FACES DA HISTÓRIA
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Recebido em: 25 de março de 2014
Aprovado em: 03 de agosto de 2014.
A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças
sobre o modelo ideal de Monarca
The vision of the Visigoth bishop Isidore of Seville in his Sentences
work on the ideal model of Monarch
MICHELETTE, Pâmela Torres
1*
RESUMO
A noção cristã de realeza no reino visigodo alcançou sua plena maturidade
no século VII, muito em virtude das denições da doutrina política do bispo
Isidoro de Sevilha (560-636). Dessa forma, este artigo visa compreender a
elaboração da concepção da Realeza Católica Visigoda, a partir de algumas
das ideias políticas de Isidoro, prelado que viveu na passagem do sexto para
o sétimo século, na Hispânia, um período de mudanças, no qual se buscava
a unidade religiosa, política, legal, administrativa e de identidade. Assim,
analisamos as perspectivas desse prelado, especialmente na sua obra
Sentenças, pois acreditamos que Isidoro, por meio dessa obra, desenvolveu
um importante papel na tarefa de fortalecimento da Monarquia no reino
visigodo, bem como um modelo de governo ideal a ser seguido.
Palavras-chave: Monarquia Visigoda, Isidoro de Sevilha, Sentenças.
ABSTRACT:
The Christian concept of royalty in the Visigothic kingdom reached its full
maturity in the seventh century, because of the very denitions of the political
doctrine of Bishop Isidore of Seville (560-636). This way, this article aims to
understand the development of the conception of the Catholic Royalty stood
from some of the political ideas of Isidore, prelate who lived in the passage
from the sixth to the seventh century in Hispania. A period of change in
which religious unity was sought legal, administrative and identity politics.
So we analyze the prospects of this prelate, especially in his Sentences work
because we believe that Isidore, through his work, developed an important
role in the task of strengthening the monarchy in Visigothic kingdom as well
as a ideal government. model to follow.
Key-words: Monarchy, Isidore of Seville, Sentences.
Introdução
No reino visigodo, em nais do século VI e VII, não se reconhecia
maior autoridade soberana que a Monarquia. Acreditamos ser pertinente
aqui fazer uma observação: na Hispânia esse sistema de governo não era
hereditário. É válido ressaltar, também, que havia outras instâncias de poder,
notadamente a Nobreza e a Igreja, que devido as suas elevadas posições
1
Professora Assistente I Universidade Federal do Piauí, Campus Professora Cinobelina
Elvas. BR 135, km 3, Bairro Planalto Horizonte, CEP: 64900-000, Bom Jesus/PI Brasil.
Mestre em História. E-mail: pamelamichelette@yahoo.com.br.
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Pâmela Torres Michelette
econômica e social, representavam importantes grupos políticos. Tais classes,
muitas vezes, impediram que a realeza exercesse plena competência de poder,
conferidas pelas tradições político-religiosoas.
O bispo visigodo Isidoro de Sevilha, por meio de alguns de seus
trabalhos, foi um dos principais responsáveis pela construção do conjunto
de concepções políticas relativas à Monarquia visigoda, bem como, pela
solidicação e normatização dessa instância de poder, especialmente, quando
observamos os Concílios visigóticos. O sevilhano viveu durante um período
de transformações, no qual buscava-se a unidade religiosa, política, legal,
administrativa e de identidade do reino. Tal ambiente teve forte inuência na
edicação de suas ideias. Em razão de sua força e de sua riqueza intelectual
e episcopal, ele exerceu uma preeminência sobre o reino visigodo e seus
príncipes (FONTAINE, 2002, p. 99).
Neste artigo, nossa proposta será analisar trechos selecionados
da obra do sevilhano especialmente as Sentenças (SEVILHA, 1971)
identicando os elementos referentes à construção de uma Monarquia
idealizada que estivesse em comunhão com os anseios da Igreja Visigoda.
Nesse sentido, acreditamos que esse bispo procurou estabelecer, por meio de
alguns de seus escritos, uma conduta moral direcionada a monarquia visigoda,
desenvolvendo uma concepção teológica e política vinculada ao princípio de
que a realeza está a serviço da Igreja
2
. Cabe ressaltar, ainda, que o modelo
de monarca em questão não se encontra sistematizado em uma única obra
de Isidoro. Tal modelo se expressa entre outras atuações de Isidoro, nas suas
ações junto à monarquia e suas participações em concílios.
Isidoro e o Reino Visigodo
Isidoro de Sevilha (560-636) pertenceu a uma família católica hispano-
romana. Como bispo de Sevilha, o irmão de Isidoro, Leandro de Sevilha, foi
o instrumento decisivo para conseguir a renúncia ocial ao arianismo dentro
do reino visigodo, proclamada no III Concílio de Toledo (589). Segundo Quiles
(1965), Isidoro sucedeu a Leandro como bispo por volta de 600 e, durante o
seu bispado, Sevilha desfrutou de preeminência como centro intelectual do
reino visigodo.
Isidoro era jovem quando iniciou na Hispânia visigoda a guerra
civil (579) entre o rei Leovigildo (571-586) e seu lho Hermenegildo. seu
irmão, Leandro, estava diretamente envolvido nessa querela, dando apoio ao
2 Cabe lembrar que entendemos Igreja como uma instituição de
características locais, apesar de seus componentes armarem pertencerem
a um grupo maior (RAINHA, 2007, p. 28).
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
príncipe insurreto. Este último chegou, inclusive, a ir para Bizâncio tentar apoio
das tropas bizantinas, mas estas estavam retidas por uma invasão eslava nos
Bálcãs. Foi nessa visita a Constantinopla que o bispo sevilhano conheceu o
futuro papa Gregório Magno que, como veremos adiante, exerceu também
contundente inuência sobre o pensamento de Isidoro.
Leandro não regressou à Hispânia até o m do reinado de Leovigildo,
em 586. Quando retornou, o trono visigodo estava ocupado por Recaredo
(568-601). Tal governante tinha planos de se converter ao catolicismo. Nesse
episódio, Leandro de Sevilha esteve diretamente relacionado aos propósitos
de conversão de todo o reino com o monarca.
Dessa maneira, Isidoro pôde vivenciar uma dupla aprendizagem em
Sevilha. Haja vista que esta urbe estava inserida no centro de decisões que
inuenciaram acontecimentos tanto políticos quanto religiosos, principalmente
na segunda metade do século VI. Leandro proporcionou a Isidoro, nestes anos
em que sua personalidade estava em formação, segundo J. Fontaine:
el modelo vivo de una actividad literaria y pastoral equilibrada [...]
Los acontecimientos enseñaran así a Isidoro los peligros de la
división étnica, política, confesional, el riesgo mortal que suponen
las guerras civiles, que degeneran con frecuencia en guerras con
el exterior, la ambiguedad de las intervenciones interesadas del
Imperio de Oriente en Espana, y la preocupación por no confundir
las convicciones religiosas con los intereses políticos. Todas estas
experiencias alimentaron e hicieron madurar su conciencia moral,
cívica y cristiana, tal como se expresará, seguiendo el ejemplo de
Leandro, en su actividad literaria y mista entre los hispanorromanos
de la Bética, frente a la inestabilidad de los godos y a su “enfermedad
gótica” la de la sucesión en el poder soberano mediante el asesinato
y la usurpación -, frente a la duplicidad de los bizantinos, frente a la
reforma todavia insuciente de las Iglesias católicas de España, frente
a todo eso, decíamos, tomo conciencia Isidoro, a lo largo de estos
años, de la necessidad de construir otra Espana sobre unas bases
nuevas [...] (FONTAINE, 2002, p. 83).
Assim, percebemos que o ambiente em que Isidoro cresceu e
se formou estava em ebulição. Como o reino passava por um processo de
unicação territorial e religiosa, os poderes internos estavam tentando ganhar
seu espaço. Dessa forma é que identicamos as problemáticas levantadas
pelo bispo em suas participações conciliares como em seus escritos.
Foi no período entre 599 e 601 que Leandro de Sevilha,
respectivamente, abandonou suas funções eclesiásticas e faleceu. Seus
encargos foram assumidos, quase de forma hereditária, por Isidoro. É provável
que ele exercesse, algum tempo, em conjunto com seu irmão, o posto
de diácono do bispo. Dessa maneira, percebemos que a autoridade política e
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religiosa de Leandro, tanto na Bética, como em todo o reino, abriu as portas
para Isidoro assumir a posição de bispo de Sevilha.
Esse cargo eclesiástico foi ocupado por Isidoro por, aproximadamente,
trinta e cinco anos. Nessa função, ele exerceu, ao longo desses anos, uma
grande inuência. Notadamente, na condição de tutor dos monarcas visigodos,
no qual desempenhou papel de “conselheiro real”, ele colaborou nas ações
políticas do reinado de Gundemaro (610-612), Sisebuto (612-621), Suintila
(621-631) e Sisenando (631-636). Dessa maneira, Isidoro empreendeu
diversas vezes viagens de Sevilha a Toledo, para ocupar-se tanto com reuniões
episcopais como com assuntos políticos.
Essa tutela aprimorou-se de diversos modos, a saber: com a sua
presidência no II Concílio de Sevilha, em 619, e do IV Concílio de Toledo,
em 633. Mas, também, podemos citar a sua ligação pessoal com alguns reis,
como foi o caso de Sisebuto e, por m, por meio de suas reverberações sobre
a Monarquia e sobre o exercício do poder político e eclesiástico. Anal, se
tratava de um reino, que apesar de unicado, estava sujeito a instabilidades,
em virtude, principalmente, das incertezas nas sucessões régias. Assim, o
bispo sevilhano colaborou na tentativa de consolidar a Igreja e o reino visigodo.
No que tange a doutrina e os conceitos políticos formulados pelo
bispo, acreditamos que houve, por parte de Isidoro, uma tentativa de traçar
o perl de príncipe ideal no reino. Para tal, ele se espelhou, inicialmente, em
Recaredo rei que ocializou o catolicismo niceísta (III Concílio de Toledo
589) que, para o sevilhano, reunia as principais características favoráveis de
um bom governante.
Essa elaboração consistiria em um modelo de conduta governamental
político-religiosa a ser seguido pelos reis que sucedessem o supracitado
monarca (ORLANDIS, 1993, p. 57). Como podemos observar abaixo:
Fue apacible, delicado, de notable bondad, y reejó en su rostro tan
gran benevolencia y tuvo en su alma tan gran benignidad, que inuía
en los ánimos de todos e, incluso, se atraía el efecto y el cariño de
los malos; fue tan liberal, que restituyó a sus legítimos dueños los
bienes de los particulares y las propiedades de las iglesias, que el
error de su padre había asociado al sco. Fue tan clemente, que
muchas veces exoneró al pueblo de los tributos con indulgente
liberalidad. Enriqueció a muchos con bienes y elevó a muchos con
honores, guardando sus riquezas en los míseros y sus tesoros en
los necesitados, sabedor de que el reino le había sido encomendado
para disfrutar de él con miras a la salvación, alcanzando con buenos
principios un buen n; y así, la fe de la verdadera gloria, que recibió
al principio de su reino, la acrecentó, hace muy poco tiempo, con la
profesión pública de arrepentimiento. Pasó a mejor vida, en paz, en
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
Toledo. Reinó Recaredo durante quince años (SEVILHA. Hist. Goth.
p. 264-69, c. 55-56).
O reinado de Recaredo proporcionou para a Igreja um período
de consolidação e fortalecimento como organização eclesiástica. Mas, a
incorporação ocial dos prelados junto à vida pública da Monarquia visigoda
deu-se, de modo denitivo, a partir do IV Concílio de Toledo. A partir desse
marco, o episcopado permaneceu praticamente integrado ao grupo dirigente do
reino. Para J. Orlandis (1988, p. 233) esse foi o momento em que o episcopado
se germanizou consideravelmente, em decorrência do crescente número de
prelados de nome e geração germânica, muitos de descendência nobre.
Nos cenários conciliares que se iniciaram no reinado de Recaredo,
foram-se introduzindo conexões tendentes a aquilatar a estratégia que buscava
a colaboração dos bispos no âmbito scal
3
. Esses começaram a exercer um
controle sobre os agentes do sco régio. Assim, materializou-se a incursão
episcopal nos assuntos scais do reino. Em muitos casos, os próprios prelados
eram os que cometiam abusos perante as exigências tributárias
4
.
Também não podemos deixar de mencionar que houve certa
cooperação entre os bispos e os juízes. Entre elas, citamos a perseguição às
manifestações pagãs, ainda presentes na sociedade hispânico-visigoda. Ao
solicitar a colaboração desse poderoso setor da sociedade, os bispos deixaram
entrever, com toda clareza, sua tomada de consciência sobre o alcance que
tinha o apoio dos magnatas como referência social. Santiago Castellanos
(2007, p. 249) chama-nos a atenção, ao armar que a participação episcopal
no reinado de Recaredo resultou na regulamentação dos mecanismos de
liquidação do arianismo.
Porém, salientamos que o episcopado visigodo teve um
comportamento paradoxal. Se, por um lado, fortalecia a Monarquia com
a formulação de conceitos teocráticos
5
, por outro, somado à nobreza laica,
constituía um poder que impelia certo limite à autoridade real. Fato perceptível
após a abjuração do arianismo no III Concílio de Toledo, visto que não
entendemos esse episódio apenas como uma mera mudança de crenças
religiosas, pois provocou também uma radical alteração nas relações que
mantinham Igreja e Monarquia, trazendo importantes consequências para
ambas. No terreno econômico, a conversão provocou um notável aumento do
patrimônio eclesiástico. No âmbito político, abriu caminho para a intervenção
3 Cf. concílio: III Toledo (589), c. XVIII.
4
Cf. III Toledo (589), c. XX.
5
Cabe frisarmos que a formulação da Monarquia Teocrática na Hispânia Visigoda se deu a
partir da conversão do reino, quando por meio de preceitos ligados a Igreja, a instituição
Monárquica incorporou elementos que a caracterizassem e a legitimassem como tal.
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do poder eclesiástico em assuntos civis, obtendo o clero, paulatinamente, uma
maior participação na vida política do reino.
A aliança entre reis e bispos não foi sempre um espaço sem hiatos.
Em termos gerais, o modelo inaugurado no III Concílio de Toledo manteve-
se de até o nal do reino visigodo. No século VII, buscava-se o reforço
dos aspectos de estabilidade política e respaldo ideológico da realeza,
precisamente, no ambiente que, na prática, foram enormemente tensos e
violentos. No âmbito do discurso teórico, havia-se alcançado a denição
da aliança entre rei e bispos. Evidentemente, essa aliança, selada na
conversão, supôs, para ambas as partes, uma plataforma de poder e novas
vias estratégicas, o que não signicava que conseguiram resolver seus
problemas (VALVERDE, 2000, p. 256).
Dessa forma, a Igreja proporcionou à monarquia uma sólida base
conceitual em que se fundamentou sua autoridade. Os prelados foram aqueles
que monopolizaram a cultura e elaboraram as concepções político-religiosas
que serviram de base e legitimaram a autoridade real, adquirindo os reis
um substrato teocrático e ideológico. A partir de então, o monarca visigodo,
que era responsável pelo poder temporal, assumiu o compromisso dos
assuntos espirituais, em virtude de ter como dever supremo a direção da
sociedade cristã.
Mas qual o papel de Isidoro de Sevilha nesse processo? O teórico
bispo de Sevilha foi quem conferiu alguns dos aspectos do pensamento político
visigodo. Podemos identicar dois polos de inuência: o mundo clássico e a
Igreja. Para o sevilhano, o conjunto formado pelas nações germânicas não
era mais o Império, mas sim a Igreja. Esta última constituía um grande reino,
no qual seus regentes deveriam dar apoio aos sacerdotes, especialmente,
quando eles não conseguissem se impor apenas pelas palavras.
O pensamento político do sevilhano repousa no princípio de que a
realeza está a serviço da Igreja. Nesse sentido, a Monarquia não era mais
vista como uma falsa imitação do Império, mas como uma instituição a serviço
da causa cristã, segundo a vontade de Deus. São duas as fontes de poder
para a concepção de realeza de Isidoro: Deus e o povo cristão. Se por um
lado, foi Deus quem deu o poder, por outro, o rei é também convocado pela
comunidade de éis. Essa apresenta, no domínio laico, o sinal da unidade
orgânica do povo, assim como o bispo no plano espiritual.
Temos, portanto, uma realeza fundada não nas pessoas, mas
na comunhão de éis. Tal sistema político parte da armação de que a
Igreja constitui o reino de Cristo. O que nos permite armar, ancorado em
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ideal de Monarca
Marc Reydellet (1981), que as ideias político-religiosas de Isidoro eram
cristológicas por primazia
6
.
É sempre válido lembrar que Isidoro não foi um autor de ideias próprias
e de nenhum sistema novo. Nesse sentido, seu reconhecimento vem de seu
trabalho de selecionar e coordenar os materiais que eram da Antiguidade, isto
é, os autores que contribuíram para a losoa cristã, especialmente Agostinho
de Hipona e o papa Gregório I (QUILES, 1965, p. 79).
Santo Agostinho, em sua obra Cidade de Deus (1991), defendia
que Deus forneceu suas leis a humanidade por meio dos reis. O pensamento
agostiniano considerava que o cargo real era como um ofício eclesiástico,
que a concepção de Igreja como um corpo deu um suporte importantíssimo
para esse processo, pois a função do monarca era baseada dentro de uma
concepção teleológica. O que, na prática, transformava-se no exercício das
obrigações reais, tanto no âmbito do reino como da Igreja. Dessa forma, surgiu
o entendimento do conceito de ofcium, cando claras as intenções da Igreja
de interferir no campo do poder monárquico.
Tal ponto de vista, no qual o governante está a serviço dos preceitos
da Igreja, é reexo do presente de Agostinho. Naqueles dias, devido à
fragilidade em que o Império romano se encontrava, favorecia a aliança com a
Igreja, principalmente, para que essas duas instituições pudessem garantir a
paz. Dessa forma, o bispo de Hipona armava que a cooperação poderia ser
útil em questões que pudessem colocá-las em risco.
A Monarquia deve car subordinada à Igreja, no que diz respeito
à matéria espiritual, e, a Igreja sujeita aos negócios temporais, delegando
essa responsabilidade ao poder régio. Entretanto, os dois poderes, em caso
de necessidade, podem sair de seu domínio para assumir o do outro. Assim,
haveria situações em que ambas as instituições se tornariam inseparáveis
(URBEL, 1995, p. 243).
Para Isidoro de Sevilha a procedência divina do poder real constituiu-
se a ideia básica de seu pensamento político. Uma concepção que identicamos
resumida na expressão gratia diuina (ALONSO, 1975, p. 274-275), em especial,
quando faz referência ao rei visigodo Suintila. Tal conceito trabalha com a ideia
de que a força régia era resultado de um favor celestial por meio da graça
divina. Em outras palavras, o poderio régio se instituiu para que as leis fossem
cumpridas. Para Isidoro as leis eclesiásticas não eram exceções, a realeza
também estava a serviço da Igreja.
6 O sistema político-religioso isidoriano parte da armação de que a Igreja constitui a realeza
de Cristo (REYDELLET, 1981, p. 557).
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Pâmela Torres Michelette
E mais, o monarca, na concepção isidoriana, deveria utilizar sua
autoridade coercitiva quando as leis canônicas não fossem ecazes em
seu cumprimento por meio da palavra. Dentro dessa visão, o governante
estava obrigado a compromissos espirituais dentro de suas funções
temporais (AGUILERA, 1992, p.19). A Igreja, dessa forma, tentava fazer
desse poder não um privilégio, mas um serviço a ser exercido em benefício
da coletividade, considerando esse recurso governamental como mais um
instrumento de salvação.
Para o bispo sevilhano, o poder civil e os reis tinham uma tarefa
determinada: garantir que se cumpram às leis. De acordo com esse prelado,
o rei estava submetido às leis como qualquer um de seus súditos. O poder
monárquico deveria, portanto, estar sempre em função do bem dos súditos. A
validade do poder, segundo Isidoro, não era perdida com o mau soberano, pois
a legitimidade real somente poderia ser julgada por Deus.
Peter Brown, em sua obra “O m do mundo clássico”, expõe que os
bispos foram aqueles que mais trabalharam pelo estabelecimento da Igreja
cristã na sociedade romana:
[...] apascentam o seu rebanho com a férrea energia dos governadores
coloniais de um território “atrasado”. Querem que os imperadores
cristãos os ajudem. A partir do reinado de Teodósio I, os pagãos e os
heréticos são privados de direitos civis e obrigados a conformarem-
se com a Igreja católica. O Estado Romano tem uma missão
transcendente, arma-se, e o imperador é responsável perante Deus
pelas almas dos súditos (BROWN, 1972, p.114).
P. Brown (1972) deixa-nos claro que não apenas os monarcas
tinham que assumir compromissos com Deus, mas também os bispos. Ambos
possuíam cargos de responsabilidade perante a Igreja. Talvez, seja esse o
encargo que Isidoro sentia quando assumiu a postura de tutor no reino visigodo,
ao lado do poder régio. Ele, em sua concepção de mundo, não tinha apenas o
papel de instruir, mas, também, o de fazer parte do plano da salvação. Foram
com estes propósitos em mente que o sevilhano aconselhou os reis, participou
efetivamente de reuniões conciliares e escreveu múltiplas funções.
Cabe destacar que a questão de concepção da origem divina dos
governantes sofreu mudanças ao longo do tempo, principalmente, quando os
imperadores deixaram de se considerarem divinos e passaram a defender as
bases de seus poderes na Graça Divina. W. Ullmann (1985, p. 61) defende que
essa alteração foi importante, pois estes abandonaram as aspirações de serem
divindades na terra e reconheceram que Deus era a origem do poder. Esta
modicação pode ser atribuída à doutrina paulina, que alterou tais práticas.
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
No que tange a Monarquia visigoda, percebemos que, as eleições
reais deixaram de possuir o mesmo signicado, pois as concepções de poder,
pela vontade divina, zeram com que os pleitos ganhassem outro propósito: o
de apenas escolher um indivíduo idôneo para desempenhar tal cargo. Sendo
assim, a eleição não lhe dava poderes, não o fazia rei. Apenas a unção e a
coroação lhe conferiam o poder divino e legitimava seu status perante todo o
reino (ULLMANN, 1985, p. 149-151).
A principal transformação ocorreu no sistema de transmissão da
monarquia goda no ano de 531, com a extinção da dinastia dos Baltos. A
partir de então, a eleição do rei converteu-se em uma realidade e o sentimento
dinástico deixou de ser um motivo de assegurar a transmissão do poder de
pai para lho (COLLINS, 2005, p. 41). Isso se deu em decorrência do jogo
de interesses que muitas das famílias que faziam parte da elite política do
reino tinham. Se por um lado os beneciários de uma determinada Monarquia
defendiam suas vantagens, por outro, diversos grupos, não privilegiados,
pretendiam colocar no trono alguém que os favorecessem.
A interdependência mútua dos componentes dessa elite governante
impunha que a Monarquia fosse generosa e distribuísse terras, objetos de valor
e outros recursos entre os nobres que a apoiavam. Dessa maneira, assegurava
a lealdade desses grupos. Um fator determinante para que essa dialética fosse
bem sucedida era a vitória nas guerras. Fator explicado, basicamente, por
dois motivos: o primeiro era a oportunidade que os membros dessas famílias
tinham de demonstrar suas façanhas, proezas e poder se comparar aos seus
antepassados heroicos (reais ou imaginários); e, o segundo, e mais importante,
dava-se na possessão dos botins que essas guerras geravam.
A história política da monarquia visigoda registrou uma contínua
contenda com relação à sucessão eletiva ao trono. Assim, assiste-se a
diversas tentativas em que alguns reis empreenderam para conseguir que
essa fosse, de fato, hereditária ou ao menos ter o direito de designar, em
vida, seu sucessor. O regime de governo, em tempos da Monarquia católica,
tornou-se objeto de uma progressiva e minuciosa regulamentação por parte
dos Concílios de Toledo.
O sistema estabelecido e consagrado teve o aval da aristocracia
secular, que diretamente beneciava-se disso, pois, teoricamente, impedia
os intentos reais de associar alguém de sua família. Entretanto, a eleição e
a seleção do monarca estavam em contradição com o princípio sucessório,
pois os monarcas, em muitos casos, conseguiram fazer prevalecer à sucessão
legatória. Destaca-se o fato de não haver nenhum indício no sentido de
modicar tal norma, assim, a associação ao trono foi o procedimento mais
utilizado para tentar alcançar os anseios dos reis visigodos.
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Pâmela Torres Michelette
Podemos concluir que, apesar da realeza visigoda não estar dotada
de mecanismos de sucessão hereditária régia, que deveriam ser acatados pela
aristocracia do reino, em constante concorrência pela ocupação do cobiçado
trono, foram as conjunturas próprias de cada momento que determinaram
quem seria o próximo a ocupar o poder.
A partir dessas questões que envolvem a ascensão ao trono,
percebemos a dinâmica que envolvia Monarquia, Igreja e Nobreza. Esses
grupos queriam exercer sua inuência dentro do reino. Porém, certa relação
de dependência entre os mesmos. A partir dessas problemáticas, ressaltamos
a participação de Isidoro de Sevilha. Este bispo procurou, ao mesmo tempo,
aproximar os interesses da Igreja com os da Monarquia, como também, não
ferir os anseios da Nobreza.
Dessa forma, nosso objetivo, a seguir, será identicar na obra
Sentenças os ideais políticos do sevilhano. Tentaremos, assim, perceber, por
meio da junção dessa produção, as principais aspirações e temores que o
prelado tinha com relação à monarquia visigoda e seus reis, bem como quais
elementos e conduta deveriam ter o princeps isidoriano.
Sentenças
Nosso propósito, assim, será identicar as características de um
bom monarca que encontramos na obra Sentenças. Dessa forma, tentaremos
esclarecer algumas das ideias e concepções isidorianas a esse respeito.
Como mencionamos anteriormente, o sevilhano não escreveu um texto
voltado exclusivamente para a monarquia, mas deixou espalhada em suas
obras várias referências a tal instituição. Entre esses escritos, Sentenças se
congura como uma das principais menções à boa conduta dos governantes.
Razão pela qual, daremos maior enfoque a esta obra. Entretanto, cabe
ressaltar que existem outras referências produzidas por Isidoro que cotejam
questões referentes à monarquia e complementam as Sentenças. Entre elas,
podemos citar o IV Concílio de Toledo
7
, que teve as atas redigidas pelo bispo
sevilhano, bem como duas de suas obras: História dos Godos, Vândalos e
Suevos e Etimologias. Este conjunto de textos complementa e permeia o
pensamento político isidoriano, uma vez que tais trabalhos formam uma rede
de interinuências e continuidade de sua produção intelectual.
Acreditamos ser possível, devido à natureza clerical da fonte
reveladora, portanto, do lado mais institucionalizado da Igreja no seu
respectivo período –, evidenciar possíveis projetos e embates presentes no
seio eclesiástico e social. Porém, engana-se quem acredita que tal corpus
7 Cf concílios: III Toledo (589), p. 107-145; IV Toledo (633), p. 186-225.
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
seja restrito, em seu conteúdo, apenas a matérias meramente religiosas. Ao
contrário, apresenta-nos uma característica incipiente do período, no caso, a
busca de uma intervenção, principalmente, no âmbito político. Dessa forma,
concordamos com F. Vallejo (1989, p. 15) que arma que podemos identicar
que a obra literária medieval é um conjunto de signicações que remetem a
códigos de diversas naturezas (linguísticos, ideológicos, losócos, teológicos,
sociais, e etc.).
Assim, revelamos que, apesar do cunho das fontes, os documentos
não se encerram em suas palavras. Elas apresentam uma multiplicidade
de discursos presentes, que demonstram lutas intestinas, bem como a
existência de vontades alheias aos próprios autores, no nosso caso advindo
dos quadros eclesiásticos
8
.
Ao utilizarmos esse raciocínio no reino visigodo, em que a Igreja, em
muitos aspectos, apresentou traços de uma hierarquia próxima da nobreza,
ganharemos um foco de análise bastante relevante para a abordagem das
relações de poder no século VII. Assim, acreditamos que, por meio da análise do
discurso da obra de Isidoro de Sevilha
9
, conseguiremos relacionar, na Hispânia,
as ligações íntimas e de interdependência que existem entre religião e política.
Por m, surge como via fundamental, para analisarmos a Igreja e suas
relações com a Monarquia, a concepção de ideologia desse discurso. Dada a
gama de signicados que possa apreender o termo “ideologia”, concordamos
com a perspectiva de Georges Duby (1979, p. 132) que a entende como: “um
sistema (possuindo sua lógica e rigor próprios) de representações (imagens,
mitos, ideias ou conceitos, segundo a ocasião) dotado de uma existência e de
um papel histórico no seio de uma dada sociedade”.
Dentro desse entendimento, percebemos os propósitos ideológicos
de Isidoro de Sevilha, em razão de entendermos essa idealização como
sistemas de representação que têm como nalidade tranquilizar e fornecer uma
justicativa às condutas individuais e coletivas. Em outras palavras, podemos
dizer que corresponde a uma determinada forma de construir representações
ou de organizar representações existentes para atingir determinados
interesses. Para G. Duby (1979), os documentos elucidam as ideologias que
respondem aos interesses das camadas dirigentes, em virtude desses grupos
8 Desta forma, utilizamos o artigo da linguista Maria Lúcia C. V. de O. Andrade (2007, p.
01-10) que analisa questões como o poder e a persuasão no discurso religioso medieval,
demonstrando que através de recursos retóricos, certos grupos dotam os discursos de
mecanismos persuasivos, porque o discurso e o poder se contemplam e podem coexistir.
9 Aline Coutrot (1996, p. 331) nos mostra que “as forças religiosas são levadas em conside-
ração como fator de explicação política em numerosos domínios”. Apesar de ter uma leitura
marcadamente focada na análise da instituição no século XIX, tal obra tem reexões que
consideramos úteis. A autora ressalta que a instituição religiosa tem em seu cerne muito
da sociedade e das relações políticas que a cercam. Desta forma, como corpos imersos no
meio social, reproduzem as relações políticas e suas transformações.
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deterem os meios de edicar objetos culturais que não eram efêmeros e cujos
vestígios demonstram-se a análise histórica. Com essas considerações de
cunho teórico-metodológico, centraremos nossa análise na obra Sentenças.
A obra Sentenças foi escrita aproximadamente em 615, período de
governo de Sisebuto (612-621). Vale lembrar que esse rei incorporava, sob a
ótica de Isidoro, boa parte dos atributos de um bom monarca, além de exercer
sobre ele uma espécie de tutoria. Outro fator determinante para a elaboração
dessa obra foi a crise sucessória gerada no trono de Toledo com a morte de
Recaredo (601). Após o falecimento deste rei, Liuva II, seu lho, assumiu
o trono. Porém, tal governante sofreu um golpe organizado por membros
da nobreza, após dois anos de reinado. Esses elementos de insegurança,
que giravam em torno do trono Visigodo, estimularam o sevilhano, como
discutimos anteriormente, a criar mecanismos de legitimação em torno da
coroa. Acreditamos que Sentenças seja um bom exemplo disso, principalmente
pelas características, apontadas pelo sevilhano, que um monarca deve ter para
ser um enviado de Deus e estar a serviço da Igreja e do povo.
Assim, compreendemos as Sentenças como um resumo de todo
saber teológico do sevilhano. Essa produção expõe, de forma ordenada, as
verdades da e da losoa, no que diz respeito a Deus, ao homem e ao
mundo. Dividida em três livros, no qual o primeiro predomina a síntese da
cristã e os fundamentos da Igreja com relação à salvação pessoal; o segundo,
por sua vez, abarca vários temas, como a análise do pecado, dos vícios e
o processo de conversão; o terceiro, e último, traça o problema da reação
do cristão perante as diculdades de seu cotidiano, suas responsabilidades
sociais e os deveres de cada situação e ofício, concluindo com considerações
em torno da brevidade da vida.
M. C. Díaz y Díaz (1982) também destaca as fontes utilizadas por
Isidoro na composição das Sentenças. Entre elas podemos citar tanto as obras
de Santo Agostinho de Hipona (De Trinitate, De civitate Dei, Confessiones,
De Genesi ad litteram), como a do papa Gregório Magno (Regula pastoralis)
além, é claro, do livro mais lido e utilizado de toda a Idade Média, a Bíblia.
Isidoro, em várias passagens de seus escritos, faz menção direta a trechos e
ensinamentos bíblicos.
A construção isidoriana da imagem de príncipe ideal está centralizada,
especicamente, nos capítulos 47 ao 51, por isso focaremos nossas análises
apenas nessas partes, que compõem o terceiro livro das Sentenças.
A tese central desta obra é o pecado. O homem pode se fortalecer
por meio da espiritualidade aproximando-se de Deus ou se distanciando das
virtudes, ligando-se ao pecado, ao materialismo e à vida mundana. Sendo
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
assim, o pensamento de Isidoro repousa na dualidade em que o homem vive:
as virtudes e os vícios.
O conceito de vício que o bispo utiliza tem o signicado de pecado.
O homem tem uma maior tendência a tê-los quanto mais se afasta de Deus.
Dessa forma, percebemos que as concepções isidorianas estão permeadas
por uma luta constante entre o bem e o mal, das virtudes e dos vícios. Essa
característica facilita a identicação dessas ideias que estão presentes na
maioria de suas obras (FELDMAN, 2005, p. 255-265). Acreditamos que seja
necessário, aqui, citarmos alguns excertos que expressam essas concepções:
Es difícil que un príncipe se regenere, si estuviere enredado en el
vicio. [...] Los reyes, en cambio, de no enmendarse por el solo temor
de Dios y el miedo al inerno, sin dicultad se lanzan a la deriva, y
por el precipicio del desenfreno sucumben en toda clase de vicios
(ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 497-97, c.50, 4).
O governante, portanto, tem que tomar cuidado com a sua conduta,
haja vista que Isidoro o coloca na posição de “modelo a ser seguido” por todos
os seus súditos. Dentro dessa mesma lógica, se o povo tem um rei pecador,
eles logo, também, cometerão pecados ou vícios, conforme expressa Isidoro:
“[...] es preciso que el príncipe no peque, a n de que no constituya un estímulo
para el vicio su desenfreada licencia de pecar. Porque el rey que sucumbe al
vicio, pronto muestra el camino del pecado [...]” (ISIDORO DE SEVILHA. Sent.,
V. 2, livro 3, p. 498, c.50, 6.).
Em virtude de se acreditar que o homem nasceu de uma transgressão,
o pecado original, Isidoro, nas Sentenças, consagrava a existência de um
poder terreno. Este fazia parte de um plano divino e teria como função,
principalmente, impedir e corrigir as consequências do pecado. Na concepção
do bispo sevilhano, Deus entregou o poder aos reis com o propósito de afastar
o povo do mal e conduzi-lo ao bem, por meio das leis.
Percebemos que o monarca não governa apenas para o povo sob seu
domínio, mas para uma comunidade de cristãos. Fica-nos evidente, portanto,
um dos principais propósitos de Isidoro de Sevilha: assinalar a existência do
poder real como algo concebido como um ofício (ORLANDIS, 1993, p. 55-
64). Para dar maior sustentação a tal argumentação, citamos, abaixo, alguns
excertos que demonstram essas ideias:
[...] el principado debe favorecer a los pueblos y no perjudicarles; no
oprimirles con tirania, sino velar por ellos siendo condescendiente,
a n de que este su distintivo del poder sea verdadeiramente util y
empleen el don de Dios para proteger a los miembros de Cristo. Cierto
que miembros de Cristo son los pueblos eles, a los que, en tanto les
gobiernen de excelente manera con el poder que recibieron, devulvan
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a Dios, que se lo concedió, un servicio ciertamente útil (ISIDORO DE
SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 497, c.49, 3).
Encontramos semelhanças nos enaltecimentos ou “virtudes
majestáticas”. Isso forma um conjunto de qualidades pessoais, religiosas e
militares do monarca. Tais atributos conguram o retrato do bom governante nas
fontes ociais e eclesiásticas. Essas caracterizações da Monarquia acabaram,
em alguns casos, inuenciando os próprios reis que se “esforçavam” para
alcançar esse protótipo de qualidades e virtudes que somente os “eleitos de
Deus” possuíam:
El rey virtuoso más fácilmente se aparta del delito para dirigirse a la
justicia que abandona la justicia para entregarse al delito, a n de
que se conozca que lo segundo es una desgracia fortuita; lo primero
constituye su ideal. En su propósito debe estar no apartase nunca
de la verdad. Y si por azar le aconteciere tener un tropeizo, que se
levante en seguida (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p.
497, c.49, 4).
Identicamos três das virtudes régias mais ressaltadas por Isidoro
de Sevilha: a justiça, a humildade e a piedade. Destacando que os reis devem
governar com retidão, tanto para seu povo como para si mesmos:
Los reyes han recibido el nombre por obrar con rectitud, y así, uno
conserva el nombre de rey si obra rectamente, y lo pierde con el
pecado. A causa de esto, leemos en las Sagradas Escrituras que los
varones santos se llaman también reyes, porque obran con rectitud,
gobiernan con acierto sus propios sentidos y dominan los movimientos
desordenados con el buen juicio de la razón. Justamente, pues, se
denomina reyes a aquellos que con su buen gobierno supieron dirigir
tanto a si mismos como a los súbditos (ISIDORO DE SEVILHA. Sent.,
V. 2, livro 3, p. 494, c.48, 7).
Outra qualidade destacada pelo sevilhano relaciona-se ao respeito
que os monarcas deveriam apresentar diante das leis e da Igreja. O prelado
justica essa preocupação, armando que o rei deveria ser valoroso, uma vez
que ele poderia ser, dependo de seu caráter, tanto exemplo que inuenciava
seus súditos para bom caminho, como, em situação contrária, estimulador
ao pecado, na ausência de tais virtudes. Por isso, segundo o pensamento
do bispo, os reis não podem pecar, haja visto que esse ato poderia se tornar
um hábito público. Além disso, não podemos nos esquecer de que os reis
estavam submetidos às leis e que, segundo P. D. King (1981, p. 64): “Por
ley, pues, los reyes estaban sometidos a las leyes: la ley de Dios, expresada
en las leyes reales, obligaba a todos”. Vejamos agora o que pensou Isidoro
sobre esta questão:
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
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Es justo que el príncipe obedezca a sus leyes. En efecto, entonces
estime que todos han de cumplir su justicia cuando él por su parte
les tiene respeto. [...] Las potestades seculares están sometidas a la
disciplina religiosa, y, aunque gocen de la soberania real, se hallan
obligados por el vínculo de la fé, a n de proclamar en sus leyes la fe
en Cristo y conservar con las buenas costumbres la profesión de la Fe
(ISIDORO DE SEVILHA.Sent., V. 2, livro 3, p. 499-500, c.51, 1 e 3).
Ademais, chama-nos a atenção o fato de que a grande responsabilidade
dada aos reis por Deus será cobrada a altura de seu encargo (ISIDORO DE
SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 498, c.50, 5). Isidoro, também, faz ressalvas sobre as
consequências de um mau governo. Dentro de suas concepções, os governantes não
carão isentos de prestarem contas de suas condutas no dia do Juízo Final:
El que en el mundo gobierna bien temporalmente, reina sin n en la
eternidad, y de la gloria de este siglo se traslada a la gloria. Mas los
que ejercen mal su realeza trás el vestido refulgente y la diadema de
piedras preciosas, caen desnudos y miserables en los tormentos del
inferno (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 494, c.48, 6).
O sevilhano, igualmente, fez observações à tirania, considerada
por ele o oposto das virtudes. Para o bispo, tirano era aquele que exercia a
autoridade de forma despótica. Era a forma de subir ao trono por meio de uma
sublevação. Como foram os casos dos reis Atanagildo (555-567) e Witerico
(603-610): “[...] Atanagildo ocupo el reino, que había invadido, durante catorce
años” (SEVILHA, 1975, p. 251). Já, Witerico:
[...] asesinado Liva, Witerico reivindico para si durante siete años el
reino, que había invadido en vida de aquél. Fue hombre valiente en
el arte de las armas, pero desconoció la victoria. [...] Hizo en vida
muchas acciones ilícitas, y en la muerte, porque había matado con la
espada, murió con la espada (SEVILHA, 1975, p. 269-271).
Porém, devemos salientar que, apesar de Isidoro defender essa
ideia, isso não signicava que os reis que chegaram ao trono por meio de um
golpe não tenham alcançado e legitimado seu poder de fato, isto é, a forma
como um rei chegava ao trono, não era motivo para destituí-lo. Lembrando que
o critério mais importante a ser considerado no processo de validação do seu
poder era o sucesso ou o insucesso em suas rebeliões.
Entendemos a perspectiva isidoriana de realeza como um projeto
ideológico. No qual, apresenta elementos que nos permitem identicar, em
consonância com as ideias de G. Duby (1979, p. 133-134.), características
estabilizadoras. Apresentam, portanto, um espírito conservador. Pois, Isidoro,
em seus escritos, não se afastou dos conceitos de governante formulado, por
exemplo, por Santo Agostinho e Gregório Magno. Outro ponto, nessa mesma
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linha, foi a limitação do poder régio por meio, tanto das leis, como da prestação
de contas ao poder divino sobre a sua conduta terrena. Além do fato de que a
Igreja tinha o propósito de dar legitimidade à realeza como também o intuito de
resolver os conitos e sublevações que a Monarquia eletiva gerava dentro do
reino e que causavam grande instabilidade.
Notamos que o medo do porvir era uma constante dentro da concepção
isidoriana, principalmente, no que tange a questão do como conduzir o reino
após a morte de Recaredo. Isto teria contribuído para que o bispo mantivesse
suas bases mais conservadoras. Também não podemos nos esquecer de que
a própria Igreja possuía forte resistência a grandes mudanças. Porém, apesar
dos receios das transformações tanto em nível pessoal como institucional, o
sevilhano tinha olhos no futuro, especialmente na tentativa de concretizar uma
sociedade visigoda mais perfeita. Isso, na visão de G. Duby, signica que:
[...] nas culturas cuja história podemos escrever, todos os
sistemas ideológicos fundamentam-se numa visão dessa história,
estabelecendo a partir de uma memória de tempos passados, objetiva
ou mística, o projeto de um futuro que presenciaria a chegada de
uma sociedade mais perfeita. São todos portadores de esperanças.
Encorajam a ação. Todas as ideologias são “práticas”, e contribuem a
partir daí para animar o movimento da história (DUBY, 1979, p. 134).
Nas questões estruturais do texto, ou seja, do discurso de Isidoro,
podemos identicar elementos de indução tais como a persuasão, cujo
objetivo seria articular e organizar suas ideias de forma a convencer seus
receptores. Reconhecemos essa característica, principalmente, por meio de
recursos linguísticos, como o caso da retórica. Maria Lúcia C. V. O. Andrade
(2007) arma que o discurso e o poder são elementos que se contemplam
e coexistem, sendo o discurso religioso de alto cunho autoritário. Além de
apresentarem uma realidade imaterial, em virtude de utilizarem a noção de
dogma, pois “[...] Deus não fala, quem fala em seu nome não é ‘dono’ do
discurso: o pastor é apenas o intermediário, ou seja, o porta-voz das palavras
de Deus” (ANDRADE, 2007, p. 4).
Assim, o bispo sevilhano chamava a atenção dos reis para suas
tarefas. Uma das mais presentes nos escritos do autor era a função dos
governantes como os protetores da ordem judicial, que esses nomeavam ou
deixavam a cargo de pessoas consideradas de conança as funções judiciais.
Sendo assim, o monarca não era apenas um legislador, como exemplo a lex
in conrmatione concilii
10
, visto que era função dos reis a promulgação de leis
por meio desse documento, mas também a custódia da justiça. De acordo
10 A convocatória do concílio, a entrega do tomus e a lex in conrmatione concilii foram com-
petências que os imperadores romanos exerceram no âmbito eclesiástico e que também
foram desempenhadas pelos monarcas visigodos (VALVERDE CASTRO, 2000, p. 199).
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
com as premissas teocráticas, o rei era a máxima autoridade em matéria
judicial, entretanto, nem sempre esse dispôs de meios para fazer cumprir as
leis que ditava.
Isidoro foi bem enfático na questão de que era obrigação dos
monarcas zelarem por seus súditos, por isso, tinham que escolher, ou seja,
nomear juízes justos para seu povo: “Constituye un delito en los príncipes el
que asignen, contra la voluntad de Dios, jueces perversos a los pueblos eles.
Porque como es delito del pueblo que los príncipes sean malos, así es pecado
del príncipe que los jueces resulten inicuos” (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V.
2, livro 3, p. 501, c.52, 1).
Essa concepção de serviço, que Isidoro destina aos monarcas
visigodos, tem origem na doutrina paulina. Essa defende que os reis tinham a
função de proteger, ou melhor, erradicar o mal, por meio da força da espada:
Si es cierto que el Apóstol dice: No hay autoridad que no provenga de
Dios, ¿como el Señor, por boca del profeta, dice de ciertas potestades:
Ellos fueron reyes, pero no elegidos por mi?; como si dijese: “Sin
mostrarme yo favorable, sino incluso muy airado”. De ahí que más
abajo añada el mismo profeta: Te daré un rey en mi furor. Con lo
cual se evidencia con toda claridad que tanto la buena como la mala
potestad son instituidas por Dios; mas la buena siendo El favorable,
la mala estando airado (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p.
495, c.48, 10).
Para o apóstolo Paulo, se o mal não existisse não haveria a necessidade
de que o príncipe pegasse em armas. Dessa forma, percebemos que a monarquia
era um poder com objetivo especíco: contribuir para a realização dos desígnios
de Deus sobre a terra. Entretanto, a função do governante, defendida na doutrina
paulina, negava a autonomia de qualquer governante secular, pois essa instância
de poder tinha o papel meramente auxiliar:
El reino celeste progresa muchas veces gracias al reino terreno,
con el n de que sean abatidos por el rigor de los príncipes quienes
dentro de la Iglesia atentan contra la fe y la disciplina eclesiástica, y
que la autoridad del príncipe imponga a los espíritus rebeldes esta
misma disciplina que la Iglesia en su humildad no puede ejercitar, y
comunique a la Iglesia la ecacia de su poder para que merezca el
respeto (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 500, c.51, 5.).
Vale lembrar que o sevilhano fez ressalvas aos governantes que não
cumprissem os desígnios de Deus:
Sepan los príncipes terrenos que han de dar cuenta a Dios de la
Iglesia, cuya protección Cristo les confía. Porque, ora se acreciente
la paz y la disciplina de la Iglesia merced a los príncipes leales, ora
se arruinen por su causa, a éstos pedirá cuenta Cristo, que conó su
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Pâmela Torres Michelette
Iglesia a su poder (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 500,
c.51, 6.).
Entretanto, se fosse um bom governante: “El que en el mundo
gobierna bien temporalmente, reina sin n en la eternidad, y de la gloria de
este siglo se traslada a la gloria eterna” (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2,
livro 3, p. 498, c.48, 6).
As passagens selecionadas dos escritos de Isidoro deixam-nos
claro as intenções do sevilhano com relação ao papel que o rei deveria
exercer dentro da sociedade cristã. Seus conceitos basearam-se na
interação entre Igreja e Monarquia. Dessa forma, o monarca não estava
submetido à Igreja, apenas exercia papel preponderante dentro dela.
Principalmente, quando fosse necessário armar a disciplina perante a
incapacidade das autoridades eclesiásticas.
Isidoro dene bem os limites da ação do poder régio no interior da
Igreja. Entretanto, concordamos com D. V. Ribeiro (1989), que ressalta que
Isidoro não tinha a intenção de submeter à monarquia a Igreja. O sevilhano
tinha receio de que a realeza interferisse de maneira inconveniente nos
assuntos eclesiásticos, mas, por outro lado, queria que o poder monárquico
agisse em conformidade com os preceitos e funções que o plano divino havia
lhe encarregado: proteger a Igreja e seu reino.
Mais uma vez, Isidoro assemelha-se às ideias do apóstolo Paulo.
Este último ressalta a obediência aos governantes, conforme os escritos na
sua Carta aos Romanos (Rm. 13, 3-7):
Sejam todos submissos às autoridades superiores porque não
existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram
instituídas por Ele. Aquele que resiste à autoridade, rebela-se contra
a ordem estabelecida por Deus e atrai para si a própria condenação.
Com efeito, os magistrados não existem para serem temidos quando
se pratica o bem, mas quando se faz o mal.
D. V. Ribeiro (1989, p. 8) arma que tais conceitos assinalam a
fundamentação providencialista do poder, haja visto que possuem origem
na ação divina. O mesmo autor, ainda, ressalva que essa concepção de
autoridade demonstra a separação incontestável entre Igreja e poder público:
“a submissão dos éis a autoridade constituída e a participação do Estado na
obra da Providência”.
Ainda com relação aos maus reis, Isidoro defendia que deveriam ser
obedecidos. Isso se deve ao fato do sevilhano compartilhar da ideia de que
cada povo tem o regente que merece. Logo, se os súditos são bons terão um
bom soberano e se forem maus terão governantes péssimos. Acrescenta-
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
se a tal sugestão do sevilhano, frente a um mau monarca, a questão que
discutimos anteriormente, do chefe político ser um enviado de Deus. Em
outros termos, o povo não pode ir contra os desígnios divinos, pois cabia
somente a vontade divina a destituição de um rei. A questão do castigo de
Deus ao povo com um líder mau fazia com que uma pessoa de bom caráter
que subisse ao trono para governar se tornasse um indivíduo impiedoso, em
decorrência da conduta de seus súditos.
Entretanto, com relação ao tirano, P. D. King (1981, p. 70) arma, “los
grandes del reino no necesitaban de ninguna teoría elaborada que justicase
el tiranicidio o la deposición para levantarse en armas”. Fica evidente, aqui, a
contradição existente entre os princípios de governo e a realidade do poder no
reino visigodo.
Devemos ressaltar que não se conseguiu conter, por completo, os
anseios da aristocracia hispânica, apesar da Igreja tentar legitimar a realeza,
seja por meio dos concílios ou por meio da concepção do aval divino. Assim,
como justicar que um enviado de Deus tinha perdido o trono e outro assumido
o poder com sucesso? Se Deus está interferindo nos assuntos terrenos, será
que ele queria que essas sublevações acontecessem?
A Igreja tentou remediar estas situações justicando que revoltas
bem sucedidas eram a vontade de Deus imperando. Neste sentido, muitos
daqueles que se tornaram reis, por meio de sublevações, utilizaram desses
argumentos para obter a mesma legitimidade do governante deposto. A Igreja,
por sua vez, como não tinha força para afastar tal monarca e não desejosa de
perder todos os seus privilégios, conferia a esse novo governante a “Graça
divina”, como foi o caso do rei Sisenando (631-636).
Como identicamos anteriormente, Isidoro defendeu que era função
dos reis oferecerem leis justas. Sendo assim, é importante acentuarmos o papel
da misericórdia como virtude real. A clemência foi um atributo tradicional do
bom monarca. O prelado utiliza-se dessa qualidade para chamar a atenção dos
governantes no que tange a severidade das leis, que deviam ser amenizadas
por meio do exercício da misericórdia. Vejamos:
En muchos se descubre el delito de conspirar contra los príncipes;
pero Dios quiere poner a prueba la clemencia de los soberanos, a
aquéllos les permite poner asechanzas y a éstos no les abandona. De
la maldad de los primeros saca un bien para los segundos, los cuales
perdonan con ejemplar paciencia las culpas que aquéllos cometen
(ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2, livro 3, p. 497-98, c.50, 2).
As concepções monárquicas de Gregório Magno e Isidoro tiveram
os aspectos de uma sociedade cristã. Por esse motivo, ambos defendem
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que a realeza era um poder destinado a exercer sua função na terra e
estar a serviço da Igreja, que o propósito nal era alcançar a salvação.
Assim, cada uma dessas instâncias teria sua parcela de responsabilidade
nos planos divinos.
Em consonância com a ideia acima, cabe mencionar um último
excerto das Sentenças. Nele cam nítidos os propósitos de Isidoro na tentativa
de demonstrar aos governantes quais deveriam ser as suas principais posturas,
quando esses estivessem no poder:
El que usa rectamente de la autoridad real, establece la norma de
justicia con los hechos más que con las palabras. A este no le exalta
ninguna prosperidad ni le abate adversidad alguna, no descansa en
sus propias fuerzas ni su corazón se aparta de Dios; en la cúspide
del poder preside con ánimo humilde, no le complace la iniquidad
ni le inama la pasión, hace rico al pobre sin defraudar a nadie y a
menudo condona con misericordiosa clemencia cuanto con legítimo
derecho podría exigir al pueblo (ISIDORO DE SEVILHA. Sent., V. 2,
livro 3, p. 496, c.49, 2).
Mais uma vez podemos apontar as qualidades que foram ressaltadas
pelo sevilhano, percebidas, diversas vezes, ao longo dos capítulos que ele
destinou a realeza. Esses atributos são: justiça, humildade, misericórdia e
clemência. Além dos conselhos e deveres que o bispo também elencou, tais
como: utilizar com retidão o seu poder; não se afastar dos desígnios de Deus;
combater a iniquidade e nem deixar se levar pelas paixões; não desfalcar
ninguém para favorecer a outros. Por último, porém o mais importante, a
questão da legitimidade do poder real. Este era um problema que não somente
Isidoro, mas a Igreja como instituição, procurava resolver, pois fragilizava não
apenas a Monarquia, mas a unidade do reino.
Podemos perceber que a concepção político-ideológica de Isidoro
relacionada à realeza visigoda teve o propósito de se adaptar para resistir
ou alcançar a vitória. Lembrando que as ideologias podem seguir por dois
caminhos, conforme as situações elas “[...] armam-se ou tornam-se exíveis,
armam-se ou dissimulam-se, mascaram-se sob o véu de novas aparências”
(DUBY, 1979, p. 134-135). Tudo isso com o objetivo de alcançar o resultado
esperado que, no caso visigodo, era resolver as questões que envolvem a
ascensão e permanência no trono. Assim, Isidoro de Sevilha tornou-se o porta
voz dos anseios da Igreja com relação à Monarquia visigoda.
Dessa maneira, podemos observar, de forma breve, que, nestes
capítulos, Isidoro abordou assuntos referentes à Monarquia, tais como: o
poder emanar diretamente de Deus, que foi, em seguida, concedido por
Ele para reprimir o mal. Consequentemente, os reis devem sempre exercer
o bem, visto que estes estão sujeitos às leis. Logo, devem tanto exercer a
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A visão do bispo visigodo Isidoro de Sevilha em sua obra Sentenças sobre o modelo
ideal de Monarca
justiça, como ter a virtude da paciência e o dever de propiciar o bem para
os súditos. Ele também mencionou a relação que o rei deveria estabelecer
com a Igreja.
Isidoro acabou não desenvolvendo muito a questão dos maus reis.
Frisando na maior parte dos seus escritos as qualidades e virtudes e não
os defeitos que por ventura fossem necessários, caso fossem uma vontade
divina. Isso nos sugere que ele tinha uma preocupação maior em ressaltar o
bom para assim propagar esse exemplo e, é claro, não resvalar na Igreja os
possíveis “excessos” desse mau governante, pois ele não especíca quem
são esses súditos que necessitariam dessas lições, não deixando explícito
se a Igreja estaria entre eles.
Considerações nais
Assim, identicamos que se criou uma ideia do que seria um
governante ideal. Tanto para a Monarquia como para a Igreja, haja visto
que ambas se apoiaram nesta perspectiva. Destarte, conseguiram hibridar,
na instância de poder real, elementos que o diferenciaram do restante das
outras instituições, uma vez que a gura governamental foi elevada ao status
de enviado de Deus. Em contrapartida, a Igreja teve que traçar justicativas
que limitassem esse poder excessivo, para que ela não estivesse submetida
sob a sua vontade absoluta. Isidoro soube contornar bem essa situação,
quando colocou que Deus conferiu tais poderes com propósitos denidos:
o de cuidar da Igreja e de seus súditos, ou seja, a ideia de serviço. Aqueles
que não cumprissem tais desígnios prestariam contas no dia do Juízo Final.
Se por um lado, a Igreja precisava se aliar à Monarquia, não se podem
negar por outro, que esta última também necessitava do apoio da primeira,
pois, a monarquia, isoladamente, não conseguiria incorporar elementos que
a caracterizassem como teocrática. A Igreja era a única instituição, no reino
visigodo, que era capaz de associar a gura do rei aos preceitos divinos.
Ao longo deste trabalho, percebemos que o sevilhano se mostrou
contraditório. Pois, em muitos momentos, ele teve que se adequar à situação
presente. Mas, apesar desses desacordos, não podemos negar que ele foi
de grande importância para o fortalecimento da monarquia. Acreditamos, por
m, que ele colaborou mais no âmbito político, principalmente, no que tange
à conguração de um perl idealizado para o trono visigodo que, diga-se de
passagem, muitos tentaram seguir. Obviamente que nem seus escritos e
nem sua participação nos concílios, ao lado de alguns governantes, foram
sucientes para afastar os perigos das ambições ao trono.
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Pâmela Torres Michelette
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