O riso e o humor sempre fizeram parte da cultura humana. Apesar disso, foi a
partir da segunda metade do século XX que as narrativas humorísticas passaram a ser
legítimo objeto de estudo para a historiografia, a partir do advento da história cultural do
humor. Mesmo que, metodologicamente, o estudo da comicidade seja ainda campo de
difícil aproximação para o historiador devido à fragmentação dos objetos, é sempre
válido apostar em uma leitura atenta das fontes, dialogando livremente com perspectivas
epistemológicas.
Daí porque é possível afirmar que o estudo do humor tem se mostrado cada vez
mais pujante e merecedor de abordagens originais nas mais diversas áreas do
conhecimento.
Pensando historiograficamente, ainda que tenhamos acesso a publicações mais
gerais do século XXI, como por exemplo Uma história cultural do humor (2000),
organizado por Jan Bremmer e Herman Roodenburg, História do riso e do escárnio, de
Georges Minois (2003), e sobretudo o largo compêndio de estudos sobre humor
organizado por Salvatore Attardo, The Encyclopedia of Humor Studies (2014), esses
volumes possam figurar como parâmetros para o historiador do humor, destacamos que
no Brasil o crescimento deste campo ainda é lento, apesar do trabalho pioneiro de Elias
Thomé Saliba (2002) e da existência de grupos de pesquisa e seminários sobre
comicidade, apontando que esta é uma linha de pesquisa repleta de possibilidades de
trabalho.
Este dossiê especial da revista Faces da História pretende celebrar exatamente
este momento da pesquisa sobre humor no Brasil, registrando seus diálogos sobretudo
com a história cultural, mas abrindo também espaço a interlocuções com a filosofia, a
linguística, a literatura, o cinema, a música e o direito. A generosa acolhida da equipe
editorial ao tema proposto para o dossiê, portanto, é nosso primeiro motivo de
agradecimento como editores.
O segundo foi a boa receptividade encontrada pela chamada de artigos, não
por historiadores, público-alvo da revista, mas também por pesquisadores de outros
campos do conhecimento todos, porém, com propostas extremamente interessantes e
inventivas, vindas de diversas partes do país.
Nessa aventura interdisciplinar, a lógica que pretendemos seguir com a ordem de
apresentação dos artigos não foi a simples cronologia dos fatos históricos abordados em
cada um dos trabalhos. Como o dossiê é composto por abordagens que vão desde a
Grécia antiga ao direito contemporâneo, optamos pela divisão em quatro blocos
temáticos.
No primeiro deles, reunimos quatro artigos que combinam historiografia e
análise literária.
Em Tenupá-Oikó: a filosofia do “Deixa Está” como proposta humorística para a
construção da legislação brasileira pela ótica antropofágica de Clóvis de Gusmão,
Heraldo Márcio Galvão Júnior, doutor em história pela Universidade Federal do Pará
(UFPA) e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA),
resgata um nome pouco estudado do modernismo brasileiro, jogando luz sobre um autor
profundamente original que ainda não obteve o merecido reconhecimento. Clóvis de
Gusmão utilizava o folclore amazônico anedotas, em especial com o objetivo de, nas
palavras de Galvão Junior, compreender “a verdadeira brasilidade” e “reedificar as
concepções de sociedade, de cultura e de política”, inclusive por meio da substituição da
legislação vigente, que seria mera cópia de modelos europeus, por algo verdadeiramente
nacional.
Outro autor relativamente pouco estudado é o objeto do artigo de Leandro
Antônio de Almeida, doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e
professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Depois,
miseravelmente depois, só rindo: a sátira cômica de João de Minas nos anos 1930
escrutiniza a vida e a obra do pseudônimo de Ariosto Palombo, escritor de matizes
inicialmente sertanistas que enveredou mais tarde pelo romance mais popularesco,
contudo, sem jamais, abandonar a sátira política como elemento central de suas
narrativas ficcionais. Almeida compara esses dois momentos da obra de João de Minas,
refletindo sobre o papel do distanciamento na sátira e demonstrando como o autor
mesclava os dramas de seus protagonistas com referências explícitas a acontecimentos
políticos da época tudo envolto numa atmosfera um tanto iconoclasta, num “universo
regido pela busca [...] de poder e dinheiro por meio da corrupção generalizada”.
Fechando o bloco concernente à literatura, Luís Felipe Gonçalves do Nascimento,
mestre em história pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apresenta A
Ressurreição de Vitorino Carneiro da Cunha: humor e ironia na obra de José Lins do
Rego. O artigo mostra como o escritor paraibano utilizou um dos protagonistas do
romance Fogo Morto para ironizar a crítica literária da época, e em certa medida a si
mesmo, na medida em que se tratava de personagem inserido na mesma oligarquia
canavieira na qual o próprio José Lins do Rego havia crescido. O artigo propõe, com isso,
uma leitura que ilumina de modo inspirado toda a obra do autor: “É esta tensão que faz
de José Lins do Rego um escritor intrigante, no aspecto de falar ou não falar do mundo
em que viveu, de representá-lo, ou, de maneira intencional, desmontá-lo com ironia”.
O segundo bloco traz artigos que avaliam o humor na imprensa, começando com
mais uma contribuição nordestina. Em O Jornal O Norte e o pioneirismo do humor
gráfico na imprensa paraibana, Rosildo Raimundo de Brito, doutor em história pela USP
e professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), analisou as edições
que circularam entre 1968 e 1980 do primeiro periódico do estado a utilizar de modo
consistente tiras e quadrinhos. Para se debruçar sobre as caricaturas do jornal, em
especial sobre o personagem da Silva, o autor parte da ampliação do conceito de
“documento histórico” pela chamada “nova história cultural”, para concluir que é
possível, a partir das imagens, se conhecer a história social de um determinado tempo”,
considerando que por meio delas é possível reconstruir acontecimentos “em toda sua
espessura política, social e cultural como, por exemplo, as alusões feitas sobre a
ausência de voto direto para presidente durante a ditadura civil-militar que governou o
país de 1964 a 1985.
em “Adoradores de Baccho”: embriaguez, humor e ambivalência na imprensa
pelotense (1930-1935), Thaís de Freitas Carvalho, mestre em história pela Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), retrata como o humor confere ambivalência ao retrato da
vida noturna por dois jornais circulantes na cidade, que se equilibravam entre a
condenação dos excessos alcoólicos por meio da derrisão e a celebração dos entreveros
por meio de notas policiais bem-humoradas. A historiadora reconhece que “muitos dos
causos e histórias vividas por entre bares e botequins permanecem inacessíveis aos
historiadores”; porém, os fragmentos de brigas e vexames, que ganharam menções nos
periódicos, permitem entrever e imaginar a dinâmica dessa sociabilidade, e o que ela
revela a respeito do divertimento possível à classe trabalhadora pelotense da época.
No quarto bloco destacamos artigos que abordam o humor em narrativas
musicais e cinematográficas, fontes caras aos estudos de história cultural e que aqui
primeiro surgem com o artigo Humoristas-cantores: a comicidade na canção brasileira
(1964-1985) entre tons de crítica e notas de acidez, de Gabriel Percegona Santos,
mestrando em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nele, Santos propõe
estabelecer um diálogo entre a história cultural do humor no Brasil entre os anos de
1964 e 1985 e sua expressão musical”, abordando a comicidade em registros fonográficos
de artistas como Ary Toledo, Paulo Silvino, Chico Anísio e Arnaud Rodrigues (Baiano &
Novos Caetanos), destacando como tais críticas, porque vieram através do humor, não
fizeram com que as obras fossem censuradas e nem “tornaram seus autores e
intérpretes personagens visados pela ditadura”, como era comum na época.
O humor no cinema aparece representado em Cinema e consumo popular de
pornochanchadas: da nudez explorada às representações femininas (1970), de Julio
Eduardo Soares de Alvarenga, mestre em história pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI), e Pedro Vilarinho Castelo Branco, doutor em história e professor da mesma
universidade. No artigo, os autores não abordam o gênero pornochanchada em geral
como também apresentam análises mais detalhadas das comédias eróticas Um Virgem
na Praça (1973), de Roberto Machado, e Mulheres Violentadas (1977), de Francisco
Cavalcanti, para discutir a questão da nudez naqueles filmes e, sobretudo, “a dominação
masculina e as formas de resistência feminina” e, com isso, esboçar possíveis papéis das
mulheres naquele gênero cinematográfico de alto consumo na década de 1970.
Inaugurando a última e mais interdisciplinar seção do dossiê, dedicada a outros
campos do conhecimento, Walter Claudius Rothenburg, livre-docente em direitos
humanos pela USP e professor da Instituição Toledo de Ensino (ITE), apresenta O humor
e seus limites jurídicos amparado sobretudo no caráter paradoxal da manifestação
humorística, que caminha quase sempre no fio da navalha entre a proteção e a repressão
por parte do ordenamento jurídico. Escrito em linguagem clara e acessível a não-juristas,
o autor defende que o humor pode iluminar determinados fatos e questões sociais de
modo inestimável, porém, “[q]uando inferioriza, quando agride, o humor discriminatório
deve ser encarado pelo Direito como ilícito: uma manifestação intolevel de
‘discriminação recreativa’”.
Segundo consta na Encyclopedia of humor studies (ATTARDO, 2014, p. 120-7) o
campo do humor infantil é um dos mais considerados como tema de estudo pelos
pesquisadores da comicidade e neste dossiê ele está representado pelo artigo Da
compreensão à produção de incongruências por uma criança pequena: dados de humor,
de Caroline Prado Gouvêa, graduada em letras e mestranda na área de linguística pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Araraquara; Alessandra Del Ré, que é
doutora e professora na área de linguística na UNESP/Araraquara, e Alessandra
Jacqueline Vieira, que é doutora e professora do curso de letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Neste artigo, bastante empírico, as pesquisadoras se
propuseram a considerar “o processo de compreensão e a produção das incongruências
que vão produzir efeito humorístico no discurso” durante a interação com o outro. Essa
pesquisa foi feita a partir da análise dos vídeos de crianças entre três e quatro anos de
idade disponíveis no banco de dados do grupo NALingua (CNPq). Interessante é que os
resultados parciais alcançados nesta pesquisa mais ampla na área de aquisição da
linguagem infantil mostram que o humor estaria presente na fala da criança desde cedo.
Para finalizar nosso dossiê, apresentamos uma colaboração advinda da filosofia
sobre a presença das narrativas cômicas na Antiguidade com o artigo A tripartição da
retórica no cinismo de Diógenes de Sínope, de George Felipe Bernardes Barbosa,
graduado e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), que se
propõe a analisar trechos da obra de Diógenes, o Cão. Considerando aspectos cômicos
no cinismo, Barbosa defende que se dissipa a ideia de que o filósofo é sempre a figura
séria, presas em pensamentos transcendentais”. Além de divertida e surpreendente, essa
contribuição também é enriquecida com uma linguagem erudita e reflexões pertinentes
sobre gêneros textuais humorísticos como anedotas.
A pluralidade do dossiê que temos a satisfação de apresentar ao público leitor é,
portanto, espelho das próprias possibilidades oferecidas pelas diversas formas de
manifestação humorística. Atravessando gêneros e formatos, séculos e povos, o humor
ainda se apresenta intrigante e aberto às perguntas que, espera-se, lhe sejam feitas com
frequência cada vez maior.
Boa leitura!
Camila Rodrigues
Doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP)
https://orcid.org/0000-0001-5842-8737
João Paulo Capelotti
Doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
https://orcid.org/0000-0003-3009-9729
Referências
ATTARDO, Salvatore (org). Encyclopedia of humor studies. New York: SAGE
Publications, 2014.
BREMMER, Jan; ROODENBURG (Org). Humor e história. Uma história cultural do
humor. Trad. Cynthia Azevedo; Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 13-25.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
SALIBA, Elias Thomé. Crocodilos, satíricos e humoristas involuntários: ensaios de
história cultural do humor. São Paulo: Entremeios; USP-Programa de pós-graduação em
história social, 2018.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira
da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.