A América Latina de Glauber Rocha: um projeto de integração latino-americana no filme A idade da terra (1980)
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 38-62, jan.-jun., 2015.
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A noção de América Latina supera a noção de nacionalismos. Existe um
problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação econômica,
política e cultural de fazer um cinema latino. Um cinema empenhado, didático,
épico, revolucionário. Um cinema sem fronteiras, de língua e problemas
comuns (ROCHA, 2004, p.83).
Esse projeto chega ao ápice e síntese com a produção de A Idade da Terra (1980),
último filme do cineasta que é – sobretudo – um discurso revolucionário, em tom épico
escatológico – e, portanto, algo religioso – que compreendia a Revolução na América
Latina a partir de uma totalidade da constituição histórica do continente, ou seja: América
Latina como Terceiro Mundo; o Terceiro Mundo como síntese histórica do processo de
junção de negros africanos, índios, criollos e europeus; um mundo subdesenvolvido que
precisava desintegrar a sua totalidade para se reinventar na História.
Nesse sentido, portanto, é que A Idade da Terra traz uma nova linguagem para
a América Latina que, como pretendia seu criador, permitiria à América Latina falar
de si e por si. A partir de então, transformaria os exotismos em poesia concreta para
integrar a cultura latino-americana no seu todo, até então vista apenas por meio da
lente do colonizador. Debruçar-se sobre esse filme, analisá-lo dentro das perspectivas
do macro-projeto descolonizador e liberador do Nuevo Cine Latinoamericano, torna-se
importante objeto para compreender que tipo de projeto estava sendo realizado por um
cineasta brasileiro no sentido de pensar o Brasil como parte integrante dos povos da
América Latina e contribuir para diminuir as resistências quanto a se reconhecer – ou
construir –, aqui, uma identidade latino-americana.
O projeto cinematográfico de A Idade da Terra tem suas origens em 1965 com
o roteiro – nunca filmado – de America Nuestra15. Glauber Rocha começa o projeto
logo depois de escrever o manifesto Eztétyka da Fome e desse roteiro – que pretendia
fazer um filme épico e didático, que contasse os grandes dilemas políticos, sociais e
15. Glauber Rocha começou a redigir o roteiro de América Nuestra logo depois de terminar as filmagens
de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Na versão original o título constante do roteiro era “América
Nuestra (A terra em transe)” e, em sua concepção primária, toda a história girava em torno de uma “his-
tória da América Latina”. O primeiro personagem, ao invés de Paulo Martins, chamava-se Juan Morales. A
primeira versão fora escrita entre janeiro de 1965 e abril de 1966, durante as suas estadias em Roma e no
Rio de Janeiro. E foi em Roma, que, partindo de América Nuestra, Glauber Rocha acabou desenvolvendo a
ideia do filme Terra em Transe (o roteiro de Terra em Transe aparece, precisamente, depois da polêmica
com seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, tendo 700 páginas, que mais convergiam para uma
teoria histórica, política e cinematográfica do que para a estória propriamente.). O ponto de partida des-
sa trajetória era a matriz reflexiva e histórica de Deus e o Diabo na terra do Sol, pois, segundo Glauber
Rocha: “Senti a necessidade de prosseguir a estória de Manuel e Rosa correndo para um mar libertador.
Esse mar banhava uma nova terra, esta terra estava em crise, dividida, estraçalhada – era uma terra
possuída pelas paixões políticas e atormentada pelos problemas sociais”, de luz tropical e “mau gosto
operístico nas mansões milionárias”; um “país ou ilha interior” onde os partidos “ofereciam ideologias
fechadas, os capitalistas estavam às portas da falência, os escritores mudos, o povo esquecido de sua
própria condição”. O filme que Glauber começa a filmar ainda em 1966, Terra em Transe, é na realidade
uma fusão dos dois roteiros: A ideia do primeiro – situar a ação num país imaginário, Eldorado, “uma
tentativa de sintetizar o chamado terceiro mundo subdesenvolvido e discutir alguns de seus problemas
mais importantes” (Em entrevista à Revista Artes, de 1967, Glauber Rocha afirma: “Situei o filme no país
interior de Eldorado porque me interessava o problema geral do transe latino-americano e não do bra-
sileiro, em particular”.) – se funde a proposta do segundo – que deveria, sobretudo, se passar no Brasil,
entre o mar do Rio e o sertão do Nordeste. Cf. ( AVELLAR, 1995. p.9.); SANCHES, 2000); (PEREIRA &
BRANDÃO, 2015. pp.138-139).