vivência do Campo de São Bento (área verde localizada em
Icaraí, bairro nobre de Niterói-RJ); de caminhadas e acampamentos na região da Serra da
Tiririca (região de Niterói e Maricá); a rotina de experimentação das praias; viagens para
áreas reconhecidas como “paraísos naturais”, como o pantanal mato-grossense, ou a Ilha
Grande-RJ; práticas de lazer e esportivas na Baía de Guanabara.
Essas experiências estão diretamente ligadas à configuração social das condições
de acesso aos bens naturais legítimos. A prática da suspensão do cotidiano de trabalho
para vivenciar “paraísos naturais” é um privilégio de determinados setores sociais. Em
outras palavras, o acesso aos bens naturais é desigualmente distribuído. Os recursos
materiais e simbólicos demandados para se criar o hábito e a experiência de apreciação
dos bens naturais culturalmente construídos enquanto tais tendem a se concentrar em
determinados grupos do espaço social. Isso não implica, obviamente, que todos os
sujeitos que têm condições de acessar os espaços naturais destinados a apreciação irão
fazê-lo. O gosto pela vivência desses espaços construídos segundo a ideia de uma
natureza “pura” envolve uma série de outros fatores e contingências. Mas o fato é que,
de maneira geral, os principais integrantes do MORE tinham as condições de acesso a
esses espaços e desenvolveram, em suas trajetórias, o hábito de apreciação dos mesmos.
Isso é determinante para compreendermos a forma como se constitui a percepção dos
integrantes do movimento sobre o meio ambiente (GUSMÃO, 2018, p.60-73).
Isso porque o movimento toma como pressuposto, desde sua origem, a ideia de
uma natureza “pura” a ser preservada da ação humana. Os espaços “naturais” legítimos
são integrados às pautas em oposição aos agentes que ameaçam sua existência. Nesse
sentido, o MORE começa como uma iniciativa, liderada por Axel Grael
8
, em protesto à
poluição da Baía de Guanabara. Nos primeiros anos de sua existência, o movimento atua
a partir de manifestações, ocupações de praças e articulações com associações de
moradores. Suas pautas giram em torno da luta contra a poluição da Baía de Guanabara,
sobretudo contra o impacto ambiental dos dejetos de três fábricas de sardinha (Santa
Iria, Atlantic e Ribeiro) instaladas no bairro de Jurujuba, em Niterói; da patrimonialização
de espaços concebidos como naturais como o Campo de São Bento, a Ilha dos Cardos,
as pedras de Itapuca e do Índio. Nesse sentido, considerando a análise feita até aqui, a
construção dos critérios de percepção e definição do que é o bem natural e do que é uma
ameaça a esse bem se dá na relação concreta entre os
habitus
incorporados pelos
sujeitos, a configuração histórica dos conceitos de natureza em relação ao espaço social
e a trajetória de vida marcada pela construção dos engajamentos e sentidos sociais da
existência (identidades) dos sujeitos.
Isso é um postulado importante, pois nos ajuda a escapar de reducionismo que
são praticados de maneira muito intuitiva. Ao invés de derivar o engajamento de grupos
ambientalistas na defesa da natureza do simples fato de que estes seriam de classe
média, ligados a valores pós-materiais, passamos a atentar para a configuração social
que permite o acesso aos bens naturais definidos como legítimos. Quando
reconstituímos a relação entre as posições sociais com a experimentação da natureza
legítima, dos “paraísos naturais”, dos esportes ligados a “natureza pura”, aos “espaços de
contemplação” e das diversas formas de lazer (a suspensão das pressões do trabalho),
passamos a perceber que a gênese de uma existência ligada à “apreciação da natureza
pura” está profundamente ligada às possibilidades materiais e simbólicas atreladas às
posições de classe. Esse tipo de análise nos permite perguntar por que esse tipo de
percepção e relação com a natureza, e não outro, se tornou digno de ser defendido
publicamente através de formas de mobilização que se legitimaram sob a alcunha de
“movimento ambientalista”. Dessa perspectiva, abre-se a possibilidade (ou mesmo a
necessidade) de se localizar no espaço social os princípios de visão e significação da
8
Axel é irmão de Torben e Lars Grael, medalhistas olímpicos no iatismo e integrantes de uma família
influente na cidade de Niterói-RJ. Envolveu-se no esporte ainda novo, também tendo tido experiência na
prática da vela competitiva em sua juventude, sendo esse um fator importante para sua preocupação com
a poluição da Baía de Guanabara, onde costumava velejar (GUSMÃO, 2018, p. 91).
natureza, os grupos que os produziram e suas capacidades materiais e simbólicas de
tornarem essas visões e relações (ligadas a sentidos da existência) como legítimas.
Quando falamos de movimentos ambientalistas, estamos falando das formas de
mobilização que conseguiram se construir enquanto tais, que tiveram as condições
materiais e simbólicas de se adequar aos critérios sociológicos dominantes de definição
do que é uma reivindicação legítima.
Nesse sentido, é preciso compreender os princípios de produção do interesse na
luta pública operada nos espaços legítimos. Em outras palavras, entender por que esses
grupos que se mobilizaram em torno de certa visão da natureza se dispuseram a investir
seu tempo na defesa da mesma nisso que se convencionou chamar de arenas públicas”.
Por que escolheram determinadas maneiras de se manifestar, determinados espaços e
bairros para ocupar, por que se inseriram nos meios institucionalizados?
Para compreender essa questão é necessária uma brevíssima digressão sobre um
dos princípios centrais que historicamente constituem a lógica do Estado moderno na
perspectiva de Bourdieu (2014). Ao conceber o Estado como detentor do “monopólio da
violência simbólica legítima”, Bourdieu o analisa “enquanto um espaço de relações de
força e de sentido, produtor de princípios de classificação suscetíveis de serem aplicados
ao mundo social” que, entranhados em estruturas mentais e sociais, reformulam os
conflitos entre grupos a partir dessa matriz lógica. Sem ser um consenso, o Estado
fundamentaria as regras das trocas que levam ao dissenso. É, portanto, a matriz da
integração lógica e moral do espaço social (BOURDIEU, 2014, p. 31).
O capital do universal é o capital simbólico central no processo de legitimação das
disputas de poder dentro do Estado e das ações feitas em seu nome. A autoridade do
Estado é, nesse sentido, produto da crença generalizada em uma entidade que
representaria o interesse público, universal e, por isso mesmo, oficial. Segundo Bourdieu,
a gênese do Estado seria inseparável da constituição do monopólio do universal, de
maneira que, ao estipular os padrões e regras que definem o que constitui o “interesse
geral” e os valores da universalidade, poder-se-ia marginalizar aqueles que não estão
inseridos nessas categorias (BOURDIEU, 2014, p. 14-17).
A questão central nessa análise é que, no Estado moderno, constrói-se a ideia de
que o que é bom e o que é justo é aquilo que é feito em nome dos interesses universais.
De forma sucinta, a ideia da luta pelo universal, da luta pelos bens e interesses gerais
passa a ser integrada aos meios institucionais e a ser base das disputas por legitimidade.
As regras dos espaços sociais institucionalizados, oficiais, incorporam os princípios
retóricos de nomeação e enunciação em prol do “bem geral” e dos “interesses
universais”. O capital do universal enquanto fonte de legitimidade é objeto de intensa
disputa no espaço social. A ideia da figura pública, que busca representar os interesses
gerais, torna-se fonte de grande prestígio.
Esse elemento é fundamental para compreensão do engajamento em torno de um
movimento ambientalista. A luta pela “natureza” é uma luta pelo “bem da sociedade”.
Esse tipo de engajamento gera um poderoso sentido social para a existência. Traz o
reconhecimento e a honra dedicada aos atos “desinteressados” (BOURDIEU, 1996, p.
139-140)
. Dentro das disputas em torno do espaço público legítimo, o sucesso em
construir-se enquanto defensor dos interesses universais gera um reconhecimento
capaz de atravessar uma multiplicidade de espaços legítimos. Nesse sentido, desde o
primeiro ato do grupo na Baía de Guanabara, a capacidade de mobilização em conjunção
com um contexto favorável para a temática da defesa ambiental gerou repercussão
relevante nos meios de comunicação (GUSMÃO, 2018, p. 91).
Esse contexto da emergência da motivação de organizar um movimento
ambientalista é bastante revelador das forças sociais que atuaram no processo de gênese
desse tipo de organização. Após fazer uma manifestação segundo os cânones formais da
indignação pública uma regata de protesto ostentando cartazes contra a poluição ,
esse grupo conseguiu visibilidade momentânea. A forma assumida pela manifestação
demonstra que os integrantes do grupo (composto por pessoas da área do jornalismo,
direito, biologia, engenharia etc.) dominavam algumas estratégias de visibilização
pública. O domínio de certas estratégias retóricas, os contatos pessoais e o uso de velas
na Baía de Guanabara para protestar são exemplos disso. Esse conhecimento intuitivo de
como ganhar a atenção da mídia é o produto de um trabalho de socialização muito caro à
denominada classe média. A formação escolar, as aptidões para acessar as instituições
estatais e os meios de comunicação e o contato com informações sobre o cenário
internacional (Axel Grael fala de seu fascínio, na época, pelo Green Peace), são fatores
fundamentais para compreender porque determinados grupos conseguem visibilizar
determinadas pautas e outros setores (mais marginalizados) sequer consideram a
possibilidade de se organizar formalmente
9
.
Mais do que isso, a posição social dos militantes ambientalistas em questão
implica certa relação com a família, com o tempo e com o trabalho que faz com que o
investimento nas lutas blicas pela natureza seja simbolicamente lucrativo. Suas
possibilidades sociais em termos de ganho de capital econômico (limitado) e simbólico,
ao se engajarem na militância ambientalista, fazem com que o jogo das lutas públicas
9
Como apontado por Angela Alonso (2005, p. 171-173), a experiência de facilidade ou dificuldade, de
sucesso ou insucesso em acessar os canais oficiais de reivindicação tem efeito direto sobre a crença e a
disposição do sujeito em recorrer a esses canais ou não.
faça sentido, tornando-se uma possibilidade mais presente no horizonte de expectativas
das pessoas nessa posição social.
Portanto, para compreender o processo de formação e institucionalização do
MORE é preciso levar em consideração, por um lado, as condições sociais de produção
do interesse em certos espaços biofísicos culturalmente construídos como “natureza” e,
por outro, as condições sociais de produção do interesse em se engajar na defesa desses
espaços, considerando a configuração do espaço público legítimo e as condições
materiais e simbólicas para criar visibilidade para as pautas ambientais.
É fundamental considerar as percepções e disposições dos sujeitos que se
construíram através da experiência adquirida a partir da vivência de espaços sociais
(família, escola, universidade, instituições burocráticas, campo profissional etc.) que se
relacionam estruturalmente, atravessados por relações de poder. Um movimento que se
pretende público pode ser compreendido dentro do sistema de relações que disputam
e constroem a definição do que é público e digno de ser visibilizado.
Nesse sentido, o público deve ser analisado como aquilo que tende a ser aceito
enquanto visível, geral, em oposição ao privado, que corresponde ao que é singular,
oculto ou passível de ser oculto. Há, portanto, uma relação de oposição entre o universo
privado, o das pulsões, da natureza individual, do desleixo, e o universo do público, da
compostura, dos bons modos, da moral, da ascese (BOURDIEU, 2014, p. 80-90). Quando
pensamos em um espaço público, estamos tratando das condições relacionais de
definição do que é legítimo ser visibilizado e o que é reprovável, de quem pode falar
publicamente e quem não pode, considerando-se uma gradação de legitimidade
extremamente ampla no espaço social, que vai do morador de rua (indivíduo socialmente
invisibilizado) ao presidente (que é uma instituição blica da mais alta hierarquia,
universalmente reconhecida).
O público, portanto, existe enquanto produto de uma instituição (incorporada) de
moral, de valores de percepção e apreciação e, portanto, de julgamento que é constituída
relacionalmente através da vivência e das posições (mais ou menos centrais ou
marginais) de sujeitos e de grupos experimentadas ante os centros de poder. Assim,
práticas públicas marginais tendem a se desdobrar inscritas apenas no nível local, na
discrição, no silêncio, porque são reprováveis diante das formas de classificação
dominantes, têm pouca aceitação social para ocupar o espaço visível; tendem a ser
práticas com pouco poder de se fazerem públicas. A título de exemplo, quando os
integrantes do movimento ambiental se organizaram em torno da criação do Parque
Estadual da Serra da Tiririca, sua concepção de proteção da natureza e sua inserção no
espaço público legítimo tenderam a invisibilizar as comunidades tradicionais que
historicamente viviam na região. Suas relações comunitárias históricas, que localmente
constituíam relações blicas, não dispunham de legitimidade frente aos poderes
constituídos, fossem as instituições estatais, as empresas imobiliárias envolvidas na
disputa em torno da delimitação do parque, ou os movimentos sociais legítimos.
Nesse sentido, podemos falar de uma hierarquia dos espaços públicos produzida
pela relação da pluralidade de grupos sociais desigualmente distribuídos no espaço social
e organizados em relação aos centros de poder. A marginalidade ou a legitimidade desses
espaços públicos se constrói relacionalmente, considerando-se sempre que os centros
de poder constituídos têm uma capacidade de universalização de verdades, de categorias
e sistemas de classificação muito maior do que os grupos marginalizados. Isso tem
implicação direta na construção do sentido social das diversas práticas públicas e,
portanto, do sentido da existência e da identidade social dos sujeitos que integram esses
diferentes grupos. A visibilidade e a legitimidade da existência, por um lado, e a
invisibilidade e a estigmatização da existência, por outro, se produzem, se reproduzem e
se transformam na dinâmica histórica dessas relações.
Quando projetamos essa perspectiva sobre o estudo do MORE, fica muito mais
clara a necessidade de compreendê-lo enquanto um devir estruturado por um campo de
forças produzido nas e pelas relações históricas. Isso implica que a probabilidade de
grupos ambientalistas se formarem não está igualmente distribuída no espaço social. As
disposições e oportunidades de se engajar nos espaços blicos em defesa da natureza
legítima (aquela digna de contemplação e atenção) são muito mais prováveis de serem
encontradas em certos setores da classe média do que entre operários. Nesse sentido,
analisar o MORE é observar uma formação social com condições sociológicas que
favorecem sua existência enquanto grupo representativo, digno da alcunha legitimada e
legitimadora de “movimento ambientalista”.
O processo de construção de um grupo legítimo demanda um trabalho social de
construção do grupo pelos sujeitos que o constituem. Tratando-se de um conjunto de
pessoas relativamente influentes em Niterói, o trabalho de gênese do movimento já se dá,
desde o início, com considerável adequação aos princípios de consagração pública
constituídos. Assim, poucos meses após a decisão de ingressar na luta pública de
maneira organizada, o nome escolhido é registrado em cartório, define-se uma sigla e um
logo para representar o movimento, organizam-se manifestações públicas, reuniões
regulares, a hierarquia institucional do movimento (presidente, diretores, secretários)
etc. Na dinâmica dos debates, manifestações, manifestos, atas etc., o movimento começa
a definir de maneira mais clara as verdades pelas quais luta, os conteúdos específicos de
suas verdades universais, os fundamentos de sua identidade enquanto grupo que luta
pela natureza e pelo bem público. Nesse exercício prático constante, os sujeitos do grupo
desenvolvem um reconhecimento de seu engajamento em uma coletividade, em um
movimento. Na medida em que o movimento se legitima e começa a apurar sua
capacidade de mobilizar a mídia, de acionar os dispositivos legais, a se inserir nos
espaços da política institucional, ele vai se transformando. Desta forma, quando o
movimento vai gradativamente incorporando a lógica das disputas político-partidárias,
do jogo político, seu sentido vai sendo modificado.
Nesse sentido, a “razão de ser” militante, o sentido da existência que impulsiona o
engajamento dos sujeitos nas lutas públicas, é a matriz que produz o devir do
movimento. Na medida em que esse sentido se transforma, o movimento se transforma.
As disposições de ingressar na luta pública no início do movimento, interessados em
fazer manifestações em defesa da Baía de Guanabara, mudam muito quando os ativistas
passam a compreender e a ingressar no campo da política oficial. Embora, em alguma
medida, a lógica das estratégias retóricas mantenha sua forma, o sentido do engajamento
e das expectativas é muito distinto. Isso se revela na própria narrativa dos ativistas, para
os quais a busca pela inserção no governo, a articulação com partidos, a ocupação de
cargos públicos e a tecnificação das ações e discursos passam a ser vistos como o
caminho natural e necessário de um movimento social que amadureceu.
Essa narrativa expressa como a trajetória dos sujeitos se confunde com o
processo de legitimação do movimento. O reconhecimento do “amadurecimento” do
movimento é, na realidade, a validação de seu próprio percurso nos espaços legítimos de
produção do público. Isso porque, na medida em que iam investindo seu tempo na luta
pública e se inserindo em espaços cada vez mais institucionalizados, os militantes
incorporavam de maneira cada vez mais profunda a lógica dos jogos públicos inerente a
esses espaços. Isso implica que sua “razão de ser” se integrou com os espaços públicos
legítimos. Muitos dos parâmetros da definição relacional de si na sociedade moderna
(profissão, rede de laços sociais, critérios de definição de honra) estavam
intrinsecamente ligados à sua experiência nesses espaços, à sua identidade enquanto
militante ambientalista e/ou política, às campanhas e legados públicos que foram
capazes de produzir. Reconstruir os princípios históricos de produção do sentido da
existência dos sujeitos é fundamental para compreender a gênese dos movimentos
sociais.
Considerações finais
A análise da formação do ambientalismo como fenômeno blico a partir do caso
de Niterói, levando em conta os referenciais teóricos aqui considerados, buscou
identificar alguns fenômenos relevantes para se compreender como se constituem um
conjunto de discursos e práticas legítimas em relação à defesa e aos usos da natureza.
Partiu-se da ideia de uma hierarquia das possibilidades de experimentar e definir
o que é público, produzida pela relação da pluralidade de grupos sociais desigualmente
distribuídos no espaço social e organizados em relação aos centros de poder. Buscou-se
demonstrar como a marginalidade ou a legitimidade desses espaços públicos se constrói
relacionalmente, considerando-se sempre que os centros de poder constituídos têm uma
capacidade de universalização de verdades, de categorias e sistemas de classificação
muito maior do que os grupos marginalizados. Isso tem implicação direta na construção
do sentido social das diversas práticas públicas e, portanto, do sentido da existência, da
identidade social dos sujeitos que integram esses diferentes grupos. A visibilidade e a
legitimidade da existência, por um lado, e a invisibilidade e a estigmatização da
existência, por outro, se produzem, se reproduzem e se transformam na dinâmica
histórica dessas relações.
Nesse sentido, o ambientalismo como fenômeno público é um objeto de pesquisa
que mobiliza categorias e processos que demandam uma análise histórica relacional
capaz de desnaturalizar as construções do senso comum sobre a natureza e o espaço
público. Não basta constatar que o ambientalismo se torna público em função de um
contexto político favorável, ou pelas pressões ambientais do capitalismo industrial. É
preciso investir na compreensão da dinâmica histórica que fundamenta as disputas pela
definição do que é público. Compreender como essas dinâmicas são incorporadas pelos
sujeitos e grupos e quais relações de força (materiais e simbólicas) estão inscritas nesse
processo. Se esse artigo conseguir ser um estímulo (mesmo que limitado) para uma
exploração mais aprofundada dessas questões, terá cumprido seu objetivo.
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